Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62019CC0218

    Conclusões do advogado-geral M. Bobek apresentadas em 16 de setembro de 2020.
    Adina Onofrei contra Conseil de l’ordre des avocats au barreau de Paris e o.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (França).
    Reenvio prejudicial — Livre circulação de pessoas — Liberdade de estabelecimento — Acesso à profissão de advogado — Dispensa de formação e de diploma — Concessão da dispensa — Requisitos — Regulamentação nacional que prevê a dispensa a favor dos funcionários e antigos funcionários de categoria A ou equiparados que tenham uma prática profissional do direito nacional, no território nacional, na função pública nacional do Estado‑Membro em causa ou numa organização internacional.
    Processo C-218/19.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:716

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO GERAL

    MICHAL BOBEK

    apresentadas em 16 de setembro de 2020 ( 1 )

    Processo C‑218/19

    Adina Onofrei

    contra

    Conseil de l’ordre des avocats au barreau de Paris,

    Bâtonnier de l’ordre des avocats au barreau de Paris,

    Procureur général près la cour d’appel de Paris

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de Cassation (Tribunal de Cassação, França)]

    «Pedido de decisão prejudicial — Livre circulação de pessoas — Liberdade de estabelecimento — Acesso à profissão de advogado — Dispensa de formação e certificado de aptidão profissional — Prática nacional que limita a dispensa aos funcionários públicos que tenham exercido direito nacional, no território nacional e na função pública nacional»

    I. Introdução

    1.

    Adina Onofrei (a seguir «recorrente») possui as nacionalidades portuguesa e romena. É titular de dois mestrados e um doutoramento em direito obtidos nas Universités Paris 1 e Paris II. Trabalhou na Comissão Europeia durante mais de oito anos como administradora. Solicitou a sua inscrição na Ordem dos Advogados de Paris (a seguir «Ordem de Paris»), invocando uma das dispensas da obrigação de possuir certificado de aptidão para o exercício da profissão de advogado (e, portanto, de formação profissional obrigatória) prevista na legislação francesa para «os funcionários da categoria A, ou para as pessoas equiparadas aos funcionários dessa categoria, que tenham exercido atividades jurídicas durante, pelo menos, oito anos numa administração ou num serviço público ou numa organização internacional».

    2.

    O pedido da recorrente foi indeferido pela Ordem de Paris com o fundamento de que a recorrente não é membro da função pública francesa, não foi destacada pela função pública francesa para uma organização internacional e também não exerceu a sua atividade no território francês. A decisão da Ordem de Paris foi confirmada em sede de recurso, pelo facto de a recorrente não ter demonstrado qualquer prática anterior de direito francês. Em sede de recurso sobre questões de direito, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) interroga‑se agora sobre a compatibilidade de tais regras nacionais, ou mais exatamente sobre a sua interpretação e aplicação prática, com os artigos 45.o e 49.o TFUE.

    II. Quadro jurídico

    3.

    O artigo 11.o da Loi n.o 71‑1130 du 31 décembre 1971 portant réforme de certaines professions judiciaires et juridiques (Lei n.o 71‑1130, de 31 de dezembro de 1971, que procede à reforma de determinadas profissões de natureza judiciária e jurídica) (a seguir «Lei n.o 71‑1130») dispõe:

    «Ninguém pode exercer a profissão de advogado se não preencher os seguintes requisitos:

    1.   Ser francês, nacional de um Estado‑Membro da União Europeia ou parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu […];

    2.   Ser titular de, pelo menos, um mestrado em direito ou de títulos ou diplomas considerados equivalentes para acesso à profissão de advogado, sem prejuízo das disposições de execução da Diretiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de setembro de 2005, conforme alterada, e das disposições de execução relativas a quem em França exerceu determinadas funções ou atividades […];

    3.   Ser titular do certificado de aptidão para o exercício da profissão de advogado, sem prejuízo das disposições de execução referidas no n.o 2, ou, no contexto do reconhecimento mútuo, o exame previsto na última alínea do presente artigo;

    4.   Não ser autor de atos que conduzam a condenação penal por serem contrários à honra, à probidade e aos bons costumes;

    […]

    6.   Não ter sido pessoalmente declarado insolvente ou não ter sido objeto de qualquer outra sanção […].»

    4.

    O artigo 98.o do Décret n.o 91‑1197 du 27 novembre 1991 organisant la profession d’avocat (Decreto n.o 91‑1197, de 27 de novembro de 1991, relativo à organização da profissão de advogado) (a seguir «Decreto n.o 91‑1197) dispõe que:

    «Estão dispensados da formação teórica e prática e do certificado de aptidão para o exercício da profissão de advogado:

    1.   Notários, oficiais de justiça, funcionários de tribunais de comércio, administradores de justiça e administradores para a recuperação e liquidação de empresas, antigos administradores de insolvência e administradores de justiça, advogados de propriedade industrial e antigos advogados de patentes (invenções) que tenham exercido as suas funções, durante pelo menos cinco anos;

    2.   Professores universitários, assistentes e pessoal docente, se possuírem um doutoramento em direito, em economia ou em gestão, com cinco anos de formação jurídica nessa qualidade em unidades de formação e de investigação;

    3.   Assessores jurídicos que tenham completado pelo menos oito anos de prática profissional no departamento jurídico de uma ou mais empresas;

    4.   Os funcionários e os antigos funcionários da categoria A, ou as pessoas equiparadas aos funcionários dessa categoria, que nessa qualidade tenham exercido atividades jurídicas durante, pelo menos, oito anos numa administração ou num serviço público ou numa organização internacional;

    5.   Advogados envolvidos pelo menos durante oito anos no trabalho jurídico de um sindicato;

    6.   Advogados empregados por um advogado, uma associação ou uma sociedade de advogados, pelo gabinete de um defensor ou de um advogado no Conseil d’Etat (Conselho de Estado) e na Cour de cassation (Tribunal de Cassação), que tenham completado pelo menos oito anos de exercício profissional nesta qualidade após a obtenção do título ou grau referido no artigo 11.o, n.o 2, da Lei de 31 de dezembro de 1971, acima mencionada;

    7.   Colaboradores de um deputado ou assistentes de senador que tenham exercido, a título principal e com funções de quadro superior, uma atividade jurídica, pelo menos, durante oito anos;

    As pessoas referidas nos n.os 3, 4, 5, 6 e 7 podem ter exercido as suas atividades em várias das funções previstas nessas disposições, desde que a sua duração total seja, pelo menos, igual a oito anos.»

    5.

    O artigo 98‑1, n.o 1, do mesmo decreto dispõe:

    «As pessoas que beneficiem de uma dispensa prevista no artigo 98.o devem ter concluído com sucesso, perante o comité de seleção previsto no artigo 69.o, um exame para avaliação dos seus conhecimentos em matéria de ética profissional e regulamentos […]»

    III. Factos, tramitação do processo nacional e questões prejudiciais

    6.

    A recorrente, de nacionalidade portuguesa e romena, possui dois mestrados e um doutoramento em direito pelas Universités Paris 1 e Paris II. Durante mais de oito anos, trabalhou na Comissão Europeia como administradora, nomeadamente na Direcção‑Geral do Mercado Interno e na Direcção‑Geral da Concorrência. Durante esse período de tempo, lidou sobretudo com processos de Auxílios de Estado e de Acordos, Decisões e Práticas Concertadas.

    7.

    A recorrente solicitou a inscrição na Ordem de Paris. Uma vez que cumpria, aparentemente, todos os outros requisitos do artigo 11.o da Lei 71‑1130, incluindo a obrigatoriedade de obtenção de todos os graus académicos em direito exigidos em França, baseou‑se no artigo 98.o, n.o 4, do Decreto 91‑1197, para requerer uma dispensa de apresentação do certificado profissional obrigatório, concretamente o «certificat d’aptitude à la profession d’avocat» (certificado de aptidão para o exercício da profissão de advogado) (a seguir «certificado de aptidão»).

    8.

    Do mesmo modo, também requereu uma dispensa da formação obrigatória de preparação que, quando concluída com sucesso, leva à obtenção do referido certificado de aptidão. O Conselho da Ordem de Paris e o Presidente da Ordem de Paris afirmaram que essa formação dura 18 meses, inclui um estágio num escritório de advogados e termina após a conclusão com sucesso de um exame final.

    9.

    A recorrente considera que o trabalho que realizou na Comissão Europeia cumpre os requisitos da dispensa prevista no artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197.

    10.

    No entanto, o Conselho da Ordem de Paris indeferiu o seu pedido pelo facto de a recorrente não pertencer à função pública francesa nem ter sido destacada pela função pública francesa para uma organização internacional. Além disso, o Conselho da Ordem de Paris também referiu que a experiência profissional da recorrente não foi adquirida em território francês.

    11.

    A recorrente contestou esta decisão na Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso, Paris). Por acórdão de 11 de maio de 2017, esse tribunal confirmou a decisão. Considerou que a experiência profissional da recorrente devia ser examinada in concreto, a fim de determinar se a sua experiência correspondia à formação, competências e responsabilidades inerentes à categoria A dos funcionários públicos. Considerou, ainda, que era necessário assegurar o conhecimento satisfatório do direito nacional por parte do advogado como forma de garantir o exercício pleno, pertinente e eficaz dos direitos dos litigantes.

    12.

    A Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso, Paris) enumerou, então, as posições relevantes que a recorrente assumiu nos serviços da Comissão Europeia. Em seguida, descreveu as tarefas específicas que a recorrente desempenhou nessas posições. Nessa base, este tribunal concluiu que aquelas tarefas não revelavam qualquer aplicação do direito francês, não justificando, assim, a conclusão de que a recorrente tinha qualquer prática efetiva de direito nacional. Assim, a prática jurídica adquirida pela recorrente não correspondia aos critérios do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197.

    13.

    A recorrente interpôs recurso de cassação na Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França). Na sua opinião, o acórdão da Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso, Paris) interpretou a dispensa pertinente de forma demasiado restritiva. A interpretação que exige a prática do direito francês, bem como a experiência profissional obtida em França, ignora, na sua opinião, o facto de o direito da União fazer parte do direito nacional. Tal conduz a uma discriminação indireta que favorece os funcionários da função pública francesa, em detrimento dos funcionários da função pública da UE, e constitui uma restrição à livre circulação dos trabalhadores e à liberdade de estabelecimento. Embora reconhecendo que o objetivo de assegurar uma defesa eficaz dos direitos dos litigantes é legítimo, os meios utilizados para esse efeito não são apropriados e vão além do que é necessário para esse fim. A este respeito, a recorrente contestou a forma como a sua experiência profissional tinha sido avaliada. Alegou que pedir‑lhe provas das suas competências teria constituído um meio menos restritivo para alcançar esse objetivo.

    14.

    O órgão jurisdicional de reenvio menciona o facto de que podem efetivamente surgir dúvidas sobre se o regime em questão pode ser considerado uma restrição à liberdade de circulação dos trabalhadores e à liberdade de estabelecimento. Em seu entender, o artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 sujeita a dispensa em causa a três requisitos cumulativos que exigem que os candidatos (i) pertençam à função pública francesa (ii) tenham obtido experiência profissional em França, e (iii) tenham prática do direito francês. Este órgão jurisdicional observa, além disso, que o artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 não exige que o requerente prove conhecimentos relativos aos tribunais nacionais ou aos processos que correm termos perante eles.

    15.

    Nestas circunstâncias, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    O princípio segundo o qual o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, que se transformou, após alterações, no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, criou uma ordem jurídica própria, integrada nos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros e que se impõe aos respetivos órgãos jurisdicionais, opõe‑se a uma legislação nacional que faz depender a concessão da dispensa dos requisitos de formação e de diploma previstos, em princípio, para o acesso à profissão de advogado, da exigência de um conhecimento suficiente, pelo autor do pedido de dispensa, do direito nacional de origem francesa, excluindo assim a tomada em consideração de um conhecimento similar apenas do direito da União Europeia?

    2)

    Os artigos 45.o e 49.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia opõem‑se a uma legislação nacional que reserva o benefício de uma dispensa dos requisitos de formação e de diploma previstos, em princípio, para o acesso à profissão de advogado a determinados agentes da função pública do mesmo Estado‑Membro que tenham exercido nessa qualidade, em França, atividades jurídicas numa administração ou num serviço público ou numa organização internacional, e exclui do benefício dessa dispensa os agentes ou antigos agentes da função pública europeia que, nessa qualidade, exerceram atividades jurídicas, num ou mais domínios do direito da União Europeia, na Comissão Europeia?»

    16.

    A recorrente, o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris, os Governos grego e francês, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas. As referidas partes, com exceção do Governo grego, apresentaram igualmente alegações orais na audiência que teve lugar em 17 de junho de 2020.

    IV. Apreciação

    17.

    As presentes conclusões encontram‑se estruturadas da seguinte forma. Debruçar‑me‑ei, em primeiro lugar, sobre os requisitos exatos que decorrem do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 e, a esse respeito, clarificarei também o objeto exato das questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio (A). Examinarei, em seguida, a compatibilidade dos requisitos em causa, conforme descritos pelo órgão jurisdicional de reenvio, com os artigos 45.o e 49.o TFUE (B).

    A.   Observações preliminares

    18.

    Antes de apreciar a compatibilidade do regime nacional em causa no processo principal com o direito da União, importa, evidentemente, determinar o conteúdo concreto desse regime. Infelizmente, não se trata de um exercício simples no presente processo, como explicarei na secção que se segue.

    1. Requisitos constantes do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197

    19.

    O artigo 11.o, n.o 3, da Lei n.o 71‑1130 dispõe que a possibilidade de exercer a profissão de advogado em França está subordinada, sem prejuízo de derrogações, à posse de um certificado de aptidão. O artigo 98.o do Decreto n.o 91‑1197 estabelece as derrogações relativas a esse certificado de aptidão.

    20.

    A dispensa em causa no processo principal está prevista no artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197. Na sua redação, estabelece três exigências: (i) «funcionários da categoria A, ou pessoas equiparadas aos funcionários dessa categoria» (ii) que tenham exercido «atividades jurídicas durante, pelo menos, oito anos», e (iii) que tenham exercido essas atividades jurídicas «numa administração ou num serviço público ou numa organização internacional».

    21.

    O órgão jurisdicional de reenvio observou que, na perspetiva da jurisprudência, esta dispensa é interpretada no sentido de exigir que os requerentes satisfaçam três requisitos cumulativos: (i) pertencerem à função pública francesa (ii) terem exercido atividades jurídicas no território francês e (iii) terem exercido direito francês.

    22.

    Devo admitir que não vejo imediatamente de qual dos requisitos estabelecidos no texto do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, resultam tal jurisprudência e tais requisitos. Além disso, nem o caso concreto no processo principal, nem o que parece ser a prática mais ampla de aplicação a nível nacional, permitem realmente ao intérprete compreender quais são os requisitos efetivamente aplicáveis a nível nacional por força do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197.

    23.

    No que concerne ao caso concreto do processo principal, constato, por um lado, que o pedido da recorrente foi indeferido pelo Conselho da Ordem de Paris porque a mesma não pertencia à função pública francesa, nem destacada enquanto tal para uma organização internacional. Além disso, o Conselho da Ordem de Paris sublinhou, ao invocar de uma forma geral «a jurisprudência da Cour de cassation» a este respeito, que a experiência profissional da recorrente também não foi adquirida no território francês.

    24.

    Em segundo lugar, embora a Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) tenha confirmado a decisão de indeferimento, baseou, no entanto, a sua conclusão num outro fundamento, a saber, que a recorrente não preenchia o requisito relativo à prática do direito francês. Insistiu no facto de que a apreciação da prática pertinente do direito francês devia ser feita in concreto. Tendo realizado tal apreciação, aquele tribunal concluiu que a recorrente não demonstrou ter qualquer experiência em direito francês.

    25.

    Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, para que a dispensa em causa seja aplicável, os requerentes devem preencher os três requisitos cumulativos referidos supra no n.o 21 das presentes conclusões.

    26.

    A um nível mais geral, o funcionamento preciso da dispensa em causa não se torna muito mais claro perante alguns dos exemplos de jurisprudência nacional que foram fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio e pelas partes no presente processo. Tais exemplos revelam uma considerável variedade de abordagens na interpretação dos requisitos estabelecidos no artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197.

    27.

    No que diz respeito, em primeiro lugar, ao requisito de pertença à função pública francesa, a própria existência desse requisito tem sido fortemente contestada pelo Governo francês. Este Governo sustentou que, em sua opinião, tal requisito não decorre nem do artigo 11.o da Lei 71‑1130, que apenas menciona o exercício de atividades em França ( 2 ), nem do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto 91‑1197 que se refere, em princípio, às pessoas equiparadas aos funcionários da «categoria A» («les personnes assimilées», no original francês).

    28.

    Alguns dos exemplos de jurisprudência que foram apresentados no presente processo dizem respeito a pedidos formulados por funcionários das Nações Unidas ou da União Europeia ( 3 ). As razões pelas quais esses pedidos não foram aprovados parecem basear‑se, de facto, não na falta de pertença à função pública francesa, mas na falta de prática do direito francês ou no não cumprimento do requisito de territorialidade. No entanto, saliento também que a Cour d’appel de Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso, Aix‑en‑Provence, França) aceitou que os requisitos em causa estavam preenchidos por um funcionário do Principado do Mónaco, que era de nacionalidade francesa. Numa decisão que foi objeto de algum debate em audiência, este tribunal declarou que a lei do Mónaco é muito semelhante à lei francesa e que as funções desempenhadas pelo requerente podiam ser classificadas como incluídas na categoria A para os funcionários franceses ou para os equiparados ( 4 ). O pedido de dispensa foi, assim, concedido a uma pessoa que claramente não pertencia à função pública francesa.

    29.

    A redação do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 torna a dispensa em causa também aplicável aos funcionários que tenham exercido as suas atividades numa organização internacional. Não é claro se esse elemento se aplica a qualquer funcionário de uma organização internacional (localizada em França) ou se se aplica apenas a pessoas que pertençam à função pública francesa e que tenham sido destacadas para uma organização internacional. A decisão do Conselho da Ordem de Paris no processo principal parece ter‑se baseado neste último entendimento.

    30.

    No que diz respeito, em segundo lugar, ao requisito de territorialidade, o órgão jurisdicional de reenvio explicou que é aplicável também quando a prática jurídica tiver sido realizada numa organização internacional. Esta interpretação foi entendida como decorrente do artigo 11.o, n.o 2, da Lei 71‑1130. Esta disposição diz respeito à dispensa da obrigação de possuir um diploma em direito e indica, para o que aqui é pertinente, que se aplica às pessoas que exerceram determinadas funções em França. Parece que a jurisprudência nacional remete também para essa disposição ao considerar a dispensa relativa ao certificado de aptidão, embora nada seja dito sobre esse ponto no artigo 98.o, n.o 4 do Decreto n.o 91‑1197.

    31.

    Entendo que foi seguido um raciocínio semelhante pelas autoridades francesas competentes ( 5 ) no que respeita às dispensas previstas para os assessores jurídicos (previstas no artigo 98.o, n.o 3, do Decreto n.o 91‑1197 ( 6 )) e para as pessoas que tenham realizado trabalho jurídico em sindicatos (previstas no artigo 98.o, n.o 5, do mesmo decreto ( 7 )). Por conseguinte, à semelhança do artigo 98.o, n.o 4, os n.os 3 e 5 do artigo 98.o, também foram interpretados no sentido de que postulam um requisito de territorialidade, ainda que estas disposições não o incluam, ao contrário do artigo 11.o, n.o 2, da Lei n.o 71‑1130 ( 8 ).

    32.

    No que respeita, em terceiro lugar, à condição relativa à prática do direito francês, parece ter‑se considerado que, embora o conceito de «direito francês» possa ser interpretado no sentido de que abrange o direito da UE, não pode ser limitado a este último. Entendo que esta interpretação do conceito de «direito francês», conjugada com a necessidade de interpretar a dispensa em causa de forma estrita, conduziu a rejeições recorrentes de pedidos de funcionários da UE.

    33.

    O Tribunal de Justiça está vinculado pelo direito nacional, tal como referido pelo órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, na análise que se segue, apreciarei a compatibilidade com o direito da União dos três requisitos (cumulativos) conforme referidos no despacho de reenvio e (re)confirmados em esclarecimentos escritos fornecidos pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação) e pelo seu procureur général (Procurador Geral) em resposta a um pedido do Tribunal de Justiça.

    34.

    Todavia, neste contexto, recordo igualmente dois elementos, aos quais voltarei no final das presentes conclusões. Em primeiro lugar, parece existir algum desfasamento entre os requisitos de dispensa previstos na letra do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 e os que, aparentemente, se aplicam na prática. Em segundo lugar, existe uma considerável multiplicidade de aplicações práticas desses requisitos, que vai claramente além de alcançar resultados diferentes em casos factualmente diferentes: a diferença diz respeito à interpretação dos próprios requisitos legais.

    2. Reformulação das questões prejudiciais

    35.

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a obrigação de conhecimento do direito francês prevista no artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197. O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se esta exigência tem em devida conta o facto de que, em suma, o direito da União faz parte integrante dos direitos nacionais dos Estados‑Membros.

    36.

    Em primeiro lugar, resulta do despacho de reenvio e das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que a expressão «conhecimento do direito francês» que figurava na redação dessa questão deve ser entendida como «prática do direito francês».

    37.

    Com efeito, resulta das observações apresentadas no presente processo, bem como da audiência, que os requerentes da dispensa em causa não são testados no que diz respeito à sua familiaridade com o direito francês. O único exame a que estarão sujeitos parece dizer respeito às regras de deontologia, nos termos do artigo 98.o, n.o 1, do Decreto 91‑1197 ( 9 ).

    38.

    Em segundo lugar, no contexto do presente processo, não creio que seja necessário abordar a primeira questão prejudicial separadamente. A problemática da natureza das relações entre a ordem jurídica da UE e as ordens jurídicas nacionais e do grau da sua integração e interdependência recíprocas é de facto fascinante. No entanto, nos limites do presente processo, não é necessário mergulhar em tal problemática, digna de um diálogo de Galileu. No âmbito do presente processo, esta questão só se coloca, na verdade, no contexto muito mais circunscrito do que pode ser razoavelmente exigido como experiência jurídica relevante para efeitos de admissão à ordem dos advogados num Estado‑Membro. Assim, para todos os efeitos práticos, a resposta à primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio será necessariamente abordada, mas de uma perspetiva muito mais restrita e pragmática, no âmbito da segunda questão submetida.

    39.

    Por conseguinte, à luz destes elementos, considero oportuno abordar conjuntamente as duas questões prejudiciais para saber se os três requisitos enunciados pelo órgão jurisdicional de reenvio, que se aplicam nos termos do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, estão em conformidade com os artigos 45.o e 49.o TFUE.

    B.   Compatibilidade com os artigos 45.o e 49.o TFUE

    40.

    Importa desde logo recordar que o presente processo não é abrangido pela Diretiva 98/5/CE ( 10 ). Este regime respeita apenas aos advogados plenamente qualificados como tais no respetivo Estado‑Membro de origem ( 11 ). O presente processo refere‑se aos requisitos do primeiro acesso à profissão de advogado num Estado‑Membro.

    41.

    Segundo jurisprudência constante, «na falta de harmonização das condições de acesso a uma profissão, os Estados‑Membros têm o direito de definir os conhecimentos e as habilitações necessários para o exercício dessa profissão» ( 12 ).

    42.

    No entanto, o direito da UE impõe limites ao exercício destas competências. As disposições nacionais não devem prejudicar o exercício efetivo das liberdades fundamentais garantidas, no que respeita ao que é pertinente no presente processo, pelos artigos 45.o e 49.o TFUE ( 13 ).

    43.

    O órgão jurisdicional de reenvio explica que a profissão de advogado pode ser exercida em França quer como atividade independente quer como atividade assalariada. Por conseguinte, o regime nacional em questão deve ser examinado à luz dessas duas disposições do Tratado. No entanto, a apreciação fundamental, sobretudo a relativa às limitações e à sua justificação, é em grande parte a mesma para ambas as disposições.

    1. Discriminação ou um obstáculo ao acesso?

    44.

    O presente processo diz respeito a uma pessoa que não deseja migrar entre ambientes profissionais pertencentes a dois Estados‑Membros diferentes. A recorrente deseja assegurar a possibilidade de migrar entre a função pública da Comissão Europeia e a profissão de advogado num Estado‑Membro.

    45.

    Resulta de jurisprudência constante que um funcionário da UE tem o estatuto de trabalhador migrante. Na verdade, «um nacional [da União] que trabalhe em Estado‑Membro diferente do seu Estado de origem não perde a qualidade de trabalhador […] pelo facto de ocupar um cargo numa organização internacional […]» ( 14 ). O mesmo se aplica no que refere ao exercício dos direitos conferidos aos cidadãos da UE pelo artigo 49.o TFUE.

    46.

    Para efeitos do presente processo, considero que um debate sobre a questão de saber se os requisitos em causa constituem uma discriminação indireta e/ou um obstáculo à livre circulação pode ser reduzido ao mínimo. Isto porque os requisitos em causa constituem, a meu ver, ambos.

    47.

    Em primeiro lugar, no que diz respeito à acusação de discriminação indireta, saliento que a recorrente é de nacionalidade romena e portuguesa.

    48.

    O artigo 45.o TFUE (e também o artigo 49.o TFUE) «proíbe não apenas as discriminações ostensivas, em razão da nacionalidade, mas também todas as formas dissimuladas de discriminação que, aplicando outros critérios de distinção, conduzam na prática ao mesmo resultado» ( 15 ). Existe discriminação indireta desde que a disposição de direito nacional «seja suscetível, pela sua própria natureza, de afetar preponderantemente os trabalhadores migrantes, em comparação com os trabalhadores nacionais, e que, em consequência, acarrete o risco de desfavorecer mais particularmente os primeiros» ( 16 ).

    49.

    Partilho da opinião da recorrente e da Comissão segundo a qual os requisitos em causa são naturalmente suscetíveis de afetar de forma intrínseca em maior medida os nacionais não franceses, como a recorrente. Parece aliás ser possível assumir que a maioria dos funcionários públicos franceses são de nacionalidade francesa. Assim, mesmo que a regra aplicável se baseie num critério diferente da nacionalidade (pertencer à função pública francesa, não ter nacionalidade francesa), tal regra constitui claramente um caso de discriminação indireta com base na nacionalidade.

    50.

    Na audiência, o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris sublinharam que a decisão relativa ao pedido da recorrente não se baseava na sua nacionalidade e que teria sido exatamente a mesma se a recorrente tivesse nacionalidade francesa.

    51.

    Não vejo a pertinência deste argumento. Para que a apreciação de uma eventual discriminação indireta seja desencadeada, basta que a recorrente seja suscetível de se encontrar numa posição mais desfavorável em virtude de um motivo que é protegido (neste caso, a nacionalidade). O facto de outra pessoa poder estar também na mesma situação, apesar de não pertencer ao grupo protegido, não é realmente relevante para a conclusão de que existe uma regra que favorece indiretamente os próprios nacionais.

    52.

    O Governo francês, bem como o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris, excluem ainda que os requisitos para o exercício da profissão possam constituir uma discriminação indireta, porque as pessoas que exercem em França, familiarizadas, portanto, com o direito francês, e as que exercem noutro Estado‑Membro (ou ao serviço da Comissão Europeia), não familiarizadas, portanto, com o direito francês, não se encontram em situações comparáveis em termos de acesso à profissão de advogado, uma vez que as respetivas competências jurídicas estão relacionadas com ordens jurídicas diferentes.

    53.

    Discordo.

    54.

    Segundo jurisprudência constante, a comparabilidade das situações deve ser apreciada à luz do objeto e do objetivo prosseguido pela legislação nacional que institui a distinção em causa, bem como, se for caso disso, à luz dos princípios e dos objetivos próprios do domínio a que pertence essa legislação nacional ( 17 ).

    55.

    No presente processo, dependendo do nível de abstração escolhido, tal implica a discussão sobre a questão de saber se os funcionários franceses e os funcionários da Comissão são ou não comparáveis no que diz respeito à admissão numa Ordem dos advogados francesa (objetivo geral) ou, em alternativa, se os dois grupos de pessoas são comparáveis no que diz respeito à dispensa específica em que a recorrente procura basear‑se (objetivo específico).

    56.

    Quanto ao objetivo geral, não vejo porque é que qualquer advogado não pode ser considerado, em termos gerais, comparável para efeitos de admissão à ordem e à profissão de advogado.

    57.

    Em seguida, quanto ao objetivo específico da dispensa, o órgão jurisdicional de reenvio explica que, ao sujeitar o acesso à profissão de advogado aos requisitos debatidos no presente processo, essa dispensa visa garantir a defesa efetiva dos litigantes e, de igual modo, a boa administração da justiça.

    58.

    Se esse objetivo for efetivamente examinado, como em algumas das situações referidas nas presentes conclusões foi sugerido, in concreto, ( 18 ) continuo a não vislumbrar a falta de comparabilidade estrutural entre os funcionários franceses e os funcionários da UE. O que se diz ser importante é a prova da prática do direito francês, não a sua presunção. Se, no entanto, simplesmente se presumisse que apenas um funcionário francês tem conhecimento do direito francês, sem que isso seja examinado, tal suposição, embora suscite questões próprias, não refutaria ainda assim a comparabilidade inerente da derrogação específica, tendo em vista o objetivo declarado: garantir que uma pessoa que beneficie da dispensa possua de facto as competências necessárias para o exercício da profissão de advogado.

    59.

    No entanto, de qualquer forma, este debate põe em evidência duas questões. Em primeiro lugar, na prática, tais considerações já dizem respeito à justificação de um requisito específico e não à comparabilidade global. Essa comparabilidade é normalmente considerada de forma bastante ampla, precisamente para não deslocar toda a discussão do nível da justificação para o nível da comparabilidade, uma vez que, em ambos os casos, os argumentos têm, em grande medida, a mesma natureza ( 19 ). Em segundo lugar, as escolhas legislativas feitas por um Estado‑Membro neste contexto não podem ser consideradas determinantes. Se assim fosse, as categorias concebidas no direito nacional levariam então à exclusão da comparabilidade a nível europeu, excluindo assim qualquer controlo ( 20 ).

    60.

    À luz destas considerações, não posso deixar de reafirmar que os três requisitos referidos pelo órgão jurisdicional de reenvio que desencadeiam a aplicação do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 geram, de facto, uma discriminação indireta que favorece os cidadãos franceses no que respeita ao acesso à profissão de advogado em França.

    61.

    Em segundo lugar, partilho igualmente da opinião da recorrente e da Comissão segundo a qual estes requisitos constituem igualmente um obstáculo ao acesso à profissão de advogado em França.

    62.

    O alcance dos artigos 45.o e 49.o TFUE não se limita aos casos de discriminação direta ou indireta em razão da nacionalidade. Estas disposições excluem igualmente qualquer medida que, embora aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade, seja «suscetível de afetar ou de tornar menos atrativo o exercício, pelos nacionais da União, das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado» ( 21 ).

    63.

    A aplicação do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 é suscetível de impedir ou dissuadir as pessoas que pretendam exercer a sua liberdade de circulação ou de estabelecimento de deixarem o seu Estado‑Membro de origem (ou, para o que é relevante neste caso, a função pública da UE) para exercerem uma atividade profissional ou para se estabelecerem como advogados em França.

    64.

    Os requisitos de aplicação do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, relativo à inscrição na função pública francesa, a territorialidade da sua experiência profissional e a prática do direito francês constituem igualmente uma restrição à livre circulação dos trabalhadores e à liberdade de estabelecimento, nos termos dos artigos 45.o e 49.o TFUE.

    2. Justificação

    65.

    Independentemente da questão de saber se os requisitos em causa são examinados como discriminações indiretas ou como um obstáculo à livre circulação, importa, em todo o caso, verificar se os mesmos são suscetíveis de ser justificados por um dos objetivos legítimos enunciados no Tratado ou por razões imperiosas de interesse geral. Além disso, o regime em causa deve ser adequado para garantir a realização desse objetivo e não deve ir além do necessário para o atingir ( 22 ).

    66.

    Foi sugerido que o objetivo prosseguido pela dispensa em causa é a defesa eficaz dos direitos dos litigantes e a boa administração da justiça. A este respeito, como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, a proteção dos consumidores, incluindo os destinatários dos serviços jurídicos e a boa administração da justiça, são objetivos que figuram entre os que podem ser considerados razões imperiosas de interesse geral suscetíveis de justificar uma restrição às liberdades fundamentais ( 23 ).

    67.

    Estou inteiramente de acordo. Observo igualmente que nenhuma das partes contesta a legitimidade desses objetivos, que seriam certamente suscetíveis de justificar medidas e requisitos que restrinjam o acesso à profissão de advogado num Estado‑Membro.

    68.

    Dito isto, resta examinar se os requisitos em causa respeitam o critério da proporcionalidade que exige que se verifique a relação entre os objetivos declarados e os meios escolhidos para a sua realização. Neste contexto, é bastante importante esclarecer que (i) a proteção dos consumidores enquanto destinatários dos serviços jurídicos, bem como (ii) a boa administração da justiça num processo como o presente, se resumem essencialmente à questão da experiência relevante que deverá permitir a alguém que pretenda exercer a advocacia num Estado‑Membro estar operacional de forma razoável e independente dentro desse sistema. Afinal de contas, o acionamento da dispensa em causa concede ao recorrente uma derrogação à formação jurídica inicial e ao exame final no final desta.

    69.

    Assim, em seguida, procurarei levar a cabo uma verificação de cada um dos três requisitos em causa, como indica o órgão jurisdicional de reenvio: pode o requisito ser considerado adequado e necessário em relação ao objetivo declarado de garantir que as pessoas que pretendam beneficiar da dispensa em causa tenham experiência relevante numa medida adequada para a profissão de advogado?

    a) Pertença à função pública francesa

    70.

    Como acima referido nos n.os 27 e 28 das presentes conclusões, o alcance exato do requisito relativo à pertença à função pública francesa está sujeito a uma interpretação diferente.

    71.

    O órgão jurisdicional de reenvio afirma que este requisito exige, de facto, que a pertença à função pública francesa seja entendida como diferente de qualquer outra função pública, seja ela europeia ou nacional.

    72.

    O Governo francês, por outro lado, contesta esta interpretação. Na sua opinião, este requisito deve ser interpretado em sentido amplo, de modo a incluir também a função pública europeia ou nacional para além da francesa. A categoria AD dos funcionários da Comissão Europeia pode ser, segundo este governo, igualmente abrangida pelo conceito de pessoas equiparadas a funcionários da categoria A (personnes assimilées), que figura na letra do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197. O Governo francês explicou na audiência que não existe uma definição clara desta última categoria. É apenas evidente que exclui funcionários das categorias B e C, embora provavelmente inclua funcionários que não podem ser classificados numa das categorias A, B e C, como funcionários da administração penitenciária ou militares.

    73.

    No contexto do presente processo, a interpretação constante da decisão do Conselho da Ordem de Paris parece ser a sugerida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Em contrapartida, a decisão da Cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) está em consonância com o que o Governo francês sugere: o facto de a recorrente claramente não pertencer à função pública francesa não impediu aquele tribunal de realizar uma apreciação in concreto da sua experiência anterior.

    74.

    Não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a interpretação do direito nacional. No entanto, gostaria de salientar apenas três aspetos.

    75.

    Em primeiro lugar, caso a interpretação acolhida venha a ser uma interpretação restrita, no sentido de afirmar que de facto a pertença à função pública francesa conduz a uma concessão automática da dispensa sem um verdadeiro exame in concreto do requisito relativo à prática de qualquer ramo do direito francês relevante para a profissão de advogado, tal requisito, a meu ver, não seria adequado para atingir o objetivo declarado. Tendo em conta a quantidade de funcionários públicos pertencentes à categoria A, e a descrição de funções variada e, por vezes, limitada que provavelmente estará ligada ao trabalho em certos serviços, seria de facto muito difícil supor que todas essas pessoas adquiririam automaticamente a prática e as competências necessárias para a profissão de advogado, em especial para o exercício geral e independente da advocacia em regime de profissão independente. Uma concessão automática da dispensa com base na mera pertença à função pública francesa seria, por conseguinte, no mínimo, demasiado abrangente à luz dos objetivos visados.

    76.

    Em segundo lugar, o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris afirmam que não existe, de facto, qualquer automatismo na forma como as dispensas são concedidas e que todos os pedidos de dispensa são sujeitos a uma análise in concreto. Saliento que, na audiência, todas as partes concordaram que efetivamente importa realizar uma apreciação in concreto. No entanto, continua a haver uma divergência de pontos de vista quanto ao que exatamente deve ser apreciado in concreto, o que será abordado a seguir em relação ao terceiro requisito.

    77.

    No entanto e em todo o caso, considero que mesmo que se exclua qualquer automatismo, o requisito de pertença à função pública francesa vai além do que é necessário à luz do objetivo acima enunciado. O objetivo é assegurar que as pessoas que desejem beneficiar da dispensa tenham conhecimentos relevantes e práticos de direito francês, para que possam exercer. No entanto, a equiparação deste objetivo à pertença à função pública francesa é, como já foi referido, muito abrangente para funcionários públicos franceses e consideravelmente pouco abrangente para qualquer pessoa que não seja um funcionário público francês. É bastante evidente para mim que a prática e o conhecimento do direito francês também podem ser adquiridos noutro lugar que não na função pública francesa. Não é certamente de excluir que alguns funcionários da Comissão Europeia possam ter trabalhado em questões de direito francês, ou mesmo ter estado envolvidos em litígios nos tribunais franceses em nome do seu empregador.

    78.

    Nesta última perspetiva, o requisito relativo à pertença à função pública francesa restringiria as liberdades em causa para além do necessário, na medida em que excluiria os requerentes que não pertencem à função pública francesa, mas que poderiam efetivamente ter adquirido prática relevante ( 24 ).

    79.

    Em terceiro lugar, a problemática relativa ao primeiro requisito enunciado pelo órgão jurisdicional de reenvio desaparece, no entanto, totalmente, se, como refere o Governo francês, o requisito em causa for objeto de interpretação lata, no sentido de incluir igualmente os funcionários da função pública da UE, na medida em que podem ser considerados «outras pessoas equiparadas aos funcionários da categoria A». Isso significaria que essas pessoas não seriam automaticamente excluídas da ponderação para efeitos da dispensa em causa e que, também no que diz respeito à sua qualificação, poderia ser realizada uma apreciação in concreto da sua prática anterior.

    80.

    Assim, chego à conclusão provisória (e, de facto, bastante condicional) de que os artigos 45.o e 49.o TFUE se opõem ao requisito de pertença à função pública francesa à qual está subordinada a dispensa da formação profissional e do certificado de aptidão para a profissão de advogado, na aceção do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, na medida em que a aplicação concreta deste requisito não permite verificar a prática exigida pelo direito (nacional) por parte das pessoas que não pertencem à função pública francesa.

    b) Requisito de territorialidade

    81.

    Quanto ao requisito de territorialidade, entendo que o mesmo é aplicado de forma autónoma e deve ser preenchido cumulativamente com os outros dois requisitos. Entendo ainda que este requisito foi previsto de forma a impor que a prática exigida do direito francês tenha sido adquirida pelo requerente enquanto tinha domicílio profissional em França. Por outras palavras, a experiência necessária nunca poderá ser adquirida se o empregador público do requerente estiver sediado fora do território francês, mesmo que, de facto, o requerente possa efetivamente ter exercido direito francês, quer perante os tribunais franceses e, portanto, em território francês, quer a trabalhar de outra forma em questões de direito francês.

    82.

    Se for este efetivamente o caso, considero que tal requisito suscita os mesmos problemas que os potencialmente identificados em relação ao requisito relacionado com a condição de pertença à função pública francesa, conforme explicado supra ( 25 ). O problema é o automatismo inerente que simplesmente falha a prossecução do objetivo declarado.

    83.

    Esta constatação é, aliás, corroborada pela última parte da frase do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, da qual resulta que a dispensa em causa pode ser concedida, pelo menos à luz da letra desta disposição, a requerentes que invoquem experiência numa organização internacional. Não está excluído que, enquanto se trabalha para uma organização como a UNESCO ou a OCDE, que têm sede em França, se possa tratar de questões de direito francês e estar envolvido em litígios nos órgãos jurisdicionais franceses. Dito isto, se a garantia da dispensa for automática nesses casos (e além disso, eventualmente limitada aos membros da função pública francesa destacados para essas organizações), os objetivos prosseguidos pelos requisitos em causa dificilmente poderão ser atingidos.

    84.

    Assim, chego à conclusão provisória seguinte (e, mais uma vez, de certa forma condicional) segundo a qual os artigos 45.o e 49.o TFUE se opõem ao requisito de territorialidade a que está subordinada a dispensa da formação profissional e do certificado de aptidão para a profissão de advogado, nos termos do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197.

    c) Prática do direito francês

    85.

    Entendo que o requisito relacionado com a prática do direito francês está ligado à exigência do «[exercício de] atividades jurídicas» que figura no texto do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑9711 («activités juridiques», no original francês).

    86.

    A este respeito, não se pode deixar de sublinhar que a importância da prática e do conhecimento do direito nacional para efeitos do exercício da profissão de advogado tem, por princípio, sido reconhecida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 26 ). Assim, uma exigência relativa à obtenção de uma razoável experiência jurídica relevante, com vista à dispensa do requisito normal da prática antes da inscrição na ordem dos advogados, seria, em princípio, uma restrição adequada e necessária.

    87.

    Todavia, a situação não é assim tão evidente no presente processo. De facto, é o objeto exato da prática jurídica anterior que é exigido pela legislação nacional relevante que permanece de alguma forma impreciso, tanto do ponto de vista material como processual.

    88.

    Em primeiro lugar, ao mesmo tempo que se fazem todas as concessões com vista à flexibilidade inerente necessária ao tratamento dos pedidos de pessoas de todos os quadrantes, aquilo que é exatamente exigido como «[exercício de] atividades jurídicas» permanece pouco claro.

    89.

    A leitura intuitiva do conceito de «atividades jurídicas» pode ser a oposta a «atividades administrativas». Mas, como resulta da explicação dada, nomeadamente pelo Conselho e pelo Presidente da Ordem de Paris, trata‑se efetivamente de atividade jurídica de uma certa qualidade, que deve permitir verificar se a experiência profissional preparou efetivamente o requerente para o exercício da profissão de advogado.

    90.

    Todavia, o texto do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 não se refere à prática do direito nacional. É logicamente esse o caso quando se trata de requerentes que são funcionários da categoria A e que exerceram a profissão de funcionário em organizações internacionais ou que exerceram principalmente ou concomitantemente outros ramos do direito, como o direito da União ou o direito internacional, ao mesmo tempo que trabalhavam em França. Com efeito, resulta de um debate que se desenrolou na audiência que a prática do direito da União pode (ou mesmo deve) ser tomada em consideração para esse fim, ainda que não fique claro até que ponto essa prática pode compensar a falta de prática no direito nacional.

    91.

    Também não tenho a certeza se o exercício de atividades profissionais em qualquer ramo do direito é suficiente para cumprir o padrão exigido. Mais uma vez, houve alguns debates inconclusivos a este respeito na audiência, incluindo exemplos de pessoas que poderiam ter trabalhado apenas num ramo muito restrito do direito durante todo o período de oito anos ( 27 ), e comentários sobre a necessidade de uma prática mais ampla.

    92.

    Também não é claro se deve ser demonstrada uma certa experiência em contencioso perante os órgãos jurisdicionais franceses e qual a extensão da mesma, ou se outra experiência (ou seja, uma experiência não contenciosa) é suficiente. Constato que o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris parecem abraçar a primeira opção, mas os exemplos de jurisprudência apresentados no presente processo não são explícitos nem concludentes a esse respeito ( 28 ).

    93.

    É somente neste contexto que pode ser dada uma resposta útil à primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio ( 29 ). Se, quanto à substância da prática exigida, as autoridades nacionais encarregadas de aplicar o artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, exigissem consistentemente de todos os requerentes experiência em direito francês, no sentido de experiência comprovada em contencioso perante os tribunais franceses, ou limitada a áreas jurídicas intimamente ligadas a tais áreas, então excluir uma experiência prática apenas em direito da UE seria inteiramente lógico. No entanto, se, pelo contrário, qualquer prática do direito nacional for aceite, em praticamente todos os ramos do direito nacional, incluindo aqueles que estão bastante afastados de qualquer prática de contencioso relevante, não há nenhuma razão para excluir apenas a prática do direito da União das áreas de experiência relevante ( 30 ).

    94.

    Em segundo lugar, no que diz respeito ao processo de verificação do requisito relativo à prática do direito francês, o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris e o Governo francês explicam que esse processo é feito in concreto, numa base casuística. Cada pedido é recebido em primeiro lugar por um advogado empregado pela Ordem de Paris, cujo dever é verificar se o processo está completo, convidar o requerente a completá‑lo, se necessário, e preparar uma nota informativa. O pedido é então transferido para um comité composto por membros e ex‑membros da ordem e é atribuído a um deles que entrevista o requerente e apresenta a sua opinião sobre o assunto ao comité. Este último aceita o pedido ou, se tal se revelar impossível, remete o processo para um órgão administrativo perante o qual o requerente pode ser ouvido. Este órgão administrativo toma então uma decisão formal sobre o assunto, que está sujeita a fiscalização jurisdicional. Segundo o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris, tal apreciação individual e detalhada exclui qualquer automatismo. Para fundamentar esta afirmação, esta parte referiu na audiência vários exemplos de decisões de rejeição da Ordem de Paris relativas a requerentes que não puderam fazer prova das suas atividades jurídicas conduzidas de forma constante, suficiente, direta ou pessoal ( 31 ).

    95.

    Entendo, pela explicação dada sobretudo na audiência, que o objetivo da apreciação in concreto é verificar se o requerente desenvolveu «atividades jurídicas», por oposição a outras atividades. A este respeito, nenhuma parte parece contestar que tal apreciação in concreto ocorre de facto, embora, como já foi dito e apesar do procedimento de análise acima descrito, o seu alcance exato permaneça de alguma forma vago ( 32 ).

    96.

    Em suma, o requisito da prática relevante do direito francês é, em geral, um requisito que pode certamente ser simultaneamente adequado e necessário para os objetivos declarados. Deliberadamente sublinho o direito francês: se alguém pretende exercer numa ordem jurídica e pretende ser dispensado do preenchimento de um requisito, de aplicação geral, de admissão à ordem dos advogados, relacionado com a formação obrigatória e a aprovação no respetivo exame final, então é absolutamente adequado e necessário exigir um grau razoável de experiência prática no âmbito desse sistema jurídico.

    97.

    No entanto, qualquer que seja o tipo de exigência que um sistema estabeleça a este respeito, tanto os requisitos como a sua aplicação devem ser concretizados de forma previsível e consistente em relação a todos os requerentes que pretendam ser admitidos. Este último elemento leva‑me a um ponto final, transversal às presentes conclusões, que merece ser abordado separadamente.

    3. Requisitos coerentes e previsíveis

    98.

    O contexto do presente processo é um tanto ou quanto especial. Como já foi exposto nas observações preliminares introdutórias ( 33 ), e mais adiante sublinhado no debate que se seguiu, as condições que parecem ser aplicáveis por força do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197 não só são algo diversas, como também têm uma base literal de certa forma bastante limitada. Além disso, tal como a Comissão afirmou, com pertinência, na audiência, todos os requisitos em causa parecem ser aplicados com um certo grau de flexibilidade.

    99.

    Os três requisitos examinados no presente processo são uma construção jurisprudencial. Os mesmos suscitam questões de coerência e previsibilidade de aplicação, nomeadamente quando examinados através das lentes das limitações às liberdades garantidas pelo Tratado que as institui. No que diz respeito à exigência de coerência, o Tribunal de Justiça declarou que a justificação das restrições às liberdades garantidas pelos Tratados devem de facto prosseguir os objetivos declarados de uma maneira coerente e sistemática ( 34 ). No que diz respeito à exigência de previsibilidade, esta última é naturalmente reforçada quando as respetivas restrições são claramente definidas por normas de aplicação geral.

    100.

    Obviamente não estou a sugerir que um grau adequado de coerência e de previsibilidade não possa ser alcançado pela jurisprudência e deva apenas resultar da legislação. Com efeito, por exemplo, no contexto mais rigoroso das limitações dos direitos apenas «previstas por lei», o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») admitiu que tal restrição não deve necessariamente ser definida pela legislação. Também pode ser instituída pela jurisprudência. No entanto, de acordo com o TEDH, a expressão «prevista por lei» exige que a lei seja «suficientemente acessível» e que «uma norma não pode ser considerada como uma “lei” a menos que seja formulada com precisão suficiente para permitir ao cidadão reger a sua conduta» ( 35 ). Com efeito, «as normas jurídicas nas quais se baseia a interferência devem ser suficientemente acessíveis, precisas e previsíveis na sua aplicação. Neste contexto, «uma regra é "previsível" quando fornece uma medida de proteção contra interferências arbitrárias por parte das autoridades públicas» ( 36 ).

    101.

    Dito isto, há casos em que o Tribunal de Justiça insistiu em requisitos mais rigorosos quanto à previsibilidade das regras aplicáveis ( 37 ). No entanto, deixando de lado os casos relativos à privação de liberdade em vários contextos, onde naturalmente se devem aplicar padrões mais elevados ( 38 ), o mesmo não se passa necessariamente com a definição dos requisitos de acesso a uma profissão. Assim, embora certamente se possa aceitar que tais padrões sejam mais matizados na jurisprudência, não deixa de ser verdade que deve ser respeitada uma base de previsibilidade (e portanto de acessibilidade e precisão) ( 39 ).

    102.

    Feita a apreciação à luz destes critérios, devo confessar que me parece bastante difícil compreender como é que os requisitos debatidos no presente processo poderiam satisfazer estas exigências. Considero impossível ignorar a considerável dissonância que existe entre, por um lado, as regras escritas, tal como estabelecidas pelo artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, e, por outro lado, a aplicação dessas regras através dos requisitos debatidos no presente processo, conjugada com muitos aspetos pouco claros quanto ao significado desses critérios e à forma como são aplicados.

    103.

    Reconheço naturalmente o amplo poder de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros para definir os requisitos de acesso a uma profissão regulamentada, como a profissão de advogado, incluindo as derrogações a esses requisitos, a fim de assegurar que só as pessoas que oferecem a garantia das competências requeridas a ela possam ter acesso.

    104.

    Também não pretendo negar a faculdade de os Estados‑Membros estabelecerem, sendo caso disso, critérios bastante estritos em termos de experiência e de conhecimento do direito nacional, como sublinhou o Governo francês na audiência, e de os aplicarem de forma a reforçar eficazmente a proteção dos direitos dos litigantes e uma boa administração da justiça.

    105.

    Assim, as observações formuladas nesta secção e ao longo destas conclusões não se inspiram, de modo algum, na convicção de que há que conceder um acesso tão amplo quanto possível às ordens dos advogados nacionais, incluindo às pessoas que não satisfazem as exigências impostas e que não podem, por isso, apresentar as garantias necessárias relativas à proteção dos direitos dos litigantes e à boa administração da justiça. Bem pelo contrário. Creio que um Estado‑Membro está plenamente no seu direito de exigir um padrão bastante rigoroso de experiência profissional para a admissão à ordem dos advogados nacional, o que inclui, se esse Estado‑Membro assim o desejar, insistir não só na prática efetiva do direito nacional, mas até na experiência prática em contencioso e litigância nos tribunais nacionais.

    106.

    O resultado final destas conclusões é diferente: por mais rigoroso que um Estado‑Membro opte por ser, deve fazê‑lo de forma coerente e transparente, sujeitando todos os candidatos, cidadãos e não cidadãos, ao mesmo conjunto de requisitos previsíveis que deverão ser aplicados da mesma forma. Um Estado‑Membro pode decidir ser permissivo ou rigoroso, mas deve fazê‑lo indistintamente. Por conseguinte, o que um Estado‑Membro não pode fazer é, através de um sistema de presunções pouco justificadas, que apenas têm uma escassa ligação ao objetivo declarado de experiência relevante (que é, em si mesmo, cego em termos de nacionalidade), operar, na prática, um sistema que, tendo em conta os factos apresentados no Tribunal de Justiça, parece ser bastante permissivo para os seus próprios cidadãos e bastante mais rigoroso, ou mesmo eliminatório, para os não cidadãos.

    107.

    Assim, embora sublinhando uma vez mais o alcance do poder de apreciação dos Estados‑Membros na matéria, esse poder deve ser exercido de forma a tornar estes requisitos conformes com as exigências acima referidas, de forma a estabelecer critérios claramente definidos que permitam aos requerentes saber o que se espera deles e com que base e em que condições será examinado e decidido o seu pedido.

    V. Conclusão

    108.

    Proponho que o Tribunal de Justiça responda à Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) do seguinte modo:

    Os artigos 45.o e 49.o TFUE opõem‑se aos requisitos de pertença à função pública francesa e à territorialidade a que está subordinada a dispensa da formação profissional e do certificado de aptidão para o exercício da profissão de advogado, por força do artigo 98.o, n.o 4, do Decreto n.o 91‑1197, na medida em que a aplicação efetiva desses requisitos impede a verificação da prática relevante do direito nacional por parte dos membros da função pública da Comissão Europeia.

    De qualquer modo, os artigos 45.o e 49.o TFUE opõem‑se a que o acesso a uma profissão regulamentada num Estado‑Membro seja subordinado a requisitos que não se baseiem em critérios coerentes e previsíveis, que não possam ser razoavelmente demonstrados ex ante por todos os requerentes interessados.


    ( 1 ) Língua original: inglês.

    ( 2 ) Entendo que se trata de uma remissão para o artigo 11.o, n.o 2, da Lei n.o 71‑1130, que prevê uma possível dispensa do diploma em direito às pessoas que tenham exercido determinadas atividades em França.

    ( 3 ) V., por exemplo, Cour d’appel de Paris, Decisão de 12 de maio de 2016, n.o 15/1546; Cass. 1ère Civ, Decisão de 14 de dezembro de 2016, n.o 15‑26.635, FR:CCASS:2016:C101411; Cass. 1ère Civ, Decisão de 11 de maio de 2017, n.o 16‑17.295, FR:CCASS:2017:C100576; Cass. 1ère Civ, Decisão de 5 de julho de 2017, n.o 16‑20.441, FR:CCASS:2017:C100576.

    ( 4 ) Cour d’Appel de Aix‑en‑Provence, Decisão de 2 de abril de 2015, n.o 14/15403.

    ( 5 ) Cuja conformidade com a constituição nacional foi confirmada pelo Conseil Constitutionnel (Conselho Constitucional) por Decisão de 6 de julho de 2016, n.o 2016‑551 QPC, FR:CC:2016:2016.551.QPC.

    ( 6 ) Cass. 1ère Civ, Decisão de 28 de março de 2008, n.o 06‑21.051, Boletim 2008 I n.o 90; Cass. 1ère Civ, Decisão de 14 de janeiro de 2016, n.o 15‑11.305, FR:CCASS:2016:C100036.

    ( 7 ) Cass. 1ère Civ, Decisão de 14 de dezembro de 2016, n.o 14‑25.800, FR:CCASS:2016:C101410.

    ( 8 ) O mesmo requisito de territorialidade foi também aplicado à dispensa para algumas categorias de professores universitários, nos termos do artigo 98.o, n.o 2, do Decreto n.o 91‑1197. Cass, 1ère Civ, Decisão de 15 de julho de 1999, No 97‑13.079, Boletim 1999 I n.o 235 p. 152.

    ( 9 ) V., supra, n.o 5 das presentes conclusões.

    ( 10 ) Diretiva 98/5/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, 16 de fevereiro de 1998, tendente a facilitar o exercício permanente da profissão de advogado num Estado‑Membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional (JO 1998 L 77, p. 36).

    ( 11 ) Acórdão de 13 de novembro de 2003, Morgenbesser (C‑313/01, EU:C:2003:612, n.o 45).

    ( 12 ) V., por exemplo, Acórdãos de 10 de dezembro de 2009, Peśla (C‑345/08, EU:C:2009:771, n.o 34 e jurisprudência referida); de 6 de outubro de 2015, Brouillard (C‑298/14, EU:C:2015:652, n.o 48 e jurisprudência referida); e de 17 de dezembro de 2015, X‑Steuerberatungsgesellschaft (C‑342/14, EU:C:2015:827, n.o 44 e jurisprudência referida).

    ( 13 ) V., no que respeita ao artigo 45 TFUE (então artigo 39.o CE), Acórdão de 10 de dezembro de 2009, Peśla (C‑345/08, EU:C:2009:771, n.o 35 e jurisprudência referida).

    ( 14 ) V., por exemplo, Acórdão de 3 de outubro de 2000, Ferlini (C‑411/98, EU:C:2000:530, n.o 42 e jurisprudência referida); de 16 de dezembro de 2004, My (C‑293/03, EU:C:2004:821, n.o 37 e jurisprudência referida, no que respeita à posição de princípio); de 16 de fevereiro de 2006, Öberg (C‑185/04, EU:C:2006:107, n.o 12 e jurisprudência referida); e de 21 de janeiro de 2016, Comissão/Chipre (C‑515/14, EU:C:2016:30, n.o 45). V., também, Acórdão de 30 de abril de 2019, Wattiau/Parlamento (T‑737/17, EU:T:2019:273, n.o 82 e seguintes.).

    ( 15 ) V., por exemplo, Acórdãos de 28 de junho de 2012, Erny (C‑172/11, EU:C:2012:399, n.o 39); de 5 de dezembro de 2013, Zentralbetriebsrat der gemeinnützigen Salzburger Landeskliniken (C‑514/12, EU:C:2013:799, n.o 25); ou de 5 de fevereiro de 2014, Hervis Sport‑ és Divatkereskedelmi (C‑385/12, EU:C:2014:47, n.o 30).

    ( 16 ) Acórdão de 23 de maio de 1996, O’Flynn (C‑237/94, EU:C:1996:206, n.o 20).

    ( 17 ) V., neste sentido, Acórdão de 7 de março de 2017, RPO (C‑390/15, EU:C:2017:174, n.o 42 e jurisprudência referida); de 26 de junho de 2018, MB (Mudança de sexo e pensão de reforma) (C‑451/16, EU:C:2018:492, n.o 42); e de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation (C‑193/17, EU:C:2019:43, n.o 42).

    ( 18 ) Supra, n.os 11 e 12 e 24 das presentes conclusões.

    ( 19 ) V., igualmente, as minhas Conclusões no processo Hornbach‑Baumarkt (C‑382/16, EU:C:2017:974, n.o 131), que demonstram em que medida, na análise clássica do Tribunal de Justiça no âmbito das quatro liberdades, os mesmos argumentos são, em substância, discutidos no âmbito da apreciação da comparabilidade (se debatida separadamente) e da justificação (proporcionalidade).

    ( 20 ) V. as minhas Conclusões no processo MB (C‑451/16, EU:C:2017:937, n.o 47), que sublinha a circularidade que se traduz numa impossibilidade efetiva de qualquer controlo se as categorias tal como estabelecidas pela legislação nacional devessem ser consideradas determinantes para a apreciação da comparabilidade ao nível da União.

    ( 21 ) V., por exemplo, Acórdãos de 7 de maio de 1991, Vlassopoulou (C‑340/89, EU:C:1991:193, n.o 15); de 5 de fevereiro de 2015, Comissão/Bélgica (C‑317/14, EU:C:2015:63, n.o 22); e de 20 de dezembro de 2017, Simma Federspiel (C‑419/16, EU:C:2017:997, n.o 35 e jurisprudência referida). Para uma síntese da jurisprudência a este respeito, v. igualmente as minhas Conclusões no processo Krah (C‑703/17, EU:C:2019:450, n.os 53 a 85).

    ( 22 ) V., por exemplo, Acórdãos de 31 de março de 1993, Kraus (C‑19/92, EU:C:1993:125, n.o 32 e jurisprudência referida); de 12 de setembro de 2013, Konstantinides (C‑475/11, EU:C:2013:542, n.o 50); e de 13 de julho de 2016, Pöpperl (C‑187/15, EU:C:2016:550, n.o 29).

    ( 23 ) No que respeita à justificação de restrições à livre prestação de serviços, v. Acórdão de 18 de maio de 2017, Lahorgue (C‑99/16, EU:C:2017:391, n.o 34 e jurisprudência referida). V., igualmente, Acórdão de 12 de dezembro de 1996, Reisebüro Broede (C‑3/95, EU:C:1996:487, n.o 38 e jurisprudência referida), e de 25 de julho de 1991, Säger (C‑76/90, EU:C:1991:331 n.o 16).

    ( 24 ) V. nesse sentido, por exemplo, Acórdãos de 7 de maio de 1991, Vlassopoulou (C‑340/89, EU:C:1991:193, n.o 15); de 13 de novembro de 2003, Morgenbesser (C‑313/01, EU:C:2003:612, n.o 62 e jurisprudência referida); de 10 de dezembro de 2009, Peśla (C‑345/08, EU:C:2009:771, n.o 36 e jurisprudência referida); e de 17 de dezembro de 2009, Rubino (C‑586/08, EU:C:2009:801, n.o 34). V., também, Acórdão de 12 de maio de 2005, Comissão/Itália (C‑278/03, EU:C:2005:281, n.o 14 e jurisprudência referida).

    ( 25 ) Além disso, a Comissão levanta dúvidas sobre se a condição de territorialidade é de facto exigida aos membros da função pública francesa que exercem a sua função fora do território francês. Remete, neste contexto, para a Decisão da Cour d'appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) de 12 de maio de 2016, n.o 15/15468, na qual se entendeu que a discriminação não pode resultar da distinção entre os membros da função pública francesa e os funcionários internacionais, uma vez que os dois estatutos correspondem a competências diferentes.

    ( 26 ) V. Acórdãos de 10 de dezembro de 2009, Peśla (C‑345/08, EU:C:2009:771, n.o 46) e de 22 de dezembro de 2010, Koller (C‑118/09, EU:C:2010:805, n.o 39).

    ( 27 ) A este respeito, a recorrente remeteu para os acórdãos do órgão jurisdicional de reenvio que declaram que, no contexto da dispensa prevista no artigo 98.o, n.o 3, do Decreto n.o 91‑9711 para os assessores jurídicos, não pode ser exigida uma variedade de atividades em diferentes ramos do direito. V., Cass. 1ère Civ, Decisão de 13 de março de 1996, Processo de recurso n.o 94‑13.856, Boletim 1996 I n.o 131 p. 93; Cass. 1ère Civ, Decisão de 26 de janeiro de 1999, Processo de recurso n.o 96‑14.188, não publicado; Cass. 1ère Civ, Decisão de 11 de fevereiro de 2010, Processo de recurso n.o 09‑11.324, não publicado.

    ( 28 ) Além disso, a recorrente remeteu para um parecer de 18 de janeiro de 2018 do Conseil national des barreaux (Conselho Nacional da Ordem dos Advogados) e da Commission Règles et usages (Comissão de Normas e Práticas), que não parece ser unívoco a este respeito. Este documento refere que «A Ordem dos Advogados, tendo recebido o pedido de registo, deve investigar quais foram as atividades efetivamente exercidas, com base na prova do trabalho jurídico profissional sob a forma de consultas, redação ou tratamento de processos judiciais. A prova a fornecer pelo requerente é, em princípio, o certificado emitido pelo empregador ou ex‑empregadores». Sublinhado por mim na disjuntiva «ou».

    ( 29 ) Supra, n.o 38 das presentes conclusões.

    ( 30 ) Falando sem rodeios, com a ajuda de um exemplo hipotético, se fosse possível dizer que um funcionário fiscal de Saint‑Claude in Jura que tem oito anos de experiência a trabalhar apenas em processos de IVA, sem nunca ter entrado num tribunal francês para invocar, em nome do Estado, o benefício da dispensa prevista no artigo 98.o, n.o 4, do Decreto 91‑1197, porque seria visto no sentido de executar «atividades jurídicas», então o mesmo deveria certamente ser possível para um funcionário da Comissão que trabalhasse exclusivamente em questões de direito da UE, sem nunca ter advogado em processos nos tribunais franceses. Isto porque, tendo em conta o objetivo declarado de tal limitação (supra, n.os 68 e 69 das presentes conclusões), ambas as instâncias estão igualmente próximas (ou, sobretudo, igualmente afastadas) de ter qualquer experiência relevante em contencioso no direito francês.

    ( 31 ) A este respeito, o Conselho e o Presidente da Ordem de Paris remeteram para a Cass. 1ère Civ, Decisão de 22 de janeiro de 2014, Processo de recurso n.o 12‑26.622, FR:CCASS:2014:C100056, e Cass. 1ère Civ, Decisão de 8 de dezembro de 2009, Processo de recurso n.o 08‑70.088, não publicado.

    ( 32 ) V., supra, n.os 10 e 23, que indicam que, em relação à recorrente no processo principal, essa apreciação parecia ter‑se limitado à afirmação de que ela não era, in concreto, membro da função pública francesa.

    ( 33 ) V., supra, em especial no n.o 34 das presentes conclusões.

    ( 34 ) V., por exemplo, Acórdãos de 6 de novembro de 2003, Gambelli e o. (C‑243/01, EU:C:2003:597, n.o 67); de 10 de março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, EU:C:2009:141, n.o 55 e jurisprudência referida); de 18 de maio de 2017, Lahorgue (C‑99/16, EU:C:2017:391, n.o 31 e jurisprudência referida); de 29 de julho de 2019, Comissão/Áustria (Sociedades de engenheiros civis, de agentes de patentes e de veterinários) (C‑209/18, EU:C:2019:632, n.o 94 e jurisprudência referida); e de 18 de junho de 2020, Comissão/Hungria (Transparence associative) (C‑78/18, EU:C:2020:476, n.o 76 e jurisprudência referida).

    ( 35 ) TEDH, 26 de abril de 1979, Sunday Times/Reino Unido (n.o 1), App. n.o 6538/74, [CE:ECHR:1980:1106JUD000653874, §§ 47 a 49 (no contexto do artigo 10.o, n.o 2 CEDH e da limitação à liberdade de expressão)]. V., também, no contexto do artigo 52.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e ao comentar a jurisprudência pertinente do TEDH, Conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Scarlet Extended (C‑70/10, EU:C:2011:255, n.os 94 a 100).

    ( 36 ) TEDH, 11 de junho de 2020, Markus/Letónia, App. n.o 17483/10, [CE:ECHR:2020:0611JUD001748310, § 66 e jurisprudência referida (no contexto de uma sanção penal e restrição ao direito de propriedade)].

    ( 37 ) Acórdão de15 de março de 2017, Al Chodor (C‑528/15, EU:C:2017:213). V., também, Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Deutsche Umwelthilfe (C‑752/18, EU:C:2019:1114, n.o 46).

    ( 38 ) Acórdão de 15 de março de 2017, Al Chodor (C‑528/15, EU:C:2017:213 n.os 42 e 43) ao declarar que «apenas uma disposição de alcance geral pode responder às exigências de clareza, previsibilidade, acessibilidade e, em particular, de proteção contra a arbitrariedade».

    ( 39 ) V., por analogia, por exemplo, Acórdãos de 26 de novembro de 2014, Mascolo e o. (C‑22/13, C‑61/13 to C‑63/13 e C‑418/13, EU:C:2014:2401, n.o 88); de 11 de abril de 2019, Cobra Servicios Auxiliares (C‑29/18, C‑30/18 e C‑44/18, EU:C:2019:315, n.os 45 a 46 e jurisprudência referida); de 7 de outubro de 2019, Safeway (C‑171/18, EU:C:2019:839, n.o 25 e jurisprudência referida); e de 19 de dezembro de 2019, GRDF (C‑236/18, EU:C:2019:1120, n.o 42 e jurisprudência referida).

    Top