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Document 62020CJ0500

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 14 de julho de 2022.
ÖBB-Infrastruktur Aktiengesellschaft contra Lokomotion Gesellschaft für Schienentraktion mbH.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof.
Reenvio prejudicial — Acordos internacionais — Transporte ferroviário — Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários (COTIF) — Regras uniformes relativas ao contrato de utilização da infraestrutura em tráfego internacional ferroviário (CUI) — Artigo 4.o — Direito vinculativo — Artigo 8.o — Responsabilidade do gestor — Artigo 19.o — Outras ações — Competência do Tribunal de Justiça — Avarias nas locomotivas do transportador na sequência de um descarrilamento — Locação das locomotivas de substituição — Obrigação de o gestor de infraestrutura reembolsar as despesas de locação — Contrato que prevê o alargamento da responsabilidade das partes por remissão para o direito nacional.
Processo C-500/20.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:563

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

14 de julho de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Acordos internacionais — Transporte ferroviário — Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários (COTIF) — Regras uniformes relativas ao contrato de utilização da infraestrutura em tráfego internacional ferroviário (CUI) — Artigo 4.o — Direito vinculativo — Artigo 8.o — Responsabilidade do gestor — Artigo 19.o — Outras ações — Competência do Tribunal de Justiça — Avarias nas locomotivas do transportador na sequência de um descarrilamento — Locação das locomotivas de substituição — Obrigação de o gestor de infraestrutura reembolsar as despesas de locação — Contrato que prevê o alargamento da responsabilidade das partes por remissão para o direito nacional»

No processo C‑500/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), por Decisão de 6 de agosto de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de outubro de 2020, no processo

ÖBB‑Infrastruktur Aktiengesellschaft

contra

Lokomotion Gesellschaft für Schienentraktion mbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, I. Jarukaitis (relator), M. Ilešič, D. Gratsias e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: T. Ćapeta,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

em representação da ÖBB‑Infrastruktur Aktiengesellschaft, por J. Andras e A. Egger, Rechtsanwälte,

em representação da Gesellschaft für Schienentraktion mbH, por G. Horak e A. Stolz, Rechtsanwälte,

em representação da Comissão Europeia, por W. Mölls, C. Vrignon e G. Wilms, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 3 de fevereiro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários, de 9 de maio de 1980, com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo de Vílnius, de 3 de junho de 1999 (a seguir «COTIF»), mais especificamente do artigo 4.o, do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), e do artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E da COTIF, intitulado «Regras uniformes relativas ao contrato de utilização da infraestrutura em tráfego internacional ferroviário (CUI)» [a seguir «apêndice E (CUI)»].

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a ÖBB‑Infrastruktur AG, uma empresa austríaca, gestora de uma infraestrutura ferroviária, à Lokomotion Gesellschaft für Schienentraktion mbH (a seguir «Lokomotion Gesellschaft»), uma empresa ferroviária alemã, a respeito de um pedido de indemnização na sequência de um acidente ocorrido numa via‑férrea explorada pela ÖBB‑Infrastruktur.

Quadro jurídico

Direito internacional

COTIF

3

A COTIF entrou em vigor em 1 de julho de 2006. Os 49 Estados que são parte na COTIF, entre os quais figuram todos os Estados‑Membros da União Europeia, com exceção da República de Chipre e da República de Malta, constituem a Organização Intergovernamental para os Transportes Internacionais Ferroviários (OTIF).

4

De acordo com o disposto no artigo 2.o, n.o 1, da COTIF, a OTIF tem como objetivo favorecer, melhorar e facilitar, a todos os níveis, o tráfego internacional ferroviário, nomeadamente estabelecer regimes de direito uniforme em diversos domínios jurídicos relativos ao tráfego ferroviário internacional, como em matéria de contratos de utilização da infraestrutura.

5

Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da COTIF, sob a epígrafe «Regras uniformes»:

«O tráfego internacional ferroviário e a admissão de material ferroviário para utilização em tráfego internacional ferroviário são regulados, desde que não tenham sido feitas ou emitidas declarações ou reservas nos termos do [artigo] 42.o, [n.o 1], primeira frase:

[…]

e)

Pelas “Regras Uniformes Relativas ao Contrato de Utilização da Infraestrutura em Tráfego Internacional Ferroviário (CUI)”, que constituem o apêndice E à [(CUI)];

[…]»

6

O artigo 4.o do apêndice E (CUI) prevê:

«Salvo cláusula em contrário nas presentes Regras Uniformes, é nula e de efeito nulo qualquer estipulação que, direta ou indiretamente, derrogue estas Regras Uniformes. A nulidade de tais estipulações não acarreta a nulidade de outras disposições do contrato de transporte. Não obstante, as Partes no contrato podem assumir responsabilidades e obrigações mais onerosas do que as previstas nas presentes Regras Uniformes ou fixar um montante máximo de indemnização para os danos materiais.»

7

O artigo 8.o do apêndice E (CUI) dispõe:

«1.   O gestor é responsável por:

a)

Danos corporais (morte, ferimentos ou qualquer ofensa à integridade física ou psíquica);

b)

Danos materiais (destruição ou avaria de bens móveis e imóveis);

c)

Danos pecuniários decorrentes de indemnização devida pelo transportador em virtude das Regras Uniformes [relativas ao contrato de transporte internacional ferroviário de passageiros e bagagens (CIV)] e das Regras Uniformes [relativas ao contrato de transporte ferroviário internacional de mercadorias (CIM)],

causados ao transportador ou aos seus auxiliares durante a utilização da infraestrutura e cuja ocorrência teve origem na infraestrutura.

[…]

4.   As Partes no contrato podem convencionar se, e em que medida, o gestor é responsável pelos danos causados ao transportador por motivos de atraso ou de perturbação na exploração.»

8

O artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI) tem a seguinte redação:

«Em todos os casos em que se apliquem as presentes Regras Uniformes, qualquer ação de responsabilidade, seja a que título for, só pode ser movida contra o gestor ou contra o transportador nas condições e dentro dos limites destas Regras.»

Relatório Explicativo do Apêndice E (CUI)

9

O Relatório Explicativo do Apêndice E (CUI), elaborado pela Assembleia Geral da OTIF (AG 12/13 Add.8), de 30 de setembro de 2015 (a seguir «relatório explicativo»), refere, relativamente ao artigo 4.o do apêndice E (CUI):

«1.   Em princípio, as [Regras Uniformes] CUI têm caráter imperativo e prevalecem sobre o direito nacional. A redação segue a do artigo 5.o das [Regras Uniformes] CIM.

2.   Há liberdade contratual no que respeita às condições económicas do contrato de utilização.

3.   A última frase, retomada tal qual do artigo 5.o das [Regras Uniformes] CIM, permite às partes no contrato alargar a sua responsabilidade. […]»

10

Quanto ao artigo 8.o do apêndice E (CUI), este relatório explicativo enuncia:

«1.   O § 1 estabelece o princípio da responsabilidade objetiva (estrita) do gestor. Quem tiver sofrido o dano (transportador ou auxiliar) deve provar a causa do dano (gestão deficiente ou defeito da infraestrutura) e o seu montante; deve, por outro lado, fazer prova de que o dano foi causado no período de utilização da infraestrutura. […]

2.   O texto do § 1, alínea b), especifica que a responsabilidade pelos danos materiais não inclui a responsabilidade pelos danos (puramente) pecuniários. Em conformidade com o § 1, alínea c), constituem exceção os danos pecuniários resultantes das indemnizações devidas pelo transportador nos termos das [Regras Uniformes] CIV ou das [Regras Uniformes] CIM. Os danos provocados nos meios de transporte são danos materiais que o transportador sofre diretamente, mesmo que os meios de transporte não sejam sua propriedade segundo o direito civil, mas que deles disponha ao abrigo de um contrato em conformidade com as [Regras uniformes relativas aos contratos de utilização de veículos em tráfego internacional ferroviário (CUV)].»

11

O referido relatório explicativo especifica, a respeito do artigo 19.o do apêndice E (CUI):

«O objetivo deste artigo é proteger, através da limitação dos direitos extracontratuais de terceiros, o regime de responsabilidade legal por direitos contratuais de qualquer alteração nos casos em que esses terceiros poderiam, de outra forma, invocar sem limites a responsabilidade extracontratual de uma parte no contrato. […]»

Acordo de Adesão

12

O Acordo entre a União Europeia e a Organização Intergovernamental para os Transportes Internacionais Ferroviários sobre a Adesão da União Europeia à COTIF, assinado em 23 de junho de 2011, em Berna (JO 2013, L 51, p. 8; a seguir «Acordo de Adesão»), entrou em vigor, em conformidade com o seu artigo 9.o, em 1 de julho de 2011.

13

O artigo 2.o do Acordo de Adesão estabelece:

«Sem prejuízo do objeto e da finalidade da [COTIF] de promover, melhorar e facilitar o transporte ferroviário internacional e sem prejuízo da sua plena aplicação, em relação às outras Partes na [COTIF], nas suas relações mútuas, as Partes na [COTIF] que são Estados‑Membros da União devem aplicar as regras da União, e não, por conseguinte, as regras decorrentes da presente [COTIF], exceto na medida em que não existam regras da União que regulem a matéria particular em causa.»

14

Nos termos do artigo 7.o do Acordo de Adesão:

«O âmbito da competência da União é descrito, em termos gerais, numa declaração por escrito apresentada pela União por ocasião da celebração do presente Acordo. Essa declaração pode ser alterada, se necessário, mediante notificação da União Europeia à OTIF. A declaração não substitui nem limita de forma alguma as matérias que possam ser objeto de notificações de competência da União anteriores à tomada de decisões, em sede da OTIF, por votação formal ou outro procedimento.»

Direito da União

Decisão 2013/103/UE

15

O Acordo de Adesão foi aprovado em nome da União pela Decisão 2013/103/UE do Conselho, de 16 de junho de 2011, relativa à assinatura e celebração do Acordo entre a União Europeia e a Organização Intergovernamental para os Transportes Internacionais Ferroviários sobre a Adesão da União Europeia à Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários (COTIF), de 9 de maio de 1980, com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo de Vílnius, de 3 de junho de 1999 (JO 2013, L 51, p. 1).

16

No anexo I da Decisão 2013/103 figura uma declaração da União, feita aquando da assinatura do Acordo de Adesão, relativa ao exercício da competência (a seguir «Declaração da União»).

17

A Declaração da União prevê:

«No setor ferroviário, a União Europeia […] exerce uma competência partilhada com os Estados‑Membros da União […] por força dos artigos 90.o e 91.o, em conjugação com o artigo 100.o, n.o 1, e artigo 172.o [TFUE].

[…]

Com base [nos artigos 91.o e 171.o TFUE], a União adotou um número substancial de diplomas legais aplicáveis ao transporte ferroviário.

Nos termos do direito da União, a União tem competência exclusiva em matérias do domínio do transporte ferroviário em que a [COTIF] ou diplomas legais adotados em conformidade com ela, afetam ou alteram o alcance das regras em vigor da União.

Nas matérias reguladas pela [COTIF] que são da competência exclusiva da União, os Estados‑Membros não têm competência.

Nos casos em que as regras vigentes da União não são afetadas pela [COTIF] ou por diplomas legais adotados em conformidade com ela, a União partilha com os Estados‑Membros a competência nas matérias relacionadas com a [COTIF].

No apêndice do presente anexo, figura a lista dos diplomas legais da União em vigor à data do presente Acordo. O âmbito da competência da União decorrente dos referidos diplomas legais deve ser apreciado por referência às disposições específicas de cada diploma legal, especialmente na medida em que tais disposições estabeleçam regras comuns. A competência da União é suscetível de evoluir. No quadro do Tratado da União Europeia e do [Tratado] FUE, as instituições competentes da União podem tomar decisões que determinem o alcance das competências da União. A União reserva‑se, por conseguinte, o direito de alterar a presente declaração nessa conformidade, sem que tal constitua condição necessária para o exercício da sua competência nas matérias abrangidas pela [COTIF].»

Diretiva 2012/34/UE

18

Os considerandos 1 a 3 da Diretiva 2012/34/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de novembro de 2021, que estabelece um Espaço Ferroviário Europeu Único (JO 2012, L 343, p. 32), dispõem:

«(1)

A Diretiva 91/440/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa ao desenvolvimento dos caminhos de ferro comunitários [JO 1991, L 237, p. 25], a Diretiva 95/18/CE do Conselho, de 19 de junho de 1995, relativa às licenças das empresas de transporte ferroviário [JO 1995, L 143, p. 70], e a Diretiva 2001/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária e à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária [JO 2001, L 75, p. 29], foram substancialmente alteradas. Tendo em conta a necessidade de introduzir alterações adicionais, essas diretivas deverão ser reformuladas e fundidas num único ato por razões de clareza.

(2)

Uma maior integração do setor dos transportes da União constitui um elemento essencial da realização do mercado interno, e os caminhos de ferro constituem um elemento vital do setor dos transportes na União rumo à mobilidade sustentável.

(3)

A eficácia da rede ferroviária deverá ser melhorada com vista à sua integração num mercado competitivo, tendo simultaneamente em conta as características específicas dos caminhos de ferro.»

19

O artigo 1.o da Diretiva 2012/34, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», está redigido nos seguintes termos:

«1.   A presente diretiva estabelece:

a)

As regras aplicáveis à gestão da infraestrutura ferroviária e às atividades de transporte por caminho de ferro das empresas ferroviárias que se encontrem estabelecidas ou que venham a estabelecer‑se num Estado‑Membro, constantes do capítulo II;

[…]»

20

O artigo 3.o da Diretiva 2012/34, sob a epígrafe «Definições», enuncia, nos seus n.os 1 e 2:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)

“Empresa ferroviária”, uma empresa de estatuto privado ou público, detentora de uma licença nos termos da presente diretiva, cuja atividade principal consiste na prestação de serviços de transporte de mercadorias e/ou de passageiros por caminho de ferro, desde que a tração seja assegurada pela própria empresa; incluem‑se nesta definição as empresas que apenas prestem serviços de tração;

2)

“Gestor de infraestrutura”, uma entidade ou uma empresa responsável pela exploração, pela manutenção e pela renovação da infraestrutura ferroviária numa rede, bem como pela participação no seu desenvolvimento, de acordo com o estabelecido pelo Estado‑Membro no quadro da sua política geral de desenvolvimento e financiamento da infraestrutura.»

21

O capítulo IV da Diretiva 2012/34, que inclui os artigos 26.o a 57.o, intitula‑se «Aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e repartição da capacidade da infraestrutura». Nos termos do seu artigo 28.o, sob a epígrafe «Acordos entre empresas ferroviárias e gestores de infraestrutura»:

«As empresas ferroviárias que efetuem serviços de transporte ferroviário devem celebrar com o gestor de infraestrutura ferroviária utilizada os acordos de direito público ou privado necessários. As condições que regulam esses acordos devem ser não discriminatórias e transparentes, nos termos da presente diretiva.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

22

A Lokomotion Gesellschaft é uma empresa privada de transporte ferroviário com sede na Alemanha. Põe à disposição dos seus clientes locomotivas para efetuar diferentes tipos de transportes.

23

A ÖBB‑Infrastruktur é uma empresa austríaca que gere infraestruturas para o transporte ferroviário e explora, nomeadamente, a infraestrutura ferroviária na zona da estação de Kufstein, na Áustria.

24

Em dezembro de 2014, estas empresas celebraram um contrato de utilização da infraestrutura ferroviária da ÖBB‑Infrastruktur para o tráfego internacional, nos termos do qual a Lokomotion Gesellschaft tem o direito de utilizar essa infraestrutura ferroviária mediante uma contrapartida fixada em conformidade com o acordo relativo aos troços correspondentes.

25

As condições gerais relativas ao contrato de utilização da infraestrutura (a seguir «condições gerais») fazem parte integrante desse contrato. O n.o 20 destas últimas prevê que a responsabilidade das partes contratuais se rege pelas disposições legais e de direito internacional, em particular as do Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Geral), do Unternehmensgesetzbuch (Código das Sociedades Comerciais), da Eisenbahn‑ und Kraftfahrzeughaftpflichtgesetz (Lei Relativa à Responsabilidade Civil dos Caminhos de Ferro e dos Veículos Rodoviários) e do apêndice E (CUI), salvo disposição em contrário nas condições gerais.

26

Nos termos do n.o 34 das condições gerais, o contrato está sujeito ao direito austríaco, exceto no que respeita às disposições de remissão da Internationales Privatrechtsgesetz (Lei Austríaca Relativa ao Direito Internacional Privado)] e da Convenção das Nações Unidas, assinada em Viena, em 11 de abril de 1980, sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias.

27

Em 15 de julho de 2015, um comboio de locomotivas, composto por seis locomotivas, pertencente à Lokomotion Gesellschaft, descarrilou na estação de Kufstein, danificando duas dessas locomotivas. Estas últimas não puderam ser utilizadas durante a reparação e, por conseguinte, a Lokomotion Gesellschaft alugou duas locomotivas de substituição. Intentou então uma ação judicial contra a ÖBB‑Infrastruktur num órgão jurisdicional de primeira instância para obter o reembolso dos custos dessa locação, que ascende ao montante de 629110 euros, acrescido de juros e despesas.

28

A Lokomotion Gesellschaft considera, por um lado, que o acidente se deveu a um defeito da infraestrutura ferroviária gerida pela ÖBB‑Infrastruktur. Ora, esta última não respeitou, ilícita e culposamente, as obrigações que lhe incumbiam de construção, controlo, manutenção, conservação e reparação dos caris, previstas na regulamentação em matéria ferroviária. Por outro lado, as despesas de locação das locomotivas de substituição devem ser consideradas «danos materiais» na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI).

29

A ÖBB‑Infrastruktur sustenta que a infraestrutura ferroviária não revelou defeitos. Segundo afirma, o acidente foi causado pelo desprendimento de um gancho de atrelagem da locomotiva que descarrilou, gancho que foi demasiado solicitado antes do descarrilamento, o que implica que a culpa é imputável à Lokomotion Gesellschaft. Além disso, os danos sofridos são danos puramente pecuniários, pelos quais a Lokomotion Gesellschaft não pode obter reparação ao abrigo das disposições aplicáveis do apêndice E (CUI).

30

Por sentença interlocutória, o órgão jurisdicional de primeira instância julgou improcedente o pedido da Lokomotion Gesellschaft, considerando que o apêndice E (CUI), em conformidade com o seu artigo 19.o, n.o 1, substituía, enquanto regime de responsabilidade única, todos os outros regimes de responsabilidade nacionais. Salientou que, segundo a definição do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI), os «danos materiais» se limitam à destruição ou à avaria de bens móveis e imóveis. Ora, as despesas de locação reclamadas controvertidas no processo principal constituem danos puramente pecuniários, não cobertos pelo artigo 8.o, n.o 1, alínea b), nem pelo artigo 8.o, n.o 1, alínea c), do apêndice E (CUI) e não podem, assim, ser objeto de indemnização. Este órgão jurisdicional considerou, além disso, que o n.o 20 das condições gerais não constitui uma convenção entre as partes, na aceção do artigo 8.o, n.o 4, do apêndice E (CUI), de que decorra a responsabilidade da ÖBB‑Infrastruktur por força das disposições nacionais.

31

O órgão jurisdicional de recurso anulou essa sentença interlocutória e remeteu para a primeira instância o pedido da Lokomotion Gesellschaft, para nova decisão. A este respeito, considerou que a expressão «danos materiais», que figura no artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI), devia ser interpretada em sentido lato, no sentido de também abranger os «danos materiais derivados», como as despesas de locação, pela substituição das locomotivas danificadas, reclamadas à ÖBB‑Infrastruktur.

32

A ÖBB‑Infrastruktur interpôs no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria), órgão jurisdicional de reenvio, um recurso da decisão de anulação do órgão jurisdicional de recurso.

33

Antes de mais, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, por o acordo celebrado entre a União e a OTIF relativo à adesão da União à COTIF constituir um acordo misto, os domínios da COTIF em que a União tem competência exclusiva e aqueles em que exerce uma competência partilhada com os Estados‑Membros não resultam expressamente da declaração da União. Salienta que, tendo em conta esta declaração, a competência do Tribunal de Justiça se impõe em todos os domínios da COTIF.

34

Todavia, atentas as incertezas expressas na doutrina no que respeita à competência do Tribunal de Justiça para tratar reenvios prejudiciais relativos a acordos mistos, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à existência dessa competência no processo principal.

35

Em seguida, esse órgão jurisdicional considera que as despesas de locação das locomotivas em causa no processo principal não constituem em si mesmas um «dano material», consistente na destruição ou na avaria de bens móveis e imobiliários, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI). No entanto, uma vez que estas despesas estão estreitamente ligadas a esse dano, este órgão jurisdicional pergunta se podem ser consideradas danos materiais derivados.

36

Por último, se o Tribunal de Justiça vier a considerar que as despesas de locação das locomotivas em causa não estão abrangidas pela disposição acima referida, importa, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, determinar se uma remissão geral para um corpus legislativo nacional pode ser entendida como uma estipulação derrogatória das Regras Uniformes, na aceção do artigo 4.o do apêndice E (CUI), e, nesse caso, se essa remissão deve efetivamente ser considerada uma «extensão» da responsabilidade, na aceção desse artigo 4.o, quando esse corpus jurídico é mais restrito do que a COTIF, no que respeita aos requisitos da constituição da responsabilidade, em particular o requisito relativo à existência de culpa.

37

Nestas circunstâncias o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de justiça) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O [Tribunal de Justiça] é competente para interpretar [o apêndice E (CUI)]?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Deve o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), [do apêndice E (CUI)] ser interpretado no sentido de que a responsabilidade do gestor pelos danos materiais, que é objeto dessa disposição, abrange igualmente as despesas em que o transportador incorreu ao alugar locomotivas de substituição que foram necessárias devido aos danos causados às suas locomotivas?

3)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão e de resposta negativa à segunda questão:

Devem o artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 1, [do apêndice E (CUI)] ser interpretados no sentido de que as partes no contrato podem validamente alargar a sua responsabilidade através de uma remissão geral para o direito nacional, segundo o qual o alcance da responsabilidade é mais amplo, mas, em derrogação à responsabilidade objetiva prevista [no apêndice E (CUI)], a culpa é um requisito da constituição da responsabilidade?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

38

Em conformidade com o artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar os atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

39

Ora, resulta de jurisprudência constante que um acordo celebrado pelo Conselho, em conformidade com os artigos 217.o e 218.o TFUE, constitui, no que respeita à União, um ato adotado por uma das suas instituições, que as disposições desse acordo fazem parte integrante, a partir da sua entrada em vigor, da ordem jurídica da União e que, no âmbito dessa ordem jurídica, o Tribunal de Justiça é competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação desse acordo (Acórdãos de 30 de abril de 1974, Haegeman, 181/73, EU:C:1974:41, n.os 3 a 6, e de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 23).

40

Relativamente aos acordos mistos celebrados pela União e pelos seus Estados‑Membros no exercício de uma competência partilhada, o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se ao abrigo das disposições do artigo 267.o TFUE, tem competência para definir a linha divisória entre as obrigações que a União assume e as que continuam exclusivamente a cargo dos Estados‑Membros, bem como para interpretar para esse efeito as disposições de um acordo dessa natureza (v., por analogia, Acórdãos de 14 de dezembro de 2000, Dior e o., C‑300/98 e C‑392/98, EU:C:2000:688, n.o 33, e de 8 de março de 2011, Lesoochranárske zoskupenie, C‑240/09, EU:C:2011:125, n.o 31).

41

Segue‑se que o Tribunal de Justiça é competente para interpretar as disposições de um acordo misto relativas às obrigações que a União assume que integrem um domínio em que a União exerceu a sua competência (v., neste sentido, Acórdão de 8 de março de 2011, Lesoochranárske zoskupenie, C‑240/09, EU:C:2011:125, n.os 32 e 34).

42

Resulta igualmente de jurisprudência constante que, quando uma disposição de um acordo internacional pode ser aplicada tanto a situações que são abrangidas pelo direito nacional como a situações que são abrangidas pelo direito da União, existe um interesse real em que, para evitar divergências de interpretação futuras, essa disposição seja interpretada uniformemente, quaisquer que sejam as condições em que se deva aplicar (v., designadamente, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 29 e jurisprudência referida).

43

Ora, só o Tribunal de Justiça, agindo em cooperação com os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros nos termos do artigo 267.o TFUE, está em condições de assegurar tal interpretação uniforme (v., por analogia, Acórdão de 14 de dezembro de 2000, Dior e o., C‑300/98 e C‑392/98, EU:C:2000:688, n.o 38).

44

No caso em apreço, resulta do artigo 2.o da COTIF que a OTIF «tem como objetivo favorecer, melhorar e facilitar, a todos os níveis, o tráfego internacional ferroviário», nomeadamente estabelecendo regras de direito uniformes em diferentes domínios do referido tráfego (Acórdão de 5 de dezembro de 2017, Alemanha/Conselho, C‑600/14, EU:C:2017:935, n.o 54).

45

Neste contexto, o apêndice E (CUI) regula os contratos de utilização da infraestrutura ferroviária (CUI) para fins de transporte, designadamente a forma e as condições‑padrão desses contratos. Em especial, o artigo 8.o, n.o 1, o artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI), sobre os quais o Tribunal de Justiça é questionado, enunciam, nomeadamente, as regras em matéria de responsabilidade do gestor de infraestrutura. Assim, este apêndice incide sobre o direito dos contratos relativos ao transporte ferroviário internacional. Deste modo, estas disposições são suscetíveis de versar, nomeadamente, sobre o regime jurídico aplicável aos acordos celebrados entre as empresas ferroviárias e os gestores da infraestrutura ferroviária utilizada.

46

Ora, esta matéria é de um domínio, a saber, o dos transportes, no qual, como decorre do artigo 4.o, n.o 2, alínea g), TFUE, a União dispõe de competência partilhada, que exerceu com a adoção da Diretiva 2012/34.

47

A este respeito, embora esta diretiva não contenha regras comparáveis às enunciadas no apêndice E (CUI), a verdade é que constitui, como resulta do seu primeiro considerando, uma reformulação das Diretivas 91/440, 95/18 e 2001/14, expressamente citadas no apêndice da Declaração da União entre os instrumentos que materializam o exercício, pela União, da competência que partilha com os Estados‑Membros em matéria de transportes.

48

Além disso, os considerandos 2 e 3 desta diretiva sublinham a importância de uma maior integração do setor dos transportes da União e da melhoria da eficácia do sistema ferroviário, tendo simultaneamente em conta os aspetos específicos dos caminhos de ferro.

49

A este respeito, o artigo 1.o da Diretiva 2012/34 prevê, nomeadamente, que esta diretiva estabelece as regras aplicáveis à gestão da infraestrutura ferroviária e às atividades de transporte por caminho de ferro das empresas ferroviárias que se encontrem estabelecidas ou que venham a estabelecer‑se num Estado‑Membro, bem como os princípios e procedimentos aplicáveis à fixação e cobrança das taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e à repartição da capacidade da infraestrutura ferroviária, constantes do capítulo IV. Assim, o artigo 3.o, pontos 1 e 2, da mesma diretiva define os conceitos de «empresa ferroviária» e «gestor de infraestrutura». Além disso, o artigo 28.o da referida diretiva, inserido no capítulo IV, refere‑se aos acordos entre empresas ferroviárias e gestores de infraestrutura, estatuindo que esses acordos devem ser não discriminatórios e transparentes.

50

Mais especificamente, cabe observar que a proibição de discriminação prevista no artigo 28.o da Diretiva 2012/34 se aplica a todas as disposições aplicáveis no âmbito da relação contratual entre o gestor de infraestrutura e a empresa ferroviária, incluindo as disposições aplicáveis em matéria de responsabilidade.

51

Por conseguinte, há que concluir que as regras enunciadas no apêndice E (CUI) e, mais especificamente, as regras em matéria de responsabilidade do gestor previstas no artigo 4.o, no artigo 8.o, n.o 1, e no artigo 19.o, n.o 1, deste apêndice são aplicáveis tanto a situações abrangidas pelo direito nacional como a situações abrangidas pelo direito da União e que, portanto, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 42 do presente acórdão, existe um interesse real em que sejam interpretadas uniformemente.

52

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o artigo 4.o, o artigo 8.o, n.o 1, e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI).

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

53

Atentas as constatações efetuadas na apreciação da competência do Tribunal de Justiça, há que responder à primeira questão no sentido de que o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se em conformidade com as disposições do artigo 267.o TFUE, é competente para interpretar o artigo 4.o, o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI).

Quanto à segunda questão

54

Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI) deve ser interpretado no sentido de que a responsabilidade do gestor de infraestrutura por danos materiais abrange igualmente as despesas efetuadas pela empresa ferroviária pela locação de locomotivas de substituição no período de reparação das locomotivas danificadas.

55

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI) prevê igualmente a responsabilidade do gestor de infraestrutura pelas despesas que, sem cobrir danos que constituam, em si mesmos, danos materiais, estão estreitamente ligadas a estes últimos.

56

Segundo jurisprudência constante, um tratado internacional, como a COTIF, deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos seus termos no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim, em conformidade com o direito internacional geral, que vincula a União, conforme codificado no artigo 31.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331) (v., neste sentido, Acórdão de 12 de maio de 2021, Altenrhein Luftfahrt, C‑70/20, EU:C:2021:379, n.o 31 e jurisprudência referida).

57

O artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI) enuncia que o gestor de infraestrutura é responsável pelos danos materiais (destruição ou avaria de bens móveis e imóveis).

58

Uma vez que esta disposição estabelece uma responsabilidade objetiva e, portanto, sem culpa do gestor de infraestrutura, deve ser objeto de interpretação restrita.

59

Quanto à interpretação literal do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI), a utilização dos termos «danos materiais» seguidos, entre parênteses, da referência à destruição ou à avaria de bens móveis ou imóveis tende a demonstrar que a responsabilidade desse gestor se limita aos danos causados à substância em si do bem danificado e não abrange os danos decorrentes da indisponibilidade desse bem.

60

Esta interpretação é confirmada pelo contexto em que se insere o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI). Com efeito, o artigo 8.o, n.o 1, do apêndice E (CUI) enumera os três tipos de danos pelos quais o gestor tem essa responsabilidade objetiva. Por conseguinte, o alcance desta responsabilidade está claramente delimitado. Trata‑se dos danos corporais mencionados no artigo 8.o, n.o 1, alínea a), do apêndice E (CUI), dos danos materiais mencionados no artigo 8.o, n.o 1, alínea b), desse apêndice, bem como dos danos pecuniários referidos no artigo 8.o, n.o 1, alínea c), do referido apêndice. Atenta esta distinção feita pelo referido artigo 8.o, n.o 1, entre estes três tipos de danos, há que considerar que estas categorias se excluem mutuamente e que, portanto, nomeadamente, a responsabilidade do gestor pelos danos materiais referidos no artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI) não abrange os danos pecuniários.

61

Esta conclusão é corroborada pelo relatório explicativo que, no que respeita ao artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI), refere que a responsabilidade por danos materiais prevista nesta disposição não inclui a responsabilidade por danos pecuniários.

62

Neste contexto, importa, mais especificamente, sublinhar que, no que respeita aos danos materiais, decorre das explicações dadas nesse mesmo relatório explicativo a respeito do artigo 8.o do apêndice E (CUI) que a responsabilidade por danos sofridos pelos meios de transporte, prevista no artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI), respeita unicamente aos danos que o transportador sofre «diretamente».

63

Não obstante, não se pode excluir que os outros danos possam ser compensados ao abrigo de outras disposições. A este título, há que salientar que o artigo 8.o, n.o 1, alínea c), do apêndice E (CUI) prevê que o gestor é responsável pelos danos pecuniários resultantes das indemnizações devidas pelo transportador por força das Regras Uniformes CIV e das Regras Uniformes CIM.

64

Além disso, como indicou a advogada‑geral no n.o 111 das suas conclusões, o artigo 8.o, n.o 4, do apêndice E (CUI) exige uma interpretação restritiva do alcance da responsabilidade do gestor por danos materiais nos termos do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), deste apêndice. Com efeito, esta disposição permite às partes contratuais acordar em que o gestor seja, e em que medida, responsável pelos danos causados ao transportador por atrasos ou perturbação na exploração. Pode tratar‑se, nomeadamente, dos danos sofridos por uma empresa ferroviária em consequência da sua impossibilidade de utilizar um veículo danificado.

65

No caso em apreço, a Lokomotion Gesellschaft pede uma indemnização pelas despesas de locação de duas locomotivas que tiveram de ser alugadas para substituir as locomotivas danificadas no período de reparação. A ação no processo principal não visa, portanto, obter a reparação do prejuízo resultante do dano material causado às locomotivas danificadas, mas a indemnização dos custos decorrentes da vontade da Lokomotion Gesellschaft de continuar a prestar os seus serviços ininterruptamente. Ora, as despesas efetuadas para mitigar os efeitos dos danos materiais, como, nomeadamente, as despesas de locação de locomotivas, constituem um dano pecuniário e não um dano material, na aceção do artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI), e, sem prejuízo da eventual aplicação de outras disposições, não são da responsabilidade objetiva do gestor de infraestrutura nos termos deste artigo 8.o, n.o 1, alínea b).

66

Atendendo ao conjunto das considerações anteriores, há que responder à segunda questão que o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E (CUI) deve ser interpretado no sentido de que a responsabilidade do gestor de infraestrutura por danos materiais não abrange as despesas efetuadas pela empresa ferroviária pela locação de locomotivas de substituição no período de reparação das locomotivas danificadas.

Quanto à terceira questão

67

Com a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI) devem ser interpretados no sentido de que as partes contratuais podem alargar a sua responsabilidade por remissão geral para o direito nacional, nos termos do qual o alcance da responsabilidade do gestor de infraestrutura é mais amplo, mas que sujeita esta responsabilidade à existência de culpa.

68

Nos termos do artigo 4.o do apêndice E (CUI), salvo cláusula em contrário nas Regras Uniformes, é nula a estipulação que, direta ou indiretamente, derroga as Regras Uniformes. Contudo, as partes contratuais podem assumir uma responsabilidade e obrigações mais onerosas do que as previstas nas Regras Uniformes ou fixar um montante máximo de indemnização por danos materiais.

69

Como refere o relatório explicativo sobre o artigo 4.o do apêndice E (CUI), este artigo prevê que as disposições deste apêndice têm caráter imperativo e prevalecem sobre o direito nacional.

70

Deste modo, as disposições do apêndice E (CUI) são vinculativas em todas as situações abrangidas por esse apêndice, o que implica, nomeadamente, a responsabilidade do gestor, definida no artigo 8.o, n.o 1, do referido apêndice.

71

Todavia, como refere o relatório explicativo sobre este artigo 4.o, as partes contratuais podem alargar a sua responsabilidade a situações que não estão já abrangidas pelo apêndice E (CUI). Por conseguinte, as disposições do artigo 8.o, n.o 1, do referido apêndice devem ser entendidas como sendo imperativas unicamente na medida em que fixem o alcance mínimo da responsabilidade do gestor.

72

As partes contratuais podem, portanto, chegar a acordo sobre a extensão da sua responsabilidade e incluí‑la no contrato de utilização. É uma questão de liberdade contratual das partes definir se optam por formular elas próprias no contrato uma cláusula que prevê tal extensão da responsabilidade ou se optam por recorrer a uma remissão para o direito nacional.

73

A este respeito, como sublinhou a advogada‑geral no n.o 127 das suas conclusões, o artigo 4.o do apêndice E (CUI) em nada restringe a faculdade de que dispõem, ao abrigo desta disposição, as partes contratuais de acordarem na extensão da sua responsabilidade. Do mesmo modo, nada se opõe a que o alargamento da responsabilidade de uma parte contratual possa assumir a forma de remissão para as regras de direito nacional.

74

Além disso, a extensão da responsabilidade prevista no artigo 4.o do apêndice E (CUI) sobre situações que não estão já cobertas por esse apêndice acresce à responsabilidade objetiva prevista no artigo 8.o, n.o 1, do referido apêndice.

75

Por conseguinte, o artigo 4.o do apêndice E (CUI) não se opõe a que uma remissão para o direito nacional tenha por consequência a previsão, além das regras de responsabilidade do apêndice E (CUI), de um regime de responsabilidade diferente do da responsabilidade objetiva.

76

Esta conclusão não é posta em causa pelo artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI), segundo o qual a ação fundada em responsabilidade, seja a que título for, só pode ser intentada contra o gestor ou contra o transportador nas condições e limites do apêndice E (CUI). Como refere o relatório explicativo sobre este artigo 19.o, esta disposição tem por objeto a responsabilidade extracontratual das partes contratuais em relação a terceiros, e não a responsabilidade das partes contratuais na sua relação recíproca.

77

No caso em apreço, resulta dos elementos de facto expostos pelo órgão jurisdicional de reenvio que as partes chegaram a acordo sobre as condições gerais que são integradas no contrato. O n.o 20 destas condições gerais prevê que a responsabilidade das partes contratuais é regulada pelas disposições legais e de direito internacional, designadamente as do Código Civil Geral, do Código das Sociedades Comerciais e da Lei Relativa à Responsabilidade Civil dos Caminhos de Ferro e dos Veículos Rodoviários. Nestas condições, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se essa remissão leva a alargar a responsabilidade de pelo menos uma das partes contratuais, sem violar os direitos que para a outra parte decorrem das disposições do apêndice E (CUI).

78

Atendendo ao conjunto das considerações anteriores, há que responder à terceira questão que o artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E (CUI) devem ser interpretados no sentido de que as partes contratuais podem alargar a sua responsabilidade por remissão geral para o direito nacional, nos termos do qual o alcance da responsabilidade do gestor de infraestrutura é mais amplo e essa responsabilidade está sujeita à existência de culpa.

Quanto às despesas

79

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

1)

O Tribunal de Justiça da União Europeia, chamado a pronunciar‑se em conformidade com as disposições do artigo 267.o TFUE, é competente para interpretar o artigo 4.o, o artigo 8.o, n.o 1, alínea b), e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E da Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários, de 9 de maio de 1980, com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo de Vílnius, de 3 de junho de 1999, intitulado «Regras uniformes relativas ao contrato de utilização da infraestrutura em tráfego internacional ferroviário (CUI)»

 

2)

O artigo 8.o, n.o 1, alínea b), do apêndice E da Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários, de 9 de maio de 1980, com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo de Vílnius, de 3 de junho de 1999, deve ser interpretado no sentido de que a responsabilidade do gestor de infraestrutura por danos materiais não abrange as despesas efetuadas pela empresa ferroviária pela locação de locomotivas de substituição no período de reparação das locomotivas danificadas.

 

3)

O artigo 4.o e o artigo 19.o, n.o 1, do apêndice E da Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários, de 9 de maio de 1980, com a redação que lhe foi dada pelo Protocolo de Vílnius, de 3 de junho de 1999, devem ser interpretados no sentido de que as partes contratuais podem alargar a sua responsabilidade por remissão geral para o direito nacional, nos termos do qual o alcance da responsabilidade do gestor de infraestrutura é mais amplo e essa responsabilidade está sujeita à existência de culpa.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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