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Document 62021CC0472

    Conclusões do advogado-geral M. Szpunar apresentadas em 8 de setembro de 2022.
    Monz Handelsgesellschaft lnternational mbH & Co. KG contra Büchel GmbH & Co. Fahrzeugtechnik KG.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof.
    Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Desenho ou modelo — Diretiva 98/71/CE — Artigo 3.o, n.os 3 e 4 — Requisitos de obtenção da proteção para um componente de um produto complexo — Conceitos de “visibilidade” e de “utilização normal” — Visibilidade de um componente de um produto complexo durante a utilização normal deste produto pelo utilizador final.
    Processo C-472/21.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:656

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MACIEJ SZPUNAR

    apresentadas em 8 de setembro de 2022 ( 1 )

    Processo C‑472/21

    Monz Handelsgesellschaft International mbH & Co. KG

    contra

    Büchel GmbH & Co. Fahrzeugtechnik KG

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha)]

    «Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Desenho ou modelo registado — Diretiva 98/71/CE — Artigo 3.o, n.os 3 e 4 — Requisitos de proteção para um componente de um produto complexo — Conceitos de “visibilidade” e de “utilização normal” — Novidade e caráter singular — Visibilidade de um componente de um produto complexo durante a utilização normal deste produto»

    Introdução

    1.

    Os requisitos exigidos para a proteção de um desenho ou modelo ao abrigo do direito da União são a sua novidade e o seu caráter singular. Contudo, a situação assume contornos mais complicados quando o produto ao qual o desenho ou o modelo em questão é aplicado constitui um componente de um produto complexo. Nesse caso, a proteção só é concedida se, por um lado, esse componente, depois de montado, continuar visível durante a utilização do produto complexo de que faz parte e, por outro, se as partes visíveis do componente apresentarem as características exigidas de novidade e de caráter singular. Estes requisitos adicionais foram instituídos para evitar a monopolização, através do direito aplicável aos desenhos e modelo, da produção e comercialização de peças sobressalentes de produtos complexos, nomeadamente no setor automóvel ( 2 ).

    2.

    O facto é que os requisitos exigidos para obter a proteção dos desenhos ou modelos aplicados a componentes de produtos complexos dizem respeito a todos os setores e, na prática, é muitas vezes difícil interpretar corretamente os conceitos de «visibilidade» e «utilização normal» do produto. Esta interpretação constitui o objeto do presente processo.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3.

    Nos termos do artigo 1.o da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos ( 3 ):

    «Para efeitos do disposto na presente diretiva:

    a)

    “Desenho ou modelo” designa a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto, resultante das características, nomeadamente de linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação;

    b)

    “Produto” designa qualquer artigo industrial ou de artesanato, incluindo, entre outros, os componentes para montagem de um produto complexo, as embalagens, os elementos de apresentação, os símbolos gráficos e os carateres tipográficos, mas excluindo os programas de computador;

    c)

    “Produto complexo” designa qualquer produto composto por componentes múltiplos suscetíveis de serem dele retirados para o desmontar e nele recolocados para o montar novamente.»

    4.

    Nos termos do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da referida diretiva:

    «3.   Considera‑se que o desenho ou modelo que se aplica ou está incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo é novo e possui caráter singular:

    a)

    Se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último; e

    b)

    Na medida em que as próprias características visíveis desse componente preencham os requisitos de novidade e de caráter singular.

    4.   Para efeitos do disposto na alínea a) do n.o 3, entende‑se por “utilização normal” a utilização pelo consumidor final, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação.»

    Direito alemão

    5.

    O artigo 1.o, n.o 4, e o artigo 4.o da Gesetz über den rechtlichen Schutz von Design (Lei Relativa à Proteção dos Desenhos), de 24 de fevereiro de 2014 ( 4 ), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «DesignG»), transpõem, em substância, literalmente o artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71. No entanto, a expressão «bestimmungsgemäße Verwendung», utilizada para designar «utilização normal», na versão em língua alemã desta diretiva e, por conseguinte, na DesignG parece conduzir a uma interpretação mais restritiva do que a resultante das outras versões linguísticas da referida diretiva.

    Factos na origem do litígio, processo principal e questões prejudiciais

    6.

    A Monz Handelsgesellschaft International mbH & Co. KG (a seguir «Monz»), uma sociedade de direito alemão, é titular do desenho ou modelo n.o 40 2011 004 383‑0001, registado no Deutsches Patent‑ und Markenamt (Instituto de Marcas e Patentes Alemão, a seguir «DPMA»), desde 3 de novembro de 2011, para os produtos «selins para bicicletas ou motocicletas». O desenho ou modelo está registado com uma representação única que apresenta a superfície inferior de um selim, da seguinte forma:

    Image

    7.

    A Büchel GmbH & Co. Fahrzeugtechnik KG (a seguir «Büchel»), também uma sociedade de direito alemão, pediu ao DPMA, em 27 de julho de 2016, que fosse declarada a nulidade do desenho ou modelo contestado, alegando que este não cumpria os requisitos de proteção, designadamente a novidade e o caráter singular. Sustentou que este desenho ou modelo não podia beneficiar da proteção ao abrigo do artigo 4.o da DesignG pelo facto de não ser visível enquanto componente de um produto complexo como uma «bicicleta» ou «motocicleta» durante a sua utilização normal.

    8.

    Por Decisão de 10 de agosto de 2018, o DPMA indeferiu o pedido de declaração de nulidade considerando que não existiam motivos para a exclusão da proteção do desenho ou modelo contestado nos termos do artigo 4.o da DesignG. Segundo o mesmo, embora seja verdade que o desenho ou modelo cujo registo foi pedido para ser aplicado a «selins para bicicletas ou motocicletas» seja um «componente de um produto complexo», este componente permanece visível durante a utilização normal desse produto complexo. O DPMA considerou que uma utilização normal abrangia também «o ato de desmontar e montar novamente o selim que não vise a conservação, manutenção ou reparação», tanto mais que o artigo 1.o, n.o 4, da DesignG contém «uma lista exaustiva de utilizações não normais na aceção do artigo 4.o da DesignG, concebida como uma exceção, sendo, por isso, de interpretação estrita» ( 5 ). O DPMA considerou que decorre desta disposição que «qualquer utilização pelo consumidor final que não seja uma medida de conservação, manutenção ou reparação […] constitui, deste modo, uma utilização normal».

    9.

    Na sequência de uma reclamação apresentada pela Büchel contra essa decisão, o Bundespatentgericht (Tribunal Federal das Patentes, Alemanha) declarou, por Decisão de 27 de fevereiro de 2020, a nulidade do desenho ou modelo contestado com o fundamento de que não cumpria os requisitos de novidade e de caráter singular. Segundo esse órgão jurisdicional, por força do artigo 4.o da DesignG, apenas os componentes que permanecem «visíveis, enquanto componentes do produto complexo, após a sua montagem/incorporação», são, à partida, suscetíveis de beneficiar da proteção dos desenhos e modelos. Pelo contrário, a visibilidade que ocorre apenas em resultado ou por ocasião da separação do componente de um produto complexo não permite fundar uma visibilidade que se oponha à exclusão da proteção ao abrigo do artigo 4.o da DesignG. O referido órgão jurisdicional considerou que a utilização normal, na aceção do artigo 1.o, n.o 4, da DesignG, consistia apenas no facto de andar de bicicleta e de subir ou descer da mesma. Na sua opinião, no âmbito dessas utilizações, a parte inferior do selim não é visível nem para o consumidor final nem para um terceiro. A Monz interpôs recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio.

    10.

    Nestas circunstâncias, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha), decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Entende‑se que um componente que incorpora um desenho é “visível”, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da [Diretiva 98/71], se for objetivamente possível reconhecer o desenho quando o componente está instalado ou é necessário que seja visível em determinadas condições de utilização ou de uma determinada perspetiva do observador?

    2)

    Se a resposta à primeira questão prejudicial for no sentido de que é determinante a visibilidade em determinadas condições de utilização ou de uma determinada perspetiva do observador:

    (a)

    Para efeitos de apreciação da “utilização normal” de um produto complexo pelo consumidor final, na aceção dos n.os 3 e 4 do artigo 3.o, da [Diretiva 98/71], a finalidade da utilização pretendida pelo fabricante do componente ou do produto complexo ou a utilização habitual do produto complexo pelo consumidor final são relevantes?

    b)

    À luz de que critérios deve ser apreciado se a utilização de um produto complexo pelo consumidor final é “normal”, na aceção do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da [Diretiva 98/71]?»

    11.

    O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de agosto de 2021. Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal e pela Comissão Europeia. Não foi realizada audiência.

    Análise

    12.

    Recorde‑se que o órgão jurisdicional de primeira instância no processo principal declarou a nulidade do desenho ou modelo em causa, considerando que a utilização normal de uma bicicleta consiste no facto de a conduzir a mesma, bem como, acessoriamente, no facto de subir ou descer da mesma, situações em que a parte inferior do selim não está normalmente visível, contrariamente ao requisito indicado nas disposições do direito alemão que transpõem o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71.

    13.

    É à luz desta apreciação que as presentes questões prejudiciais devem ser entendidas. O órgão jurisdicional de reenvio pretende verificar, em primeiro lugar, se foi com razão que o tribunal de primeira instância considerou que só havia que ter em conta a visibilidade de um componente de um produto complexo numa situação de utilização desse produto (primeira pergunta) e, em segundo lugar, que só era relevante a utilização desse produto na sua função principal, a saber, no caso em apreço, para se deslocar enquanto está sentado na bicicleta (segunda questão).

    Quanto à primeira questão prejudicial

    14.

    Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71 deve ser interpretado no sentido de que, para que um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo possa beneficiar da proteção, basta que esse componente seja visível in abstracto, ou se o referido componente deve ser visível na situação da utilização normal desse produto complexo.

    15.

    O artigo 3.o, n.o 3, alínea b), da Diretiva 98/71 exige igualmente que sejam as características visíveis do componente que, enquanto tais, preencham os requisitos de novidade e de caráter singular. Embora as questões prejudiciais não suscitem expressamente este aspeto, ele está, no entanto, implícito. Com efeito, é claro, no processo principal, que está em causa a visibilidade da parte inferior de um selim, ou seja, a parte na qual o desenho ou modelo em causa é aplicado. Além disso, por força do artigo 7.o desta diretiva, os desenhos ou modelos cuja aparência é exclusivamente imposta pela sua função técnica não conferem direitos. No entanto, não parece que seja esse o caso no presente processo. De qualquer forma, não parece ter sido levantada tal objeção em relação ao desenho ou modelo em causa no processo principal.

    16.

    A título preliminar, há que observar, tal como o órgão jurisdicional de reenvio, que o tribunal de primeira instância classificou corretamente os selins de bicicletas e motocicletas como «componentes de um produto complexo», na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71.

    17.

    Por outro lado, esse tribunal censurou, com razão, a decisão do DPMA, na medida em que este considerou que era suficiente que a parte inferior de um selim fosse visível durante a respetiva montagem e desmontagem numa bicicleta. Com efeito, o artigo 3.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 98/71 indica claramente que é «depois de incorporado no produto complexo» que o componente deve continuar visível. Isto exclui que se tenha em consideração a visibilidade do componente durante a sua montagem ou desmontagem, independentemente da questão de saber se estes atos são habituais no âmbito da utilização de um produto.

    18.

    No que diz respeito à questão prejudicial, a redação do artigo 3.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 98/71 não é tão clara quanto pode parecer à primeira vista. Com efeito, como sublinha a Monz nas suas observações, esta disposição exige que o componente, depois de incorporado no produto complexo, «continue» ( 6 ) visível durante a utilização normal desse produto. Esta formulação pode ser interpretada no sentido de que basta que, após a montagem do componente em questão no produto complexo, este componente não esteja inteiramente coberto, de modo que seja possível vê‑lo, mesmo que apenas teoricamente e independentemente do ângulo de visão, eventualmente invulgar, que seja necessário adotar para esse efeito. Assim, apenas estão excluídos da proteção ao abrigo desta diretiva os desenhos ou modelos aplicados a componentes cuja visibilidade exige que sejam tomadas medidas que não se enquadram numa utilização normal de um produto, nomeadamente a sua desmontagem.

    19.

    No entanto, esta interpretação colide com a redação da segunda parte do artigo 3.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 98/71, segundo a qual o componente em causa deve ser visível «durante» ( 7 ) a utilização normal do produto complexo. Como observam, na minha opinião com razão, tanto o órgão jurisdicional de reenvio como a Comissão, esta expressão exclui os casos em que o componente só é visível em situações que não surgem durante a utilização normal do produto em causa.

    20.

    Por outro lado, como observa a Comissão, em substância, nos termos do artigo 1.o, alínea a), da Diretiva 98/71, o objeto da proteção dos desenhos e modelos ao abrigo desta diretiva é a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto. Embora os componentes concebidos para incorporação num produto complexo constituam, eles próprios, produtos, em conformidade com o artigo 1.o, alínea b), desta diretiva, estes só beneficiam da proteção se forem visíveis após essa incorporação. Deste modo, é a aparência do componente no produto complexo que é objeto da proteção. Ora, na minha opinião, é difícil falar da aparência de um produto se, uma vez incorporado num produto complexo, esse produto, mesmo sem estar totalmente coberto e ocultado da vista, só for visível em situações raras e inabituais, tendo em conta a utilização normal desse produto complexo.

    21.

    À luz destas considerações, proponho que se responda à primeira questão prejudicial, que o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71 deve ser interpretado no sentido de que, para que um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo possa beneficiar da proteção ao abrigo desta diretiva, o componente em causa deve ser visível durante a utilização normal desse produto complexo.

    22.

    Por conseguinte, o elemento crucial no presente processo reside na interpretação do conceito de «utilização normal», na aceção do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, que é o objeto da segunda questão prejudicial.

    Quanto à segunda questão

    23.

    Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71 deve ser interpretado no sentido de que a expressão «utilização normal» visa unicamente a utilização do produto complexo na sua função principal ( 8 ), ou se abrange todas as situações que possam razoavelmente surgir durante a utilização desse produto pelo consumidor final ( 9 ).

    24.

    Esta questão reflete as conclusões do tribunal de primeira instância, que qualificou como sendo «utilização normal» o facto de conduzir uma bicicleta, bem como, acessoriamente, de subir e descer da mesma. Ora, segundo esse tribunal, a parte inferior do selim da bicicleta não é visível nestas situações, pelo que um desenho ou modelo aplicado nessa parte não é visível durante a utilização normal na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71.

    25.

    É verdade que tal abordagem, ou uma ainda mais restritiva, foi adotada pelo Tribunal Geral nos seus acórdãos, aliás muito raros, relativos à interpretação do artigo 4.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 6/2002 ( 10 ), que é o equivalente, no sistema de proteção dos desenhos e modelos da União, ao artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71. O Tribunal considera que, para efeitos da apreciação do caráter visível de um componente de um produto complexo, há que adotar apenas a perspetiva do consumidor final desse produto complexo durante a sua utilização na sua função principal ( 11 ).

    26.

    Aplicada aos selins das bicicletas, tal abordagem levaria ao resultado indesejável de que nenhum desenho ou modelo aplicado a um selim pudesse beneficiar da proteção, devido ao facto de, durante a utilização principal de uma bicicleta, isto é, na sua condução, o selim estar inteiramente coberto pela parte do corpo do utilizador que serve para se sentar, com exceção da parte inferior desse selim que, no entanto, em qualquer caso, permanece invisível.

    27.

    Ciente deste resultado, o tribunal de primeira instância no processo principal incluiu no conceito de «utilização normal» o facto de subir e descer da bicicleta. Contudo, excluiu desse conceito, entre outros, o armazenamento e transporte da bicicleta, enquanto atos anteriores ou posteriores à sua utilização. Este raciocínio não é convincente na medida em que, se se considerar unicamente como «utilização normal» de uma bicicleta o facto de a conduzir, então o facto de subir e descer dela são também atos anteriores ou posteriores, do mesmo modo que o armazenamento e o transporte. A distinção entre estas ações parece‑me, portanto, arbitrária.

    28.

    No entanto, parece‑me que esta abordagem conduz a uma definição demasiado restrita de «utilização normal», na aceção do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, limitando injustificadamente a proteção dos desenhos e modelos aplicados aos componentes dos produtos complexos.

    29.

    É comummente aceite que a razão de ser da regulamentação específica no direito da União relativa à proteção dos desenhos e modelos aplicados a componentes dos produtos complexos é evitar a monopolização, através do direito dos desenhos e modelos, do mercado de peças sobressalentes. Contudo, esta regulamentação foi severamente criticada pela doutrina ( 12 ), na medida em que constitui uma limitação injustificada da proteção concedida aos desenhos e modelos aplicados aos componentes dos produtos complexos em comparação com a proteção concedida aos desenhos e modelos aplicados a outros produtos.

    30.

    Esta crítica não é desprovida de fundamento. Os desenhos e modelos aplicados a produtos que não se destinam a ser incorporados em produtos complexos são protegidos independentemente de serem ou não visíveis «durante a utilização normal». Ora, sendo o desenho ou modelo definido como a aparência de um produto «ou de uma parte de um produto» ( 13 ), podem beneficiar da proteção dos desenhos e modelos aplicados aos componentes dos produtos que não são visíveis durante a utilização na sua função principal, como as solas dos sapatos ou o forro de um casaco ( 14 ).

    31.

    É certo que a monopolização do mercado de um produto através dos direitos conferidos pelos desenhos e modelos constitui um abuso que deve ser evitado tanto quanto possível. Este resultado pode ser alcançado, nomeadamente, com os requisitos de novidade e de caráter singular que um desenho ou modelo deve preencher, conforme previstos no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 98/71. Em contrapartida, na minha opinião, há que interpretar o artigo 3.o, n.o 3, desta diretiva de forma a não restringir indevidamente a proteção dos desenhos e modelos aplicados a peças sobressalentes. Ora, o alcance de tal limitação decorrente desta disposição depende em grande medida da interpretação do conceito de «utilização normal».

    32.

    Por força do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, a «utilização normal» visa a utilização pelo consumidor final, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação. Isto implica evidentemente, antes de mais, uma utilização. A desmontagem ou a destruição de um produto não constitui uma utilização do mesmo. É com esta reserva que devem ser lidas as considerações que se seguem.

    33.

    Em primeiro lugar, embora esta definição simples faça referência ao consumidor final, considero errado daí concluir, como faz o Tribunal Geral nos acórdãos referidos no n.o 25 das presentes conclusões, que a visibilidade de um componente de um produto complexo deve ser unicamente apreciada na perspetiva do consumidor final desse produto. A utilização «pelo consumidor final» descreve apenas as situações em que essa visibilidade deve ser apreciada, excluindo as que não têm ligação com o consumidor final, como o fabrico, a comercialização e, eventualmente, a destruição ou reciclagem no final da vida do produto. É também nesta lógica que o artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71 exclui expressamente do conceito de «utilização normal» a conservação, manutenção e reparação, atos que são praticados durante o período de utilização de um produto pelo seu consumidor final, mas que são frequentemente praticados por terceiros.

    34.

    Por conseguinte, embora o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71, lido em conjugação com o seu artigo 3.o, n.o 4, exija que o componente de um produto complexo seja visível durante a utilização pelo seu consumidor final, esta disposição não pode, todavia, ser entendida no sentido de que exige que esse componente seja visível para o consumidor final. Também conta a visibilidade para observadores terceiros. De resto, se o design tem por objetivo atrair compradores para os produtos, é também pela sua capacidade de permitir a esses compradores impressionar os outros ( 15 ).

    35.

    Além disso, se a perspetiva do consumidor final devesse ser decisiva, seria necessário determinar com precisão quem é esse consumidor final. Embora tal possa ser relativamente fácil no caso de um produto como a bicicleta, isso pode ser muito mais difícil noutras situações. Por exemplo, quem é o consumidor final de um autocarro: o motorista, os passageiros, o pessoal da empresa de transporte que explora o autocarro? Todas essas pessoas têm uma perspetiva diferente e diferentes componentes do autocarro podem ser visíveis para elas, em particular quando utilizam esse autocarro na sua função principal, ou seja, durante o trajeto.

    36.

    Do mesmo modo, não se deve confundir o conceito de «consumidor final» de um produto complexo, referido no artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, com o de «utilizador informado», referido no artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva ( 16 ). Este segundo conceito diz respeito à pessoa fictícia que serve de critério de referência na avaliação do caráter singular de um desenho ou modelo, ao passo que o conceito de «consumidor final» é apenas uma figura hipotética à qual se destina o produto complexo que inclui um componente a que um desenho ou modelo foi aplicado. A capacidade deste consumidor final para distinguir o caráter singular desse desenho ou modelo e, portanto, a sua qualidade de utilizador informado não tem importância neste aspeto.

    37.

    Finalmente, ter em conta apenas a perspetiva do consumidor final implica logicamente compreender o conceito de «utilização normal» no sentido de abranger unicamente a utilização de um produto na sua função principal. Com efeito, noutras situações de utilização de um produto, o consumidor não tem uma visão diferente da de terceiros. Ora, como defendo nas considerações que se seguem, tal interpretação restritiva do conceito de «utilização normal» é tão injustificada quanto a adoção da perspetiva única do consumidor final.

    38.

    Em segundo lugar, a meu ver, como também observa a Comissão, é errado equiparar a utilização normal de um produto à sua função principal. Na prática, a utilização de um produto na sua função principal exige frequentemente vários atos que podem ser praticados antes ou depois de o produto ter cumprido a sua função principal, tais como o armazenamento e o transporte do produto. Quando o produto é um meio de transporte, acrescem os atos de subir e descer do mesmo, mas também de carregar e descarregar bagagem ou mercadorias.

    39.

    Não há nada na redação do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71 que imponha que esses atos sejam excluídos do conceito de «utilização normal». Pelo contrário, a definição deste conceito nesta disposição limita‑se a referir a «utilização pelo consumidor final». Não há que procurar uma característica adicional da utilização para a qualificar como «normal». Por conseguinte, todos os atos suscetíveis de serem praticados pelo consumidor final de um produto no âmbito da sua utilização do produto devem ser abrangidos pelo conceito de «utilização normal», com exceção daqueles que são expressamente excluídos ( 17 ).

    40.

    O objetivo do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71 também não milita a favor da exclusão dos atos diferentes daqueles que se referem à função principal do produto do conceito de «utilização normal». Este objetivo é evitar a monopolização, através da proteção dos desenhos e modelos, do mercado das peças sobressalentes que são invisíveis quando incorporadas no produto complexo, na medida em que um desenho ou modelo eventualmente aplicado a esse componente contribui pouco ou nada para a aparência desse produto complexo. Ora, a aparência de um produto não se revela apenas durante a utilização na sua função principal, mas também quando são praticados atos anteriores e posteriores a essa utilização e relacionados com esta. A inclusão desses atos no conceito de «utilização normal» não põe, por isso, em causa o objetivo de evitar a monopolização do mercado.

    41.

    Por último, em terceiro lugar, embora o artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71 exclua expressamente a conservação, manutenção ou reparação do conceito de «utilização normal», esta exclusão não deve, na minha opinião, ser interpretada de forma demasiado ampla. Alguns atos que se enquadram, nomeadamente, na conservação, são parte intrínseca da utilização de certos produtos. Neste aspeto, penso, em primeiro lugar, na lavagem e na limpeza. Na minha opinião, não teria lógica excluir a lavagem e a limpeza do conceito de «utilização normal», nomeadamente porque, no caso de determinados produtos, a limpeza regular é um requisito da sua utilização ( 18 ). Em segundo lugar, existem os atos de conservação de rotina normalmente praticados pelo consumidor final de um produto e que, frequentemente, condicionam também a sua utilização, tais como a substituição dos consumíveis e dos líquidos de funcionamento, o enchimento dos pneus dos veículos ou ainda o abastecimento do depósito de combustível dos produtos com um motor de combustão. Em terceiro e último lugar, surge a resolução das avarias menores, como, por exemplo, o encravamento de papel numa impressora. Todos estes atos são indispensáveis no âmbito da utilização de um produto pelo consumidor final e devem, deste modo, ser abrangidos pelo conceito de «utilização normal».

    42.

    Em contrapartida, os atos excluídos deste conceito são os atos praticados para além da utilização do produto, tais como a inspeção técnica, a conservação periódica ou ainda a própria reparação ( 19 ). Estes atos, por um lado, são habitualmente praticados não pelo consumidor final do produto, mas por pessoas especializadas e, por outro, podem implicar a desmontagem parcial de um produto complexo ou a sua observação sob um ângulo invulgar, revelando componentes que normalmente permanecem invisíveis durante a utilização do produto. Estas duas especificidades justificam a exclusão destes atos do conceito de «utilização normal».

    43.

    Na apreciação do caráter visível de um componente de um produto complexo, admitir a perspetiva de outras pessoas além da do consumidor final desse produto complexo, bem como incluir no conceito de «utilização normal» atos diferentes da mera utilização de um produto na sua função principal permite ter em conta ângulos de visão que são tão pertinentes para revelar a aparência de um produto como o do consumidor durante a utilização do produto na sua função principal. Não só este resultado não é, na minha opinião, contrário à letra nem ao objetivo do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71, como é, a meu ver, plenamente justificado. Se um desenho ou modelo aplicado na parte inferior da sola de um sapato pode beneficiar da proteção ao abrigo desta diretiva ( 20 ), não vejo por que razão um desenho ou modelo aplicado na parte inferior de um selim de bicicleta ( 21 ), como no caso em apreço, não pode. O único motivo que pode justificar esta diferença é que o selim pode ser desmontado da bicicleta, ao passo que a sola não pode ser (tão facilmente) retirada do sapato.

    44.

    É verdade que esta interpretação ampla do conceito de «utilização normal» engloba quase todas as situações de utilização de um produto, com exceção das que implicam a sua desmontagem se esta não fizer parte da utilização normal. Por conseguinte, poderíamos perguntar se não seria mais simples dar à primeira questão prejudicial uma resposta no sentido de uma apreciação in abstracto da visibilidade do componente ao qual é aplicado um desenho ou modelo, sem ligação com qualquer situação concreta de utilização do produto complexo em questão.

    45.

    Admito que a diferença é essencialmente conceptual. Tem, no entanto, consequências práticas, na medida em que ambas as interpretações alterariam o ónus da prova que incumbe à pessoa que pretende beneficiar da proteção relativamente a um desenho ou modelo aplicado a um componente de um produto complexo. Por outro lado, um componente de um produto complexo, embora visível em termos absolutos por não estar coberto, pode não ser visível em nenhuma situação de utilização normal desse produto ( 22 ). Além disso, como observei no âmbito da análise da primeira questão prejudicial, a interpretação referida no número anterior colidiria com a redação do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71.

    46.

    Por conseguinte, proponho que se responda à segunda questão prejudicial, que o artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71 deve ser interpretado no sentido de que a expressão «utilização normal» abrange todas as situações que possam razoavelmente surgir durante a utilização de um produto complexo pelo consumidor final.

    Conclusão

    47.

    À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que dê a seguinte resposta às questões prejudiciais submetidas pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha):

    1)

    O artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos

    deve ser interpretado no sentido de que,

    para que um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo possa beneficiar da proteção ao abrigo desta diretiva, o componente em questão deve ser visível durante a utilização normal desse produto complexo.

    2)

    O artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71

    deve ser interpretado no sentido de que

    a expressão «utilização normal» abrange todas as situações que possam razoavelmente surgir durante a utilização de um produto complexo pelo consumidor final.


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) O setor automóvel caracteriza‑se, por um lado, pelos preços elevados das peças sobressalentes e, por outro, por uma taxa de danos significativamente importante devida a acidentes de viação. O mercado das peças sobressalentes neste setor é, portanto, particularmente lucrativo.

    ( 3 ) JO 1998, L 289, p. 28.

    ( 4 ) BGBl. I, p. 122.

    ( 5 ) Trata‑se de atos de conservação, manutenção ou reparação, excluídos do conceito de «utilização normal» por força do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71.

    ( 6 ) Este também é o caso, nomeadamente, nas versões em língua espanhola («sigue siendo»), alemã («bleibt»), inglesa («remains»), italiana («rimane») e polaca («pozostaje»).

    ( 7 ) Assim como, nomeadamente, nas versões em língua espanhola («durante»), alemã («bei»), inglesa («during»), italiana («durante») e polaca («podczas»).

    ( 8 ) À luz das explicações contidas no pedido de decisão prejudicial, é neste sentido que compreendo a expressão «utilização pretendida pelo fabricante do componente ou do produto complexo», utilizada pelo órgão jurisdicional de reenvio na segunda questão prejudicial.

    ( 9 ) «Utilização habitual» nos termos da segunda questão prejudicial.

    ( 10 ) Regulamento do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 2002, L 3, p. 1).

    ( 11 ) V. Acórdãos de 9 de setembro de 2011, Kwang Yang Motor/IHMI – Honda Giken Kogyo (Motor de combustão interna) (T‑10/08, não publicado, EU:T:2011:446, n.os 21 e 22); Kwang Yang Motor/IHMI — Honda Giken Kogyo (Motor de combustão interna) (T‑11/08, não publicado, EU:T:2011:447, n.os 21 e 22); e de 14 de março de 2017, Wessel‑Werk/EUIPO — Wolf PVG (Bocais para aspiradores) (T‑174/16, não publicado, EU:T:2017:161, n.o 30) e Wessel‑Werk/EUIPO — Wolf PVG (Bocais para aspiradores) (T‑175/16, não publicado, EU:T:2017:160, n.o 30).

    ( 12 ) V. Hasselblatt, G. N., em Hasselblatt, G. N. (ed.), Community Design Regulation (EC) No 6/2002. A Commentary, C. H. Beck, Munique, 2015, p. 62 e literatura citada.

    ( 13 ) Artigo 1.o, alínea a), da Diretiva 98/71.

    ( 14 ) Uma vez que estas partes não são destacáveis, não são consideradas componentes de produtos complexos na aceção do artigo 1.o, alínea c), da Diretiva 98/71.

    ( 15 ) Para «se exibir», usando a expressão familiar.

    ( 16 ) É o erro que o Tribunal Geral parece ter cometido nos seus Acórdãos de 14 de março de 2017, Wessel‑Werk/EUIPO — Wolf PVG (Bocais para aspiradores) (T‑174/16, não publicado, EU:T:2017:161, n.o 30) e Wessel‑Werk/EUIPO — Wolf PVG (Bocais para aspiradores) (T‑175/16, não publicado, EU:T:2017:160, n.o 30), referindo‑se à «utilização normal por um consumidor informado final, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, alínea a), e n.o 3, do Regulamento n.o 6/2002, de um aspirador ou de um bocal de aspirador para fins de limpeza».

    ( 17 ) Ou seja, a conservação, a manutenção e a reparação.

    ( 18 ) Um cortador de relva ou uma máquina de café, para dar apenas dois exemplos.

    ( 19 ) No entanto, há que observar que a utilização dos desenhos e modelos aplicados a componentes de substituição utilizados para a necessidade de reparação de produtos complexos é objeto de uma disposição especial, denominada «cláusula de reparação», contida no artigo 14.o da Diretiva 98/71, constando uma cláusula análoga do artigo 110.o do Regulamento n.o 6/2002.

    ( 20 ) V., a título de exemplo, os desenhos e modelos comunitários registados pelo Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) sob os números 001918400‑0001 e 008434088‑0003.

    ( 21 ) Esta circunstância ativa o requisito de visibilidade previsto no artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71.

    ( 22 ) Estou a pensar, em particular, na parte inferior do chassis de um veículo a motor, que só pode ser observada de uma perspetiva invulgar durante uma utilização normal.

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