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Document 62016CC0426

Conclusões do advogado-geral N. Wahl apresentadas em 30 de novembro de 2017.
Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW e o. contra Vlaams Gewest.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel.
Reenvio prejudicial — Proteção do bem‑estar dos animais no momento da occisão — Métodos especiais de abate prescritos por ritos religiosos — Festa muçulmana do Sacrifício — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Artigo 2.o, alínea k) — Artigo 4.o, n.o 4 — Obrigação de proceder ao abate ritual num matadouro que cumpra os requisitos do Regulamento (CE) n.o 853/2004 — Validade — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 10.o — Liberdade de religião — Artigo 13.o TFUE — Respeito dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos.
Processo C-426/16.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2017:926

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 30 de novembro de 2017 ( 1 )

Processo C‑426/16

Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW e o.

contra

Vlaams Gewest

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas, Bélgica)]

«Reenvio prejudicial — Proteção dos animais no momento da occisão — Métodos especiais de abate — festa islâmica do sacrifício — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Artigo 4.o, n.o 4 — Obrigação de abate ritual sem atordoamento nos matadouros aprovados — Regulamento (CE) n.o 853/2004 — Requisitos para aprovar os matadouros — Validade — Artigo 13.o TFUE — Respeito dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos — Artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Liberdade de religião — Limitação — Justificação»

1. 

O abate ritual está, desde há longa data, reconhecido nos diplomas europeus que regem a occisão dos animais enquanto corolário da liberdade religiosa. A vontade do legislador da União de conciliar a proteção da liberdade de culto com a proteção do bem‑estar animal já se manifestava aquando da adoção da Diretiva 74/577/CEE ( 2 ) e continua ainda no Regulamento (CE) n.o 1099/2009 ( 3 ) atualmente em vigor.

2. 

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a validade do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009. Convida o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se sobre a validade, à luz do direito fundamental à liberdade religiosa, da disposição que prevê que o abate de animais sem atordoamento, que é exigido por determinados preceitos religiosos, só pode ser efetuado num matadouro aprovado ( 4 ) que cumpra todas as disposições aplicáveis na matéria.

3. 

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe diversas associações muçulmanas e organizações que agrupam mesquitas na Região Flamenga e ainda alguns particulares (a seguir «recorrentes no processo principal») ao Vlaams Gewest (Região Flamenga, Bélgica), relativamente à decisão adotada pelo Ministro para o Bem‑Estar Animal flamengo de deixar de autorizar durante a festa islâmica do Sacrifício (Aïd‑el‑Adha) ( 5 ), a partir de 2015, o abate ritual de animais sem atordoamento nos locais de abate temporários instalados nos municípios dessa região.

4. 

Impõe‑se, antes de mais, um esclarecimento quanto à questão que é exatamente suscitada pelo presente processo. O que está em causa, neste caso, não é de forma alguma a proibição total de abate dos animais sem atordoamento que é atualmente objeto de debate em diversos Estados‑Membros ( 6 ), mas sim as condições materiais de equipamento e requisitos operacionais em que tal abate deve ser feito nos termos da regulamentação da União Europeia aplicável. Coloca‑se assim a questão de saber se a exigência de que o abate seja feito num matadouro na aceção do artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, regra que é de aplicação geral qualquer que seja o tipo de abate utilizado, é suscetível de limitar a liberdade religiosa.

5. 

No caso em apreço, considero que nenhum dos elementos alegados no âmbito do presente processo é suscetível de afetar a validade do Regulamento n.o 1099/2009. A regra de que o abate só pode, em princípio, ser feito em matadouros aprovados é uma regra perfeitamente neutra que é aplicável independentemente das circunstâncias e do tipo de abate escolhido. Do meu ponto de vista, a problemática que nos é submetida está mais relacionada com uma dificuldade conjuntural de capacidade dos matadouros em algumas zonas geográficas por ocasião da festa islâmica do Sacrifício — e, em última instância, dos custos que devem ser suportados para ser conforme com uma prescrição religiosa — do que com os requisitos que decorrem da regulamentação da União, na medida em que esta última prevê um equilíbrio entre, por um lado, o direito à liberdade de religião e, por outro, os requisitos que decorrem nomeadamente da proteção da saúde humana, do bem‑estar dos animais e da segurança alimentar.

I. Quadro jurídico

A. Regulamento n.o 1099/2009

6.

O Regulamento n.o 1099/2009 estabelece as regras comuns para a proteção do bem‑estar dos animais no momento do abate ou occisão na União.

7.

Resulta do artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009 que, para efeitos deste regulamento, entende‑se por «“[m]atadouro”, qualquer estabelecimento utilizado para o abate de animais terrestres e que seja abrangido pelo Regulamento (CE) n.o 853/2004».

8.

O artigo 4.o do Regulamento n.o 1099/2009 dispõe:

«1.   Os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados com a aplicação desses métodos especificados no anexo I. A perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal.

[…]

4.   Os requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro.»

B. Regulamento n.o 853/2004

9.

O artigo 4.o do Regulamento n.o 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal ( 7 ), dispõe:

«1.   Os operadores das empresas do setor alimentar só podem colocar no mercado produtos de origem animal fabricados na Comunidade que tenham sido preparados e manipulados exclusivamente em estabelecimentos que:

a)

Cumpram os requisitos aplicáveis do Regulamento (CE) n.o 852/2004, dos anexos II e III do presente regulamento e outros requisitos pertinentes da legislação relativa aos géneros alimentícios;

b)

Tenham sido registados pela autoridade competente ou por ela aprovados, quando requerido nos termos do n.o 2.

[…]»

10.

O artigo 10.o do Regulamento n.o 853/2004, intitulado «Alteração e adaptação dos anexos II e III», prevê, nos seus n.os 4 a 8, que os Estados‑Membros podem, em determinadas condições e segundo determinadas modalidades, adotar medidas nacionais para adaptar os requisitos previstos no anexo III, entre as quais figuram, no capítulo II, os «Requisitos aplicáveis aos matadouros».

II. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

11.

A festa islâmica do Sacrifício é celebrada todos os anos durante três dias ( 8 ). Os muçulmanos praticantes consideram que é seu dever religioso abater ou mandar abater, de preferência no primeiro dia dessa festa, um animal ( 9 ) cuja carne é depois parcialmente comida em família, e parcialmente partilhada com os pobres, vizinhos e familiares mais afastados.

12.

Conforme resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, há um consenso entre a maioria dos muçulmanos na Bélgica, expresso pelo Conselho dos Teólogos no Executivo dos Muçulmanos deste Estado, no sentido de considerar que o abate ritual deve ser feito sem atordoamento e tendo em conta outras prescrições do rito.

13.

Em cumprimento do artigo 16.o, n.o 2, da Lei de 14 de agosto de 1986, relativa à proteção e ao bem‑estar dos animais, o Decreto Real de 11 de fevereiro de 1988, conforme alterado pelo Decreto Real de 25 de março de 1998, previa que, na Bélgica, os abates prescritos por um rito religioso só podiam ser efetuados em matadouros regulares (a seguir «matadouros aprovados») ou «em estabelecimentos aprovados pelo Ministro com o pelouro da agricultura, em concertação com o Ministro com o pelouro da saúde pública» ( 10 ).

14.

Foi em aplicação desta regulamentação que, desde 1998, o Ministro Federal belga aprovou anualmente locais de abate temporários que, com os matadouros aprovados, tinham permitido assegurar os abates rituais nas festas islâmica do Sacrifício, colmatando assim a falta de capacidade dos referidos matadouros relacionada com a subida da procura durante esse período ( 11 ). Após concertação com a comunidade muçulmana, o serviço público federal da Saúde Pública, da Segurança da Cadeia Alimentar e do Ambiente, publicou em diversas datas, até 2013, um «guia» relativo à organização da festa islâmica do Sacrifício (Handleiding voor de organisatie van het islamitisch Offerfeest), que previa precisamente recomendações para a abertura e exploração de locais de abate temporários diferentes dos matadouros aprovados.

15.

Na sequência da sexta reforma do Estado, a partir de 1 de julho de 2014, a competência relativa ao bem‑estar dos animais foi transferida para as Regiões. Assim, para gerir a organização da festa islâmica do Sacrifício desse ano no seu território, a Região Flamenga adotou, por seu turno, um guia, semelhante ao guia federal de 2013, que indica que podiam ser autorizados locais de abate temporários por aprovação individual do Ministro competente por um período determinado, desde que se verificasse uma capacidade de abate insuficiente a uma distância razoável nos matadouros aprovados e desde que esses locais respeitassem um conjunto de condições de equipamento e de requisitos operacionais.

16.

Em 12 de setembro de 2014, o Ministro flamengo responsável pelo bem‑estar dos animais comunicou que, a partir de 2015, não emitiria mais aprovações para locais de abate temporários onde fosse permitido praticar o abate ritual durante a festa islâmica do Sacrifício, pelo facto de essas aprovações serem contrárias à legislação da União, nomeadamente às disposições do Regulamento n.o 1099/2009 ( 12 ).

17.

Em 4 de junho de 2015, esse ministro enviou uma circular aos presidentes de câmara flamengos (a seguir «decisão impugnada»), informando‑os de que a partir de 2015 todos os abates de animais sem atordoamento, incluindo os realizados no contexto da festa islâmica do Sacrifício, deviam ser efetuados apenas em matadouros aprovados.

18.

Foi neste contexto que os recorrentes no processo principal instauraram diversas ações em juízo e, nomeadamente, em 5 de fevereiro de 2016, intentaram uma ação contra a Região Flamenga, no Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas, Bélgica).

19.

Os recorrentes no processo principal alegaram que, mesmo admitindo que o Regulamento n.o 1099/2009 fosse declarado aplicável ao abate ritual de animais efetuado durante a festa islâmica do Sacrifício — o que contestam ( 13 ) —, teria de se questionar a validade da regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, na medida em que, por um lado, viola o direito à liberdade de religião protegida pelo artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e o artigo 9.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH») e, por outro, não respeita os costumes belgas relativos aos ritos religiosos da festa islâmica do Sacrifício, garantidos pelo artigo 13.o TFUE.

20.

O Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas) considera que, ao aplicar a regra prevista no artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, a decisão impugnada cria uma limitação ao exercício da liberdade de religião e viola os costumes belgas em matéria de ritos religiosos, uma vez que obriga os muçulmanos a efetuar o abate ritual durante a festa islâmica do Sacrifício nos matadouros aprovados nos termos do Regulamento n.o 853/2004. Na opinião desse órgão jurisdicional, essa limitação não é pertinente nem proporcionada para responder aos objetivos legítimos de proteção do bem‑estar dos animais e da saúde pública.

21.

Foi nestas condições que o Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«O artigo 4.o, n.o 4, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento [n.o 1099/2009] é inválido por violação do artigo 9.o da [CEDH] e do artigo 10.o da [Carta] e/ou do artigo 13.o [TFUE], porquanto determina que o abate de animais segundo métodos especiais exigidos por ritos religiosos, sem atordoamento, só pode ser efetuado num matadouro abrangido pelo Regulamento [n.o 853/2004], ao passo que, na Região Flamenga, não existe suficiente capacidade nesses matadouros para dar resposta à procura do abate ritual sem atordoamento de animais que se verifica todos os anos por ocasião da festa do Sacrifício islâmica, e os encargos para converter os estabelecimentos de abate temporários, controlados e acreditados pelo Estado, com vista à referida festa, em matadouros abrangidos pelo Regulamento [n.o 853/2004], não parecem ser pertinentes para alcançar os objetivos prosseguidos do bem‑estar dos animais e da saúde pública e, portanto, não parecem ser proporcionados?»

22.

As associações Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW e o. e a Global Action in the Interest of Animals VZW (a seguir «GAIA»), a Região Flamenga, os Governos estónio, neerlandês e do Reino Unido, o Conselho e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

23.

Realizou‑se uma audiência em 18 de setembro de 2017, na qual participaram os recorrentes no processo principal, a GAIA, a Região Flamenga, o Governo do Reino Unido, o Conselho e a Comissão.

III. Análise

24.

O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑nos sobre a validade do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, em consequência de uma pretensa violação do artigo 10.o da Carta, do artigo 9.o da CEDH e do artigo 13.o TFUE. A limitação do exercício da liberdade de religião e dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos decorre do facto de essas disposições imporem que os animais só podem ser abatidos ritualmente por ocasião da festa islâmica do Sacrifício nos matadouros aprovados. Entende‑se que estes últimos são estabelecimentos sujeitos a aprovação pelas autoridades nacionais competentes e que devem cumprir, para esse efeito, todos os «requisitos específicos» relativos à construção, à conceção e ao equipamento, exigidos nomeadamente pelo anexo III do Regulamento n.o 853/2004.

25.

As dúvidas manifestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio decorrem do facto de, na falta de suficiente capacidade de abate dos matadouros aprovados que existem na Região Flamenga para responder ao aumento da procura dos abates rituais por ocasião da festa islâmica do Sacrifício, ser necessário criar novos estabelecimentos aprovados. Ora, a conversão dos antigos locais de abate temporários ativos no período de 1998‑2014 ( 14 ) em matadouros aprovados, na aceção do Regulamento n.o 853/2004, necessitaria de investimentos financeiros particularmente avultados, que, além de não poderem ser amortizados ao longo do ano, seriam supérfluos para assegurar o respeito do bem‑estar dos animais e da saúde pública.

26.

Na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, a obrigação de proceder ao abate ritual sem atordoamento apenas nos matadouros aprovados impediria muitos muçulmanos praticantes de respeitar o seu dever religioso de abater ou de mandar abater um animal no primeiro dia da festa islâmica do Sacrifício segundo as prescrições do rito, criando uma limitação injustificada do exercício da sua liberdade de religião e não respeitando as disposições legislativas e administrativas nem os costumes nacionais em matéria de ritos religiosos.

27.

No caso em apreço, afigura‑se oportuno que me pronuncie, antes de qualquer análise do mérito da questão prejudicial, quanto à admissibilidade desta, dado que foi mais ou menos diretamente posta em causa pela Região Flamenga, pelos Governos neerlandês e do Reino Unido, pelo Conselho e pela Comissão.

A. Quanto à admissibilidade da questão prejudicial

1.   Observações apresentadas no Tribunal de Justiça

28.

No essencial, as objeções e as reservas que foram expressas incidem, por um lado, sobre a formulação da questão submetida, que, erradamente, permite pensar que a origem do problema reside no Regulamento n.o 1099/2009, e, por outro, mais importante ainda, sobre a pertinência da questão submetida, uma vez que a problemática da insuficiência da capacidade dos matadouros situados na Região Flamenga não tem, em todo o caso, relação com a aplicação das disposições dos Regulamentos n.os 853/2004 e 1099/2009.

29.

Antes de mais, em relação à formulação da questão submetida, algumas partes interessadas (nomeadamente a Região Flamenga e o Governo do Reino Unido) alegaram que, uma vez que as condições de aprovação dos matadouros estão fixadas no Regulamento n.o 853/2004, qualquer eventual limitação do exercício da liberdade de religião só pode decorrer deste regulamento. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio formulou mal a sua questão prejudicial, na medida em que, pelo contrário, tem por objeto a validade do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009.

30.

Em seguida, em relação à pertinência da questão submetida, algumas partes interessadas (a saber, a Região Flamenga, os Governos do Reino Unido e neerlandês, a Comissão e o Conselho) expressaram algumas reservas quanto à utilidade da resposta do Tribunal de Justiça para a decisão da causa principal. Referiram nomeadamente que a questão prejudicial se baseia em circunstâncias factuais internas que não têm relação com as disposições dos Regulamentos n.os 1099/2009 e 853/2004 e, consequentemente, não podem afetar a sua validade.

31.

Com efeito, a problemática em causa diz respeito à insuficiente capacidade dos matadouros aprovados na Região Flamenga aquando da festa islâmica do Sacrifício e ao elevado investimento financeiro necessário para permitir que os antigos locais de abate temporários sejam, eles próprios, aprovados em conformidade com o Regulamento n.o 853/2004. Neste contexto, o Conselho — e em menor medida a Região Flamenga — referiram que seria mais útil para o órgão jurisdicional de reenvio submeter à apreciação do Tribunal de Justiça não uma questão de apreciação da validade das disposições dos Regulamentos n.os 1099/2009 e 853/2004, mas uma questão de interpretação das referidas disposições destinada a obter esclarecimentos quanto à margem de manobra que deve ser reconhecida aos Estados‑Membros para, nomeadamente, adaptarem as condições de aprovação em função de situações específicas como a que se verifica aquando da festa islâmica do Sacrifício.

2.   Apreciação

32.

Segundo jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça só pode recusar responder a uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas ( 15 ).

33.

Em primeiro lugar, em relação à formulação da questão, considero que não é totalmente desprovida de relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal.

34.

Com efeito, a decisão impugnada (v. n.o 17 das presentes conclusões) refere que, a partir de 2015, o abate ritual sem atordoamento deixaria de ser autorizado, durante a festa islâmica do Sacrifício, nos locais de abate temporários que não cumprissem os requisitos impostos pelo Regulamento n.o 853/2004. Ora, é um facto assente que essa decisão foi adotada com fundamento na regra prevista no artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, que impõe, por sua vez, que se proceda ao referido abate ritual em estabelecimentos que cumpram os requisitos do Regulamento n.o 853/2004.

35.

Estes dois regulamentos prosseguem objetivos distintos: enquanto o Regulamento n.o 853/2004 faz parte do «pacote higiene» ( 16 ), o Regulamento n.o 1099/2009 diz respeito à proteção do bem‑estar dos animais no momento da occisão. Não deixa de ser verdade que estes dois regulamentos estão relacionados na medida em que estabelecem as normas que a construção, a conceção dos matadouros e os equipamentos aí utilizados devem cumprir.

36.

Por conseguinte, não se afigura oportuno declarar a questão prejudicial inadmissível pelo facto de estar mal formulada. Assim, não me parece que a admissibilidade da questão prejudicial possa ser posta em causa sob o ângulo da identificação correta da disposição do direito da União efetivamente em causa no processo principal.

37.

Neste caso, o Tribunal de Justiça está em condições de dar uma resposta útil na medida em que o juiz nacional parece ter fornecido indicações suficientes sobre os factos do caso em apreço, sobre o direito da União aplicável e sobre as relações estabelecidas entre esse direito e a legislação nacional aplicável. Essas indicações permitiram às partes no litígio, aos Governos dos Estados‑Membros e aos outros interessados apresentar as suas observações ao Tribunal de Justiça, como atesta aliás o conteúdo dos articulados apresentados ( 17 ).

38.

Deste modo, e para não cair num formalismo excessivo, o Tribunal de Justiça está em condições, parece‑me, de identificar os elementos do direito da União que, tendo em conta o objeto do litígio, carecem de interpretação ou, sendo caso disso, de uma apreciação de validade.

39.

Em segundo lugar, quanto às dúvidas expressas relativamente à pertinência da questão prejudicial, merecem antes ser analisadas na parte consagrada ao exame do mérito da causa.

40.

Note‑se que o processo principal aborda a possibilidade de pôr em causa sob o prisma do direito primário, nomeadamente à luz das disposições da Carta e do TFUE relativas à liberdade de religião, o dever de efetuar os abates rituais sem atordoamento num matadouro aprovado, tendo em conta o eventual impacto financeiro desse dever sobre a possibilidade de proceder a esses abates por ocasião da festa islâmica do Sacrifício.

41.

No entanto, e como explicarei mais adiante nos desenvolvimentos subsequentes, embora as reservas preliminares expressas por muitas das partes interessadas não permitam desde já declarar que o presente reenvio prejudicial não é pertinente para a decisão da causa e que, consequentemente, é inadmissível, merecem, em contrapartida, toda a atenção no exame do mérito do presente reenvio. Nesse exame, haverá que, nomeadamente, determinar se as disposições do direito da União em causa no processo principal são efetivamente a origem da alegada limitação ao exercício da liberdade de religião e dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos.

42.

Neste contexto, dever‑se‑á assim analisar se essas disposições, que se referem apenas concretamente à maneira como qualquer tipo de abate deve ser efetuado, seja ou não um abate ritual, podem influenciar a problemática central do litígio no processo principal que diz concretamente respeito à capacidade de os matadouros aprovados permanentes atualmente existentes satisfazerem todos os pedidos de abate rituais durante a festa islâmica do Sacrifício ( 18 ).

43.

Tendo em conta todas estas considerações e em conformidade com o espírito de cooperação que deve presidir às relações entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, considero que o presente pedido de decisão prejudicial é plenamente admissível.

B. Quanto ao mérito

1.   Considerações preliminares

44.

Em jeito de enquadramento, parece‑me importante formular duas séries de observações de ordem geral. As primeiras dizem respeito à identificação das regras e princípios à luz dos quais é posta em causa a validade das disposições do Regulamento n.o 1099/2009, no caso em apreço. As segundas dizem respeito mais especificamente ao facto de, contrariamente ao que determinadas observações submetidas ao Tribunal de Justiça poderiam sugerir, o Tribunal de Justiça dever evitar, neste caso, imiscuir‑se num debate de ordem teológica quanto ao alcance da obrigação religiosa de abate na festa islâmica do Sacrifício.

a)   Quanto às regras e princípios à luz dos quais é posta em causa a validade das disposições do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009

45.

Há que salientar que o órgão jurisdicional de reenvio refere na sua questão prejudicial o artigo 10.o da Carta, o artigo 9.o da CEDH e, por último, o artigo 13.o TFUE.

46.

A este propósito, parece‑me que o Tribunal de Justiça se deve poder limitar a apreciar a existência de uma limitação da liberdade «de pensamento, de consciência e de religião» consagrada no artigo 10.o da Carta.

47.

Com efeito, relativamente à referência feita no artigo 9.o da CEDH, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que embora, como confirma o artigo 6.o, n.o 3, TUE, os direitos fundamentais reconhecidos pela CEDH façam parte do direito da União enquanto princípios gerais e o artigo 52.o, n.o 3, da Carta disponha que os direitos nela contidos que correspondem a direitos garantidos pela CEDH têm o mesmo sentido e o mesmo alcance que os que lhes são conferidos por esta Convenção, esta última não constitui, enquanto a União não aderir à mesma, um instrumento jurídico formalmente integrado na ordem jurídica da União ( 19 ).

48.

Por conseguinte, o exame da validade do direito secundário da União pode ser realizado unicamente à luz dos direitos fundamentais garantidos pela Carta ( 20 ). Todavia, resulta do artigo 52.o, n.o 3, da Carta e da explicação relativa ao artigo 10.o da Carta que o direito garantido pelo artigo 10.o, n.o 1, da Carta corresponde ao direito garantido pelo artigo 9.o da CEDH. Tem o mesmo sentido e o mesmo alcance que este artigo. Por conseguinte, a interpretação desse direito pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») pode ter uma determinada pertinência — e, pelo menos, constituir uma fonte de inspiração — para efeitos de interpretação do artigo 10.o da Carta. Assim, o Tribunal de Justiça considerou que a jurisprudência do TEDH deve ser tomada em conta na interpretação da Carta ( 21 ).

49.

Quanto à referência ao artigo 13.o TFUE, disposição que exige em particular que os Estados‑Membros tenham em conta o bem‑estar dos animais, respeitando «as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente religiosos», há que observar que o órgão jurisdicional de reenvio não indica com precisão a que costumes ou disposições tenciona referir‑se.

50.

Mesmo admitindo que se infere da decisão de reenvio que se pretende na realidade referir a prática seguida na Região Flamenga até 2014, que permitia recorrer a matadouros temporários não aprovados para fazer face ao pico da procura de abates rituais verificado por ocasião da festa islâmica do Sacrifício, afigura‑se claramente que, mesmo que essa prática possa ser qualificada de costume religioso, o seu exame confunde‑se no essencial com o exame da validade das disposições regulamentares controvertidas à luz da liberdade religiosa prevista no artigo 10.o da Carta.

b)   Quanto ao alcance da obrigação religiosa de abate (sem atordoamento) aquando da festa islâmica do Sacrifício

51.

No âmbito do presente processo, foi alegado que o abate sem atordoamento, e mais especificamente a obrigação de abate por ocasião da festa islâmica do Sacrifício, não devia ser necessariamente percecionado como uma obrigação intangível da religião muçulmana e que, por conseguinte, a questão prejudicial assentava numa premissa errada.

52.

Com efeito, foi sublinhado, em especial pela associação GAIA, que alguns representantes da comunidade muçulmana consideram que a eletronarcose ou qualquer outro processo semelhante ao atordoamento prévio ao abate que não tem efeito sobre as funções vitais do animal, em especial, sobre a drenagem sanguínea do animal (o que implica que este poderia ficar consciente se a sangria não fosse feita), estão em conformidade com as prescrições da religião muçulmana ( 22 ).

53.

No mesmo sentido, salientou‑se que alguns países muçulmanos importam e produzem carne certificada «halal» proveniente do abate de animais efetuado com atordoamento ( 23 ).

54.

Por último, e em relação mais especificamente à obrigação religiosa de abater um animal aquando da festa islâmica do Sacrifício, foi também referido que numerosos eruditos e praticantes muçulmanos consideram que esse abate não tem necessariamente de ser efetuado no primeiro dia dessa festa. Há também uma tendência crescente para considerar, nomeadamente junto dos praticantes muçulmanos mais jovens, que o abate de um animal por ocasião dessa festa pode ser substituído por um donativo.

55.

Na minha opinião, não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a questão de saber se o recurso ao atordoamento dos animais é efetivamente proscrito pela religião muçulmana ou se, pelo contrário, como a GAIA sustentou insistentemente na audiência, só é defendido por determinadas correntes religiosas.

56.

Na medida em que, segundo os autos submetidos ao Tribunal de Justiça, parece haver no caso em apreço um consensus entre a maioria dos muçulmanos na Bélgica, expressa pelo Conselho dos Teólogos no Executivo dos Muçulmanos desse Estado, para considerarem que o abate ritual deve ser efetuado sem atordoamento, quer seja reversível ou não, só podemos limitar‑nos a registar esse facto.

57.

Também não se afigura oportuno determinar se essa exigência é percecionada por todos os muçulmanos como uma obrigação religiosa fundamental ou se há uma alternativa possível ao cumprimento dessa obrigação. Como a Comissão referiu nas suas observações escritas, só podemos tomar conhecimento da existência de determinadas correntes religiosas. Não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a ortodoxia ou a heterodoxia de determinadas decisões ou preceitos religiosos.

58.

Consequentemente, como o órgão jurisdicional de reenvio expressou, por outras palavras, o abate sem atordoamento por ocasião da festa islâmica do Sacrifício constitui efetivamente um preceito religioso que beneficia da proteção da liberdade de religião, independentemente da eventual existência de diferentes correntes no seio do Islão ou de soluções alternativas em caso de impossibilidade de o cumprir ( 24 ).

59.

A este respeito, só posso associar‑me à posição expressa pelo órgão jurisdicional de reenvio e pela maior parte das partes interessadas segundo a qual o abate ritual efetuado aquando da festa islâmica do Sacrifício constitui efetivamente um «rito religioso», na aceção do artigo 2.o, alínea g), do Regulamento n.o 1099/2009, e assim enquadra‑se no exercício da liberdade de religião consagrada no artigo 10.o da Carta e no artigo 9.o da CEDH, enquanto expressão de uma convicção religiosa.

60.

Esta posição parece‑me, de resto, plenamente coerente com a jurisprudência do TEDH que considera que os abates rituais se enquadram na prática religiosa, de forma que são abrangidos pelo âmbito de aplicação das disposições suprarreferidas ( 25 ).

61.

No mesmo sentido, embora algumas das partes interessadas tenham considerado necessário questionar‑se sobre este aspeto para determinar se havia ou não um problema de capacidade de abate na Região Flamenga aquando da celebração da festa islâmica do Sacrifício, não me parece desejável que o Tribunal de Justiça intervenha quanto à questão de saber se o abate ritual deve, do ponto de vista teológico, ter lugar necessariamente no primeiro dia de celebração dessa festa ou se pode também ter lugar nos três dias seguintes ( 26 ).

62.

Feitos estes esclarecimentos preliminares, importa saber se a obrigação de efetuar abates sem atordoamento em matadouros aprovados, prevista no artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, gera ou não uma limitação do exercício dessa liberdade de religião.

2.   Quanto à existência de uma limitação do exercício da liberdade de religião e dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos

63.

Numa primeira parte, exporei em grandes linhas as regras gerais aplicáveis em matéria de abate dos animais, qualquer que seja o método de abate escolhido (isto é, com ou sem atordoamento do animal), que resultam do Regulamento n.o 853/2004 no âmbito da adoção do «pacote higiene». Numa segunda parte, explicarei por que motivos as disposições do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, regulamento que, recordo, prossegue principalmente um objetivo de proteção do bem‑estar dos animais, não podem dar origem a uma limitação da liberdade religiosa.

a)   Quanto às regras gerais aplicáveis a todos os abates nos termos do Regulamento n.o 853/2004

64.

Os produtos alimentares de origem animal, qualquer que seja o modo de abate escolhido, devem ser produzidos e comercializados segundo normas estritas, cujo primeiro objetivo é assegurar a higiene e a segurança alimentares ( 27 ).

65.

A elaboração pelo Regulamento n.o 853/2004 de regras precisas de higiene aplicáveis aos produtos alimentares de origem animal, produtos que podem apresentar riscos específicos, tem por objetivo principal e fundamental a instauração de normas de higiene elevadas a fim de, nomeadamente, evitar danos para a saúde humana ( 28 ). Assim, essas regras contêm princípios comuns, «relacionados em particular com as responsabilidades dos fabricantes e das autoridades competentes, com os requisitos estruturais, operacionais e de higiene que devem ser cumpridos nos estabelecimentos, com os processos de aprovação dos estabelecimentos, e com as condições de armazenagem e transporte e a marcação de salubridade dos produtos» ( 29 ). O Regulamento n.o 853/2004 prevê assim requisitos específicos no que se refere em especial à construção, conceção e equipamento dos matadouros. Apenas os matadouros que cumpram estes requisitos podem ser aprovados em conformidade com este regulamento.

66.

Para assegurar a solidez e a eficácia do sistema implementado e garantir o correto funcionamento do mercado interno ( 30 ), afigura‑se imperativo que esses requisitos sejam cumpridos por todos os Estados‑Membros e por todos os produtores e operadores do setor ( 31 ). Embora se possa admitir alguma flexibilidade, esta não deve em caso algum comprometer os objetivos em matéria de higiene alimentar ( 32 ).

67.

Por conseguinte, é primordial que os requisitos relativos aos matadouros que podem ser aprovados nos termos do Regulamento n.o 853/2004 sejam aplicáveis independentemente do facto de o abate comportar ou não um atordoamento. A obrigação genérica de recorrer a matadouros aprovados tem pouca relação com o modo de abate utilizado (isto é, independentemente se ser ou não ritual). Além disso, essa obrigação não assenta exclusivamente em considerações relativas à proteção do bem‑estar dos animais, mas decorre dos imperativos que resultam do pacote «higiene», conforme enunciados nomeadamente no Regulamento n.o 853/2004.

68.

O requisito decorrente do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 de que o abate deve ser efetuado num matadouro aprovado que cumpra todas as normas estabelecidas pelo anexo III deste regulamento contribui, com efeito, para garantir a segurança alimentar, qualquer que seja o método de abate praticado. Este último requisito, que de resto, como confirmaram os recorrentes no processo principal, não entra em conflito com os preceitos da religião muçulmana, não se torna menos importante porque o abate do animal se faz sem atordoamento prévio.

b)   Quanto à análise do impacto das regras em matéria de bem‑estar animal que decorrem das disposições do Regulamento n.o 1099/2009 relativas à liberdade religiosa

69.

Cumpre referir que pôr em causa no processo principal a validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 tem inegavelmente origem na comunicação datada de 12 de setembro de 2014 do Ministro flamengo responsável pelo bem‑estar dos animais segundo a qual, a partir de 2015, não emitiria mais aprovações para estabelecimentos de abate temporários pelo facto de que essas aprovações serem contrárias às disposições desse regulamento ( 33 ).

70.

Ora, pôr em causa a validade destas últimas disposições sob o ângulo da liberdade religiosa parece‑me pelo menos paradoxal.

71.

Com efeito, importa recordar que, nos termos do direito atualmente em vigor, é o princípio do abate com atordoamento que se aplica. Assim, o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 dispõe que os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos expostos no anexo I desse regulamento.

72.

No entanto, na sequência de uma ponderação da liberdade de culto e do bem‑estar dos animais, e tendo em conta o objetivo do Regulamento n.o 1099/2009, a saber uma harmonização das normas relativas ao bem‑estar dos animais no momento da occisão, o artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento prevê atualmente uma exceção para o abate ritual sem atordoamento de animais nos matadouros.

73.

Conforme expõe o considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009, o artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento, ao prever uma derrogação à regra geral de os animais serem mortos apenas após atordoamento, prevista n.o 1 desse artigo, favorece, na realidade, os abates rituais sem atordoamento, e isto para efeitos do cumprimento de determinados preceitos religiosos.

74.

Em contrapartida, e contrariamente ao que a argumentação dos recorrentes no processo principal poderia dar a entender, esta disposição não prevê nenhum requisito específico adicional que seja apenas aplicável aos abates rituais e não aos outros abates.

75.

Nestas circunstâncias, esta disposição só poderia, na minha opinião, ser declarada inválida sob o ângulo do respeito da liberdade religiosa se se demonstrasse que o próprio recurso aos matadouros aprovados era contrário a determinados preceitos religiosos ou ainda que as condições previstas nessa disposição comprometiam objetivamente a possibilidade de efetuar abates de animais em conformidade com determinados ritos religiosos.

76.

Ora, recordo que, como resulta dos autos e como foi confirmado na audiência, os recorrentes no processo principal não alegam que a obrigação de proceder aos abates rituais num matadouro é enquanto tal incompatível com as suas crenças religiosas.

77.

Por outro lado, os recorrentes no processo principal não referem por que razões de princípio — isto é, independentemente dos supostos problemas de capacidade dos matadouros atualmente existentes e sobretudo dos custos que devem ser suportados para a criação de novos estabelecimentos ou para a conversão dos estabelecimentos existentes em conformidade com as disposições regulamentares — o requisito de os abates de animais serem efetuados em matadouros aprovados é problemático do ponto de vista do respeito da liberdade religiosa.

78.

Como nomeadamente referiram o Conselho e a Comissão, a obrigação de garantir que todos os locais de abate sejam aprovados e cumpram, consequentemente, os requisitos previstos pelo Regulamento n.o 853/2004 é perfeitamente neutra e abrange todos os organizadores de abates. Ora, uma legislação que é aplicável de forma neutra, sem qualquer relação com as convicções religiosas, não pode, em princípio, ser considerada uma limitação do exercício da liberdade de religião ( 34 ).

79.

O facto de o recurso a tais estabelecimentos aprovados gerar sobrecustos em relação aos matadouros temporários que tinham sido até então tolerados na Região Flamenga parece‑me, portanto, irrelevante. O que importa salientar é que os custos que devem ser suportados para a instalação de matadouros aprovados são os mesmos, quer se destinem ao abate ritual ou não.

80.

A este respeito, o TEDH declarou que uma medida não é constitutiva de uma ingerência num direito fundamental pelo facto de gerar um custo para um grupo aderente a determinados preceitos religiosos ou a determinadas crenças ( 35 ). Isso deve ser tanto mais assim quanto o custo gerado pelo cumprimento de um preceito religioso é, em princípio, o mesmo que o assumido por aqueles que não aderem a esse preceito.

81.

Por conseguinte, tal regra não é, por si só, suscetível de neutralizar ou limitar a possibilidade de proceder a abates rituais, mas apenas recorda que qualquer abate deve ser feito num estabelecimento que cumpra as normas enunciadas em anexo ao Regulamento n.o 853/2004.

82.

Parece‑me que, com a sua argumentação, os recorrentes no processo principal pretendem, afinal, beneficiar, além da derrogação prevista para os abates rituais, de uma derrogação adicional à obrigação de efetuar esses abates nos matadouros aprovados.

83.

Com efeito, a principal razão que parece ter levado o juiz de reenvio a submeter a questão prejudicial resulta da circunstância de, na Região Flamenga, os matadouros aprovados permanentes atualmente existentes não disporem de capacidade suficiente de abate aquando da festa islâmica do Sacrifício em consequência de um aumento dos pedidos de abate e de o custo de construção desses matadouros ou da conversão dos locais de abate temporários em locais permanentes se revelar muito elevado.

84.

Ora, essa insuficiência de capacidade e os custos que eventualmente implicam a instalação de novos estabelecimentos aprovados não tem relação com a aplicação das disposições do Regulamento n.o 1099/2009.

85.

Na minha opinião, os problemas conjunturais de capacidade de abate num determinado território, como os alegadamente ( 36 ) observados na Região Flamenga tendo em conta a forte procura de abates rituais registada em alguns dias por ocasião da festa islâmica do Sacrifício, também não têm relação direta ou indireta com a obrigação de recorrer a matadouros aprovados na aceção do Regulamento n.o 853/2004. Essas dificuldades evidenciam antes, conforme referiram a Comissão e o Governo do Reino Unido, a questão de saber quem deve assumir o custo da instalação desses estabelecimentos para fazer face ao pico da procura de abates rituais por ocasião da festa islâmica do Sacrifício.

86.

Interrogados na audiência sobre a questão de saber se a disponibilidade de carne «halal» era em geral assegurada de forma satisfatória fora do período de celebração da festa islâmica do Sacrifício, os recorrentes no processo principal responderam afirmativamente. Também confirmaram que, na sua opinião, o problema se devia ao facto de a construção de novos matadouros aprovados para fazer especificamente face ao pico da procura de abates rituais aquando dessa celebração não constituir uma opção economicamente rentável durante todo o ano.

87.

Isso confirma que os eventuais problemas de capacidade, considerados tanto do ponto de vista da oferta como da procura, não foram causados pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, mas são efetivamente a consequência de um concurso de várias circunstâncias particulares, totalmente independentes do alcance desta disposição, e que resultam principalmente de uma forte concentração da procura de abates rituais num momento muito preciso do ano e, isso, relativamente a um período muito curto.

88.

Todavia, como a Comissão sublinhou, na minha opinião, muito justamente, a validade de uma disposição do direito da União é apreciada em função das próprias características dessas disposições e não pode depender das circunstâncias específicas de um determinado caso concreto ( 37 ).

89.

Para concluir e apesar das dúvidas manifestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece‑me que não há nenhum argumento convincente para considerar que a regulamentação controvertida, que, recordo, é totalmente neutra e de aplicação geral, é constitutiva de uma limitação da liberdade religiosa.

3.   Quanto à justificação da limitação da liberdade religiosa eventualmente constatada

90.

Uma vez que, na minha opinião, não se pode concluir pela existência de uma limitação da liberdade de religião decorrente da obrigação geral de recorrer a matadouros aprovados, deixa de se pôr a questão de saber se essa limitação é justificada.

91.

No entanto, para o caso de o Tribunal de Justiça não aderir a esta conclusão na medida e considerar que a obrigação de recorrer a matadouros aprovados, a única aqui em causa, constitui uma ingerência na liberdade de religião na medida em que impede os muçulmanos praticantes de cumprirem a sua obrigação religiosa na festa do Sacrifício, é minha opinião que nenhum objetivo legítimo de interesse geral é então suscetível de justificar a existência de uma limitação dessa liberdade.

92.

Esta última conclusão, que pode, à primeira vista, surpreender tendo em conta a minha análise na parte consagrada à identificação de uma limitação da liberdade religiosa é explicada pelas seguintes considerações.

93.

É verdade que é a priori defensável a ideia de que a limitação das possibilidades de abates rituais, gerada pela obrigação de recorrer a matadouros aprovados, prossegue objetivos legítimos de ordem pública e de saúde pública, a saber, a proteção do bem‑estar dos animais, da saúde pública e da segurança alimentar.

94.

Todavia, no caso de vir a ser declarado que a obrigação de recorrer aos matadouros aprovados aquando da festa islâmica do Sacrifício é contrária à liberdade de religião, seriamos necessariamente convidados a proceder a uma arbitragem impossível entre esta liberdade e os imperativos de proteção do bem‑estar animal, da saúde pública e da segurança alimentar, que, recordo, são os três objetivos gerais prosseguidos pela obrigação de recorrer a matadouros aprovados. Isso equivaleria, no fim de contas, a instaurar uma hierarquia entre o respeito da liberdade de religião e a necessária prossecução desses objetivos legítimos de interesse geral, apesar de o legislador ter precisamente pretendido instituir um equilíbrio entre o respeito da liberdade religiosa e a prossecução desses diferentes objetivos, nomeadamente no enunciado das disposições do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009.

95.

Por outras palavras, se vire a ser declarado que esta última disposição, que testemunha a procura pelo legislador europeu de um justo equilíbrio entre a liberdade religiosa e a prossecução dos objetivos legítimos de interesse geral que são a proteção da saúde pública, a proteção da segurança alimentar e a proteção do bem‑estar animal ( 38 ), é constitutiva de uma limitação da liberdade de religião, dificilmente percebo como se poderia considerar que essa limitação seria precisamente justificada pelos referidos imperativos no âmbito específico da celebração da festa islâmica do Sacrifício.

96.

Embora as considerações relativas à saúde humana devam, em princípio, prevalecer sobre as relativas ao bem‑estar dos animais, parece que, neste caso, foi dada uma atenção muito especial à promoção do bem‑estar dos animais enquanto objetivo legítimo de interesse geral especialmente visado pela adoção das disposições do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com as do artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009.

97.

Assim, exporei a seguir, em primeiro lugar, em que medida a proteção do bem‑estar animal não constitui um objetivo suscetível de justificar uma limitação da liberdade religiosa no caso de se vir a considerar que o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 é portador dessa limitação e, em segundo lugar, de que forma essa limitação deixa de ser pertinente e proporcionada para garantir a segurança alimentar e da saúde pública no contexto muito específico da celebração da festa islâmica do Sacrifício.

a)   Liberdade religiosa e proteção do bem‑estar animal na análise do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009

98.

Embora não partilhe da conclusão de que o artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009 é problemático do ponto de vista da liberdade religiosa, não posso deixar de subscrever a apreciação feita pelos recorrentes no processo principal nas suas observações escritas submetidas ao Tribunal de Justiça segundo a qual a prudência deve ser necessariamente de rigor quando o objetivo de proteção do bem‑estar animal entra potencialmente em conflito com um direito fundamental.

99.

Basta, a este respeito, remeter para o artigo 13.o TFUE, nos termos do qual «a União e os Estados‑Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem‑estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos» ( 39 ).

100.

No caso em apreço, parece‑me delicado concluir que, apesar de geradora de uma limitação à liberdade religiosa, a obrigação de, nos termos do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, recorrer a matadouros aprovados na aceção do Regulamento n.o 853/2004 é necessária e proporcionada à prossecução de um objetivo legítimo.

101.

Antes de analisar uma a uma as questões relativas à necessidade e à proporcionalidade da disposição controvertida, parece‑me impor‑se uma observação de ordem geral e preliminar quanto à ponderação entre, por um lado, as possibilidades oferecidas nos termos da regulamentação aplicável de recorrer a abates sem atordoamento, e isso para efeitos do respeito de determinadas convicções religiosas, e, por outro, a proteção do bem‑estar dos animais.

102.

Durante o presente processo, foi alegado — frequentemente com forte convicção e de maneira um pouco perentória — que era inegável que o abate de um animal não atordoado era suscetível de gerar mais dor e sofrimento para o animal ( 40 ).

103.

Todavia, a adesão, muito compreensível do ponto de vista teórico, a esta premissa não deveria, na minha opinião, levar a declarar que as comunidades religiosas que preconizam o abate sem atordoamento do animal fazem tábua rasa do bem‑estar animal, aderindo a práticas arcaicas, bárbaras e pouco em linha com os princípios estabelecidos nas sociedades democráticas modernas.

104.

Aliás, basta tomar nota do facto de que o legislador da União decidiu precisamente manter, com a adoção do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, a possibilidade de os Estados‑Membros autorizarem métodos específicos de abate prescritos pelos ritos religiosos. Uma vez mais, importa sublinhar que a exigência de que os abates rituais só podem, nos termos desta disposição, ser efetuados num «matadouro» constitui apenas uma lembrança da regra geral, aplicável qualquer que seja o método escolhido de abate do animal, imposta por força do Regulamento n.o 853/2004.

105.

A este respeito, quero recordar que a «limitação» que está em causa no caso em apreço não diz respeito ao abate sem atordoamento, mas sim à obrigação, mais genérica, de recorrer a matadouros aprovados na aceção do Regulamento n.o 853/2004.

106.

Como sublinhado no âmbito de discussões conduzidas a nível nacional, por detrás da questão específica do abate ritual aparece muito rapidamente o risco de estigmatização, risco historicamente elevado e que importa não alimentar ( 41 ).

107.

Não há nada que permita excluir que um abate sem atordoamento feito em boas condições ( 42 ) se possa revelar menos doloroso para os animais que um abate com atordoamento prévio feito em condições em que, por razões evidentes de rentabilidade e tendo em conta a importante industrialização do setor de produção de alimentos de origem animal, o stress e o sofrimento suportados pelos animais na occisão são exacerbados ( 43 )

108.

Com o risco de ter de recordar uma evidência, todas as formas de occisão são por natureza violentas e, por conseguinte, problemáticas do ponto de vista do sofrimento animal ( 44 ).

109.

Não estou pessoalmente convencido, como atesta um bom número de estudos e inquéritos ( 45 ), de que o recurso aos matadouros aprovados constitua sempre uma defesa eficaz contra o sofrimento animal, que justifique, por si só, uma limitação da liberdade religiosa.

1) Quanto à necessidade de uma limitação da liberdade religiosa para efeitos da proteção do bem‑estar animal

110.

Nos termos da jurisprudência atualmente estabelecida ( 46 ) do Tribunal de Justiça, a proteção do bem‑estar dos animais pode constituir um objetivo legítimo de interesse geral cuja importância se traduz, nomeadamente, na adoção pelos Estados‑Membros do Protocolo relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado que institui a Comunidade Europeia ( 47 ). A esse protocolo corresponde atualmente o artigo 13.o TFUE, disposição de aplicação geral do Tratado FUE, que consta da sua primeira parte, dedicada aos princípios ( 48 ).

111.

Coloca‑se a questão de saber se, em presença de uma limitação da liberdade religiosa, a obrigação de recorrer aos matadouros aprovados se justifica no contexto específico da festa islâmica do Sacrifício pela necessidade de proteger o bem‑estar dos animais.

112.

Na minha opinião, é permitido duvidar.

113.

É certo que é do interesse geral evitar abates «selvagens» efetuados em condições duvidosas do ponto de vista do bem‑estar animal, o que implica, a priori, que é preferível que o abate dos animais seja feito em estabelecimentos controlados pela autoridade pública ( 49 ) ou que cumpram normas precisas em termos de equipamento e de logística.

114.

No entanto, isso não deve levar a considerar que esses estabelecimentos devem, no âmbito muito específico da celebração da festa islâmica do Sacrifício, ser necessariamente matadouros aprovados na aceção do Regulamento n.o 853/2004.

115.

Com o risco de me repetir, não se coloca aqui a questão de saber se o abate sem atordoamento deve ser proscrito em nome do bem‑estar dos animais, mas sim determinar se, no âmbito da derrogação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, o recurso aos matadouros aprovados oferece, por ocasião da celebração da festa islâmica do Sacrifício, uma mais‑valia em termos de bem‑estar animal por comparação com um local de abate temporário não aprovado.

116.

Em relação especificamente à possibilidade oferecida na Região Flamenga de proceder até 2014 a abates rituais, é de observar que a própria Comissão, na sequência da auditoria efetuada na Bélgica pelos seus serviços entre 24 de novembro e 3 de dezembro de 2014 para avaliar os controlos do bem‑estar dos animais aquando do abate em estabelecimentos temporários que eram até então autorizados, indicou que os referidos locais apresentavam garantias satisfatórias, referindo os esforços realizados pelas autoridades belgas para melhorar a situação.

117.

No relatório de auditoria de 30 de julho de 2015, a Comissão salientou assim que as autoridades competentes faziam o necessário para que fossem respeitadas as mesmas condições em matéria de bem‑estar dos animais nos locais de abate temporários de que tinha tido conhecimento. Nos termos desse relatório, concluiu‑se que, embora a occisão de animais sem atordoamento para ritos religiosos fora de um matadouro aprovado não respeitasse o Regulamento n.o 1099/2009, as autoridades nacionais competentes tinham realizado grandes esforços para que as mesmas condições em matéria de bem‑estar dos animais fossem respeitadas durante as festas religiosas em locais regulamentados.

118.

Com esta constatação, afigura‑se que os serviços da Comissão consideraram implicitamente que os locais de abate temporários que apresentassem determinadas características, sem necessariamente corresponder à definição de matadouros aprovados na aceção do artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, podiam apresentar garantias suficientes em termos de proteção do bem‑estar dos animais para os abates efetuados aquando da celebração da festa islâmica do Sacrifício. Tratando‑se de uma celebração que só tem lugar uma vez por ano e tendo em conta o facto de os animais abatidos aquando dessa celebração não estarem, em princípio, destinados a permanecer muito tempo nos locais de abate, a instalação desses matadouros aprovados não parece constituir um requisito realmente pertinente. Com efeito, os requisitos que os estabelecimentos devem cumprir, nos termos, nomeadamente, do Regulamento n.o 853/2004, foram concebidos para estabelecimentos destinados ao mercado diário da oferta e da procura.

119.

Por outro lado, no contexto específico de um pico da procura de abates, como o que se pode verificar aquando da festa islâmica do Sacrifício, pode‑se mesmo perguntar se o facto de se autorizar os abates em locais temporários que cumpram normas sanitárias específicas sem, todavia, corresponderem à definição de matadouros aprovados na aceção do artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, não é suscetível de responder melhor às preocupações relativas ao bem‑estar dos animais. A instalação desses locais pode, ao descongestionar os locais de abate aprovados, contribuir para que o abate se faça in fine em melhores condições para o animal do ponto de vista nomeadamente do stress sofrido.

2) Quanto à proporcionalidade de uma limitação da liberdade religiosa com vista à proteção do bem‑estar dos animais

120.

Em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, a restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta deve ser prevista por lei e proporcionada.

121.

A limitação em causa neste caso, a saber, a que resulta da obrigação prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 de recorrer a matadouros aprovados, isto é, a estabelecimentos que cumprem os requisitos previstos pelo Regulamento n.o 853/2004, resulta inegavelmente da lei.

122.

Em contrapartida e para a hipótese de se considerar que estamos perante uma limitação da liberdade religiosa e que essa limitação é justificada, duvido que tal limitação possa ser declarada proporcionada ao objetivo prosseguido.

123.

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da proporcionalidade exige que os atos das instituições da União não excedam os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos pela regulamentação em causa, considerando‑se que os inconvenientes causados por esta não devem ser desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos ( 50 ), e que, quando se proporcione uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva ( 51 ).

124.

Ora, considero que a obrigação de efetuar o abate num matadouro aprovado pode exceder os limites do estritamente necessário para a realização do objetivo de bem‑estar animal quando está em causa o abate de um animal com vista ao cumprimento de um rito religioso num período muito específico do ano.

125.

A este respeito, há que salientar que o anexo III do Regulamento n.o 853/2004 prevê numerosos requisitos que os matadouros devem cumprir para serem aprovados nos termos deste regulamento.

126.

Todavia, é legítimo perguntar se, perante uma limitação da liberdade religiosa, o cumprimento de todos esses requisitos se impõe no contexto muito específico do aumento pontual da procura de abates aquando da festa islâmica do Sacrifício.

127.

Assim e sem aspirar à exaustividade, afigura‑se que determinadas normas previstas no anexo III do Regulamento n.o 853/2004, como os requisitos estruturais que se referem nomeadamente às instalações de desmancha ou à armazenagem refrigerada da carne, se podem revelar supérfluas para fazer face ao pico da procura de abates rituais registada por ocasião da festa islâmica do Sacrifício, tratando‑se de estabelecimentos que são utilizados apenas uma vez por ano e nos quais a carne é entregue, em princípio, diretamente ao utilizador final.

128.

Em consequência do exposto e para o caso de se considerar que as disposições controvertidas limitam a liberdade religiosa, é minha opinião que há certamente uma solução menos restritiva do que obrigar a recorrer a matadouros aprovados aquando da festa islâmica do Sacrifício.

b)   Liberdade religiosa e proteção da segurança alimentar e da saúde pública

129.

No caso de se concluir que a regra enunciada no artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009 é constitutiva de uma limitação da liberdade de religião, coloca‑se também a questão de saber se esta se pode justificar por motivos legítimos de interesse geral relativos à segurança alimentar e à saúde humana.

130.

Com efeito, o Regulamento n.o 853/2004, para o qual remete o Regulamento n.o 1099/2009, prossegue, antes de mais, objetivos de segurança alimentar que, in fine, visam diretamente proteger a saúde humana.

131.

Todavia, e na continuação do que referi anteriormente, a proibição total de abates fora dos estabelecimento aprovados em conformidade com as normas estabelecidas no anexo III do Regulamento n.o 853/2004 pode não se revelar suficientemente pertinente do ponto de vista da segurança alimentar e da saúde pública para justificar a limitação ao cumprimento da obrigação religiosa de abater ou de mandar abater um animal aquando de um evento anual muito específico, no caso em apreço, por ocasião da festa islâmica do Sacrifício.

132.

Conforme constatou nomeadamente a Comissão no relatório de auditoria de 30 de julho de 2015, dos estabelecimentos temporários de abate que cumprem determinadas normas sanitárias específicas podem do mesmo modo apresentar garantias suficientes do ponto de vista da saúde pública e da segurança alimentar, para responder à grande procura, mas muito limitada no tempo, de abates aquando da festa islâmica do Sacrifício.

133.

Resulta das considerações que precedem que, do meu ponto de vista, não se pode concluir que o artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009, comporta uma limitação da liberdade religiosa. Todavia, e apenas para o caso de se considerar, pelo contrário, que essa limitação existe, é minha opinião que a mesma não pode ser considerada justificada por objetivos legítimos de interesse geral de bem‑estar dos animais e de proteção da saúde pública e da segurança alimentar. Em todo o caso, essa limitação não pode, na minha opinião, ser considerada proporcionada à prossecução desses objetivos.

4.   Pedido de apreciação da validade e/ou pedido de interpretação das disposições do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009?

134.

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu limitar a sua questão prejudicial a um pedido de apreciação de validade das disposições do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009.

135.

Ora, como o Conselho referiu nas suas observações escritas, teria sido sem dúvida mais útil para o órgão jurisdicional de reenvio interrogar o Tribunal de Justiça sobre a interpretação das disposições dos Regulamentos n.os 1099/2009 e 853/2004, em especial no que se refere à flexibilidade permitida aos Estados‑Membros quanto às regras que devem reger a aprovação dos matadouros, nomeadamente com vista a determinar em que medida os Estados‑Membros podem ter em conta situações específicas, como a que se pode apresentar num Estado‑Membro (ou numa parte deste) por ocasião da festa islâmica do Sacrifício.

136.

Pela minha parte, não estou totalmente convencido com uma diligência desse tipo que levaria, em definitivo, a retomar a regra, que, no atual estado do direito da União, é de aplicação geral, segundo a qual o abate dos animais deve ser feito em matadouros aprovados.

137.

Embora seja verdade que os Regulamentos n.os 1099/2009 e 853/2004 introduzem determinados elementos de flexibilidade, na medida em que não só preveem determinadas derrogações à obrigação de se dirigir a matadouros aprovados, mas também derrogações a respeito de determinadas prescrições técnicas impostas aos locais de abate ( 52 ), nomeadamente para os «matadouros móveis» e os «pequenos matadouros» que praticam a venda direta ( 53 ), duvido que estejamos, no presente processo, em condições de determinar, de maneira precisa e independentemente de uma análise detalhada de todos os requisitos que decorrem destes regulamentos, as circunstâncias que justificariam derrogar os requisitos estruturais impostos aos locais de abate, requisitos que revestem uma grande importância na elaboração destes regulamentos.

138.

A este respeito, gostaria de recordar que no caso em apreço estamos no máximo confrontados com um problema de ordem conjuntural, problema que, segundo o meu entendimento dos autos, parece ter sido, entretanto, resolvido.

139.

Mais fundamentalmente, afigura‑se que os recorrentes no processo principal pretendem na realidade reivindicar uma flexibilização das normas e requisitos sanitários aplicáveis no setor dos produtos alimentares de origem animal, uma vez que estão reticentes em assumir os custos que o cumprimento desses requisitos comporta.

140.

Neste contexto, tentar elaborar linhas gerais interpretativas, que, em definitivo, poderiam comprometer as regras enunciadas com precisão na regulamentação atualmente aplicável em matéria de occisão dos animais, não se afigura oportuno.

IV. Conclusão

141.

Tendo em conta estas considerações, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas, Bélgica) da seguinte maneira:

A análise da questão prejudicial não apresenta nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão, à luz do direito à liberdade de religião conforme consagrado no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e tomado em consideração no artigo 13.o TFUE em relação com o bem‑estar dos animais.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Diretiva do Conselho, de 18 de novembro de 1974, relativa ao atordoamento dos animais antes do seu abate (JO 1974, L 316 p. 10; EE 03 F7 p. 258). A exposição dos motivos desta diretiva referia nomeadamente que «é oportuno generalizar a prática do atordoamento por métodos reconhecidos adequados [e], contudo, que convém ter em conta as especificidades próprias de certos ritos religiosos».

( 3 ) Regulamento do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão (JO 2009, L 303, p. 1). O considerando 18 deste regulamento refere: «Visto que as disposições comunitárias aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro. Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.»

( 4 ) Cumpre referir que a regulamentação anteriormente aplicável não previa critérios detalhados para a aprovação dos matadouros, de forma que os Estados‑Membros dispunham de margem de apreciação para identificar os estabelecimentos, eventualmente temporários, que podiam ser aprovados enquanto estabelecimentos equiparáveis a matadouros [v., nomeadamente, artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 93/119/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1993, relativa à proteção dos animais no abate e/ou occisão (JO 1993, L 340, p. 21), conforme alterada].

( 5 ) Designada também como a Grande Festa (Aïd‑el‑Kebir), esta festa celebra a força da fé de Ibrahim (Abraão na tradição bíblica), simbolizada pelo episódio em que este aceita sacrificar, por ordem de Deus, o seu filho único Ismaël (Isaac na tradição bíblica). Após a aceitação da ordem divina, Deus envia o arcanjo Jibril (Gabriel) que, no último momento, substitui a criança por um carneiro que servirá de oferenda sacrificial. É em memória dessa devoção de Ibrahim ao seu Deus que cada família muçulmana sacrifica um animal de acordo com determinadas regras.

( 6 ) Em conformidade com as disposições do artigo 26.o, n.o 2, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, alguns Estados‑Membros não autorizam o abate ritual sem atordoamento. Assim, que seja do meu conhecimento, o Reino da Dinamarca, a República da Eslovénia ou ainda o Reino da Suécia só permitem o abate de animais com atordoamento prévio. Mais recentemente, parece que foi alcançado um acordo político nas Regiões flamenga e da valónia para proibir o abate de animais sem atordoamento a partir de 2019.

( 7 ) JO 2004, L 139, p. 55, e retificativo JO 2004, L 226, p. 22.

( 8 ) Numa data móvel a partir do septuagésimo dia subsequente ao fim do mês islâmico do ramadão.

( 9 ) Na tradição muçulmana, durante a Festa do Sacrifício, os muçulmanos podem escolher o animal a sacrificar que pode ser um ovino (carneiro ou ovelha), um bovino (vaca, touro ou vitela) ou um caprino (cabra ou bode). (NdT: entre os ovinos que podem ser sacrificados, o autor refere o «mouton» e o «bélier». O «mouton» é um carneiro, por vezes castrado, que é criado para produção de carne. O «bélier» é um carneiro não castrado utilizado para a reprodução. Que eu conheça, em português, há apenas uma palavra — carneiro — para designar o ovino macho).

( 10 ) Segundo os trabalhos preparatórios da lei alterada de 1995, esta última possibilidade foi motivada pela insuficiência de capacidade de numerosos matadouros em determinados períodos.

( 11 ) Neste contexto, competia aos representantes da comunidade muçulmana avaliar as capacidades de abate de uma zona geográfica específica e informar disso a Administração municipal em causa.

( 12 ) Neste contexto, o ministro em causa referia‑se, designadamente, a um relatório final, publicado em 30 de julho de 2015, de uma auditoria efetuada pelos serviços da Comissão Europeia na Bélgica, entre 24 de novembro e 3 de dezembro de 2014, com o objetivo de avaliar os controlos relativos ao bem‑estar dos animais durante o abate e operações conexas [DG(SANTE) 2014‑7059 — RM] (a seguir «relatório de auditoria de 30 de julho de 2015»). Esse relatório referia, em especial, que «a occisão de animais sem atordoamento para ritos religiosos fora de um matadouro não respeita o regulamento».

( 13 ) Os recorrentes no processo principal baseiam‑se no artigo 1.o, n.o 3, alínea a), ponto iii), do Regulamento n.o 1099/2009 que exclui a aplicabilidade deste último quando os animais são abatidos «em manifestações culturais ou desportivas». Em conformidade com o artigo 2.o, alínea h), deste regulamento, trata‑se de manifestações relacionadas essencialmente com tradições culturais de longa data ou com atividades desportivas, em que não são produzidas carnes ou outros produtos animais ou em que essa produção é marginal em comparação com a manifestação propriamente dita e não é significativa do ponto de vista económico.

( 14 ) Resulta dos autos que havia 59 desses locais de abate temporários. Apenas dois deles foram convertidos em matadouros em 2015 e três em 2016.

( 15 ) V., nomeadamente, acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Vervloet e o. (C‑76/15, EU:C:2016:975, n.o 57 e jurisprudência aí referida), e de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania (C‑74/16, EU:C:2017:496, n.o 25).

( 16 ) Entende‑se por este termo toda a regulamentação europeia relativa à higiene dos alimentos, entrada em vigor em 1 de janeiro de 2006, com o objetivo de simplificar e harmonizar os diplomas aplicáveis na União.

( 17 ) V., nomeadamente, acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 31).

( 18 ) V., nomeadamente, a este respeito, a argumentação da Região Flamenga que refere que a questão se prende com uma circunstância puramente interna, a saber, a alegada insuficiência da capacidade de abate dos matadouros aprovados numa determinada região num período muito específico. V., também, as observações do Governo neerlandês que refere que a possibilidade de assegurar essa disponibilidade em carne halal cabe aos Estados‑Membros e não se enquadra no âmbito de aplicação dos Regulamentos n.os 1099/2009 e 853/2004.

( 19 ) V. acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105 n.o 44); de 3 de setembro de 2015, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Comissão (C‑398/13 P, EU:C:2015:535, n.o 45); e de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 45).

( 20 ) V., nomeadamente, acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

( 21 ) V., nomeadamente, acórdão de 30 de junho de 2016, Toma e Biroul Executorului Judecătoresc Horațiu‑Vasile Cruduleci (C‑205/15, EU:C:2016:499, n.o 41 e jurisprudência aí referida).

( 22 ) A GAIA refere‑se em especial a um estudo da Universidade de Bristol, do qual resulta que 95% dos eruditos muçulmanos estão de acordo quanto ao facto de que um atordoamento que não provoca a morte do animal a abater é halal [v. Fuseini, A., e o., «The Perception and Acceptability of Pre‑Slaughter and Post‑Slaughter Stunning for Halal Production: the Views of UK Islamic Scholars and Halal Consumers», Meat Science, n.o 123, 2017, pp. 143 a 153].

( 23 ) Alguns países muçulmanos, como a Jordânia ou a Malásia, toleram um atordoamento no abate ritual, com a condição de que seja reversível, isto é, que não provoque a morte do animal. Por outro lado, é frequentemente evocado o caso da Nova Zelândia (este último Estado é o maior produtor mundial de carne ovina), que exporta para países muçulmanos a carne proveniente do abate de animais com atordoamento.

( 24 ) Como declarou o TEDH no seu acórdão de 17 de dezembro de 2013 (Vartic c. Roménia, CE:ECHR:2013:1217JUD001415008, § 34 e jurisprudência aí referida), a obrigação de neutralidade impede as autoridades públicas de apreciarem a validade e a legitimidade das crenças religiosas ou as modalidades da sua expressão.

( 25 ) V., nomeadamente, acórdão TEDH de 27 de junho de 2000, Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França (CE:ECHR:2000:0627JUD002741795, § 73). V. mais amplamente, quanto a preceitos alimentares motivados pela religião, acórdãos TEDH de 7 de dezembro de 2010, Jakóbski c. Polónia (CE:ECHR:2010:1207JUD001842906), e de 17 de dezembro de 2013, Vartic c. Roménia (CE:ECHR:2013:1217JUD001415008).

( 26 ) Os três dias subsequentes à celebração da Festa islâmica do Sacrifício são designados os dias do tachriq na tradição muçulmana. A este respeito, a GAIA fez, na audiência, uma descrição das diferentes correntes existentes na matéria.

( 27 ) V., a este respeito, exposição de motivos da proposta da Comissão do regulamento «higiene» [COM(2000) 438 final, p. 10], concretizada pela adoção do Regulamento n.o 853/2004, que sublinha o grande interesse de recorrer a matadouros aprovados com fundamento em normas de higiene estritas.

( 28 ) V., neste sentido, considerando 2 do Regulamento n.o 853/2004.

( 29 ) V. considerando 4 do Regulamento n.o 853/2004.

( 30 ) V., neste sentido, considerando 9 do Regulamento n.o 853/2004.

( 31 ) V. considerando 18 do Regulamento n.o 853/2004, nos termos do qual «os requisitos estruturais e de higiene estabelecidos no presente regulamento [são] aplicáveis a todos os tipos de estabelecimentos, incluindo as pequenas empresas e os matadouros móveis».

( 32 ) V., nomeadamente, considerando 19 do Regulamento n.o 853/2004. Este considerando prevê que o processo que permite aos Estados‑Membros exercerem uma certa flexibilidade deve ser transparente, devendo, sempre que necessário para resolver qualquer diferendo, considerar a possibilidade de discussão a nível do Comité Permanente da Cadeia Alimentar e da Saúde Animal.

( 33 ) Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se nomeadamente ao relatório de auditoria de 30 de julho de 2015. Com efeito, esse relatório referia que «a occisão de animais sem atordoamento para ritos religiosos fora de um matadouro não respeita o regulamento», e isso apesar de a autoridade central competente «ter realizado grandes esforços para que as mesmas condições em matéria de bem‑estar dos animais sejam respeitadas durante as festas religiosas em locais regulamentados».

( 34 ) A Comissão menciona neste contexto a jurisprudência do TEDH (v., nomeadamente, acórdão TEDH de 3 de dezembro de 2009, Skugar e o. c. Rússia, CE:ECHR:2009:1203DEC004001004, relativo à utilização de um número de identificação fiscal).

( 35 ) V., neste sentido, acórdão TEDH de 30 de junho de 2011, Association des Témoins de Jéhovah c. França (CE:ECHR:2011:0630JUD000891605, § 52 e jurisprudência aí referida), nos termos do qual «a liberdade religiosa não implica de forma alguma que as igrejas ou os seus fiéis beneficiem de um estatuto fiscal diferente do dos outros contribuintes».

( 36 ) Diversos intervenientes, nomeadamente a Região Flamenga referiram que essa insuficiência de locais de abate não estava demonstrada no caso em apreço.

( 37 ) V., neste sentido, acórdão de 28 de julho de 2016, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o. (C‑543/14, EU:C:2016:605, n.o 29).

( 38 ) E isso não obstante a possibilidade de os Estados‑Membros adotarem, nos termos do artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1099/2009, «disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão do que as previstas [neste] regulamento». Recordo que o considerando 18 deste regulamento refere neste sentido que «é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro».

( 39 ) O sublinhado é meu.

( 40 ) V. posição do Governo do Reino Unido, que refere que está cientificamente demonstrado que o atordoamento dos animais com vista a pô‑los inconscientes no momento da occisão constitui um método eficaz para reduzir o sofrimento animal. No mesmo sentido, o Governo estónio referiu‑se a um estudo intitulado «Report on Good and Adverse practices — Animal Welfare Concerns in Relation to Slaughter Practices from the Viewn. of Veterinary Sciences», feito no âmbito do projeto europeu DIALREL («Encouraging Dialogue on issues of Religious Slaughter») e disponível no seguinte endereço: http://www.dialrel.eu/dialrel‑results/veterinary‑concerns.html.

( 41 ) Retomo quase palavra por palavra as conclusões de um relatório feito em nome da Comissão de Inquérito da Assembleia Nacional francesa datado de 20 de setembro de 2016 relativo às condições de abate dos animais produtores de carne nos matadouros franceses (http://www2.assemblee‑nationale.fr/14/autres‑commissions/commissions‑d‑enquete/conditions‑d‑abattage‑des‑animaux‑de‑boucherie‑dans‑les‑abattoirs‑francais/).

( 42 ) Neste contexto, parece‑me interessante salientar que é precisamente em nome do respeito devido aos animais e à importância dada ao seu bem‑estar que o ato de occisão dos animais é, nas tradições judia e muçulmana, ritualizado.

( 43 ) As associações de defesa da causa animal fazem regularmente eco das condições muito criticáveis em que o abate é efetuado nos matadouros apesar de aprovados. No relatório referido acima na nota 41, o relator constata «a tentação de determinados intervenientes do setor de utilizar as questões suscitadas pelo abate ritual para divulgarem as dificuldades, muito sérias […] que o abate tradicional encontra em termos de bem‑estar animal».

( 44 ) Como enuncia o considerando 2 do Regulamento n.o 1099/2009 «a occisão de animais pode provocar dor, aflição, medo ou outras formas de sofrimento nos animais, mesmo nas melhores condições técnicas disponíveis. Certas operações associadas à occisão podem provocar stress e todas as técnicas de atordoamento apresentam inconvenientes».

( 45 ) Durante as minhas investigações, pude observar que, apesar de a regra geral aplicável atualmente ser a do abate praticado nos matadouros aprovados, um bom número de criadores e de associações de proteção dos animais militam a favor da ideia de que o abate efetuado o mais próximo possível dos locais de criação dos animais é certamente a solução mais adequada do ponto de vista do bem‑estar animal.

( 46 ) V., nomeadamente, acórdãos de 17 de janeiro de 2008, Viamex Agrar Handel e ZVK (C‑37/06 e C‑58/06, EU:C:2008:18, n.os 22 e 23 e jurisprudência aí referida); de 19 de junho de 2008, Nationale Raad van Dierenkwekers en Liefhebbers e Andibel (C‑219/07, EU:C:2008:353, n.o 27); e de 23 de abril de 2015, Zuchtvieh‑Export (C‑424/13, EU:C:2015:259, n.o 35).

( 47 ) JO 1997, C 340, p. 110.

( 48 ) V. acórdão de 23 de abril de 2015, Zuchtvieh‑Export (C‑424/13, EU:C:2015:259, n.o 35).

( 49 ) V., neste sentido, acórdão TEDH, 27 de junho de 2000, Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França (CE:ECHR:2000:0627JUD002741795, § 77).

( 50 ) V., nomeadamente, acórdãos de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland e o. (C‑293/12 e C‑594/12, EU:C:2014:238, n.o 46 e jurisprudência aí referida), e de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 54).

( 51 ) V., nomeadamente, acórdãos de 17 de outubro de 2013, Schaible (C‑101/12, EU:C:2013:661, n.o 29), e de 9 de junho de 2016, Pesce e o. (C‑78/16 e C‑79/16, EU:C:2016:428, n.o 48).

( 52 ) V., a este respeito, artigo 10.o, n.os 3 a 8, do Regulamento n.o 853/2004.

( 53 ) V. considerandos 40 e 47 do Regulamento n.o 1099/2009.

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