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Document 62019CC0080

    Conclusões do advogado-geral M. Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 26 de março de 2020.
    Processo instaurado por E. E.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Âmbito de aplicação — Conceito de “sucessão com incidência transfronteiriça” — Conceito de “residência habitual do falecido” — Artigo 3.o, n.o 2 — Conceito de “órgão jurisdicional” — Sujeição dos notários às regras de competência judiciária — Artigo 3.o, n.o 1, alíneas g) e i) — Conceitos de “decisão” e de “ato autêntico” — Artigos 5.o, 7.o e 22.o — Acordo de eleição de foro e de escolha da lei aplicável à sucessão — Artigo 83.o, n.os 2 e 4 — Disposições transitórias.
    Processo C-80/19.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:230

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

    apresentadas em 26 de março de 2020 ( 1 )

    Processo C‑80/19

    E. E.

    sendo intervenientes:

    Kauno miesto 4‑ojo notaro biuro notarė Virginija Jarienė,

    K.‑D. E.

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal, Lituânia)]

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.o 650/2012 — Âmbito de aplicação — Conceito de sucessão com incidência transfronteiriça — Conceito de residência habitual — Sujeição dos notários às regras de competência judiciária internacional — Conceito de ato autêntico — Escolha de lei resultante dos termos de uma disposição por morte — Disposições transitórias — Atribuição de competência judiciária internacional pelas partes interessadas»

    1.

    O Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal, Lituânia) submete várias questões prejudiciais sobre a interpretação do Regulamento (UE) n.o 650/2012 ( 2 ). Considera‑as necessárias para decidir sobre um recurso interposto da decisão de um notário desse país, que indefere um pedido de abertura da sucessão e de emissão de um certificado nacional de direitos sucessórios.

    2.

    A controvérsia tem por objeto a sucessão mortis causa de uma nacional lituana que residia na Alemanha ( 3 ), que fez um testamento na Lituânia, país onde se encontram os bens que fazem parte da herança. O seu filho, também de nacionalidade lituana, requereu perante um notário de Kaunas (Lituânia) a abertura da sucessão e a emissão do certificado de direitos sucessórios, pedidos que o notário indeferiu pelo facto de a falecida ter a sua residência habitual na Alemanha.

    3.

    Por indicação do Tribunal de Justiça, estas conclusões limitar‑se‑ão às questões prejudiciais quarta a sexta. Não obstante, ao efetuar a respetiva análise, terei de referir‑me, incidentalmente, ao conteúdo de algumas das outras questões.

    I. Quadro legal

    A.   Direito da União. Regulamento n.o 650/2012

    4.

    São relevantes os seguintes considerandos:

    «(7)

    É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça. No espaço europeu de justiça, os cidadãos devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessão. É necessário garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legatários, das outras pessoas próximas do falecido, bem como dos credores da sucessão.

    […]

    (20)

    O presente regulamento deverá respeitar os diferentes sistemas em aplicação nos Estados‑Membros para tratar de matérias sucessórias. Para efeitos do presente regulamento, o termo “órgão jurisdicional” deverá, por conseguinte, ser interpretado em sentido lato, de modo a abranger não só os tribunais na verdadeira aceção do termo, que exercem funções jurisdicionais, mas também os notários ou as conservatórias que, em alguns Estados‑Membros, em certas matérias sucessórias, exercem funções jurisdicionais como se de tribunais se tratasse, e os notários e profissionais do direito que, em determinados Estados‑Membros, exercem funções jurisdicionais no âmbito de uma determinada sucessão por delegação de poderes de um tribunal. Todos os órgãos jurisdicionais na aceção do presente regulamento deverão ficar vinculados às regras de competência definidas no presente regulamento. Inversamente, o termo “órgão jurisdicional” não deverá abranger as autoridades não judiciárias de um Estado‑Membro competentes nos termos do direito nacional para tratar matérias sucessórias, tais como os notários que, na maior parte dos Estados‑Membros, não exercem habitualmente funções jurisdicionais.

    (21)

    O presente regulamento deverá permitir que todos os notários que tenham competência em matéria sucessória nos Estados‑Membros exerçam essa competência. A questão de saber se os notários de um dado Estado‑Membro ficam ou não vinculados às regras de competência definidas no presente regulamento deverá depender do facto de estarem abrangidos, ou não, pelo termo “órgão jurisdicional” na aceção do presente regulamento.

    […]

    (23)

    Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado‑Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito. A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.

    (24)

    Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.

    (25)

    No que diz respeito à determinação da lei aplicável à sucessão, a autoridade que trata da sucessão pode, em casos excecionais — quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua residência habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as circunstâncias do caso indiquem que tinha uma relação manifestamente mais estreita com outro Estado — chegar à conclusão de que a lei aplicável à sucessão não deverá ser a do Estado da residência habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita. No entanto, a relação manifestamente mais estreita não deverá tornar‑se em fator de conexão subsidiário caso se revele complexa a determinação da residência habitual do falecido no momento do óbito.

    […]

    (27)

    As disposições do presente regulamento são concebidas a fim de assegurar que a autoridade que trata da sucessão aplique, na maior parte das situações, o seu direito interno. Por conseguinte, o presente regulamento prevê uma série de procedimentos aplicáveis caso o falecido tenha escolhido para regular a sua sucessão a lei do Estado‑Membro de que era nacional.

    (28)

    Um desses mecanismos deverá permitir às partes interessadas celebrarem um acordo de eleição do foro a favor dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro da lei escolhida […].

    […]

    (37)

    Para que os cidadãos possam beneficiar, com toda a segurança jurídica, das vantagens oferecidas pelo mercado interno, o presente regulamento deverá permitir‑lhes conhecer antecipadamente qual será a lei aplicável à sua sucessão. Deverão ser introduzidas normas harmonizadas de conflitos de leis para evitar resultados contraditórios. A regra principal deverá assegurar previsibilidade no que se refere à lei aplicável com a qual a sucessão apresente uma conexão estreita. Por razões de segurança jurídica e para evitar a fragmentação da sucessão, essa lei deverá regular a totalidade da sucessão, ou seja, todos os bens da herança, independentemente da natureza dos bens e independentemente de estes se encontrarem situados noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro.

    […]

    (39)

    A escolha da lei aplicável deverá ser feita expressamente numa declaração sob a forma de disposição por morte ou resultar dos termos dessa disposição. Poderá considerar‑se que a escolha de lei resulta de uma disposição por morte, por exemplo, se o falecido tiver feito referência, na sua disposição, a normas específicas da lei do Estado da sua nacionalidade ou se, de outra forma, tiver mencionado essa lei.»

    5.

    Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, entende‑se por:

    «g)

    “Decisão”, qualquer decisão em matéria de sucessões proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, independentemente da designação que lhe é dada, incluindo uma decisão sobre a fixação pelo secretário do órgão jurisdicional do montante das custas do processo;

    […]

    i)

    “Ato autêntico”: um documento em matéria sucessória que tenha sido formalmente redigido ou registado como tal num Estado‑Membro e cuja autenticidade

    i)

    esteja associada à assinatura e ao conteúdo do ato autêntico, e

    ii)

    tenha sido atestada por uma autoridade pública ou outra autoridade habilitada para o efeito pelo Estado‑Membro de origem.»

    6.

    O artigo 3.o, n.o 2, prevê:

    «Para efeitos do presente regulamento, a noção de “órgão jurisdicional” inclui os tribunais e as outras autoridades e profissionais do direito competentes em matéria sucessória que exerçam funções jurisdicionais ou ajam no exercício de uma delegação de poderes conferida por um tribunal ou sob o controlo deste, desde que essas outras autoridades e profissionais do direito ofereçam garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado‑Membro onde estão estabelecidos:

    a)

    Possam ser objeto de recurso perante um tribunal ou de controlo por este; e

    b)

    Tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria.

    […]»

    7.

    Nos termos do artigo 4.o:

    «São competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.»

    8.

    O artigo 5.o dispõe:

    «1.   Caso a lei escolhida pelo falecido para regular a sua sucessão nos termos do artigo 22.o seja a lei de um Estado‑Membro, as partes em causa podem acordar em que um ou os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro cuja lei foi escolhida tenham competência exclusiva para decidir de toda e qualquer questão em matéria sucessória.

    2.   O acordo de eleição do foro é reduzido a escrito, datado e assinado pelas partes em causa. […]»

    9.

    Em conformidade com o artigo 7.o:

    «Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro cuja lei tenha sido escolhida pelo falecido nos termos do artigo 22.o são competentes para decidir da sucessão:

    […]

    c)

    Se as partes na ação tiverem expressamente aceitado a competência do órgão jurisdicional onde a mesma foi intentada.»

    10.

    Nos termos do artigo 9.o, número 1:

    «Caso se verifique, no decurso de uma ação perante um órgão jurisdicional do Estado‑Membro que exerça a sua competência nos termos do artigo 7.o, que nem todas as partes nessa ação são partes no acordo de eleição do foro, o órgão jurisdicional continua a exercer a sua competência se as partes na ação que não participaram no acordo comparecerem sem contestar a competência do órgão jurisdicional.»

    11.

    O artigo 22.o estabelece:

    «1.   Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito.

    […]

    2.   A escolha deve ser feita expressamente numa declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou resultar dos termos dessa disposição.

    […]»

    12.

    Em conformidade com o artigo 59.o, n.o 1:

    «Um ato autêntico exarado num Estado‑Membro tem noutro Estado‑Membro a mesma força probatória que tem no Estado‑Membro de origem, ou efeitos o mais equiparáveis possível, desde que tal não seja manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro em causa.

    […]»

    13.

    Em conformidade com o artigo 83.o, n.os 2 e 4:

    «2.   Caso o falecido tenha escolhido a lei aplicável à sua sucessão antes de 17 de agosto de 2015, essa escolha é válida, se respeitar as condições previstas no Capítulo III ou se for válida em aplicação das regras do direito internacional privado em vigor no momento em que a escolha foi feita, no Estado em que o falecido tinha a sua residência habitual ou em qualquer dos Estados de que era nacional.

    […]

    4.   Sempre que o falecido tenha feito uma disposição por morte antes de 17 de agosto de 2015 nos termos da lei que o falecido tivesse podido escolher por força do presente regulamento, considera‑se que essa lei foi escolhida como lei aplicável à sucessão.»

    B.   Direito nacional

    1. Lietuvos Respublikos civilinis kodeksas (Código Civil)

    14.

    O artigo 5, n.o 4, prevê:

    «1.   Considera‑se o lugar de abertura da sucessão o lugar do último domicílio do autor da herança (artigo 2.o, n.o 12, do presente Código Civil).

    […]

    4.   Em caso de litígio, cabe ao tribunal, a requerimento dos interessados, determinar o lugar de abertura da sucessão tendo em conta todas as circunstâncias.»

    15.

    O artigo 5.o, n.o 66, dispõe:

    «1.   Os herdeiros legais ou testamentários podem pedir ao notário do lugar da abertura da sucessão que emita um certificado do seu direito à herança […]»

    2. Lietuvos Respublikos notariato įstatymas (Lei do Notariado)

    16.

    O artigo 1.o prevê:

    «O Notariado é composto por todos os notários aos quais a presente lei confere o direito de estabelecerem direitos subjetivos não contestados e os factos jurídicos de pessoas singulares e coletivas e de assegurarem a proteção dos interesses legítimos dessas pessoas e do Estado.»

    17.

    Nos termos do artigo 26.o:

    «Os notários podem realizar os seguintes atos notariais:

    […]

    (2)

    emissão de certificados de direitos sucessórios;

    […]

    Os factos constantes dos documentos certificados por um notário consideram‑se provados e não será necessário fazer prova deles se não for declarada a nulidade desses documentos (ou de parte deles) no âmbito de um processo judicial.»

    3. Civilinio proceso kodeksas (Código de Processo Civil)

    18.

    O artigo 444.o, n.o 2, estabelece:

    «Os tribunais são competentes para conhecer de processos:

    […]

    (8)

    relativos à aceitação de heranças e à determinação do lugar efetivo de abertura da sucessão.»

    19.

    Nos termos do artigo 511.o, n.o 1:

    «A realização de qualquer ato notarial ou a recusa da sua realização pode ser impugnada nos termos do procedimento previsto no presente capítulo.»

    II. Factos, litígios e questões prejudiciais

    20.

    E. E. é um nacional lituano cuja mãe casou com K.‑D. E., de nacionalidade alemã. Mãe e filho (fruto de um casamento anterior) mudaram‑se para a Alemanha quando este era menor.

    21.

    Em 4 de julho de 2013, a mãe de E. E. fez um testamento perante o notário de Garliava (Lituânia), instituindo‑o como o único herdeiro de todo o seu património ( 4 ).

    22.

    Em 17 de julho de 2017, E. E. requereu ao cartório notarial n.o 4 de Kaunas (Lituânia) a abertura do processo sucessório e a emissão de um certificado de direitos sucessórios ( 5 ).

    23.

    O notário indeferiu o pedido de E. E. com base na sua convicção de que, na aceção do Regulamento, o lugar de residência habitual da falecida à data do óbito era na Alemanha.

    24.

    E. E. impugnou a decisão do notário no Kauno apylinkės teismas (Tribunal de Primeira Instância de Kaunas, Lituânia). Este órgão jurisdicional declarou, em 29 de janeiro de 2018, que apesar de a mãe de E. E. reconhecer que se tinha mudado para a Alemanha não tinha quebrado as suas ligações com a Lituânia. Por este motivo, com base nos princípios de razoabilidade e da boa‑fé, deu provimento ao recurso, anulou a decisão do notário e ordenou‑lhe que realizasse o ato notarial.

    25.

    O notário recorreu da decisão da primeira instância para o Kauno apygardos teismas (Tribunal Regional de Kaunas, Lituânia), que, por Acórdão de 26 de abril de 2018, a anulou. O órgão jurisdicional de recurso declarou que, quando existem divergências quanto ao lugar de residência habitual do falecido, só um tribunal pode determinar que este tinha a sua residência habitual no seu Estado de origem e que, neste processo, nada indicava que o recorrente tivesse suscitado essa questão perante um órgão jurisdicional. Declarou também que, ao anular a decisão notarial impugnada, o tribunal de primeira instância se tinha baseado indevidamente em princípios gerais.

    26.

    E. E. interpôs recurso de cassação no Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal), que submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Deve ser considerada uma sucessão mortis causa com [incidência] transfronteiriça, na aceção do Regulamento n.o 650/2012 e à qual este regulamento deve ser aplicado, uma situação como a que está em causa no processo principal, na qual uma cidadã lituana cujo local de residência habitual à data da sua morte se situava possivelmente noutro Estado‑Membro mas que, em todo caso, nunca quebrou as ligações que mantinha com o seu país de origem, e que, nomeadamente, fez, antes dessa data, um testamento na Lituânia e deixou todos os bens que possuía ao seu herdeiro, um nacional lituano, e na qual, no momento da abertura da sucessão, foi determinado que a herança era composta por bens imóveis localizados apenas na Lituânia, e o cônjuge sobrevivo, um nacional de outro Estado‑Membro, manifestou expressamente a sua intenção de repudiar a herança da falecida, não participou no processo judicial instaurado na Lituânia e concordou com a competência dos órgãos jurisdicionais lituanos e com a aplicação do direito lituano?

    2)

    Deve um notário lituano que abre um processo sucessório, emite um certificado de direitos sucessórios e realiza outras ações necessárias para o herdeiro invocar os seus direitos, ser considerado um “órgão jurisdicional”, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 650/2012, tendo em conta que, nas suas atividades, os notários respeitam os princípios da imparcialidade e da independência, as suas decisões são vinculativas para os próprios ou para os tribunais e a sua atuação pode ser objeto de fiscalização judicial?

    3)

    Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, devem os certificados de direitos sucessórios emitidos pelos notários lituanos ser considerados decisões, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea g), do Regulamento n.o 650/2012, e, por esta razão, deve ser determinada a competência para efeitos da emissão de tais certificados?

    4)

    Em caso de resposta negativa à segunda questão, devem os artigos 4.o e 59.o do Regulamento n.o 650/2012 (conjunta ou separadamente, mas sem limitação a estes artigos) ser interpretados no sentido de que os notários lituanos podem emitir certificados de direitos sucessórios sem respeitarem as regras gerais em matéria de competência e de que tais certificados serão considerados atos autênticos [que produzem] efeitos jurídicos noutros Estados‑Membros?

    5)

    Deve o artigo 4.o do Regulamento n.o 650/2012 (ou outras disposições do mesmo) ser interpretado no sentido de que o local de residência habitual do falecido apenas pode ser estabelecido num Estado‑Membro específico?

    6)

    Devem os artigos 4.o, 5.o, 7.o e 22.o do Regulamento n.o 650/2012 (conjunta ou separadamente, mas sem limitação a estes artigos) ser interpretados e aplicados no sentido de que, no processo principal, em conformidade com os factos enunciados na primeira questão, há que concluir que as partes em causa concordaram que os órgãos jurisdicionais lituanos deviam ser considerados competentes e que o direito lituano devia ser aplicado?»

    III. Tramitação processual no Tribunal de Justiça

    27.

    O pedido de decisão prejudicial entrou no Tribunal de Justiça em 4 de fevereiro de 2019. Apresentaram observações os Governos da Áustria, da Hungria, da Lituânia, do Reino de Espanha e da República Checa, bem como a Comissão.

    28.

    Foi realizada uma audiência em 16 de janeiro de 2020, na qual participaram os representantes dos Governos da Lituânia e do Reino de Espanha, bem como da Comissão Europeia.

    IV. Apreciação

    29.

    Abordarei, em primeiro lugar, a (quinta) questão relativa à possibilidade de a residência habitual de uma pessoa falecida ser estabelecida em vários Estados‑Membros. Para lhe responder, devo necessariamente avaliar a aplicabilidade do regulamento ao litígio.

    30.

    Em segundo lugar, debruçar‑me‑ei sobre a (quarta) questão relativa ao certificado de direitos sucessórios, o que implicará, por sua vez, a questão de saber se o notário que emite o referido certificado pode ser qualificado de autoridade judiciária.

    31.

    Finalmente, cingir‑me‑ei à última (e sexta) questão, relativa à competência dos órgãos jurisdicionais lituanos e à aplicação do direito lituano à sucessão mortis causa controvertida.

    A.   Quinta questão prejudicial

    1. Aplicabilidade do regulamento

    a) Sucessões mortis causa«com incidência transfronteiriça»

    32.

    O regulamento visa eliminar «os entraves à livre circulação de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no âmbito de uma sucessão com incidência transfronteiriça» ( 6 ).

    33.

    Não existe no regulamento uma definição de «sucessão com incidência transfronteiriça» nem uma lista de elementos que, dispersos em diferentes Estados, permitam determinar com precisão essa incidência. Na minha opinião, o objetivo do regulamento, que acabo de transcrever, exige uma avaliação flexível desses termos, de modo a que possam abranger qualquer sucessão cuja organização (pelo falecido) ou cuja tramitação (depois do seu óbito) sejam confrontados com obstáculos devido à presença de ligações com mais de um Estado.

    34.

    Nos termos dos capítulos II e III do regulamento, a residência habitual do falecido no momento do óbito ( 7 ) é o critério comum atributivo de competência judiciária internacional e fator de conexão da norma de conflito de leis. Com base nessa informação há que apreciar se, em virtude da localização de outro elemento num Estado que não seja o da residência do falecido, a sucessão não é meramente interna.

    35.

    Quanto à questão de saber qual possa ser essa «outra disposição», as disposições específicas do regulamento descrevem hipóteses de sucessão mortis causa relacionadas com mais de um foro, fornecendo, sem os esgotar, critérios para reconhecer o seu caráter transnacional. A situação dos bens, os herdeiros, legatários ou outros parentes próximos do falecido, bem como a nacionalidade deste, são outros tantos elementos típicos que se podem ter em consideração.

    b) Obrigatoriedade da aplicação

    36.

    A aplicação do regulamento não é facultativa, isto é, não depende da vontade de qualquer das partes ( 8 ). Impõe‑se ao operador jurídico, não podendo ser afastada quando, à luz das suas disposições, se verifique que uma determinada sucessão pode ter incidência em mais do que um foro.

    37.

    Em contrapartida, o regulamento proporciona aos interessados vias para atenuar, até certo ponto, os efeitos decorrentes do caráter transfronteiriço da situação.

    38.

    Em especial, o artigo 22.o do regulamento permite ao falecido tomar a iniciativa, em vida, para obviar às consequências de uma residência habitual sita num Estado que não seja aquele onde se concentram os restantes fatores (previsivelmente) relevantes para a sucessão. Não obstante, apenas poderá fazê‑lo no quadro que lhe é oferecido pelo regulamento: só quando seja nacional do segundo Estado. Nesta hipótese, pode escolher que a lei desse Estado seja aplicável.

    39.

    A sucessão não deixa de ser internacional por causa desta opção: no entanto, com base nela, as partes interessadas têm, após o óbito do de cuius, a possibilidade de atribuir competência judiciária internacional aos órgãos jurisdicionais do mesmo Estado ( 9 ) (artigos 5.o e seguintes do regulamento).

    2. Quanto ao conceito de «residência habitual do falecido no momento do óbito»

    40.

    Resumindo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, para efeitos do regulamento, a residência habitual do falecido tem de ser só uma ou, pelo contrário, se poderia admitir que tivesse várias residências habituais ( 10 ).

    a) Uma única residência habitual

    41.

    Tal como já referi, no sistema do regulamento a residência habitual é, regra geral, o «fator de conexão geral» para determinar a competência judiciária internacional e a lei aplicável. Essa residência, na minha opinião, só pode ser uma, não pode ser múltipla.

    42.

    Os argumentos da previsibilidade, segurança jurídica, prevenção de resultados contraditórios ou o de a lei aplicável ser chamada a regular a totalidade da sucessão a fim de evitar a sua fragmentação, elencados no considerando 37 do regulamento, indiciam que a residência habitual deve ser só uma. O considerando 27, atendendo a que as disposições do regulamento visam assegurar que a autoridade que trata da sucessão aplique, na maior parte das situações, o seu direito interno, corrobora esta ideia.

    43.

    É certo que o regulamento prevê a eventualidade de que «o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles» ( 11 ). Mas, perante estes casos, que qualifica de complexos, a solução que propõe conjuga diversos elementos para levar a cabo a apreciação final de todas as circunstâncias factuais, a fim de determinar qual foi «a» residência habitual.

    44.

    As disposições do regulamento perderiam a sua utilidade se se admitisse que, para dirimir os problemas que se propõe resolver, uma pessoa pudesse ter residência habitual simultaneamente em diversos Estados. Esta possibilidade desvirtuaria uma grande parte das disposições do próprio texto legal, que, insisto, se refere várias vezes «à» residência habitual no singular e não no plural.

    b) Identificação da residência habitual

    45.

    O regulamento também não dá uma definição do que seja uma «residência habitual» no contexto de uma sucessão transfronteiriça: limita‑se a indicar que deverá revelar uma «relação estreita e estável» com um Estado ( 12 ).

    46.

    A residência habitual é um conceito autónomo do direito da União, que não remete para cada um dos conceitos utilizados para designar esse mesmo fenómeno nos ordenamentos jurídicos nacionais. Se assim não fosse, seria posta em causa a uniformidade da aplicação do regulamento, deixando margem às diferentes opiniões das autoridades encarregadas de o aplicar.

    47.

    Embora não seja de excluir o recurso à definição de «residência habitual» utilizada por outras normas do direito da União, esse lugar, caracterizado por revelar uma relação estreita e estável com um Estado, deve ser apreciado tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento ( 13 ), elencados no seu considerando 7.

    48.

    Assim, o operador jurídico deve localizar a última residência habitual do falecido partindo desta perspetiva e, por conseguinte, à luz das orientações proporcionadas pelo próprio regulamento, recorrendo a outras apenas a título subsidiário.

    49.

    Embora o regulamento não defina o conceito de residência habitual, o certo é que fornece, nos seus considerandos 23 e 24, instruções úteis para a estabelecer. Precisa, antes de mais que a determinação da residência habitual deve resultar de uma avaliação global das circunstâncias da vida do de cuius durante os anos anteriores ao óbito e no momento em que este ocorra.

    50.

    Para fazer essa avaliação devem ser recolhidos todos os elementos de prova relevantes que sejam legalmente admissíveis. Neste contexto, as meras declarações de pessoas interessadas na sucessão, coincidentes e prestadas perante uma autoridade encarregada da sucessão que não exerce (como explicarei mais adiante) funções jurisdicionais, parecem‑me insuficientes para determinar a residência habitual do falecido.

    51.

    O conjunto de elementos de facto relativos à vida do falecido, a que se refere o considerando 23, permitirá decidir a qual dos casos, de entre os previstos neste e no considerando seguinte, corresponde o de um falecido específico.

    52.

    O primeiro caso é aquele em que as circunstâncias de facto relativas, designadamente, à duração e à regularidade da permanência do falecido num determinado Estado (elementos objetivos), bem como às condições e às razões dessa permanência (elementos subjetivos), revelam, por si só, a existência de uma «relação estreita e estável» com esse Estado ( 14 ).

    53.

    A estabilidade é, certamente, o que se procura nesta primeira fase da apreciação. No entanto, creio que, uma vez confirmada, não se devem extrair logo consequências definitivas sobre a residência habitual do falecido. Pode ser também necessário avaliar as circunstâncias que a justificavam ( 15 ), para identificar o lugar habitual de gestão dos seus interesses.

    54.

    Embora o legislador da UE tenha privilegiado o critério da residência habitual, não pode ignorar‑se a mobilidade crescente dos indivíduos. Daí que o tempo em que se encontrem num Estado‑Membro não seja, por si só, um critério decisivo: é necessário efetuar uma análise casuística de modo a que outros indícios, relativos à integração familiar e social da pessoa, ou à sua proximidade em relação ao lugar em questão, corroborem o resultado para o qual aponta o elemento temporal.

    55.

    A segunda situação está descrita no considerando 24 do regulamento para quando não se verifica uma presença regular e longa do falecido num determinado Estado ( 16 ). A partir daí colocam‑se duas hipóteses:

    Pode ter existido uma opção profissional que levou o sujeito à expatriação, mas sem alterar «o centro de interesses da sua família e a sua vida social».

    Além disso, pode suceder que a vida do de cuius tenha decorrido entre vários Estados, sem ter consolidado um vinculo estável com nenhum deles.

    56.

    Nestas hipóteses, um elemento pessoal (a nacionalidade do falecido) ou um elemento económico (o lugar de situação dos seus principais bens) podem contribuir especificamente para a apreciação global de todas as circunstâncias de facto.

    57.

    Penso que, à luz do raciocínio do órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça devia realçar que a nacionalidade do falecido ou a situação dos seus bens são elementos determinantes da residência habitual a título subsidiário. Dito de outra forma: a análise conjunta dos factos relativos à estabilidade da situação do falecido e à sua justificação bastará para determinar se o seu caso é «complexo», nos próprios termos do considerando 24.

    58.

    Esta análise precede necessariamente o recurso à nacionalidade e à localização dos principais bens do falecido, que têm caráter excecional no sistema instaurado pelo regulamento a fim de garantir a segurança jurídica ( 17 ).

    59.

    Por último, recordo que o considerando 25 in fine do regulamento, no que respeita à determinação da lei aplicável, proíbe que se utilize, como fator de conexão subsidiário, o critério de «uma relação manifestamente mais estreita» do falecido com um ordenamento diferente do da sua última residência habitual, mesmo que a determinação desta seja complexa ( 18 ). Na minha opinião, daí decorre claramente que a identificação de uma residência habitual não pode ser afastada, por mais difícil que essa operação seja.

    3. No presente caso

    a) Quanto à última residência habitual da falecida: Alemanha ou Lituânia?

    60.

    O órgão jurisdicional de reenvio afirma que os dados relativos à residência habitual da falecida «constam de forma imprecisa dos autos ou são objeto de diferendo» ( 19 ). Assim, não parece entender que o tribunal de primeira instância ou o de recurso tenham decidido este ponto.

    61.

    Se assim for, o quadro que daí resulta caracteriza‑se mais pela falta de informação do que pelas dúvidas decorrentes da coexistência de elementos contraditórios, que impediriam formar uma convicção sobre o lugar da última residência habitual.

    62.

    Se não for possível obter elementos adicionais no âmbito do recurso de cassação, o litígio deve ser decidido com os que constam nos autos, uma vez que não é possível tratar a sucessão deixando esta questão em aberto. Em último caso, se as dúvidas sobre este facto forem insuperáveis, pode recorrer‑se à segunda das hipóteses descritas no considerando 24 do regulamento. A nacionalidade da falecida e a situação dos bens principais da herança passarão então a um primeiro plano na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.

    b) Quanto à incidência transfronteiriça da sucessão

    63.

    O tribunal de reenvio pretende saber se, na ausência de certeza quanto à última residência habitual do falecido, a confluência dos restantes elementos conhecidos (em causa na sucessão) sob uma única jurisdição (a lituana) permite qualificar a sucessão como meramente interna. Neste caso, o regulamento não seria aplicável.

    64.

    Como já referi, a aplicação do regulamento não é facultativa. Decorre desta premissa que a relevância jurídica de determinadas declarações ou de comportamentos como o do cônjuge sobrevivo da falecida (que renunciou à herança e consentiu que seja tratada na Lituânia) resultará do regulamento, se este for aplicável, e de outro regime jurídico se não o for.

    65.

    Embora incumba ao órgão jurisdicional de reenvio pronunciar‑se sobre este ponto, a incidência transfronteiriça da sucessão mortis causa controvertida é difícil de ignorar, tendo em consideração que um dos potenciais herdeiros se encontra na Alemanha, o outro e os bens que fazem parte integrante da herança na Lituânia e a falecida teve a sua última residência num desses Estados (provavelmente na Alemanha, onde declarou que vivia quando fez o testamento). Nessa medida, o regulamento seria aplicável a esta sucessão.

    66.

    Uma resposta que fizesse depender a aplicabilidade do regulamento de decisões de cada uma das partes sobre os aspetos da herança que lhe dizem respeito daria lugar a uma situação de insegurança extrema. A situação é diferente quando, depois de ter optado por aplicar o regulamento, essas decisões são avaliadas nos termos das disposições deste.

    B.   Quarta questão prejudicial

    67.

    A quarta questão prejudicial parte da hipótese de que os notários lituanos não são considerados «órgão jurisdicionais», na aceção do regulamento. O tribunal de reenvio pretende saber, com base nessa premissa, se esses notários podem emitir certificados de direitos sucessórios «sem respeitarem as regras gerais em matéria de competência».

    68.

    A segunda parte desta mesma questão refere‑se à questão de saber se os certificados de direitos sucessórios podem ser qualificados de «ato autêntico», na aceção do regulamento.

    1. Sujeição do notário lituano às regras de competência do regulamento

    a) A título prévio: o notário no artigo 3.o, n.o 2, do regulamento

    69.

    O regulamento define «órgão jurisdicional» no seu artigo 3.o, n.o 2. Essa noção inclui os tribunais e as outras autoridades e profissionais do direito com competência em matéria sucessória.

    70.

    O legislador europeu, consciente de que existem diferentes modelos de repartição de competências para tratar as questões relativas às sucessões nos Estados‑Membros, incorpora este dado no regulamento ( 20 ). Desta forma torna patente a vocação de neutralidade do sistema, na mesma linha de outros instrumentos prévios, em que diretamente, ou por via interpretativa, se adota uma noção de «órgão jurisdicional» conjugando uma perspetiva institucional ou orgânica e uma abordagem funcional.

    71.

    O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de observar, num contexto semelhante a este, que «o exercício das funções jurisdicionais implica ter o poder de decidir por sua própria autoridade sobre eventuais questões controvertidas entre as partes em causa» ( 21 ).

    72.

    No Acórdão WB, o Tribunal de Justiça baseou‑se, em primeiro lugar, na sua interpretação do termo «decisão», realizada no âmbito da Convenção de Bruxelas de 1968 relativamente a uma transação judicial e à sua qualificação para efeitos do capítulo sobre o reconhecimento e execução de decisões dessa convenção. Em segundo lugar, retomou a sua jurisprudência anterior relativa ao artigo 267.o TFUE.

    73.

    Foi à luz destes elementos que, no Acórdão WB, o Tribunal de Justiça recusou reconhecer caráter de «órgão jurisdicional» ao notário que só pode exercer as atividades relativas à emissão da escritura de habilitação de herdeiros, mediante pedido conjunto dos interessados, e que não afetam as prerrogativas do juiz na falta de acordo das partes ( 22 ).

    b) Sujeição às regras de competência judiciária previstas no regulamento?

    74.

    A qualificação de uma autoridade não judiciária (ou de um profissional do direito) como «órgão jurisdicional», na aceção do regulamento, gera duas consequências: uma, no contexto da competência judiciária internacional; outra, no do regime de circulação do produto da sua atividade.

    75.

    Apenas e só quando a autoridade não judiciária (ou o profissional do direito) atua como «órgão jurisdicional» é que fica sujeita às regras de competência judiciária internacional do regulamento ( 23 ). Garante‑se, deste modo, que as suas intervenções cumprem o objetivo de proximidade entre a autoridade e a sucessão, necessária para a boa administração da justiça, e o de evitar a fragmentação da sucessão quanto ao mérito ( 24 ).

    76.

    Fora deste caso, o notário não está sujeito às regras de competência judiciária internacional do regulamento. Por extensão, também não lhe compete determinar se os órgãos jurisdicionais do ordenamento em que exerce têm competência genérica para, numa segunda etapa, decidir sobre a sua própria competência enquanto notário, em conformidade com a distribuição territorial operada pela lei do foro.

    77.

    O órgão jurisdicional de reenvio ( 25 ) parece entender o regulamento no sentido de que o notário não deve emitir um certificado de direitos sucessórios nacional se os órgãos jurisdicionais do ordenamento jurídico em que atua não tiverem competência internacional nos termos do regulamento. Essa observação é partilhada pelos Governos da Áustria e Hungria, e o seu conteúdo foi discutido na audiência.

    78.

    É certo que essa interpretação garantia a unidade de tratamento de uma sucessão relacionada com vários ordenamentos jurídicos. Além disso, nos termos do artigo 64.o do regulamento, é a norma pertinente quando é requerida a emissão de um certificado sucessório europeu. No entanto, o regulamento não a exige quando o pedido se refere a um certificado nacional.

    79.

    O regulamento explica, no seu considerando 32, que o objetivo de unidade se conjuga com o de facilitar as diligências dos herdeiros, o que é reconhecido em disposições como o artigo 13.o A emissão documentos sobre a qualidade de herdeiro ou os seus direitos por autoridades não jurisdicionais (por exemplo, notários que não têm essas funções) de diferentes Estados‑Membros não devia fragmentar a sucessão quanto ao resultado substantivo, uma vez que todas aplicam a mesma lei.

    80.

    É evidente que a pluralidade de certificados gera efetivamente fragmentação do ponto de vista da gestão da sucessão, mas esta possibilidade (inevitável) é aceite no regulamento, que a descreve no considerando 36, remetendo, como forma de solução, para o acordo voluntário das partes sobre a via a seguir. Na falta desse acordo — por conseguinte, numa situação de conflito —, é necessária a intervenção de um órgão jurisdicional: a última palavra cabe a um tribunal competente nos termos do regulamento.

    c) No presente caso

    81.

    Resulta das informações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que foram confirmadas na audiência, que um notário lituano não tem competência para decidir os pontos controvertidos que existam entre as partes. Não dispõe da faculdade de estabelecer elementos de facto que não sejam claros e evidentes, nem de se pronunciar sobre factos controvertidos; em caso de dúvidas sobre o conteúdo do testamento, não lhe compete explicá‑lo, nem pode seguir a interpretação dada por um dos herdeiros, nem, em caso de diferendo entre estes, decidir qual é a compreensão do texto que reflete a vontade real do de cuius.

    82.

    Em caso de qualquer controvérsia ou dúvida, o notário lituano deve abster‑se de decidir, sendo o juiz que o deve fazer. São sempre as autoridades judiciárias que dirimem litígios, nomeadamente, sobre o lugar da abertura da sucessão, a validade do testamento, a respetiva execução, ou a administração da sucessão ( 26 ).

    83.

    Destas informações (que o órgão jurisdicional de reenvio deve corroborar) deduz‑se que a emissão de certificado de direitos sucessórios nacional pelos notários lituanos não implica o exercício de funções jurisdicionais. Esses notários não são, assim, um «órgão jurisdicional» na aceção do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 650/2012.

    84.

    Em consequência do anteriormente exposto, o notário lituano não está sujeito às regras de competência judiciária internacional do regulamento nem condicionado pelo facto a circunstância de estas atribuírem, ou não, competência judiciária aos órgãos jurisdicionais lituanos para decidirem um litígio acerca da sucessão.

    2. Quarta questão prejudicial, segunda parte. O ato autêntico

    85.

    O tribunal de reenvio pretende saber se o certificado emitido pelo notário lituano é um «ato autêntico» na aceção do regulamento, com efeitos jurídicos noutros Estados‑Membros ( 27 ).

    86.

    Quanto ao conceito de «ato autêntico», definido no artigo 3.o, n.o 1, alínea i), do regulamento, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se em várias ocasiões; recentemente, no Acórdão WB ( 28 ). Também a qualidade e o alcance da «autenticidade», elemento essencial do ato autêntico, são descritos no regulamento e foram abordados pelo Tribunal de Justiça no mesmo acórdão ( 29 ).

    87.

    Nos termos dessa jurisprudência e da informação disponível ( 30 ), o certificado do notário lituano parece reunir as características necessárias para ser qualificado de «ato autêntico» para efeitos do regulamento, uma vez que:

    o notário, nos termos do disposto no artigo 26.o da Lei do Notariado, pode emitir certificados relativos a uma sucessão;

    nos termos desse mesmo artigo da Lei do Notariado, os factos consignados nos documentos notariais consideram‑se provados e não será necessário fazer prova deles se não for declarada a nulidade desses documentos;

    nos termos do artigo 40.o da Lei do Notariado, o notário deve recusar a prática de um ato contrário à lei;

    o certificado de direitos sucessórios é um ato autêntico, emitido em conformidade com um modelo oficial aprovado pelo Ministério da Justiça, que certifica a aceitação da sucessão e os direitos dos herdeiros sobre os bens; e

    antes de o emitir, o notário deve efetuar uma série de diligências, nomeadamente a verificação da existência ou da ausência de testamento; se este existir, a verificação do respetivo conteúdo e validade; a determinação dos bens que fazem parte integrante da herança; a identificação dos herdeiros, analisando as declarações de aceitação ou de renúncia da herança; a apreciação dos laços de parentesco e matrimoniais e dos títulos de propriedade.

    88.

    Uma vez mais, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, cujo conhecimento do seu direito interno o coloca em melhor situação para decidir este ponto, pronunciar‑se definitivamente a esse respeito. Caso decida a atribuição do caráter de documento autêntico ao certificado, este terá a mesma força probatória noutros Estados‑Membros, nos termos do artigo 59.o, n.o 1, do regulamento.

    C.   Sexta questão prejudicial

    89.

    Na verdade, o tribunal a quo formula duas questões conexas, tomando como ponto de partida os factos descritos no seu despacho de reenvio. Pretende saber se, atendendo a esses factos, «as partes em causa concordaram que os órgãos jurisdicionais lituanos deviam ser considerados competentes e que o direito lituano devia ser aplicado».

    90.

    A resposta exige, por conseguinte, a interpretação do artigo 22.o, n.o 2, do regulamento. Tendo em conta a data do testamento, anterior a 17 de agosto de 2015, terei também em conta as suas disposições transitórias.

    91.

    Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, do regulamento, a escolha de lei de um Estado‑Membro, feita pelo falecido, dá às partes em causa na sucessão a possibilidade de atribuir, por acordo, competência exclusiva aos órgãos jurisdicionais desse Estado, sob determinadas condições. O artigo 7.o, alínea c), alarga a escolha, permitindo que seja feita expressamente perante o tribunal onde o assunto já foi submetido. No despacho de reenvio pede‑se também a interpretação destas disposições.

    1. Escolha de lei que não consta expressamente do testamento

    a) Disposições testamentárias efetuadas a partir de 17 de agosto de 2015 ( 31 )

    92.

    A consagração da autonomia da vontade conflitual em matéria sucessória é um dos aspetos mais relevantes do regulamento. Não obstante, a validade da escolha está sujeita a requisitos subjetivos, objetivos e formais.

    93.

    Por razões óbvias, a faculdade de escolher só se reconhece ao falecido. Este, em aplicação do artigo 22.o, n.o 1, do regulamento, só pode escolher a lei do Estado de que é nacional ( 32 ).

    94.

    A fim de assegurar que tenha existido vontade de escolher e clareza relativamente ao seu objeto, o artigo 22.o, n.o 2, do regulamento impõe condições formais: a escolha deve ser feita expressamente numa declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou resultar dos termos dessa disposição. Esta segunda possibilidade é a que suscita mais dificuldades na prática.

    95.

    Determinar se houve uma escolha de lei em matéria sucessória exige um especial cuidado, para garantir o respeito da vontade de um indivíduo (o falecido) que, por definição, não a poderá confirmar nem contestar quando for aberta a sucessão.

    96.

    Por isso, e devido às condições formais que já referi, entendo que não se pode deduzir a professio iuris de dados que não constem da própria disposição testamentária. Por maioria de razão quando esta foi feita perante notário e, por conseguinte, existiu (ou se pode pressupor que existiu) aconselhamento sobre a lei aplicável à sucessão.

    97.

    Assim, fatores externos à disposição testamentária (como, por exemplo, a deslocação do falecido a um determinado país para fazer o testamento, a nacionalidade da autoridade interveniente ou o ordenamento jurídico que lhe atribui competência) não são decisórios. Se for o caso, serão válidos como argumentos ad abundantiam, isto é, de apoio à conclusão quanto à existência ou não de escolha de lei, decorrente da própria disposição testamentária.

    98.

    Sobre esta última, nos termos do considerando 39 do regulamento, pode considerar‑se que a escolha de lei «resulta de uma disposição por morte […] se o falecido tiver feito referência […] a normas específicas da lei do Estado da sua nacionalidade ou se, de outra forma, tiver mencionado essa lei».

    99.

    Essa consequência depende, em grande medida, das normas específicas referidas. Uma comparação com a lei da residência habitual, na medida em que é aplicável por defeito, é necessária para determinar até que ponto aquelas normas referidas apenas são características do ordenamento jurídico cuja escolha está em causa.

    b) Testamentos anteriores a 17 de agosto de 2015

    100.

    No entanto, o que até agora foi dito pode ser alterado no caso de testamentos feitos antes da data de aplicabilidade plena do regulamento.

    101.

    O artigo 83.o do regulamento prevê um regime transitório para disposições testamentárias anteriores a 17 de agosto de 2015. A finalidade deste é salvaguardá‑las de alterações legislativas posteriores à data em que o falecido organizou o destino do seu património após a sua morte.

    102.

    Inspirado pelo objetivo de preservar a vontade do testador, o artigo 83.o, n.o 2, regula a validade da escolha de lei, nacional ou outra, efetuada antes de 17 de agosto de 2015 (se o de cuius falecer nesse dia ou depois). Essa escolha é válida se respeitar as condições previstas no Capítulo III do regulamento, ou as vigentes, no momento em que a escolha foi feita, no Estado em que o falecido tinha a sua residência habitual ou em qualquer dos Estados de que era nacional.

    103.

    Em conformidade com o artigo 83.o, n.o 4, do regulamento, se uma disposição por morte causa anterior a 17 de agosto de 2015 é válida «nos termos da lei que o falecido tivesse podido escolher por força do presente regulamento, considera‑se que essa lei foi escolhida como lei aplicável à sucessão».

    104.

    A ficção estabelecida por essa disposição elimina a necessidade de averiguar se, num testamento anterior a 17 de agosto de 2015, houve escolha de lei, quando esta não se deduza de forma evidente do texto (caso este em que deve ser tido em conta o artigo 83.o, n.o 2): evidentemente, sempre que esteja preenchido o requisito previsto pela própria norma.

    c) No presente caso

    105.

    É facto assente que o testamento foi feito perante notário na Lituânia, em 4 de julho de 2013. Nesse momento, a sucessão já apresentava elementos transfronteiriços que eram conhecidos da falecida: a sua nacionalidade lituana, a regularidade da sua permanência na Alemanha, a localização do seu património na Lituânia e as diferentes nacionalidades do seu marido e filho, respetivamente.

    106.

    Além disso, nessa data o regulamento já tinha entrado em vigor. Uma escolha de lei feita expressamente, ou que decorresse dos termos da disposição testamentária, teria sido possível ao abrigo do artigo 83.o, n.o 2.

    107.

    De qualquer forma, se o testamento é válido nos termos da lei nacional da falecida à data da outorga, ou à data do falecimento, o artigo 83.o, n.o 4, do regulamento autoriza a recorrer, sem mais, à ficção de que essa lei foi efetivamente escolhida.

    2. Eleição do foro que se segue à escolha de lei

    a) Justificação e requisitos

    108.

    A competência judiciária internacional para decidir de qualquer aspeto relativo a uma sucessão com elementos transfronteiriços compete exclusivamente, nos termos do artigo 4.o do regulamento, aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.

    109.

    Provavelmente, existe uma forte conexão entre os órgãos jurisdicionais assim designados e os bens da herança, assim como com as pessoas interessadas nesta. E, uma vez que a lei aplicável é, por defeito, a da última residência habitual do falecido, também se verifica automaticamente uma correlação forum/ius. Ambos são objetivos específicos do regulamento, conforme explicam os seus considerandos 23 e 27.

    110.

    A mobilidade crescente das pessoas, aliada à possibilidade de escolher a lei nacional para regular a sua sucessão futura, põem em risco, ou impossibilitam diretamente, os objetivos que acabo de mencionar. Consciente disto, o legislador europeu adotou regras de competência judiciária internacional que, sob determinadas condições, afastam a do artigo 4.o do regulamento.

    111.

    Uma dessas regras é a que dá às pessoas interessadas na sucessão a faculdade de atribuir competência aos órgãos jurisdicionais do Estado de que o falecido era nacional, quando este tenha escolhido como aplicável a sua lei nacional.

    112.

    Pode suscitar‑se a questão de saber se a opção dada às partes interessadas e que, repito, depende de uma prévia escolha de lei pelo falecido, também existe quando não há certeza de ter havido uma escolha expressa mas a lei nacional do de cuius se impõe devido à ficção consagrada no artigo 83.o, n.o 4, do regulamento (para testamentos anteriores a 17 de agosto de 2015).

    113.

    Na minha opinião, a resposta deve ser afirmativa. Deve excluir‑se uma leitura formalista do regulamento (embora aluda sempre à lei «escolhida» pelo falecido) e fomentar‑se a atribuição de competência judiciária à autoridade que melhor conhece o direito material aplicável. Creio que essa é a solução mais coerente com o objetivo exposto no considerando 27 do regulamento.

    114.

    Quando a lei escolhida pelo falecido para regular a sua sucessão seja a de um Estado‑Membro, o artigo 5.o do regulamento prevê que as partes interessadas podem atribuir a competência exclusiva, para decidir de toda e qualquer questão em matéria sucessória, a um órgão jurisdicional desse Estado.

    115.

    No entanto, esta extensão de competência expressa está sujeita a rigorosas condições de forma, nos termos do n.o 2 do referido artigo 5.o Pretende‑se garantir, assim, que quem subscreve um acordo que atribui a competência exclusiva conhece o seu conteúdo, dá‑lhe o seu consentimento e tem consciência das suas consequências: a extensão da competência dos órgãos jurisdicionais escolhidos e a revogação da dos órgãos jurisdicionais da última residência habitual do falecido.

    116.

    O artigo 7.o, alínea c), do regulamento prevê também que as partes na ação (entenda‑se, numa ação pendente) aceitem expressamente a competência do órgão jurisdicional onde a mesma foi intentada. O artigo 9.o estende a competência do órgão jurisdicional escolhido por acordo, a quem o processo já está submetido, às partes na ação que não participaram no acordo, se comparecerem perante esse órgão jurisdicional sem contestar a respetiva competência.

    117.

    O regulamento não prevê outras possibilidades de atribuição de competência. A falta de comparência de uma parte interessada que tenha sido notificada da abertura do processo sucessório não equivale ao seu acordo tácito. A declaração feita por uma parte interessada fora do âmbito de qualquer processo sobre os seus direitos ou obrigações relativamente à herança, também não tem este efeito.

    118.

    O legislador europeu não impõe no artigo 5.o as mesmas condições de forma rigorosas que no artigo 7.o Neste segundo caso, a ação está pendente: os interessados chamados a participar nela, e que aceitem nesse momento a competência do órgão jurisdicional ao qual foi submetido o processo, terão tido à sua disposição todos os elementos necessários para que o seu consentimento se considere informado.

    119.

    No entanto, a aceitação da competência deve ser expressa, a fim de evitar qualquer dúvida acerca da sua existência. Cabe ao legislador nacional especificar outras condições de prazos e de forma para tornar efetiva a aceitação no processo sucessório aberto, respeitando os princípios da eficácia e da equivalência.

    b) No presente caso

    120.

    Em conformidade com os dados do reenvio prejudicial, não parece que tenha havido um acordo de atribuição de competência das partes a favor dos órgãos jurisdicionais da Lituânia. Em contrapartida, existem declarações unilaterais do cônjuge sobrevivo da falecida, efetuadas na Alemanha, nas quais renuncia a qualquer direito sobre a herança, aceita a competência dos órgãos jurisdicionais lituanos e se recusa a comparecer perante eles nos processos pendentes nesse Estado.

    121.

    Apenas a segunda destas declarações tem interesse, na medida em que possa corresponder à situação descrita no artigo 7.o, alínea c), do regulamento. O órgão jurisdicional de reenvio deve determinar se é o caso, à luz dos termos dessa declaração, em especial, do alcance do consentimento que nela se expresse. Deve também verificar as restantes condições de prazos e forma, previstas no seu ordenamento, para que uma declaração desse tipo produza efeitos de atribuição de competência nos processos pendentes.

    122.

    Relativamente à competência judiciária por acordo entre as partes, creio ser oportuno recordar que o regulamento não deve ser interpretado de modo a impedir as partes de decidir a sucessão extrajudicialmente, num Estado‑Membro da sua escolha, se tal for possível de acordo com a lei desse Estado‑Membro. Tal possibilidade deve ficar em aberto mesmo que a lei aplicável à sucessão não seja a lei desse Estado. Este critério, que o considerando 29 do regulamento expressa claramente, pode ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio.

    V. Conclusão

    123.

    Face ao exposto, proponho que se responda ao Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal, Lituânia) nos seguintes termos:

    1)

    O artigo 4.o do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, bem como as outras disposições relativas à residência habitual do falecido, devem ser interpretadas no sentido de que só pode existir uma única residência habitual.

    2)

    Quando a residência habitual do falecido se situe num Estado e outros elementos relevantes da sucessão se encontrem noutro ou noutros Estados, a sucessão tem caráter transfronteiriço e, consequentemente, o Regulamento n.o 650/2012 é aplicável.

    3)

    O artigo 3.o, n.o 2, e o artigo 4.o do Regulamento n.o 650/2012 devem ser interpretados no sentido de que um notário que não possa ser qualificado de «órgão jurisdicional», na aceção dessa disposição, não está sujeito às regras de competência previstas no referido regulamento.

    4)

    O artigo 3.o, n.o 1, alínea i), do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que um certificado nacional de direitos sucessórios como o do litígio principal, emitido pelo notário, a pedido de parte, em conformidade com um modelo oficial e após ter sido comprovada a veracidade dos factos e declarações que dele constam, constitui um «ato autêntico» e produz os correspondentes efeitos jurídicos noutros Estados‑Membros.

    5)

    O artigo 22.o, n.o 2, do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que a escolha de lei pelo falecido que não tenha sido feita expressamente numa declaração que revista a forma de uma disposição por morte deve resultar dos termos dessa disposição.

    6)

    O artigo 83.o, n.o 4, do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando numa disposição testamentária anterior a 17 de agosto de 2015 não constar uma escolha de lei, ou esta não resultar dos termos dessa disposição, a lei nacional do falecido, nos termos da qual a referida disposição testamentária é válida, aplica‑se à sucessão sem necessidade de averiguar se essa lei foi efetivamente escolhida.

    7)

    O artigo 7.o, alínea c), do Regulamento n.o 650/2012 deve ser interpretado no sentido de que uma declaração efetuada por uma parte interessada fora do processo, nos termos da qual essa aceite a competência dos órgãos jurisdicionais para uma ação pendente intentada por outras partes, equivale a uma aceitação expressa da competência desses órgãos jurisdicionais, se essa declaração preencher as condições de forma e de prazos exigidas pelas regras processuais do foro.


    ( 1 ) Língua original: espanhol.

    ( 2 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2012, L 201, p. 107; a seguir, «regulamento»).

    ( 3 ) Esta questão de facto é objeto de diferendo no processo.

    ( 4 ) Declarava deixar‑lhe todos os seus bens imóveis, situados dentro ou fora da Lituânia, bem como o dinheiro depositado num banco lituano. Declarava também viver na Alemanha.

    ( 5 ) Da informação constante dos autos, há que concluir que a autora da herança faleceu depois de 17 de agosto de 2015.

    ( 6 ) Considerando 7. V., também, Acórdão de 21 de junho de 2018, Oberle (C‑20/17, EU:C:2018:485; a seguir, «Acórdão Oberle», n.o 32).

    ( 7 ) Quando a questão relativa à aplicabilidade do regulamento se coloca para decidir sobre a lei aplicável à sucessão futura, a resposta parte, regra geral, da hipótese de que a residência habitual atual é a última. Não é necessário que o Estado onde se situa seja membro de União e vinculado pelo regulamento: v. artigo 10.o, aplicável se a residência habitual do falecido se situava num Estado não sujeito ao regulamento, mas existem bens da herança num que o está; ou o artigo 20.o, sobre a aplicação universal das normas de conflito de leis do regulamento.

    ( 8 ) O regulamento reconhece, em contrapartida, uma certa influência à vontade do falecido e das outras partes interessadas: v., infra, n.os 92 e segs., relativamente à sexta questão do órgão jurisdicional de reenvio.

    ( 9 ) Sempre que se trate de um Estado‑Membro da UE, vinculado pelo regulamento.

    ( 10 ) No n.o 63 do seu despacho de reenvio, o tribunal a quo reconhece que do regulamento parece deduzir‑se que só é possível uma única residência habitual, mas, acrescenta, «esta posição não se encontra, todavia, prevista expressis verbis, [pelo que] existe, neste contexto, a necessidade de uma maior clareza e de esclarecimentos por parte do Tribunal de Justiça». Todos os intervenientes na audiência confirmaram que só é admissível uma residência habitual. Diferente, e essencial para resolver este litígio, é a questão de saber como se determina.

    ( 11 ) Considerando 24.

    ( 12 ) Considerando 23.

    ( 13 ) Considerando 23 in fine. O sublinhado é meu.

    ( 14 ) Neste contexto, considero que não é possível deduzir do domicílio fiscal ou conjugal do falecido qualquer conclusão imediata: estes elementos devem ser analisados, juntamente com os restantes indícios relevantes, numa apreciação global.

    ( 15 ) Em particular a atividade — remunerada ou não — exercida pelo falecido, onde a exercia, a sua duração, a natureza (se for o caso) do contrato, a existência ou não de um alojamento permanente, o seu ambiente familiar e social, o lugar em que lhe era prestada assistência médica, a administração que assumiu as despesas correspondentes […] entre outros fatores.

    ( 16 ) Para exemplificar esta segunda hipóteses é habitual referir os casais de reformados que têm dois núcleos de vida, um no norte e outro no sul da Europa. V., neste sentido, o Acórdão da Cour de Cassation (Tribunal de Cassação, França) de 29 de maio de 2019 (Cass. 1re civ., 29 maio 2019, n.o 18‑13.383, JurisData n.o 2019‑009044).

    ( 17 ) A residência habitual do falecido é o critério de atribuição de competência e de afetação da lei aplicável que consta dos artigos 4.o e 21.o do regulamento, respetivamente. Quanto à competência judiciária internacional, a situação dos bens tem apenas caráter subsidiário (v. artigo 10.o do regulamento); é excecional em matéria de lei aplicável (artigo 30.o e, sendo aplicável, artigo 34.o). A nacionalidade é irrelevante, exceto se a lei tiver sido escolhida pelo falecido (artigos 5.o e 22.o do regulamento).

    ( 18 ) Esta relação serve, no que respeita à lei aplicável, para corrigir o resultado decorrente de se considerar a residência habitual como fator de conexão. V. artigo 21.o, n.o 2, do regulamento.

    ( 19 ) N.o 41 do despacho de reenvio.

    ( 20 ) Embora o regulamento expresse, no seu considerando 20, essa vontade, o certo é que se deduz do respetivo teor a convicção de que a equiparação funcional dos notários (e outros profissionais do direito) aos juízes é residual.

    ( 21 ) Acórdão de 23 de maio de 2019, WB (C‑658/17, EU:C:2019:444; a seguir «Acórdão WB», n.o 55).

    ( 22 ) Acórdão WB, n.o 59 e n.o 1 do dispositivo.

    ( 23 ) Considerando 22 do regulamento. Nos termos do Acórdão Oberle, um órgão jurisdicional em sentido estrito (isto é, em conformidade com um critério orgânico, por contraposição a funcional) está sujeito, em contrapartida, às regras de competência judiciária para qualquer procedimento de que esteja encarregado em matéria sucessória, mesmo que a sua intervenção não implique a prolação de uma decisão de um litígio: assim, por exemplo, quando emite um certificado nacional de direitos sucessórios.

    ( 24 ) O argumento da unidade no tratamento processual (em sentido amplo, incluindo também a receção e a formalização de declarações de vontade, bem como a emissão de certificados) da sucessão transfronteiriça não é absoluto. Se fosse o único a ser tido em conta, qualquer atividade relacionada com uma sucessão abrangida pelo regulamento devia ser realizada num único Estado‑Membro: em concreto, naquele cujos órgãos jurisdicionais tivessem competência, nos termos do regulamento, para perante eles ser instaurado um processo. No entanto, não é esta a opção adotada pelo legislador europeu.

    ( 25 ) N.o 54 do despacho de reenvio.

    ( 26 ) Na audiência foram prestados esclarecimentos sobre a qualificação da competência do notário como «exclusiva»: limita‑se a exigir que os herdeiros requeiram a abertura da sucessão a um notário.

    ( 27 ) O considerando 22 prevê os atos exarados por notários em conformidade com um regime dual: ou são «decisões» ou são «atos autênticos». O certo é que é possível não ser nem uma coisa nem outra.

    ( 28 ) Acórdão WB, n.o 67.

    ( 29 ) Considerando 62 do regulamento e Acórdão WB, n.o 68: «Além disso, resulta do considerando 62 desse regulamento que há que adotar uma interpretação autónoma do conceito de “autenticidade”, respondendo a uma série de elementos, nomeadamente a exatidão do ato, as exigências de forma aplicáveis, os poderes da autoridade que emite o ato e o procedimento segundo o qual o ato é emitido. A autenticidade deverá englobar também os elementos factuais consignados pela autoridade em causa no ato, como é o facto de as partes indicadas se terem apresentado perante essa autoridade na data indicada e de terem feito as declarações aí mencionadas».

    ( 30 ) Além da que foi junta pelo órgão jurisdicional de reenvio e nas observações do Governo lituano, por escrito e na audiência, o estudo de Beaumont, P, Fitchen, J. e Holliday, J., The evidentiary effects of authentic acts in the Member States of the European Union, in the context of successions, https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2016/556935/IPOL_STU(2016)556935_EN.pdf, pp. 152 e segs.

    ( 31 ) O artigo 84.o salienta que o regulamento «é aplicável a partir de 17 de agosto de 2015». Nos termos do artigo 83.o, n.o 1, as suas disposições são aplicáveis às sucessões das pessoas falecidas em 17 de agosto de 2015 ou após essa data. As disposições testamentárias feitas no próprio dia 17 estão, assim, abrangidas no âmbito de aplicação do instrumento europeu.

    ( 32 ) A opção poderia ser mais ampla nos casos previstos no artigo 83.o, n.o 2, dada a remissão para as regras do direito internacional privado em vigor no Estado em que o falecido tinha a sua residência habitual ou em qualquer dos Estados de que era nacional, no momento em que a escolha foi feita.

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