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Document 62017CJ0386

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 16 de janeiro de 2019.
    Stefano Liberato contra Luminita Luisa Grigorescu.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Corte suprema di cassazione.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria de obrigações de alimentos — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Artigo 5.o, ponto 2 — Artigo 27.o — Artigo 35.o, n.o 3 — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigo 19.o — Litispendência — Artigo 22.o, alínea a) — Artigo 23.o, alínea a) — Não reconhecimento de decisões em caso de contrariedade manifesta à ordem pública — Artigo 24.o — Proibição de proceder ao controlo da competência do órgão jurisdicional de origem — Motivo de não reconhecimento baseado numa violação das regras de litispendência — Inexistência.
    Processo C-386/17.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:24

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    16 de janeiro de 2019 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria de obrigações de alimentos — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Artigo 5.o, ponto 2 — Artigo 27.o — Artigo 35.o, n.o 3 — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigo 19.o — Litispendência — Artigo 22.o, alínea a) — Artigo 23.o, alínea a) Não reconhecimento de decisões em caso de contrariedade manifesta à ordem pública — Artigo 24.o — Proibição de proceder ao controlo da competência do órgão jurisdicional de origem — Motivo de não reconhecimento baseado numa violação das regras de litispendência — Inexistência»

    No processo C‑386/17,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), por decisão de 26 de outubro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de junho de 2017, no processo

    Stefano Liberato

    contra

    Luminita Luisa Grigorescu,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, E. Regan e C. G. Fernlund (relator), juízes,

    advogado‑geral: Y. Bot,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    considerando as observações apresentadas:

    em representação de S. Liberato, por F. Ongaro e A. Castellani, avvocati,

    em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Pucciariello, avvocato dello Stato,

    em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e A. Kasalická, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por E. Montaguti e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de setembro de 2018,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Stefano Liberato a Luminita Luisa Grigorescu a respeito de um pedido de reconhecimento em Itália de uma decisão em matéria matrimonial, de responsabilidade parental e obrigações de alimentos proferida na Roménia.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    Regulamento n.o 2201/2003

    3

    Os considerandos 11 e 21 do Regulamento n.o 2201/2003 enunciam:

    «(11)

    Os alimentos estão excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento uma vez que já se encontram regulados pelo Regulamento (CE) n.o 44/2001[, do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1)]. Os tribunais competentes nos termos do presente regulamento serão igualmente competentes para decidir em matéria de alimentos, ao abrigo do [ponto] 2 do artigo 5.o do Regulamento [n.o 44/2001].

    […]

    (21)

    O reconhecimento e a execução de decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua e os fundamentos do não reconhecimento serão reduzidos ao mínimo indispensável.»

    4

    O artigo 12.o do Regulamento n.o 2201/2003, com a epígrafe «Extensão da competência», estabelece, no seu n.o 1:

    «Os tribunais do Estado‑Membro que, por força do artigo 3.o, são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, são competentes para decidir de qualquer questão relativa à responsabilidade parental relacionada com esse pedido quando:

    a)

    Pelo menos um dos cônjuges exerça a responsabilidade parental em relação à criança;

    e

    b)

    A competência desses tribunais tenha sido aceite, expressamente ou de qualquer outra forma inequívoca pelos cônjuges ou pelos titulares da responsabilidade parental à data em que o processo é instaurado em tribunal, e seja exercida no superior interesse da criança.»

    5

    O artigo 17.o do referido regulamento, com a epígrafe «Verificação da competência», dispõe:

    «O tribunal de um Estado‑Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado‑Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara‑se oficiosamente incompetente.»

    6

    O artigo 19.o do mesmo regulamento prevê:

    «1.   Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados‑Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.

    2.   Quando são instauradas em tribunais de Estados‑Membros diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação à uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.

    3.   Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declarar‑se incompetente a favor daquele. Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetida pelo requerente à apreciação do tribunal em que a ação foi instaurada em primeiro lugar.»

    7

    O artigo 22.o do Regulamento n.o 2201/2003, com a epígrafe «Fundamentos de não reconhecimento de decisões de divórcio, separação ou anulação do casamento», dispõe:

    «Uma decisão de divórcio, separação ou anulação do casamento não é reconhecida:

    a)

    Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido;

    […]

    c)

    Se for inconciliável com outra decisão proferida num processo entre as mesmas partes no Estado‑Membro requerido; […]

    […]»

    8

    O artigo 23.o do referido regulamento, com a epígrafe «Fundamentos de não reconhecimento de decisões em matéria de responsabilidade parental», tem a seguinte redação:

    «Uma decisão em matéria de responsabilidade parental não é reconhecida:

    a)

    Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido, tendo em conta o superior interesse da criança;

    […]

    e)

    Em caso de conflito da decisão com uma decisão posterior, em matéria de responsabilidade parental no Estado‑Membro requerido;

    […]»

    9

    O artigo 24.o do referido regulamento, com a epígrafe «Proibição do controlo da competência do tribunal de origem», enuncia:

    «Não se pode proceder ao controlo da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem. O critério de ordem pública, referido na alínea a) do artigo 22.o e na alínea a) do artigo 23.o, não pode ser aplicado às regras de competência enunciadas nos artigos 3.o a 14.o»

    Regulamento n.o 44/2001

    10

    O artigo 5.o do Regulamento n.o 44/2001 dispõe:

    «Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

    […]

    2)

    Em matéria de obrigação alimentar, perante o tribunal do lugar em que o credor de alimentos tem o seu domicílio ou a sua residência habitual ou, tratando‑se de pedido acessório de ação sobre o estado de pessoas, perante o tribunal competente segundo a lei do foro, salvo se esta competência for unicamente fundada na nacionalidade de uma das partes;

    […]»

    11

    O artigo 27.o deste regulamento tem a seguinte redação:

    «1.   Quando ações com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados‑Membros, o tribunal a que a ação foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar.

    2.   Quando estiver estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal declara‑se incompetente em favor daquele.»

    12

    O artigo 34.o do mesmo regulamento prevê:

    «Uma decisão não será reconhecida:

    1.

    Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido;

    […]

    3.

    Se for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado‑Membro requerido;

    4.

    Se for inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em ação com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado‑Membro requerido.»

    13

    O artigo 35.o do Regulamento n.o 44/2001 estabelece:

    «1.   As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II ou no caso previsto no artigo 72.o

    2.   Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado‑Membro de origem tiver fundamentado a sua competência.

    3.   Sem prejuízo do disposto nos primeiros e segundo parágrafos, não pode proceder‑se ao controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do artigo 34.o»

    Direito italiano

    14

    O artigo 150.o do codice civile (Código Civil), com a epígrafe «Separação», dispõe:

    «É admitida a separação pessoal dos cônjuges.

    A separação pode ser judicial ou por acordo.

    O direito de pedir a separação judicial ou a homologação da separação por acordo compete exclusivamente aos cônjuges.»

    15

    O artigo 151.o do Código Civil, com a epígrafe «Separação judicial», prevê:

    «Pode ser requerida a separação quando, independentemente da vontade de um ou de ambos os cônjuges, ocorrerem factos que tornam intolerável a prossecução da vida em comum ou que causam grave prejuízo à educação dos filhos.

    O tribunal, ao decretar a separação, declara, quando estejam preenchidos os requisitos e tal lhe seja pedido, a qual dos cônjuges é imputável a separação tendo em conta o seu comportamento contrário aos deveres que decorrem do casamento.»

    16

    O órgão jurisdicional de reenvio precisa que a responsabilidade parental e o dever de sustentar os filhos são regulados da mesma forma, em caso de separação e de divórcio, pelos artigos 337.o‑A a 337.o‑G do Código Civil.

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    17

    S. Liberato e L. Grigorescu casaram em Roma (Itália) em 22 de outubro de 2005 e viveram juntos nesse Estado‑Membro até ao nascimento do filho de ambos, em 20 de fevereiro de 2006. A relação conjugal deteriorou‑se progressivamente, pelo que a mãe levou o filho para a Roménia e, desde então, não regressou a Itália.

    18

    Por petição de 22 de maio de 2007, S. Liberato apresentou no Tribunale di Teramo (Tribunal de Primeira Instância de Téramo, Itália) um pedido de separação judicial e de guarda do filho. L. Grigorescu, que compareceu nesse tribunal, contestou o referido pedido e deduziu um pedido reconvencional para que S. Liberato seja condenado a pagar‑lhe uma contribuição para o sustento do filho. Por sentença de 19 de janeiro de 2012, o referido tribunal decretou a separação dos cônjuges com culpa de L. Grigorescu e, por despacho autónomo, ordenou a instrução do processo quanto aos respetivos pedidos das partes em matéria de exercício das responsabilidades parentais.

    19

    Na pendência do processo relativo à responsabilidade parental no Tribunale di Teramo (Tribunal de Primeira Instância de Téramo), L. Grigorescu intentou, em 30 de setembro de 2009, na Judecătoria București (Tribunal de Primeira Instância de Bucareste, Roménia) uma ação pedindo o divórcio, a guarda exclusiva do filho e a fixação de uma contribuição para o sustento da criança a pagar pelo pai.

    20

    S. Liberato compareceu nesse tribunal e deduziu a exceção de litispendência, alegando que já iniciara um processo de separação judicial e de responsabilidade parental em Itália. No entanto, por sentença de 31 de maio de 2010, o referido tribunal decretou o divórcio, atribuiu a guarda da criança à mãe e fixou as modalidades do exercício do direito de visita do pai e o montante da pensão de alimentos que este deve pagar a favor da criança.

    21

    Esta sentença transitou em julgado na sequência de um Acórdão da Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste, Roménia), de 12 de junho de 2013, que confirmou a sentença do Tribunalul București (Tribunal de Primeira Instância de Bucareste, Roménia) de 3 de dezembro de 2012, negando provimento ao recurso interposto por S. Liberato da sentença de 31 de maio de 2010.

    22

    O processo de separação em Itália foi posteriormente concluído com a sentença de 8 de julho de 2013 do Tribunale di Teramo (Tribunal de Primeira Instância de Téramo). Este tribunal atribuiu a guarda exclusiva da criança ao pai e ordenou o seu regresso imediato a Itália. O referido tribunal também fixou as modalidades do exercício do direito de visita da mãe em Itália e ordenou a esta última o pagamento de uma contribuição para o sustento da criança.

    23

    Em particular, o Tribunale di Teramo (Tribunal de Primeira Instância de Téramo) indeferiu o pedido incidental de L. Grigorescu pelo qual esta pedia, nos termos do Regulamento n.o 2201/2003, o reconhecimento em Itália da sentença de divórcio proferida pelo Tribunalul București (Tribunal de Primeira Instância de Bucareste), em 3 de dezembro de 2012. Com efeito, o Tribunale di Teramo (Tribunal de Primeira Instância de Téramo) declarou que o processo de divórcio tinha sido intentado na Roménia após o processo de separação judicial instaurado em Itália, e que, como tal, os órgãos jurisdicionais romenos tinham violado o artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 ao não suspender a instância.

    24

    L. Grigorescu recorreu da referida sentença e apresentou, a título preliminar, um pedido incidental de reconhecimento do Acórdão da Curtea de Apel București (Tribunal de Recurso de Bucareste) de 12 de junho de 2013, que julgou improcedente a exceção de litispendência com o fundamento de os dois processos não terem objeto idêntico nos termos do direito processual romeno.

    25

    Por Acórdão de 31 de março de 2014, a Corte d’appello di L’Aquila (Tribunal de Recurso de Áquila, Itália) alterou a sentença do Tribunale di Teramo (Tribunal de Primeira Instância de Téramo) de 8 de julho de 2013 e julgou procedente a exceção relativa à força de caso julgado da sentença de divórcio proferida pelos tribunais romenos, que também incidia sobre a guarda da criança e a contribuição para o sustento desta. O referido tribunal de recurso considerou que a violação do regime da litispendência no direito da União, pelos órgãos judiciais do Estado‑Membro em que o processo foi instaurado em segundo lugar, no caso vertente, a Roménia, não era relevante para efeitos de apreciação dos requisitos de reconhecimento das medidas definitivas adotadas por esse Estado e que não existia nenhum fundamento, nomeadamente de ordem pública, que obstasse ao reconhecimento da decisão romena.

    26

    S. Liberato interpôs recurso de cassação desse acórdão da Corte d’appello di L'Aquila (Tribunal de Recurso de Áquila).

    27

    O órgão jurisdicional de reenvio refere que a decisão proferida na Roménia decide simultaneamente a questão do vínculo matrimonial, da responsabilidade parental e da obrigação de alimentos. No processo de separação judicial instaurado em Itália, tinham sido deduzidos os mesmos pedidos, salvo no que diz respeito ao pedido relativo ao vínculo matrimonial, que não é idêntico, uma vez que a ordem jurídica italiana exige que se demonstre, antes do divórcio, que os requisitos previstos na lei para a separação judicial entre cônjuges se encontram preenchidos.

    28

    O referido órgão jurisdicional expõe que não existem fundamentos nos termos do artigo 22.o, alínea c), do Regulamento n.o 2201/2003, do artigo 23.o, alínea e), deste regulamento ou do artigo 34.o, n.o 4, do Regulamento n.o 44/2001 que obstem ao reconhecimento da decisão romena no que diz respeito, respetivamente, ao estatuto matrimonial, à responsabilidade parental e às obrigações de alimentos.

    29

    Segundo o referido órgão jurisdicional, importa, contudo, analisar se uma violação, em seu entender manifesta, das disposições relativas à litispendência no direito da União, previstas no artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 e no artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001, pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que foi proferida a decisão cujo reconhecimento é pedido pode ser considerada um fundamento que obsta ao reconhecimento devido à sua manifesta contrariedade à ordem pública.

    30

    Nestas circunstâncias, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    A violação das regras sobre a litispendência, previstas no artigo 19.o, n.os [2 e 3], do [Regulamento n.o 2201/2003] afeta exclusivamente a determinação da competência judicial, com a consequente aplicação do artigo 24.o [desse regulamento], ou, pelo contrário, pode constituir fundamento de recusa do reconhecimento, no Estado‑Membro cujos órgãos jurisdicionais tenham sido chamados a pronunciar‑se em primeiro lugar, da decisão proferida no Estado‑Membro cujos órgãos jurisdicionais tenham sido chamados a pronunciar‑se posteriormente, na perspetiva da ordem pública processual, tendo em conta [esse] artigo 24.o […] refere unicamente as regras de competência enunciadas nos artigos 3.o a 14.o, e não no artigo 19.o [do referido regulamento]?

    2)

    A interpretação do artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003, entendido unicamente como critério de determinação da competência judicial, opõe‑se ao conceito de litispendência [previsto no direito da União] e à função e à finalidade da referida norma, que visa estabelecer um conjunto de regras imperativas, de ordem pública processual, destinadas a garantir a criação de um espaço comum caracterizado pela confiança e pela lealdade processual recíproca entre os Estados‑Membros, no qual possa ter lugar o reconhecimento automático e a livre circulação de decisões?»

    Quanto às questões prejudiciais

    31

    Importa salientar, a título preliminar, que as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem unicamente respeito à interpretação do Regulamento n.o 2201/2003. Todavia, uma vez que, como enuncia o considerando 11 desse regulamento, os alimentos não estão abrangidos pelo referido regulamento, mas sim pelo Regulamento n.o 44/2001, resulta da decisão de reenvio que o processo principal tem por objeto o reconhecimento de uma decisão proferida não só em matéria matrimonial e de responsabilidade parental mas também em matéria de obrigações de alimentos. Por conseguinte, cabe responder às questões submetidas à luz dos Regulamentos n.os 2201/2003 e 44/2001.

    32

    Com as suas questões, que devem ser apreciadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as regras de litispendência que figuram no artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001 e no artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 devem ser interpretadas no sentido de que, quando, no quadro de um litígio em matéria matrimonial, de responsabilidade parental ou de obrigações de alimentos, o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em segundo lugar adota, em violação dessas regras, uma decisão que transitou em julgado, os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que se situa o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em primeiro lugar podem recusar‑se a reconhecer essa decisão em razão da sua manifesta contrariedade à ordem pública.

    33

    A este respeito, cabe recordar que, em 30 de setembro de 2009, L. Grigorescu apresentou num órgão jurisdicional romeno um pedido de divórcio entre si e S. Liberato, um pedido relativo à guarda do seu filho e um pedido de contribuição para o sustento deste último, ao passo que, anteriormente, tinha sido intentada num órgão jurisdicional italiano, por S. Liberato, uma ação tendo por objeto a separação judicial dos cônjuges e um pedido relativo à guarda do filho, bem como um pedido reconvencional de contribuição para o sustento da criança, deduzido por L. Grigorescu.

    34

    Foi com base na diferença de objeto dos pedidos em matéria matrimonial, dado que um visa o divórcio e o outro a separação judicial, que o órgão jurisdicional romeno considerou que não existia litispendência na aceção do artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 e se considerou competente para conhecer da ação intentada por L. Grigorescu.

    35

    Ora, como o Tribunal de Justiça declarou anteriormente, apesar de, em matéria matrimonial, nos termos do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, ser necessário que os pedidos digam respeito às mesmas partes, os mesmos podem ter objetos distintos, desde que versem sobre uma separação judicial, um divórcio ou uma anulação do casamento. O Tribunal de Justiça deduziu daí que pode existir uma situação de litispendência ou de ação dependente, na aceção do artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003, quando seja intentada uma ação de separação judicial num órgão jurisdicional de um Estado‑Membro e uma ação de divórcio num órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro. Nestas circunstâncias e no caso de identidade de partes, o órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em primeiro lugar (Acórdão de 6 de outubro de 2015, A, C‑489/14, EU:C:2015:654, n.os 33 e 34).

    36

    Além disso, e como foi salientado pelo advogado‑geral nos n.os 56 e 57 das suas conclusões, se, na pendência da instância relativa ao vínculo matrimonial, forem intentadas ações sobre a responsabilidade parental, as regras de litispendência relativas à dissolução do vínculo são aplicáveis. O mesmo se aplica em matéria de alimentos quando o pedido é acessório à ação sobre o estado de pessoas, em conformidade com o artigo 5.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001. Daqui decorre que os primeiros pedidos se inserem no âmbito do artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, ao passo que os segundos se regem pelo artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001.

    37

    No caso vertente, o órgão jurisdicional em que foi apresentado em primeiro lugar um pedido de separação judicial considerou‑se competente com base no artigo 12.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 para decidir dos pedidos em matéria de responsabilidade parental e de obrigação de alimentos relativamente à criança, pelo facto de L. Grigorescu se ter constituído como parte no litígio nesse órgão jurisdicional, e como tal ter aceitado a jurisdição do mesmo.

    38

    Daqui resulta que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o órgão jurisdicional a que foi apresentado em segundo lugar um pedido de divórcio, bem como os pedidos em matéria de responsabilidade parental e de obrigações de alimentos, que recusa suspender a instância e se considera competente para conhecer desses pedidos viola as disposições do artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 e do artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001.

    39

    Para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que salientar que o artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 se encontra redigido em termos muito próximos dos utilizados no artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001 e introduz um mecanismo equivalente ao previsto neste último artigo para dirimir os casos de litispendência. Consequentemente, devem ser tidas em conta as considerações do Tribunal de Justiça relativas a este último regulamento para interpretar o Regulamento n.o 2201/2003 (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2015, A, C‑489/14, EU:C:2015:654, n.o 27).

    40

    Em seguida, há que recordar as características do mecanismo estabelecido pelo Regulamento n.o 2201/2003.

    41

    Este regulamento baseia‑se na cooperação e na confiança mútua entre os tribunais, que devem conduzir ao reconhecimento mútuo das decisões judiciais, pedra angular da criação de um verdadeiro espaço judiciário (Acórdão de 15 de fevereiro de 2017, W e V, C‑499/15, EU:C:2017:118, n.o 50 e jurisprudência referida).

    42

    Neste contexto, as regras de litispendência desempenham um papel importante.

    43

    Conforme anteriormente declarado pelo Tribunal de Justiça, estas regras destinam‑se, no interesse de uma boa administração da justiça na União, a evitar processos paralelos em órgãos jurisdicionais de diferentes Estados‑Membros e as decisões contraditórias que daí podem resultar. Para o efeito, o legislador quis instituir um mecanismo claro e eficaz para resolver os casos de litispendência, baseado na ordem cronológica da instauração dos processos judiciais (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2015, A, C‑489/14, EU:C:2015:654, n.os 29 e 30 e jurisprudência referida, e, por analogia, relativamente ao Regulamento n.o 44/2001, Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Cartier parfums‑lunettes e Axa Corporate Solutions assurances, C‑1/13, EU:C:2014:109, n.o 40).

    44

    Para assegurar a aplicação efetiva do Regulamento n.o 2201/2003 e em conformidade com o princípio da confiança mútua em que se baseia, há que sublinhar, conforme salientou o advogado‑geral no n.o 59 das suas conclusões, que cabe a cada órgão jurisdicional, em conformidade com o artigo 17.o deste regulamento, verificar a sua competência (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de julho de 2010, Purrucker, C‑256/09, EU:C:2010:437, n.o 73; de 12 de novembro de 2014, L, C‑656/13, EU:C:2014:2364, n.o 58; e de 15 de fevereiro de 2017, W e V, C‑499/15, EU:C:2017:118, n.o 54).

    45

    Em segundo lugar, segundo o artigo 24.o do Regulamento n.o 2201/2003, não se pode proceder ao controlo da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem (Acórdão de 9 de novembro de 2010, Purrucker, C‑296/10, EU:C:2010:665, n.o 85). O mesmo se aplica no caso do Regulamento n.o 44/2001, em conformidade com o seu artigo 35.o, n.o 3.

    46

    Em terceiro lugar, há que recordar que, em conformidade com o considerando 21 do Regulamento n.o 2201/2003, este assenta na conceção segundo a qual o reconhecimento e a execução de decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua e os fundamentos do não reconhecimento devem ser reduzidos ao mínimo indispensável (Acórdão de 19 de novembro de 2015, P, C‑455/15 PPU, EU:C:2015:763, n.o 35).

    47

    É à luz destas considerações que cabe apreciar se a circunstância de uma decisão transitada em julgado ter sido adotada em violação das regras de litispendência previstas no artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001 e no artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 constitui uma motivo de ordem pública que obsta, com base no artigo 34.o do Regulamento n.o 44/2001, bem como no artigo 22.o, alínea a), e no artigo 23.o, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003, a que essa decisão possa ser reconhecida pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.

    48

    A este respeito, importa recordar que, segundo os próprios termos do artigo 24.o do Regulamento n.o 2201/2003, o critério de ordem pública referido no artigo 22.o, alínea a), e no artigo 23.o, alínea a), deste regulamento não pode ser aplicado às regras de competência previstas nos artigos 3.o a 14.o do referido regulamento.

    49

    Como tal, há que determinar se as regras de litispendência constituem regras de competência do mesmo tipo das que figuram nos artigos 3.o a 14.o desse regulamento.

    50

    A este respeito, embora as regras de litispendência previstas no artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 não figurem entre as regras de competência expressamente previstas no artigo 24.o deste regulamento, o artigo 19.o faz parte do capítulo II do referido regulamento, intitulado «Competência».

    51

    Além disso, conforme salientou o advogado‑geral no n.o 77 das suas conclusões, quando, como no processo principal, o órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, que decide um pedido incidental de reconhecimento, verifica se as regras de litispendência foram corretamente aplicadas pelo órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em segundo lugar e, por conseguinte, as razões pelas quais este não se declarou incompetente, o órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em primeiro lugar procede assim necessariamente ao controlo da competência do órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em segundo lugar. Ora, conforme se recordou no n.o 45 do presente acórdão, o artigo 24.o do Regulamento n.o 2201/2003 não o autoriza a efetuar esse controlo.

    52

    Assim, não obstante o facto de a proibição imposta pelo artigo 24.o desse regulamento não conter uma referência expressa ao artigo 19.o do referido regulamento, uma alegada violação deste último artigo não permite ao órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, sob pena de controlar a competência do órgão jurisdicional em que o processo foi instaurado em segundo lugar, recusar reconhecer uma decisão proferida por este último em violação da regra da litispendência contida nessa disposição (v., por analogia, relativamente ao artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003, Acórdão de 19 de novembro de 2015, P, C‑455/15 PPU, EU:C:2015:763, n.o 45).

    53

    Estas considerações também são aplicáveis às regras de litispendência que figuram no artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001, em matéria de obrigações de alimentos, uma vez que o artigo 35.o, n.o 3, desse regulamento também prevê que não pode proceder‑se ao controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem.

    54

    Importa acrescentar que o juiz do Estado requerido não pode, sob pena de pôr em causa a finalidade dos Regulamentos n.o 2201/2003 e n.o 44/2001, recusar o reconhecimento de uma decisão de outro Estado‑Membro, apenas por considerar que, nessa decisão, o direito nacional ou o direito da União foi mal aplicado (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de julho de 2015, Diageo Brands, C‑681/13, EU:C:2015:471, n.o 49, e de 19 de novembro de 2015, P, C‑455/15 PPU, EU:C:2015:763, n.o 46).

    55

    Esta análise é corroborada pelo facto de os motivos de não reconhecimento de uma decisão em razão da sua contrariedade manifesta com a ordem pública, que figuram no artigo 22.o, alínea a), e no artigo 23.o, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003, bem como no artigo 34.o do Regulamento n.o 44/2001, devem ser objeto de interpretação restritiva, na medida em que constituem um obstáculo à realização de um dos objetivos fundamentais desses regulamentos, conforme se recordou no n.o 46 do presente acórdão (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2015, P, C‑455/15 PPU, EU:C:2015:763, n.o 36).

    56

    Por conseguinte, há que responder às questões submetidas que as regras de litispendência que figuram no artigo 27.o do Regulamento n.o 44/2001 e no artigo 19.o do Regulamento n.o 2201/2003 devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a que, quando, no quadro de um litígio em matéria matrimonial, de responsabilidade parental ou de obrigações de alimentos, o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em segundo lugar adota, em violação dessas regras, uma decisão que transitou em julgado, os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que se situa o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em primeiro lugar se recusem a reconhecer essa decisão por essa simples razão. Em particular, essa violação não pode, por si só, justificar o não reconhecimento da referida decisão em razão da sua contrariedade manifesta à ordem pública desse Estado‑Membro.

    Quanto às despesas

    57

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

     

    As regras de litispendência que figuram no artigo 27.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, e no artigo 19.o do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a que, quando, no quadro de um litígio em matéria matrimonial, de responsabilidade parental ou de obrigações de alimentos, o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em segundo lugar adota, em violação dessas regras, uma decisão que transitou em julgado, os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro em que se situa o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em primeiro lugar se recusem a reconhecer essa decisão por essa simples razão. Em particular, essa violação não pode, por si só, justificar o não reconhecimento da referida decisão em razão da sua contrariedade manifesta à ordem pública desse Estado‑Membro.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: italiano.

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