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Document 62020CJ0490

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 14 de dezembro de 2021.
V.M.A. contra Stolichna obshtina, rayon «Pancharevo».
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Sofia-grad.
Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigos 20.° e 21.° TFUE — Direito de livre circulação e residência no território dos Estados‑Membros — Criança nascida no Estado‑Membro de acolhimento de seus pais — Certidão de nascimento emitida por esse Estado‑Membro que menciona duas mães para essa criança — Recusa pelo Estado‑Membro de origem de uma dessas duas mães de emitir uma certidão de nascimento da referida criança na falta de informações sobre a identidade da mãe biológica desta — Posse dessa certidão que constitui a condição para a emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte — Regulamentação nacional desse Estado‑Membro de origem que não admite a parentalidade de pessoas do mesmo sexo.
Processo C-490/20.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2021:1008

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

14 de dezembro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigos 20.o e 21.o TFUE — Direito de livre circulação e residência no território dos Estados‑Membros — Criança nascida no Estado‑Membro de acolhimento de seus pais — Certidão de nascimento emitida por esse Estado‑Membro que menciona duas mães para essa criança — Recusa pelo Estado‑Membro de origem de uma dessas duas mães de emitir uma certidão de nascimento da referida criança na falta de informações sobre a identidade da mãe biológica desta — Posse dessa certidão que constitui a condição para a emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte — Regulamentação nacional desse Estado‑Membro de origem que não admite a parentalidade de pessoas do mesmo sexo»

No processo C‑490/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia, Bulgária), por Decisão de 2 de outubro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça no mesmo dia, no processo

V.М.А.

contra

Stolichna obshtina, rayon «Pancharevo»,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, K. Jürimäe, C. Lycourgos, E. Regan, N. Jääskinen, I. Ziemele e J. Passer, presidentes de secção, M. Ilešič (relator), J.‑C. Bonichot, T. von Danwitz e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Aleksejev, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 9 de fevereiro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

em representação de V.М.А., por D. I. Lyubenova, advokat,

em representação do Governo búlgaro, por T. Mitova e L. Zaharieva, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, inicialmente por J. Möller e S. Heimerl e, em seguida, por J. Möller, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, inicialmente por S. Centeno Huerta e J. Ruiz Sánchez e, em seguida, por J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por W. Ferrante, avvocato dello Stato,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e Z. Biró‑Tóth, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por C. S. Schillemans, na qualidade de agente,

em representação do Governo polaco, por E. Borawska‑Kędzierska, A. Siwek‑Ślusarek e B. Majczyna, na qualidade de agentes,

em representação do Governo eslovaco, por B. Ricziová, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, inicialmente por E. Montaguti, I. Zaloguin e M. Wilderspin e, em seguida, por E. Montaguti e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 15 de abril de 2021,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.o 2, TUE, dos artigos 20.o e 21.o TFUE, bem como dos artigos 7.o, 9.o, 24.o e 45.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe V.M.A. ao Stolichna obshtina, rayon «Pancharevo» (Município de Sófia, distrito de Pancharevo, Bulgária) (a seguir «Município de Sófia»), a respeito da recusa deste último em emitir uma certidão de nascimento da filha de V.M.A. e da sua esposa.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

O artigo 2.o da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1577, p. 3), dispõe:

«1.   Os Estados Partes comprometem‑se a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.

2.   Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para que a criança seja efetivamente protegida contra todas as formas de discriminação ou de sanção decorrentes da situação jurídica, de atividades, opiniões expressas ou convicções de seus pais, representantes legais ou outros membros da sua família.»

4

O artigo 7.o desta convenção prevê:

«1.   A criança é registada imediatamente após o nascimento e tem desde o nascimento o direito a um nome, o direito a adquirir uma nacionalidade e, sempre que possível, o direito de conhecer os seus pais e de ser educada por eles.

2.   Os Estados Partes garantem a realização destes direitos de harmonia com a legislação nacional e as obrigações decorrentes dos instrumentos jurídicos internacionais relevantes neste domínio, nomeadamente nos casos em que, de outro modo, a criança ficasse apátrida.»

Direito da União

Tratado UE

5

O artigo 4.o, n.o 2, TUE dispõe:

«A União respeita a igualdade dos Estados‑Membros perante os Tratados, bem como a respetiva identidade nacional, refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles, incluindo no que se refere à autonomia local e regional. A União respeita as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a integridade territorial, a manter a ordem pública e a salvaguardar a segurança nacional. Em especial, a segurança nacional continua a ser da exclusiva responsabilidade de cada Estado‑Membro.»

Tratado FUE

6

O artigo 20.o TFUE prevê:

«1.   É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.

2.   Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados. Assistem‑lhes, nomeadamente:

a)

O direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros;

[…]

Estes direitos são exercidos nas condições e nos limites definidos pelos Tratados e pelas medidas adotadas para a sua aplicação.»

7

O artigo 21.o, n.o 1, TFUE enuncia:

«Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação.»

Carta

8

O artigo 7.o da Carta, epigrafado «Respeito pela vida privada e familiar», dispõe:

«Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações.»

9

O artigo 9.o da Carta, epigrafado «Direito de contrair casamento e de constituir família», prevê:

«O direito de contrair casamento e o direito de constituir família são garantidos pelas legislações nacionais que regem o respetivo exercício.»

10

O artigo 24.o da Carta, epigrafado «Direitos das crianças», tem a seguinte redação:

«1.   As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem‑estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade.

2.   Todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

3.   Todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses.»

11

O artigo 45.o da Carta, epigrafado «Liberdade de circulação e de permanência», enuncia:

«1.   Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros.

2.   Pode ser concedida liberdade de circulação e de permanência, de acordo com os Tratados, aos nacionais de países terceiros que residam legalmente no território de um Estado‑Membro.»

Diretiva 2004/38/CE

12

A Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77; retificação no JO 2004, L 229, p. 35), prevê, no seu artigo 2.o, epigrafado «Definições»:

«Para os efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1.

“Cidadão da União”: qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro.

2.

“Membro da família”:

a)

O cônjuge;

b)

O parceiro com quem um cidadão da União contraiu uma parceria registada com base na legislação de um Estado‑Membro, se a legislação do Estado‑Membro de acolhimento considerar as parcerias registadas como equiparadas ao casamento, e nas condições estabelecidas na legislação aplicável do Estado‑Membro de acolhimento;

c)

Os descendentes diretos com menos de 21 anos de idade ou que estejam a cargo, assim como os do cônjuge ou do parceiro na aceção da alínea b);

d)

Os ascendentes diretos que estejam a cargo, assim como os do cônjuge ou do parceiro na aceção da alínea b).

3.

“Estado‑Membro de acolhimento”: o Estado‑Membro para onde se desloca o cidadão da União a fim de aí exercer o seu direito de livre circulação e residência.

[…]»

13

O artigo 4.o desta diretiva, epigrafado «Direito de saída», dispõe:

«1.   Sem prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, têm direito a sair do território de um Estado‑Membro a fim de se deslocar a outro Estado‑Membro todos os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido.

[…]

3.   Os Estados‑Membros, agindo nos termos do respetivo direito, devem emitir ou renovar aos seus nacionais um bilhete de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular.

4.   O passaporte deve ser válido, pelo menos, para todos os Estados‑Membros e para os países pelos quais o titular deva transitar quando viajar entre Estados‑Membros. Se o direito de um Estado‑Membro não determinar a emissão de bilhete de identidade, a validade do passaporte, aquando da sua emissão ou renovação, não pode ser inferior a cinco anos.»

14

O artigo 5.o da referida diretiva, epigrafado «Direito de entrada», estabelece:

«1.   Sem prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, os Estados‑Membros devem admitir no seu território os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido.

[…]

4.   Se um cidadão da União ou um membro da sua família que não tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro não dispuserem dos documentos de viagem necessários ou, se for o caso, dos vistos necessários, o Estado‑Membro em causa deve, antes de recusar a sua entrada, dar‑lhes todas as oportunidades razoáveis a fim de lhes permitir obter os documentos necessários ou de estes lhes serem enviados num prazo razoável, ou a fim de confirmar ou provar por outros meios a sua qualidade de titulares do direito de livre circulação e residência.

[…]»

Direito búlgaro

15

Nos termos do artigo 25.o, n.o 1, da Konstitutsia na Republika Bulgaria (Constituição da República da Bulgária), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Constituição búlgara»):

«Tem nacionalidade búlgara qualquer pessoa cujos progenitores, ou pelo menos um dos progenitores, tenham nacionalidade búlgara ou que tenha nascido no território da República da Bulgária se não adquirir outra nacionalidade por filiação. A nacionalidade búlgara pode ser igualmente adquirida por naturalização.»

16

Nos termos do artigo 8.o da Zakon za balgarskoto grazhdanstvo (Lei Relativa à Nacionalidade Búlgara), de 5 de novembro de 1998 (DV n.o 136, de 18 de novembro de 1998, p. 1), «[tem] nacionalidade búlgara por filiação, qualquer pessoa cujos progenitores, ou pelo menos um dos progenitores, tenham nacionalidade búlgara».

17

O Semeen kodeks (Código da Família), de 12 de junho de 2009 (DV n.o 47, de 23 de junho de 2009, p. 19), prevê, no seu artigo 60.o, epigrafado «Filiação em relação à mãe»:

«(1)   A filiação em relação à mãe é determinada pelo nascimento.

(2)   A mãe da criança é a mulher que a deu à luz, inclusive no caso de procriação medicamente assistida.

[…]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

18

V.M.A. é nacional búlgara e K.D.K. é nacional do Reino Unido. Esta última nasceu em Gibraltar, onde as duas mulheres se casaram em 2018. Desde o ano de 2015, residem em Espanha.

19

No mês de dezembro de 2019, V.M.A. e K.D.K. tiveram uma filha, S.D.K.A., que nasceu e reside com os seus dois progenitores em Espanha. A certidão de nascimento da filha, emitida pelas autoridades espanholas, menciona V.M.A. como sendo a «mãe A» e K.D.K. como sendo a «mãe» da criança.

20

Em 29 de janeiro de 2020, V.M.A. solicitou ao município de Sófia que lhe emitisse uma certidão de nascimento de S.D.K.A., certidão que era necessária, nomeadamente, para a emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte búlgaro. Em apoio do seu pedido, V.M.A. apresentou uma tradução em língua búlgara, legalizada, e certificada como sendo conforme com o original, do extrato do registo civil de Barcelona (Espanha) relativo à certidão de nascimento de S.D.K.A.

21

Por correio eletrónico de 7 de fevereiro de 2020, o município de Sófia comunicou a V.M.A. que apresentasse, no prazo de sete dias, provas relativas à filiação de S.D.K.A. quanto à identidade da sua mãe biológica. Precisou, a este respeito, que o modelo de certidão de nascimento que figura nos modelos de certidões de estado civil em vigor a nível nacional prevê apenas um único campo para a «mãe» e outro para o «pai», podendo um só nome figurar em cada um desses campos.

22

Em 18 de fevereiro de 2020, V.М.А. respondeu ao município de Sófia que, ao abrigo da legislação búlgara em vigor, não era obrigada a prestar a informação solicitada.

23

Por Decisão de 5 de março de 2020, o município de Sófia indeferiu o pedido de V.M.A. de emissão de uma certidão de nascimento de S.D.K.A. Fundamentou essa decisão de indeferimento pela falta de informações relativas à identidade da mãe biológica da criança em questão e pelo facto de a menção numa certidão de nascimento de dois progenitores do sexo feminino ser contrária à ordem pública da República da Bulgária, a qual não autoriza o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo.

24

V.M.A. interpôs recurso dessa decisão de indeferimento para o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia, Bulgária), o órgão jurisdicional de reenvio.

25

Este órgão jurisdicional refere que, por força do artigo 25.o, n.o 1, da Constituição búlgara e do artigo 8.o da Lei Relativa à Nacionalidade Búlgara, S.D.K.A. tem nacionalidade búlgara, ainda que, até à data, a interessada não tenha uma certidão de nascimento emitida pelas autoridades búlgaras. Com efeito, a recusa dessas autoridades de emitir essa certidão não significa que a nacionalidade búlgara lhe seja recusada.

26

O referido órgão jurisdicional tem, em contrapartida, dúvidas quanto à questão de saber se a recusa das autoridades búlgaras de registar o nascimento de um nacional búlgaro, que se verificou noutro Estado‑Membro e que foi comprovado por uma certidão de nascimento que menciona duas mães, emitida pelas autoridades competentes deste último Estado‑Membro, põe em causa os direitos conferidos a esse nacional pelos artigos 20.o e 21.o TFUE, e pelos artigos 7.o, 24.o e 45.o da Carta. Com efeito, a recusa pelas autoridades búlgaras de emitir uma certidão de nascimento — mesmo que não tenha incidência jurídica na nacionalidade búlgara da criança em questão e, consequentemente, na cidadania da União desta última — é suscetível de dificultar a emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte búlgaros e, portanto, de colocar entraves ao exercício do direito à livre circulação dessa criança e, assim, ao pleno gozo dos seus direitos de cidadã da União.

27

Além disso, na medida em que a outra mãe de S.D.K.A., K.D.K., é nacional do Reino Unido, o mesmo órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se as consequências jurídicas que decorrem do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 7, a seguir «Acordo de Saída»), nomeadamente o facto de essa criança já não poder usufruir do estatuto de cidadão da União através da nacionalidade de K.D.K., são pertinentes para a apreciação desta questão.

28

Por outro lado, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia) interroga‑se sobre a questão de saber se a obrigação imposta, sendo caso disso, às autoridades búlgaras, no âmbito da emissão de uma certidão de nascimento, de mencionar nessa certidão duas mães como sendo os progenitores da criança em questão, é suscetível de pôr em causa a ordem pública e a identidade nacional da República da Bulgária, uma vez que este Estado‑Membro não previu a possibilidade de mencionar numa certidão de nascimento dois progenitores do mesmo sexo para essa criança. Esse órgão jurisdicional salienta, a este respeito, que as disposições que regulam a filiação da referida criança revestem uma importância fundamental na tradição constitucional búlgara, bem como na doutrina búlgara em matéria de direito da família e das sucessões, tanto do ponto de vista meramente jurídico como do ponto de vista dos valores, tendo em conta o estádio atual de evolução da sociedade na Bulgária.

29

Assim, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia) considera necessário encontrar um equilíbrio entre, por um lado, a identidade constitucional e nacional da República da Bulgária e, por outro, os interesses da criança, nomeadamente o direito desta à vida privada e à livre circulação.

30

Esse órgão jurisdicional pergunta‑se se, no caso em apreço, tal equilíbrio pode ser alcançado em aplicação do princípio da proporcionalidade e, em especial, se a menção, na rubrica «Mãe», do nome de uma das duas mães que figura na certidão de nascimento emitida pelas autoridades espanholas, que pode ser quer a mãe biológica da criança quer a que se tornou mãe segundo uma outra via, por exemplo, a da adoção, sem preencher a rubrica «Pai», constituiria um equilíbrio adequado entre esses diferentes interesses legítimos. Observa que, embora tal solução possa igualmente gerar certas dificuldades, devido a eventuais diferenças entre a certidão de nascimento emitida pelas autoridades búlgaras e a emitida pelas autoridades espanholas, esta solução permitiria, assim, a emissão de uma certidão de nascimento pelas autoridades búlgaras, afastando ou, pelo menos, atenuando, eventuais obstáculos à livre circulação da criança em questão. O referido órgão jurisdicional pergunta‑se, todavia, se a referida solução é compatível com o direito à vida privada e familiar dessa criança, consagrado no artigo 7.o da Carta.

31

Por último, na hipótese de o Tribunal de Justiça concluir que o direito da União exige a menção das duas mães da criança em questão na certidão de nascimento emitido pelas autoridades búlgaras, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se quais as modalidades segundo as quais esta exigência deve ser posta em prática, uma vez que este órgão jurisdicional não pode substituir o modelo de certidão de nascimento que figura nos modelos de certidões de estado civil em vigor a nível nacional.

32

Nestas condições, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 20.o e 21.o TFUE, bem como os artigos 7.o, 24.o e 45.o da [Carta], ser interpretados no sentido de que não permitem às autoridades administrativas búlgaras, às quais foi apresentado um pedido de certificação do nascimento de uma criança de nacionalidade búlgara, ocorrido noutro Estado‑Membro da União Europeia, comprovado por um assento de nascimento espanhol, em que estão registadas como mães duas pessoas de sexo feminino, sem se especificar se uma delas e, em caso afirmativo, qual delas é a mãe biológica, negar a emissão de um assento de nascimento búlgaro, com o fundamento de que a recorrente recusa indicar qual é a mãe biológica da criança?

2)

Devem o artigo 4.o, n.o 2, TUE e o artigo 9.o da Carta ser interpretados no sentido de que o respeito da identidade nacional e da identidade constitucional dos Estados‑Membros da [União] implica que estes últimos dispõem de um amplo poder de apreciação no que respeita às regras de estabelecimento da filiação? Em particular:

Deve o artigo 4.o, n.o 2, TUE ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros solicitar informações sobre a filiação biológica da criança?

Deve o artigo 4.o, n.o 2, TUE, lido em conjugação com o artigo 7.o e o artigo 24.o, n.o 2, da Carta, ser interpretado no sentido de que, para obter um equilíbrio de interesses, é indispensável ponderar, por um lado, a identidade nacional e a identidade constitucional de um Estado‑Membro e, por outro, o superior interesse da criança, tendo em conta que não existe atualmente, nem no que respeita aos valores nem no plano jurídico, um consenso sobre a possibilidade de mencionar como progenitores no assento de nascimento pessoas do mesmo sexo, sem se especificar se uma delas e, em caso afirmativo, qual delas é o progenitor biológico da criança? Se for dada resposta afirmativa a esta questão, como pode esse equilíbrio de interesses ser concretamente alcançado?

3)

São relevantes para a resposta à primeira questão as consequências jurídicas do [Acordo de Saída], na medida em que uma mãe, referida no assento de nascimento emitido noutro Estado‑Membro, é nacional do Reino Unido e a outra mãe é nacional de um Estado‑Membro da [União], tendo em conta que a recusa de emissão de um assento de nascimento búlgaro constitui um obstáculo à emissão, por um Estado‑Membro da [União], de um documento de identidade da criança e pode, por isso, dificultar o pleno exercício dos seus direitos como cidadã da União?

4)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: o direito da União, em especial o princípio da efetividade, impõe às autoridades nacionais competentes que derroguem o modelo de redação de um assento de nascimento, que [figura nos modelos de certidões de registo civil em vigor a nível nacional]?»

Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

33

No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pede que o processo seja submetido a tramitação acelerada ao abrigo do artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Esse órgão jurisdicional alega, nomeadamente, que a recusa das autoridades búlgaras de emitirem a S.D.K.A., que, em seu entender, é nacional búlgara, uma certidão de nascimento causaria a esta criança dificuldades sérias para obter um cartão de identidade ou um passaporte búlgaro e, por conseguinte, para exercer o seu direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, garantido pelo artigo 21.o TFUE.

34

O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.

35

No caso em apreço, em 19 de outubro de 2020, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e a advogada‑geral, deferir o pedido de tramitação acelerada mencionado no n.o 33 do presente acórdão. Esta decisão foi motivada pelo facto de S.D.K.A., criança de tenra idade, estar atualmente privada de passaporte, quando reside num Estado‑Membro do qual não tem a nacionalidade. Uma vez que as questões submetidas visam determinar se as autoridades búlgaras são obrigadas a emitir uma certidão de nascimento para essa criança e que resulta do pedido de decisão prejudicial que tal certidão é necessária, segundo o direito nacional, para poder obter um passaporte búlgaro, uma resposta do Tribunal de Justiça dada em prazos curtos é suscetível de contribuir para que a criança disponha mais rapidamente de um cartão de identidade ou de um passaporte (v., neste sentido, Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 3 de julho de 2015, Gogova, C‑215/15, não publicado, EU:C:2015:466, n.os 12 a 14).

Quanto às questões prejudiciais

36

Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União obriga um Estado‑Membro a emitir uma certidão de nascimento, a fim de obter um cartão de identidade ou um passaporte segundo a sua regulamentação, em relação a uma criança, nacional desse Estado‑Membro, cujo nascimento noutro Estado‑Membro é comprovado por uma certidão de nascimento emitida pelas autoridades desse outro Estado‑Membro, em conformidade com o seu direito nacional, e que designa, como sendo as mães dessa criança, uma nacional do primeiro desses Estados‑Membros e a sua mulher, sem especificar qual das duas mulheres deu à luz a referida criança. Em caso de resposta afirmativa, esse órgão jurisdicional pergunta se o direito da União exige que tal certidão inclua, à semelhança da elaborada pelas autoridades do Estado‑Membro onde a criança nasceu, a menção dos nomes dessas duas mulheres na sua qualidade de mães.

37

O referido órgão jurisdicional pretende igualmente saber se o facto de a outra mãe da criança em questão ser nacional do Reino Unido, que já não é um Estado‑Membro, tem alguma incidência na resposta a dar a esta questão.

38

A título preliminar, importa recordar que, por um lado, a definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade é, em conformidade com o direito internacional, da competência de cada Estado‑Membro e que, por outro, em situações abrangidas pelo direito da União, as normas nacionais em causa devem respeitar este último (Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann, C‑135/08, EU:C:2010:104, n.os 39 e 41, e de 12 de março de 2019, Tjebbes e o., C‑221/17, EU:C:2019:189, n.o 30).

39

Segundo as conclusões do órgão jurisdicional de reenvio, único competente a este respeito, S.D.K.A. tem, por nascimento, nacionalidade búlgara ao abrigo do artigo 25.o, n.o 1, da Constituição búlgara.

40

Nos termos do artigo 20.o, n.o 1, TFUE, é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. Daqui resulta que, enquanto nacional búlgara, S.D.K.A. goza, por força desta disposição, do estatuto de cidadão da União.

41

A este respeito, o Tribunal de Justiça salientou em várias ocasiões que o estatuto de cidadão da União está vocacionado para ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros [Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, EU:C:2001:458, n.o 31, e de 15 de julho de 2021, A (Cuidados de Saúde Públicos), C‑535/19, EU:C:2021:595, n.o 41].

42

Como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, um nacional de um Estado‑Membro que, na sua qualidade de cidadão da União, exerceu a sua liberdade de circular e de residir num Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem pode invocar direitos respeitantes a essa qualidade, designadamente os previstos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, incluindo, se for caso disso, no que diz respeito ao seu Estado‑Membro de origem (Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 31 e jurisprudência referida). Podem igualmente invocar esta disposição e as disposições adotadas em sua aplicação os cidadãos da União nascidos no Estado‑Membro de acolhimento dos seus pais e que nunca exerceram o direito à livre circulação (Acórdão de 2 de outubro de 2019, Bajratari, C‑93/18, EU:C:2019:809, n.o 26 e jurisprudência referida).

43

Nos termos do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação. A fim de permitir que os seus nacionais exerçam esse direito, o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 impõe aos Estados‑Membros, em conformidade com a sua legislação, que emitam aos seus nacionais um cartão de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular.

44

Por conseguinte, na medida em que S.D.K.A. é nacional búlgara, as autoridades búlgaras são obrigadas a emitir‑lhe um cartão de identidade ou um passaporte que indique a sua nacionalidade, bem como o seu apelido, conforme resulta da certidão de nascimento emitida pelas autoridades espanholas, tendo o Tribunal de Justiça já tido a oportunidade de declarar que o artigo 21.o TFUE se opõe a que as autoridades de um Estado‑Membro, ao aplicarem o seu direito nacional, recusem o reconhecimento do apelido de uma criança, tal como esse apelido foi determinado e registado noutro Estado‑Membro, onde esse menor nasceu e desde então reside (v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2008, Grunkin e Paul, C‑353/06, EU:C:2008:559, n.o 39).

45

Importa ainda precisar que o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 impõe às autoridades búlgaras a emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte a S.D.K.A., independentemente da emissão de uma nova certidão de nascimento para essa criança. Assim, na medida em que o direito búlgaro exige que seja lavrada uma certidão de nascimento búlgara antes da emissão de um cartão de identidade ou de um passaporte búlgaro, esse Estado‑Membro não pode invocar o seu direito nacional para recusar a emissão, para S.D.K.A., desse cartão de identidade ou desse passaporte.

46

Esse documento, por si só ou associado a outros documentos, sendo caso disso, a um documento emitido pelo Estado‑Membro de acolhimento do menor em questão, deve permitir a uma criança, que se encontra numa situação como a de S.D.K.A., exercer o seu direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, garantido pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, com cada uma das suas duas mães, cujo estatuto enquanto progenitor dessa criança foi estabelecido pelo Estado‑Membro de acolhimento destas por ocasião de uma residência conforme com a Diretiva 2004/38.

47

Importa recordar que os direitos reconhecidos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE aos nacionais dos Estados‑Membros incluem o de manter uma vida familiar normal tanto no seu Estado‑Membro de acolhimento como no Estado‑Membro de que são nacionais, quando do seu regresso a esse Estado‑Membro, beneficiando aí da presença, a seu lado, dos membros da sua família (Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 32 e jurisprudência referida).

48

É pacífico que, no processo principal, as autoridades espanholas estabeleceram legalmente a existência de um vínculo de filiação, biológica ou jurídica, entre S.D.K.A. e os seus dois progenitores, V.M.A. e K.D.K., e confirmaram esse vínculo na certidão de nascimento emitida para a filha destas últimas. Por conseguinte, todos os Estados‑Membros devem, em aplicação do artigo 21.o TFUE e da Diretiva 2004/38, reconhecer a V.M.A. e a K.D.K., enquanto progenitores de um cidadão da União, que é menor, cuja guarda asseguram efetivamente, o direito de acompanhar este último no exercício do seu direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros (v., por analogia, Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín, C‑165/14, EU:C:2016:675, n.os 50 a 52 e jurisprudência referida).

49

Por conseguinte, as autoridades búlgaras, à semelhança das autoridades de qualquer outro Estado‑Membro, são obrigadas a reconhecer esse vínculo de filiação a fim de permitir a S.D.K.A., uma vez que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta obteve a nacionalidade búlgara, exercer sem entraves, com cada um dos seus dois progenitores, o seu direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, garantido pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

50

Além disso, para permitir efetivamente a S.D.K.A. exercer o seu direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros com cada um dos seus progenitores, é necessário que V.M.A. e K.D.K. possam dispor de um documento que as menciona como sendo pessoas habilitadas a viajar com essa criança. No caso em apreço, as autoridades do Estado‑Membro de acolhimento estão mais bem colocadas para elaborar esse documento, que pode consistir na certidão de nascimento. Os outros Estados‑Membros têm a obrigação de reconhecer esse documento.

51

É certo que, como o órgão jurisdicional de reenvio salientou, o artigo 9.o da Carta prevê que o direito de contrair casamento e o direito de constituir família são garantidos pelas legislações nacionais que regem o respetivo exercício.

52

A este respeito, no estado atual do direito da União, o estado das pessoas, do qual fazem parte as normas relativas ao casamento e à filiação, é uma matéria abrangida pela competência dos Estados‑Membros, competência que o direito da União não põe em causa. Os Estados‑Membros têm, assim, liberdade para prever ou não, no seu direito nacional, o casamento entre pessoas do mesmo sexo assim como a parentalidade destas últimas. Todavia, no exercício dessa competência, cada Estado‑Membro deve respeitar o direito da União e, em especial, as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade reconhecida a qualquer cidadão da União de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros, reconhecendo, para esse fim, o estado das pessoas estabelecido noutro Estado‑Membro, em conformidade com o direito deste (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.os 36 a 38 e jurisprudência referida).

53

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se o artigo 4.o, n.o 2, TUE pode justificar a recusa das autoridades búlgaras de emitir uma certidão de nascimento de S.D.K.A. e, assim, um bilhete de identidade ou um passaporte para essa criança. Esse órgão jurisdicional refere, nomeadamente, que uma eventual obrigação de as referidas autoridades emitirem uma certidão de nascimento mencionando, como sendo os progenitores da referida criança, duas pessoas de sexo feminino poderia pôr em causa a ordem pública e a identidade nacional da República da Bulgária, na medida em que a Constituição búlgara e o direito da família búlgaro não preveem a parentalidade de duas pessoas do mesmo sexo.

54

A este respeito, importa recordar que, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, TUE, a União respeita a identidade nacional dos seus Estados‑Membros, inerente às suas estruturas fundamentais políticas e constitucionais.

55

Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o conceito de «ordem pública» enquanto justificação de uma derrogação a uma liberdade fundamental deve ser objeto de interpretação estrita, pelo que o seu âmbito não pode ser unilateralmente determinado por cada um dos Estados‑Membros, sem fiscalização das instituições da União. Daqui decorre que a ordem pública só pode ser invocada em caso de ameaça real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade (Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 44 e jurisprudência referida).

56

Ora, como a advogada‑geral salientou, em substância, nos n.os 150 e 151 das suas conclusões, a obrigação de um Estado‑Membro, por um lado, de emitir a uma criança, nacional desse Estado‑Membro, que nasceu noutro Estado‑Membro e cuja certidão de nascimento emitida pelas autoridades desse outro Estado‑Membro designa como seus progenitores duas pessoas do mesmo sexo, um cartão de identidade ou um passaporte e, por outro, reconhecer o vínculo de filiação entre essa criança e cada uma dessas duas pessoas no âmbito do exercício por esta dos seus direitos ao abrigo do artigo 21.o TFUE e dos atos de direito derivado a este relativos, não viola a identidade nacional nem ameaça a ordem pública desse Estado‑Membro.

57

Com efeito, essa obrigação não implica que o Estado‑Membro de que a criança em causa é nacional deva prever no seu direito nacional a parentalidade de pessoas do mesmo sexo ou reconhecer, para fins diferentes do exercício dos direitos que o direito da União confere a essa criança, vínculo de filiação entre a referida criança e as pessoas mencionadas como sendo os progenitores da criança na certidão de nascimento emitida pelas autoridades do Estado‑Membro de acolhimento (v., por analogia, Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.os 45 e 46).

58

Importa acrescentar que uma medida nacional que é suscetível de colocar entraves ao exercício da livre circulação das pessoas só pode ser justificada quando essa medida for conforme com os direitos fundamentais garantidos pela Carta, cujo respeito o Tribunal de Justiça assegura (Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 47).

59

Na situação que é objeto do litígio no processo principal, o direito ao respeito pela vida privada e familiar garantido no artigo 7.o da Carta, e os direitos da criança garantidos no seu artigo 24.o, nomeadamente o direito a que seja tido em conta o interesse superior da criança enquanto consideração primordial em todos os atos relativos às crianças, bem como o de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, são fundamentais.

60

A este propósito, como resulta das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, os direitos garantidos pelo seu artigo 7.o têm o mesmo sentido e o mesmo alcance que os que são garantidos no artigo 8.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950.

61

Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a existência de uma «vida familiar» é uma questão de facto que depende da realidade prática de vínculos pessoais estreitos e que a possibilidade de um progenitor e o seu filho estarem juntos representa um elemento fundamental da vida familiar (Acórdão TEDH, 12 de julho de 2001, K. e T. c. Finlândia, CE:ECHR:2001:0712JUD002570294, §§ 150 e 151). Além disso, como o Tribunal de Justiça teve oportunidade de declarar, decorre dessa jurisprudência que a relação mantida por um casal homossexual é suscetível de estar abrangida pelos conceitos de «vida privada» e de «vida familiar» do mesmo modo que a de um casal de sexo oposto que se encontre na mesma situação (Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 50 e jurisprudência referida).

62

Por conseguinte, como salientou a advogada‑geral no n.o 153 das suas conclusões, a relação da criança em questão com cada uma das duas pessoas com as quais tem uma vida familiar efetiva no Estado‑Membro de acolhimento e que são mencionadas como sendo os seus progenitores na certidão de nascimento elaborada pelas autoridades deste último é protegida no artigo 7.o da Carta.

63

Além disso, como foi recordado no n.o 59 do presente acórdão, o direito ao respeito pela vida familiar, como este é anunciado no artigo 7.o, da Carta, deve ser lido em conjugação com a obrigação de ter em conta o interesse superior da criança, reconhecido no artigo 24.o, n.o 2, da Carta. Ora, uma vez que o artigo 24.o da Carta constitui, como recordam as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais, uma integração no direito da União dos principais direitos da criança consagrados na Convenção sobre os Direitos da Criança, que foi ratificada por todos os Estados‑Membros, há que ter devidamente em conta, na interpretação deste artigo, as disposições desta convenção [v., neste sentido, Acórdãos de 14 de fevereiro de 2008, Dynamic Medien, C‑244/06, EU:C:2008:85, n.o 39, e de 11 de março de 2021, Estado belga (Regresso do progenitor de um menor), C‑112/20, EU:C:2021:197, n.o 37].

64

Em especial, o artigo 2.o desta convenção estabelece, a respeito da criança, o princípio da não discriminação, que exige que os direitos enunciados na referida convenção, entre os quais figura, no seu artigo 7.o, o direito de ser registada desde o seu nascimento, de ter um nome, e de adquirir uma nacionalidade, sejam garantidos a essa criança, sem que esta sofra, a este respeito, qualquer discriminação, incluindo uma discriminação em razão da orientação sexual dos seus progenitores.

65

Nestas condições, seria contrário aos direitos fundamentais que os artigos 7.o e 24.o da Carta garantem a essa criança privá‑la da relação com um dos seus progenitores quando do exercício do seu direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros ou tornar‑lhe o exercício desse direito, na prática, impossível ou excessivamente difícil pelo facto de os seus progenitores serem do mesmo sexo.

66

Por último, a circunstância de um dos progenitores da criança em causa ser nacional do Reino Unido, que já não é um Estado‑Membro, não é relevante a este respeito.

67

Por outro lado, na hipótese de, após verificação, S.D.K.A. não dever possuir a nacionalidade búlgara, importa recordar que, seja qual for a sua nacionalidade e independentemente da questão de saber se elas próprias têm a qualidade de cidadãs da União, K.D.K. e S.D.K.A. devem ser consideradas por todos os Estados‑Membros como sendo, respetivamente, a cônjuge e a descendente direta, na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alíneas a) e c), da Diretiva 2004/38, e, por conseguinte, como sendo membros da família de V.M.A. (v., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Coman e o. C‑673/16, EU:C:2018:385, n.os 36 e 51).

68

Com efeito, um filho menor cuja qualidade de cidadão da União não está estabelecida e cuja certidão de nascimento emitida pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro designa como seus progenitores duas pessoas do mesmo sexo, uma das quais é cidadã da União, deve ser considerado, por todos os Estados‑Membros, um descendente direto dessa cidadã da União, na aceção da Diretiva 2004/38, para efeitos do exercício dos direitos conferidos no artigo 21.o, n.o 1, TFUE e dos atos de direito derivado a este relativos.

69

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 4.o, n.o 2, TUE, os artigos 20.o e 21.o TFUE, bem como os artigos 7.o, 24.o e 45.o da Carta, em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, devem ser interpretados no sentido de que, estando em causa um filho menor, cidadão da União cuja certidão de nascimento emitida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de acolhimento designa como seus progenitores duas pessoas do mesmo sexo, o Estado‑Membro do qual essa criança é nacional é obrigado, por um lado, a emitir‑lhe um cartão de identidade ou um passaporte, sem exigir que seja lavrada previamente uma certidão de nascimento pelas suas autoridades nacionais, e, por outro lado, a reconhecer, como qualquer outro Estado‑Membro, o documento que emana do Estado‑Membro de acolhimento que permite à referida criança exercer, com cada uma dessas duas pessoas, o seu direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros.

Quanto às despesas

70

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O artigo 4.o, n.o 2, TUE, os artigos 20.o e 21.o TFUE, bem como os artigos 7.o, 24.o e 45.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em conjugação com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE, devem ser interpretados no sentido de que, estando em causa um filho menor, cidadão da União cuja certidão de nascimento emitida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de acolhimento designa como seus progenitores duas pessoas do mesmo sexo, o Estado‑Membro do qual essa criança é nacional é obrigado, por um lado, a emitir‑lhe um cartão de identidade ou um passaporte, sem exigir que seja lavrada previamente uma certidão de nascimento pelas suas autoridades nacionais, e, por outro lado, a reconhecer, como qualquer outro Estado‑Membro, o documento que emana do Estado‑Membro de acolhimento que permite à referida criança exercer, com cada uma dessas duas pessoas, o seu direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

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