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Document 62020CJ0644

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 12 de maio de 2022.
W. J. contra L. J. e J. J.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Okręgowy w Poznaniu.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, lei aplicável, reconhecimento e execução das decisões em matéria de obrigações alimentares — Determinação da lei aplicável — Protocolo de Haia sobre a lei aplicável às obrigações alimentares — Artigo 3.o — Residência habitual do credor — Momento em que deve ser determinada a residência habitual — Retenção ilícita de menor.
Processo C-644/20.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:371

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

12 de maio de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, lei aplicável, reconhecimento e execução das decisões em matéria de obrigações alimentares — Determinação da lei aplicável — Protocolo de Haia sobre a lei aplicável às obrigações alimentares — Artigo 3.o — Residência habitual do credor — Momento em que deve ser determinada a residência habitual — Retenção ilícita de menor»

No processo C‑644/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Poznaniu (Tribunal Regional de Poznań, Polónia), por Decisão de 10 de novembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 26 de novembro de 2020, no processo

W. J.

contra

L. J. e J. J., legalmente representados por A. P.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, S. Rodin e J.‑C. Bonichot, L. S. Rossi (relatora) e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação do Governo francês, por A. Daniel e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por D. Milanowska, M. Wilderspin e W. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o do Protocolo de Haia, de 23 de novembro de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações alimentares, aprovado, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2009/941/CE do Conselho, de 30 de novembro de 2009 (JO 2009, L 331, p. 17) (a seguir «Protocolo de Haia»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe W. J. a L. J. e a J. J., seus dois filhos menores, legalmente representados por A. P., sua mãe, a respeito do pagamento por W. J. de um crédito alimentar.

Quadro jurídico

Convenção de Haia de 1980

3

O artigo 12.o, primeiro e segundo parágrafos, da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada em Haia em 25 de outubro de 1980 (a seguir «Convenção de Haia de 1980»), dispõe:

«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.o e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.

A autoridade judicial ou administrativa respetiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.»

4

O artigo 13.o da Convenção de Haia de 1980 prevê:

«Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar‑se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.»

Direito da União

Regulamento (CE) n.o 4/2009

5

O artigo 5.o do Regulamento (CE) n.o 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares (JO 2009, L 7, p. 1), sob a epígrafe «Competência baseada na comparência do requerido», dispõe:

«Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado‑Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência».

6

O artigo 15.o deste regulamento prevê:

«A lei aplicável às obrigações alimentares é determinada de acordo com o Protocolo da Haia […] nos Estados‑Membros vinculados por esse instrumento.»

Decisão 2009/941/CE

7

Os considerandos 3 e 11 da Decisão 2009/941/CE do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativa à celebração pela Comunidade Europeia do Protocolo de Haia, de 23 de novembro de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações alimentares (JO 2009, L 331, p. 17), enunciam:

«(3)

O protocolo [de Haia] dá um valioso contributo para garantir mais segurança e previsibilidade jurídicas aos credores e devedores de alimentos. A aplicação de regras uniformes para determinar a lei aplicável permitirá a livre circulação das decisões em matéria de obrigações alimentares na Comunidade, sem qualquer forma de controlo no Estado‑Membro em que é solicitada a execução.

[…]

(11)

Nos termos dos artigos 1.o e 2.o do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda [em relação ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça], anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia, o Reino Unido [da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte] não participa na aprovação da presente decisão e não fica a ela vinculado nem sujeito à sua aplicação.»

Protocolo de Haia

8

O artigo 1.o, n.o 1, do Protocolo de Haia prevê:

«O presente protocolo determina a lei aplicável às obrigações alimentares decorrentes de relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade, incluindo as obrigações alimentares relativamente a filhos, independentemente do estado civil dos pais.»

9

O artigo 2.o deste protocolo, sob a epígrafe «Aplicação universal», dispõe:

«O presente protocolo é aplicável independentemente de a lei aplicável ser a de um Estado não contratante.»

10

O artigo 3.o do referido protocolo, sob a epígrafe «Regra geral sobre a lei aplicável», enuncia:

«1.   Salvo disposição em contrário do presente protocolo, as obrigações alimentares são reguladas pela lei do Estado da residência habitual do credor.

2.   Em caso de mudança da residência habitual do credor, a lei do Estado da nova residência habitual é aplicável a partir do momento em que a mudança tenha ocorrido.»

11

Nos termos do artigo 4.o do Protocolo de Haia, sob a epígrafe «Regras especiais a favor de certos credores»:

«1.   As seguintes disposições são aplicáveis no caso de obrigações alimentares:

a)

Dos pais relativamente aos filhos;

[…]

2.   Se, por força da lei referida no artigo 3.o, o credor não puder obter alimentos do devedor, é aplicável a lei do foro.

[…]

4.   Se, por força das leis referidas no artigo 3.o e nos n.os 2 e 3 do presente artigo, o credor não puder obter alimentos do devedor, é aplicável a lei do Estado da nacionalidade comum do credor e do devedor, caso exista.»

Regulamento (CE) n.o 2201/2003

12

O artigo 1.o, n.o 3, alínea e), do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1), indica que este regulamento não é aplicável aos alimentos.

13

A secção 2, intitulada «Responsabilidade parental», do capítulo II, com o título «Competência», deste regulamento inclui os artigos 8.o a 15.o

14

O artigo 8.o do regulamento, sob a epígrafe «Competência geral», dispõe:

«1.   Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.   O n.o 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.o, 10.o e 12.o»

15

O artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003 enuncia:

«Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado‑Membro e:

a)

Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção;

ou

b)

A criança ter estado a residir nesse outro Estado‑Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:

i)

não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado‑Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida;

ii)

o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),

iii)

o processo instaurado num tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.o 7 do artigo 11.o,

iv)

os tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

16

A. P. e W. J., cidadãos de nacionalidade polaca, que residiam e exerciam uma atividade profissional no Reino Unido pelo menos desde 2012, tiveram dois filhos, L. J. e J. J., nascidos, respetivamente, em junho de 2015 e em maio de 2017 no Reino Unido. Estas duas crianças têm nacionalidade polaca e britânica.

17

No outono de 2017, A. P. e a sua filha L. J. deslocaram‑se à Polónia, onde deviam permanecer até 7 de outubro de 2017, devido à expiração da data de validade do bilhete de identidade de A. P. Durante esta estadia, A. P. Informou W. J. da sua intenção de prolongar a duração da sua estadia na Polónia, com o que este concordou. A. P. regressou ao Reino Unido em 7 de outubro de 2017, de onde partiu no dia seguinte, levando consigo o seu filho J. J. Alguns dias depois, A. P. Informou W. J. da sua intenção de ficar permanentemente na Polónia com L. J. e J. J. (a seguir «menores»), facto a que W. J. se opôs.

18

Resulta das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que, em abril de 2019, os menores residiam numa localidade polaca com A. P., bem como com os seus avós, o seu tio e uma prima igualmente menor, que L. J. frequentava o ensino pré‑escolar, ao passo que J. J. permanecia sob a guarda de A. P. e sob o cuidado de estabelecimentos médicos devido ao seu estado de saúde, que exigia hospitalizações periódicas. O órgão jurisdicional de reenvio salienta igualmente que A. P. beneficiou de prestações de assistência social na Polónia por ter a guarda dos filhos.

19

W. J. apresentou, nos termos da Convenção de Haia de 1980, um pedido de regresso dos menores à autoridade central britânica.

20

Em 3 de janeiro de 2018, o pedido foi remetido ao Sąd Rejonowy (Tribunal de Primeira Instância, Polónia) competente, que, por Despacho de 26 de fevereiro de 2018, o indeferiu.

21

Em 7 de novembro de 2018, os menores, representados por A. P. apresentaram, no Sąd Rejonowy w Pile (Tribunal de Primeira Instância de Piła, Polónia), um pedido de pagamento de pensão de alimentos mensal, contra W. J., que se constituiu parte no processo e não arguiu uma exceção de incompetência.

22

Por Sentença de 11 de abril de 2019, esse órgão jurisdicional condenou W. J. a pagar a cada um dos menores uma pensão de alimentos mensal a partir de 7 de novembro de 2018, nos termos da lei polaca.

23

W. J. interpôs recurso do Despacho de 26 de fevereiro de 2018, referido no n.o 20 do presente acórdão, bem como da Sentença de 11 de abril de 2019, referida no número anterior do presente acórdão.

24

Por Despacho de 24 de maio de 2019, o Sąd Okręgowy (Tribunal Regional, Polónia), competente, no qual foi interposto recurso do Despacho de 26 de fevereiro de 2018, ordenou que A. P. entregasse os menores a W. J. o mais tardar em 26 de junho de 2019, com o fundamento de que os menores estavam ilicitamente retidos na Polónia, que a sua residência habitual imediatamente antes dessa retenção se situava no Reino Unido e que não existia um risco grave de, no seu regresso a esse Estado, ficarem sujeitos a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficarem numa situação intolerável, na aceção do artigo 13.o, n.o 1, alínea b), da Convenção de Haia de 1980.

25

No recurso da Sentença de 11 de abril de 2019, mencionado no n.o 22 do presente acórdão, que interpôs para o órgão jurisdicional de reenvio, o Sąd Okręgowy w Poznaniu (Tribunal Regional de Poznań, Polónia), W. J. invocou um fundamento relativo a um erro de apreciação factual, já que não foi tido em conta o Despacho de 24 de maio de 2019, referido no número anterior do presente acórdão, que ordena que A. P. entregue os menores ao pai o mais tardar em 26 de junho de 2019, o que tornaria injustificado onerá‑lo com uma obrigação alimentar.

26

No pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio salienta, em primeiro lugar, que o referido Despacho de 24 de maio de 2019 é transitou em julgado e que a sua execução implica o regresso dos menores ao Reino Unido, uma vez que a residência habitual de W. J. continua a ser no território desse Estado. No entanto, A. P. não entregou os menores a W. J. no prazo fixado, não tendo as buscas efetuadas para encontrá‑los dado resultados até à data da apresentação do reenvio prejudicial.

27

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha, em segundo lugar, que os tribunais polacos são competentes por força do artigo 5.o do Regulamento n.o 4/2009, o que não é contestado por W. J., que não suscitou uma exceção de incompetência.

28

Em terceiro lugar, precisa que lhe cabe determinar a lei aplicável à obrigação alimentar em causa.

29

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a lei polaca — com base na qual o Sąd Rejonowy w Pile (Tribunal de Primeira Instância de Piła) proferiu a sentença — só pode ser aplicada no caso de os menores, apesar da sua retenção ilícita na Polónia e da decisão judicial que ordena o seu regresso ao Reino Unido, terem adquirido, após a sua chegada a 2017, residência habitual na Polónia, o que justifica que a lei aplicável seja determinada com base no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo de Haia, estando excluídos outros critérios de conexão com a lei polaca, segundo o órgão jurisdicional de reenvio.

30

Não obstante, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se esta disposição não deve ser interpretada à luz do artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003, que se opõe, em princípio, a que a competência jurisdicional em matéria de responsabilidade parental seja transferida para o Estado‑Membro onde o menor teria tido a sua nova residência habitual, em caso de deslocação ou retenção ilícitas desse menor nesse Estado‑Membro.

31

Ora, caso se admitisse que os menores não podem adquirir uma nova residência habitual no Estado onde estão ilicitamente retidos, a lei aplicável à obrigação alimentar, em causa no processo principal, seria, com base no artigo 3.o, n.o 1, do Protocolo de Haia, a lei do Reino Unido, enquanto lei do Estado em que os menores mantiveram a sua residência habitual.

32

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, ao contrário do Regulamento n.o 2201/2003, nem o Regulamento n.o 4/2009 nem o Protocolo de Haia contêm regras específicas que determinem a conexão entre, por um lado, a residência habitual e, por outro, respetivamente, a competência judiciária em matéria de obrigações alimentares e a lei aplicável nesta matéria, quando o credor de alimentos seja um menor ilicitamente retido num Estado‑Membro. Esta constatação pode permitir concluir que, por força do artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo de Haia, a retenção ilícita de um menor no território de um Estado‑Membro não tem incidência na aquisição por esse menor da sua residência habitual nesse Estado‑Membro, pelo que a lei do referido Estado‑Membro pode, enquanto lei da nova residência habitual, tornar‑se aplicável à obrigação alimentar a partir do momento em que ocorreu essa mudança de residência.

33

Neste contexto, o Sąd Okręgowy w Poznaniu (Tribunal Regional de Poznań) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 3.o, n.os 1 e 2, do Protocolo de Haia ser interpretado no sentido de que um credor [de alimentos] menor pode adquirir uma nova residência habitual no Estado onde foi ilicitamente retido, caso o tribunal ordene o seu regresso ao Estado onde tinha residência habitual imediatamente antes da retenção ilícita?»

Quanto à tramitação do processo no Tribunal de Justiça

34

Por carta de 4 de novembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de novembro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que, por Despacho de 6 de outubro de 2021, o Sąd Najwyższy, lzba Kontroli Nadzwyczajnej i Spraw Publicznych (Supremo Tribunal, Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos Públicos, Polónia), chamado a pronunciar‑se sobre um recurso extraordinário (skarga nadzwyczajna), interposto pelo Rzecznik Praw Dziecka (Provedor da Criança, Polónia), do Despacho de 24 de maio de 2019, referido no n.o 24 do presente acórdão, anulou parcialmente esse despacho. Daqui resulta, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que a decisão pela qual foi ordenado, em 24 de maio de 2019, o regresso das crianças ao Reino Unido já não é aplicável.

35

Em 23 de novembro de 2021, o presidente da Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidiu notificar esta carta às partes no processo principal e aos interessados, na aceção do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, os quais foram convidados a apresentar as suas eventuais observações antes de 15 de dezembro de 2021.

36

Apenas a Comissão Europeia respondeu a este convite, indicando que renunciava à apresentação de observações complementares às apresentadas ao Tribunal de Justiça relativamente à questão prejudicial.

37

Por nova carta de 20 de dezembro de 2021, entrada no Tribunal de Justiça em 31 de dezembro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio, tendo em conta o Acórdão de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o. (C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931), informou o Tribunal de Justiça de que um membro da formação de julgamento que apresentou o presente pedido de decisão prejudicial foi designado, no âmbito do processo de destacamento, pelo ministro da Justiça polaco para exercer, no órgão jurisdicional de reenvio, a função de juiz por tempo indeterminado. Nessa carta, o órgão jurisdicional de reenvio recordou igualmente que o processo de recurso extraordinário, mencionado no n.o 34 do presente acórdão, era objeto de um pedido de decisão prejudicial pendente no Tribunal de Justiça no âmbito do processo C‑720/21.

38

Em 11 de janeiro de 2022, o presidente da Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidiu notificar esta nova carta do órgão jurisdicional de reenvio às partes no processo principal e aos interessados, na aceção do artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, os quais foram convidados a apresentar as suas eventuais observações antes de 31 de janeiro de 2022.

39

L. J. e J. J., o Governo polaco e a Comissão responderam a este convite.

40

Nas suas observações, L. J. e J. J., legalmente representados por A. P., pediram, em substância, por um lado, que o Provedor da Criança fosse convidado a «tomar posição» no presente processo e, por outro, alegaram que, no caso de se considerar que o processo de recurso extraordinário enferma de irregularidade, não teriam de suportar as suas eventuais consequências.

41

O Governo polaco alega que as informações comunicadas pelo órgão jurisdicional de reenvio na nova carta referida são irrelevantes no que respeita tanto à apreciação da admissibilidade do pedido de decisão prejudicial como à apreciação desta questão.

42

Embora tenha indicado que renunciava à apresentação de observações, a Comissão sublinhou que o órgão jurisdicional de reenvio não tinha precisado em que medida seria necessário ter em conta o destacamento pelo ministro da Justiça de um juiz que integra a formação de julgamento que está origem do presente pedido de decisão prejudicial, as eventuais consequências desse destacamento para, nomeadamente, a independência dessa formação de julgamento ou o impacto do Acórdão de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o. (C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931) no presente processo. Além disso, a Comissão alegou que o órgão jurisdicional de reenvio não forneceu elementos que permitam pronunciar‑se sobre a questão de saber se o destacamento do juiz em causa para esse órgão jurisdicional constitui uma violação da sua independência.

43

Em 4 de fevereiro de 2022, sob proposta da juíza relatora, ouvido o advogado‑geral, o presidente da Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidiu indeferir o pedido de L. J e de J. J. destinado a que o Provedor da Criança fosse convidado a «tomar posição» no presente processo, na medida em que este não é parte no processo principal e que o deferimento desse pedido numa fase muito avançada do processo poderia provocar um atraso significativo na sua tramitação e, portanto, teria efeitos contrários ao imperativo de uma boa administração da justiça.

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

44

Em primeiro lugar, importa assinalar que, na sua carta de 20 de dezembro de 2021, referida no n.o 37 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que um membro da formação de julgamento que apresentou este pedido de decisão prejudicial foi destacado pelo ministro da Justiça polaco para exercer, no órgão jurisdicional de reenvio, a função de juiz por tempo indeterminado. Como a Comissão observou, o órgão jurisdicional de reenvio não precisa quais seriam, em seu entender, as consequências a retirar de tal situação, nomeadamente quanto à independência desse órgão jurisdicional. No entanto, afigura‑se que, ao assinalar a referida situação, o órgão jurisdicional de reenvio parece ter dúvidas quanto à sua própria qualidade de «órgão jurisdicional», na aceção do artigo 267.o TFUE, que constitui um requisito de admissibilidade do pedido de decisão prejudicial.

45

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, para apreciar se o organismo de reenvio tem a natureza de «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 267.o TFUE, questão que deve ser decidida unicamente no âmbito do direito da União, e, assim, para apreciar se o pedido de decisão prejudicial é admissível, o Tribunal de Justiça toma em consideração um conjunto de elementos, como a origem legal deste organismo, a sua permanência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação, pelo organismo, das regras de direito, bem como a sua independência (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de julho de 2020, Land Hessen, C‑272/19, EU:C:2020:535, n.o 43, e de 29 de março de 2022, Getin Noble Bank, C‑132/20, EU:C:2022:235, n.o 66).

46

A independência dos juízes dos Estados‑Membros reveste uma importância fundamental para a ordem jurídica da União a diversos títulos. Especialmente, esta independência é essencial para o bom funcionamento do sistema de cooperação judiciária que representa o mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, na medida em que esse mecanismo só pode ser acionado por uma instância, encarregada de aplicar o direito da União, que satisfaça, designadamente, esse critério de independência (v., neste sentido, Acórdão de 9 de julho de 2020, Land Hessen, C‑272/19, EU:C:2020:535, n.o 45 e jurisprudência referida).

47

As garantias de independência e de imparcialidade exigidas pelo direito da União postulam a existência de regras, designadamente no que respeita à composição da instância, à nomeação, à duração das funções, bem como às causas de abstenção, de impugnação da nomeação e de destituição dos seus membros, que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes, quanto à impermeabilidade dessa instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdãos de 9 de julho de 2020, Land Hessen, C‑272/19, EU:C:2020:535, n.o 52, e de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o., C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931, n.os 67 e 71).

48

No caso em apreço, não há dúvida de que, enquanto tal, o Sąd Okręgowy w Poznaniu (Tribunal Regional de Poznań) figura entre os órgãos jurisdicionais polacos de direito comum.

49

Ora, na medida em que um pedido de decisão prejudicial emana de um órgão jurisdicional nacional, deve presumir‑se que este cumpre os requisitos recordados no n.o 45 do presente acórdão, independentemente da sua composição concreta (v., neste sentido, Acórdão de 29 de março de 2022, Getin Noble Bank, C‑132/20, EU:C:2022:235, n.o 69).

50

Esta presunção impõe‑se, no entanto, unicamente para efeitos da apreciação da admissibilidade de pedidos de decisão prejudicial apresentados ao abrigo do artigo 267.o TFUE. Assim, daqui não se pode inferir que as condições de nomeação dos juízes que compõem o órgão jurisdicional de reenvio permitem necessariamente satisfazer as garantias de acesso a um tribunal independente, imparcial e previamente estabelecido por lei, na aceção do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE ou do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (v., neste sentido, Acórdão de 29 de março de 2022, Getin Noble Bank, C‑132/20, EU:C:2022:235, n.o 74).

51

Além disso, esta presunção pode ser ilidida quando uma decisão judicial transitada em julgado, proferida por um órgão jurisdicional nacional ou internacional, leve a considerar que o juiz ou os juízes que constituem o órgão jurisdicional de reenvio não têm a qualidade de tribunal independente, imparcial e previamente estabelecido por lei, na aceção do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais. O mesmo aconteceria se, além da situação pessoal do ou dos juízes que apresentam formalmente um pedido ao abrigo do artigo 267.o TFUE, outros elementos devessem ter repercussões no funcionamento do órgão jurisdicional de reenvio no qual esses juízes têm assento e contribuir, assim, para pôr em causa a independência e a imparcialidade do referido órgão jurisdicional (v., neste sentido, Acórdão de 29 de março de 2022, Getin Noble Bank, C‑132/20, EU:C:2022:235, n.os 72 e 75).

52

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio não apresentou nenhum elemento concreto e preciso que permita ilidir, nas condições recordadas no número anterior do presente acórdão, a presunção de que o presente pedido de decisão prejudicial emana de um organismo que preenche os requisitos recordados no n.o 45 do presente acórdão.

53

Em segundo lugar, na sua carta de 4 de novembro de 2021, mencionada no n.o 34 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça de que o Despacho de 24 de maio de 2019, que ordena que A. P. entregue os menores a W. J., o mais tardar em 26 de junho de 2019, tinha deixado de produzir os seus efeitos, uma vez que o o Sąd Najwyższy, lzba Kontroli Nadzwyczajnej i Spraw Publicznych (Supremo Tribunal, Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos Públicos) concedeu provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Provedor da Criança contra esse despacho.

54

Embora seja verdade que a questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio assenta essencialmente nas consequências que devem ser retiradas, para efeitos da interpretação do artigo 3.o do Protocolo de Haia, da constatação, efetuada no Despacho de 24 de maio de 2019, segundo a qual os filhos de W. J. e de A. P. estavam ilicitamente retidos por esta na Polónia e deviam ser entregues a W. J., residente no Reino Unido, não é possível, no entanto, inferir da decisão do Sąd Najwyższy, lzba Kontroli Nadzwyczajnej i Spraw Publicznych (Supremo Tribunal, Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos Públicos) que tal questão já não é pertinente para a apreciação do litígio no processo principal.

55

Com efeito, não é certo, à luz das explicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que, por força dessa decisão do Sąd Najwyższy, lzba Kontroli Nadzwyczajnej i Spraw Publicznych (Supremo Tribunal, Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos Públicos), o Despacho de 24 de maio de 2019, que ordena a entrega dos menores a W. J., deva ser entendido no sentido de que nunca produziu efeitos na ordem jurídica polaca, pelo que a presunção de pertinência de que beneficia a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio não é ilidida.

56

Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto à questão prejudicial

57

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o do Protocolo de Haia deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da determinação da lei aplicável ao crédito alimentar de um filho menor deslocado por um dos progenitores para o território de um Estado‑Membro, a circunstância de um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro ter ordenado, no âmbito de um processo distinto, o regresso desse menor ao Estado em que residia habitualmente com os progenitores imediatamente antes da sua deslocação é suficiente para impedir que o referido menor possa adquirir residência habitual no território desse Estado‑Membro.

58

A título preliminar, importa recordar que, na medida em que o Protocolo de Haia foi aprovado pelo Conselho da União Europeia, através da Decisão 2009/941, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar as suas disposições (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2018, Mölk, C‑214/17, EU:C:2018:744, n.o 23 e jurisprudência referida). Além disso, a circunstância de o Reino Unido, em cujo território W. J. reside, não estar vinculado pelo referido protocolo não tem incidência no presente processo, uma vez que, em conformidade com o seu artigo 2.o, o Protocolo de Haia é aplicável mesmo que a lei que designa seja a de um Estado não contratante.

59

De acordo com o n.o 1 do artigo 3.o do Protocolo de Haia, a lei aplicável às obrigações alimentares é, salvo disposição em contrário deste protocolo, a lei do Estado da residência habitual do credor de alimentos. Nos termos do n.o 2 deste artigo, em caso de mudança da residência habitual do credor de alimentos, a lei do Estado da nova residência habitual é aplicável a partir do momento em que a mudança tenha ocorrido.

60

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, para efeitos da determinação da lei aplicável ao crédito alimentar, é possível ter em conta a mudança de residência habitual, prevista no artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo de Haia, no caso de o credor de alimentos estar ilicitamente retido no território do Estado onde está fisicamente presente. Mais precisamente, pergunta, em substância, se a retenção ilícita desse credor no território de um Estado‑Membro pode alterar a estabilidade da sua permanência enquanto critério de determinação da sua residência habitual.

61

Por conseguinte, a questão submetida torna necessária a interpretação do conceito de «residência habitual» do credor de alimentos, na aceção do artigo 3.o do Protocolo de Haia, bem como a verificação de que o caráter ilícito da retenção desse credor no território de um Estado‑Membro não obsta à transferência da sua residência habitual para o território desse Estado.

62

Em primeiro lugar, quanto ao conceito de «residência habitual» do credor de alimentos, há que salientar que o Protocolo de Haia não o define e também não remete expressamente para o direito das partes contratantes para definir o seu sentido e alcance. Em tais circunstâncias, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que o sentido e o alcance deste conceito devem normalmente ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme que tenha em conta o contexto das disposições e dos objetivos prosseguidos pela regulamentação em causa [v., por analogia, Acórdãos de 13 de outubro de 2016, Mikołajczyk, C‑294/15, EU:C:2016:772, n.o 44, e de 25 de novembro de 2021, IB (Residência habitual de um cônjuge — Divórcio), C‑289/20, EU:C:2021:955, n.o 39].

63

A este respeito, importa, antes de mais, constatar que a utilização do adjetivo «habitual» permite deduzir que a residência deve apresentar um grau suficiente de estabilidade, com exclusão de uma presença temporária ou ocasional. Esta constatação é corroborada pela consideração, constante do n.o 42 do Relatório Explicativo sobre o Protocolo de Haia, elaborado por Andrea Bonomi (texto adotado pela Vigésima Primeira Sessão da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado), segundo a qual o critério da residência «habitual» implica uma certa estabilidade, o que significa que «[u]ma simples residência de natureza temporária não é suficiente para determinar a lei aplicável à obrigação alimentar».

64

Em seguida, há que sublinhar que o artigo 3.o do Protocolo de Haia reflete o sistema de regras de conexão em que assenta este protocolo, uma vez que tal sistema visa garantir a previsibilidade da lei aplicável, assegurando que a lei designada não está desprovida de um nexo suficiente com a situação familiar em causa, entendendo‑se que a lei da residência habitual do credor de alimentos surge como sendo, em princípio, a que apresenta uma conexão mais estreita com a sua situação e como sendo a mais adequada para regular os problemas concretos que esse credor possa encontrar (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de junho de 2018, KP, C‑83/17, EU:C:2018:408, n.os 41 a 43, e de 20 de setembro de 2018, Mölk, C‑214/17, EU:C:2018:744, n.o 28).

65

Importa salientar, como indica o n.o 37 do relatório mencionado no n.o 63 do presente acórdão, que essa conexão apresenta a vantagem principal de determinar a existência e o montante da obrigação alimentar, tendo em conta as «condições jurídicas e factuais do contexto social do país onde o credor vive e exerce a maioria das suas atividades». Com efeito, na medida em que, como sublinha o mesmo ponto desse relatório, é para viver que o credor de alimentos utilizará a sua pensão de alimentos, é aconselhável «apreciar o problema concreto que se coloca relativamente a uma sociedade concreta: aquela onde o requerente da pensão de alimentos vive e viverá».

66

Por conseguinte, justifica‑se considerar que, tendo em conta este objetivo, a residência habitual do credor de alimentos seja a do lugar onde se situa, de facto, o centro habitual de vida deste último, tendo em conta o seu ambiente familiar e social. Isto é tanto mais assim quando esse credor é uma criança de tenra idade, tendo em conta a necessidade, em conformidade com o artigo 24.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais, de tomar devidamente em consideração o interesse superior dessa criança, que exige nomeadamente que se assegure, como o Governo polaco sublinhou, em substância, que a mesma beneficia de recursos suficientes tendo em conta o ambiente familiar e social no qual é obrigada a viver.

67

Uma vez que, como decorre do número anterior, a tarefa de estabelecer num caso concreto se o credor de alimentos reside habitualmente num Estado ou noutro constitui uma apreciação de facto, cabe ao órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se determinar o lugar onde se situa a residência habitual do interessado com base no conjunto das circunstâncias de facto específicas do caso concreto (v., por analogia, nomeadamente, Acórdãos de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 42, e de 28 de junho de 2018, HR, C‑512/17, EU:C:2018:513, n.o 40).

68

Em segundo lugar, há que salientar que o Protocolo de Haia não prevê nenhuma atenuação no seu artigo 3.o, n.o 2, que fixa a conexão com a lei do Estado da nova residência habitual do credor de alimentos a partir do momento em que ocorreu a mudança de residência habitual, mesmo quando uma decisão judicial tenha exigido a entrega do credor de alimentos menor a um dos seus progenitores residentes noutro Estado.

69

Aliás, a regra constante desta disposição permite preservar o nexo de conexão do credor de alimentos com o lugar onde é concretamente obrigado a viver (v., neste sentido, Acórdão de 7 de junho de 2018, KP, C‑83/17, EU:C:2018:408, n.o 43) e, por conseguinte, quando este credor é um menor, tomar plenamente em consideração o interesse superior desta criança, na medida em que permite ao órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se determinar os recursos de que esta necessita tendo em devida conta o ambiente familiar e social no qual é obrigada a desenvolver‑se de maneira habitual.

70

Daqui resulta que seria contrário ao objetivo do artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo de Haia, bem como à tomada em consideração do interesse superior da criança, considerar que a existência de uma decisão judicial de um Estado‑Membro, que declara o caráter ilícito da deslocação ou da retenção de um filho menor e que ordena a sua entrega a um dos progenitores residente noutro Estado, impede, por princípio, que se considere que o menor reside habitualmente no território desse Estado‑Membro para efeitos da determinação da lei aplicável ao seu crédito alimentar.

71

A este respeito, não existe nenhum motivo, face ao silêncio dos textos legais, que justifique que o artigo 3.o do Protocolo de Haia seja interpretado à luz ou com inspiração nas disposições do artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003, que neutralizam a transferência, de princípio, da competência jurisdicional, em matéria de responsabilidade parental, para o Estado‑Membro no qual a criança teve a sua nova residência habitual na sequência da sua deslocação ou retenção ilícitas, em benefício do Estado‑Membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes dessa deslocação ou dessa retenção.

72

Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que a competência especial prevista no artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003 é uma regra de interpretação estrita e, assim, não autoriza uma interpretação que vá além dos casos expressamente previstos neste regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 24 de março de 2021, MCP, C‑603/20 PPU, EU:C:2021:231, n.os 45 e 47 e jurisprudência referida).

73

Daqui resulta que, para efeitos da identificação da lei aplicável por força do artigo 3.o do Protocolo de Haia, é unicamente no âmbito da apreciação de todas as circunstâncias do caso em apreço, a fim de determinar se a mudança da residência habitual do menor, credor de alimentos, se materializou efetivamente, que, ao mesmo tempo que assegura que é tido devidamente em consideração o interesse superior desse menor, o órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se pode ser levado a ter em conta o caráter eventualmente ilícito da deslocação ou da retenção do referido menor, conjuntamente com os outros elementos suscetíveis de demonstrar ou de refutar que a presença desse mesmo menor no Estado para o qual foi deslocado reveste um grau suficiente de estabilidade, tendo em conta o seu ambiente familiar e social.

74

A este respeito, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a pronunciar‑se, como no processo principal, sobre um pedido de pagamento de um crédito alimentar relativo a um período posterior à deslocação do credor de alimentos para esse Estado‑Membro, há que considerar que, em princípio, o momento em que esse órgão jurisdicional deve concretamente avaliar o lugar onde se situa a residência habitual desse credor, a fim de identificar a lei aplicável às obrigações alimentares em causa, é o momento em que se deve decidir sobre o pedido de alimentos, como aliás a Comissão afirma nas suas observações escritas. Com efeito, tal interpretação permite preservar, em conformidade com o objetivo do artigo 3.o, n.o 2, do Protocolo de Haia, o elemento de conexão entre um credor de alimentos e o lugar onde o crédito alimentar a que este tem direito deve permitir‑lhe prover às suas necessidades.

75

No caso em apreço, importa salientar, em primeiro lugar, que a decisão do Sąd Rejonowy w Pile (Tribunal de Primeira Instância de Piła) de conceder, em aplicação da lei polaca, o crédito alimentar aos menores foi proferida em 11 de abril de 2019, ou seja, num momento em que, por um lado, os menores residiam na Polónia com a mãe, junto da família desta, havia pouco mais de 17 meses, e, por outro, em que o Sąd Rejonowy (Tribunal de Primeira Instância) competente, chamado a pronunciar‑se sobre o pedido apresentado por W. J. para o regresso dos menores, tinha indeferido este pedido.

76

Por conseguinte, o Sąd Rejonowy w Pile (Tribunal de Primeira Instância de Piła) não pode ser acusado de não ter tido em conta, quando proferiu a Sentença de 11 de abril de 2019, o Despacho de 24 de maio de 2019, mencionado no n.o 24 do presente acórdão, que ordenou o regresso dos menores ao Reino Unido.

77

Em segundo lugar, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio é competente para proceder a uma apreciação dos factos inteiramente nova em relação à efetuada pelo Sąd Rejonowy w Pile (Tribunal de Primeira Instância de Piła), cabe‑lhe, para determinar a lei aplicável ao crédito alimentar solicitado, verificar se, à luz de todas as circunstâncias existentes que caracterizam a situação dos menores e tendo em conta o ambiente familiar e social destes últimos, a sua presença no Estado‑Membro para onde foram deslocados tem um caráter estável.

78

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 3.o do Protocolo de Haia deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da determinação da lei aplicável ao crédito alimentar de um filho menor deslocado por um dos progenitores para o território de um Estado‑Membro, a circunstância de um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro ter ordenado, no âmbito de um processo distinto, o regresso desse menor ao Estado onde residia habitualmente com os progenitores imediatamente antes da sua deslocação não basta para impedir que o referido menor possa adquirir residência habitual no território desse Estado‑Membro.

Quanto às despesas

79

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

O artigo 3.o do Protocolo de Haia, de 23 de novembro de 2007, sobre a lei aplicável às obrigações alimentares, aprovado, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2009/941/CE do Conselho, de 30 de novembro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da determinação da lei aplicável ao crédito alimentar de um filho menor deslocado por um dos progenitores para o território de um Estado‑Membro, a circunstância de um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro ter ordenado, no âmbito de um processo distinto, o regresso desse menor ao Estado onde residia habitualmente com os progenitores imediatamente antes da sua deslocação não basta para impedir que o referido menor possa adquirir residência habitual no território desse Estado‑Membro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.

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