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Document 62016CC0245

    Conclusões do advogado-geral M. Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 5 de abril de 2017.
    Nerea SpA contra Regione Marche.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per le Marche.
    Reenvio prejudicial — Auxílios de Estado — Regulamento (CE) n.o 800/2008 — Isenção geral por categoria — Âmbito de aplicação — Artigo 1.o, n.o 6, alínea c) — Artigo 1.o, n.o 7, alínea c) — Conceito de “empresa em dificuldade” — Conceito de “processo de insolvência” — Sociedade beneficiária de um auxílio de Estado ao abrigo de um programa operacional regional do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) posteriormente admitida à concordata com os credores com continuação da atividade — Revogação do auxílio — Obrigação de reembolso do adiantamento pago.
    Processo C-245/16.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2017:271

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

    apresentadas em 5 de abril de 2017 ( 1 )

    Processo C‑245/16

    Nerea S.p.A.

    contra

    Regione Marche

    [pedido de decisão prejudicial apresentada pelo Tribunale Amministrativo Regionale per le Marche (Tribunal Administrativo da Região de Marcas, Itália)]

    «Questão prejudicial — Auxílios de Estado — Regulamento (CE) n.o 800/2008 — Pedido de acordo com os credores apresentado por uma empresa que beneficia de fundos europeus — Conceito de empresa em dificuldade — Conceito de processo coletivo de insolvência — Condições para o indeferimento ou revogação do auxílio com recurso aos fundos europeus — Dever de restituição do auxílio»

    1. 

    Este reenvio prejudicial oferece ao Tribunal de Justiça a oportunidade de se pronunciar sobre os conceitos de «empresas em dificuldade» ( 2 ) e «processo coletivo de insolvência», utilizados no artigo 1.o do Regulamento (CE) n.o 800/2008 ( 3 ) nos seus n.os 6, alínea c), e 7, alínea c), respetivamente.

    2. 

    As dúvidas do tribunal de reenvio surgiram no decurso de uma ação intentada por uma empresa (Nerea S.p.A, a seguir «Nerea») com vista à impugnação da revogação de um auxílio público que a Administração Regional italiana lhe havia concedido com recurso a um programa do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER).

    3. 

    Quando o incentivo lhe foi atribuído (março de 2012), a Nerea preenchia os requisitos previstos no anúncio dos auxílios, incluindo não se tratar de uma empresa em dificuldade. No entanto, o organismo gestor destes auxílios considerou que deixava de os preencher ao ter requerido, em dezembro de 2013, a abertura de um «concordato preventivo», que qualificou de processo coletivo de insolvência, na aceção do Regulamento n.o 800/2008, o que levou aquele organismo a revogar a decisão inicial e a exigir a restituição dos respetivos montantes [do auxílio] à empresa beneficiária.

    4. 

    As partes divergem quanto à natureza do processo de insolvência iniciado pela Nerea e quanto à sua qualificação de «empresa em dificuldade». O debate estendeu‑se também ao momento em que deve ser apreciada a eventual existência de uma situação (originária ou superveniente) de dificuldade.

    I. Quadro Jurídico

    A. Direito da União

    1.  Regulamento n.o 800/2008

    5.

    No considerando 15 pode ler‑se:

    «Os auxílios concedidos a empresas em dificuldade na aceção das Orientações comunitárias relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação a empresas em dificuldade […] devem ser apreciados à luz das referidas orientações, a fim de evitar que estas sejam contornadas. Por conseguinte, os auxílios concedidos a essas empresas deverão ser excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento. A fim de reduzir a carga administrativa que pesa sobre os Estados‑Membros, aquando da concessão de auxílios às [pequenas e médias empresas] abrangidos pelo presente regulamento, a definição do que é considerado uma empresa em dificuldade deve ser simplificada, face à definição utilizada no referido enquadramento. Além disso, as PME criadas há menos de três anos não devem, para efeitos do presente regulamento, ser consideradas empresas em dificuldade durante esse período, a menos que preencham os critérios estabelecidos no direito nacional para serem objeto de um processo coletivo de insolvência. Estas simplificações não devem prejudicar a classificação destas PME no que diz respeito a auxílios não abrangidos pelo presente regulamento nem a classificação de grandes empresas como empresas em dificuldade, ao abrigo do presente regulamento, que se mantêm sujeitas à definição completa enunciada no referido enquadramento.»

    6.

    O artigo 1.o dispõe:

    «[…]

    6.   O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios:

    […]

    c)

    Auxílios a favor de empresas em dificuldade.

    7.   Para efeitos do disposto na alínea c) do artigo 6.o, uma PME será considerada como sendo uma empresa em dificuldade desde que satisfaça as seguintes condições:

    a)

    Se se tratar de uma sociedade de responsabilidade limitada, quando mais de metade do seu capital social tiver desaparecido e mais de um quarto desse capital tiver sido perdido durante os últimos 12 meses; ou

    b)

    Se se tratar de uma sociedade em que pelo menos alguns sócios têm responsabilidade ilimitada relativamente às dívidas da empresa, quando mais de metade dos seus fundos próprios, tal como indicados na contabilidade da sociedade, tiver desaparecido e mais de um quarto desses fundos tiver sido perdido durante os últimos 12 meses; ou

    c)

    Relativamente a todas as formas de sociedade, a empresa preencha nos termos do direito nacional as condições para ser objeto de um processo coletivo de insolvência.

    As PME criadas há menos de três anos não serão consideradas, para efeitos do presente regulamento, empresas em dificuldade durante esse período, a menos que satisfaçam as condições estabelecidas na alínea c) do primeiro parágrafo.»

    2.  Orientações comunitárias relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação a empresas em dificuldade  ( 4 )

    7.

    Segundo o ponto 9 das orientações 2004:

    «Não existe qualquer definição comunitária de ‘empresa em dificuldade’. No entanto, para efeito das presentes orientações, a Comissão considera que uma empresa se encontra em dificuldade quando é incapaz, com os seus próprios recursos financeiros ou com os recursos que os seus proprietários/acionistas e credores estão dispostos a conceder‑lhe, de suportar prejuízos que a condenam, na ausência de uma intervenção externa dos poderes públicos, ao desaparecimento quase certo a curto ou médio prazo».

    8.

    Nos termos do ponto 10:

    «Em especial, uma empresa será, em princípio e independentemente da sua dimensão, considerada em dificuldade para efeitos das presentes orientações:

    a)

    Se se tratar de uma sociedade de responsabilidade limitada, quando mais de metade do seu capital subscrito tiver desaparecido e mais de um quarto desse capital tiver sido perdido durante os últimos 12 meses; ou;

    b)

    Se se tratar de uma sociedade em que pelo menos alguns sócios têm responsabilidade ilimitada relativamente às dívidas da empresa, quando mais de metade dos seus fundos próprios, tal como indicados na contabilidade da sociedade, tiver desaparecido e mais de um quarto desses fundos tiver sido perdido durante os últimos 12 meses; ou;

    c)

    Relativamente a todas as formas de sociedades, a empresa preencha nos termos do direito nacional as condições para ser objeto de um processo de falência ou de insolvência».

    9.

    No ponto 11 pode ler‑se:

    «Ainda que nenhuma das condições referidas no ponto 10 esteja preenchida, uma empresa pode ainda ser considerada em dificuldade, designadamente se as características habituais de uma empresa nessa situação se manifestarem, como por exemplo o nível crescente dos prejuízos, a diminuição do volume de negócios, o aumento das existências, a capacidade excedentária, a redução da margem bruta de autofinanciamento, o endividamento crescente, a progressão dos encargos financeiros e o enfraquecimento ou desaparecimento do valor do ativo líquido Nos casos mais graves, a empresa pode mesmo já ter‑se tornado insolvente ou ser objeto de um processo de falência ou insolvência ao abrigo do direito nacional. Neste último caso, as presentes orientações são aplicáveis aos auxílios concedidos no âmbito de processos desse tipo, com vista a manter a empresa em atividade. De qualquer modo, a empresa só é elegível após verificação da sua incapacidade para garantir a sua recuperação com os seus recursos próprios ou com fundos obtidos junto dos seus proprietários/acionistas ou junto do mercado».

    B. Direito nacional

    10.

    O artigo 186.o‑A do Decreto Real n.o 267 [Regio Decreto n.o 267], ( 5 ) na redação aplicável ratione temporis aos factos do litígio, regula o chamado «concordato preventivo» (a seguir «acordo com os credores» ou «acordo com os credores com continuação da atividade») nos seguintes termos:

    «Quando o plano de acordo a que se refere o artigo 161.o, segundo parágrafo, alínea e), previr a continuação da atividade empresarial por parte do devedor, a cessão da empresa em funcionamento ou a transferência da empresa em funcionamento para uma ou mais sociedades, mesmo recentemente constituídas, será aplicável o disposto no presente artigo. O plano pode prever igualmente a liquidação de bens não essenciais para o funcionamento da empresa.

    Nos casos previstos pelo presente artigo:

    a)

    o plano a que se refere o artigo 161.o, segundo parágrafo, alínea e), deve conter igualmente uma indicação analítica das despesas e receitas que se esperam da continuação da atividade da empresa prevista pelo plano de acordo, dos recursos financeiros necessários e das respetivas modalidades de cobertura;

    b)

    o relatório do profissional a que se refere o artigo 161.o, terceiro parágrafo, deve atestar que a continuação da atividade empresarial prevista no plano de acordo contribuirá para a melhor satisfação dos credores;

    c)

    o plano pode prever, sem prejuízo do disposto no artigo 160.o, segundo parágrafo, uma moratória de até um ano, a contar da homologação, para o pagamento dos credores que tenham privilégios, penhores ou hipotecas, salvo se previr a liquidação dos bens ou direitos relativamente aos quais existam tais privilégios, penhores ou hipotecas. Nesse caso, os credores que gozem dos mesmos não têm direito de voto.

    Sem prejuízo do disposto no artigo 169.o‑A, os contratos em execução à data da propositura da ação, incluindo os celebrados com administrações públicas, não se extinguem por efeito do início do processo. Eventuais acordos em contrário são nulos. A admissão do acordo com os credores não impede a continuação de contratos públicos se o profissional indicado pelo devedor a que se refere o artigo 67.o tiver atestado a conformidade com o plano e uma razoável capacidade de cumprimento. Pode igualmente beneficiar de tal continuação, desde que estejam preenchidos os requisitos legais, a sociedade cessionária da empresa ou de setores de atividade da empresa cujos contratos tenham sido transferidos. O juiz delegado, no ato da cessão ou da transferência, determina o cancelamento das inscrições e transcrições.

    Após a propositura da ação, a participação em processos de adjudicação de contratos públicos deve ser autorizada pelo tribunal, após obtenção do parecer do administrador judicial, caso tenha sido nomeado; na falta de tal nomeação, o tribunal decidirá.

    A admissão ao acordo com os credores não impede a participação em processos de adjudicação de contratos públicos, quando a empresa apresentar no concurso:

    a)

    um relatório de um profissional que preencha os requisitos a que se refere o artigo 67.o, terceiro parágrafo, alínea d), e que ateste a conformidade com o plano e uma razoável capacidade de cumprimento do contrato;

    b)

    a declaração de outro operador que preencha os requisitos de caráter geral, de capacidade financeira, técnica e económica, bem como de certificação, exigidos para a adjudicação do contrato, que se tenha comprometido para com o concorrente e para com a entidade adjudicante a colocar à disposição, durante a vigência do contrato, os recursos necessários à execução do mesmo e a substituir se à empresa auxiliada em caso de insolvência da mesma durante o processo de concurso ou após a celebração do contrato ou se esta, por qualquer razão, deixar de poder executar adequadamente o contrato. É aplicável o artigo 49.o do Decreto Legislativo n.o 163, de 12 de abril de 2006.

    Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, a empresa em situação de acordo com os credores pode igualmente concorrer integrada num agrupamento temporário de empresas, desde que não assuma a qualidade de mandatária e sempre que as outras empresas que integram o agrupamento não sejam objeto de um processo de insolvência. Em tal caso, a declaração a que se refere o quarto parágrafo, alínea b), pode igualmente provir de um operador que faça parte do agrupamento.

    Se, durante um processo iniciado nos termos do presente artigo, o exercício da atividade empresarial cessar ou se afigurar manifestamente prejudicial para os credores, o tribunal decidirá nos termos do artigo 173.o Tal não prejudica a faculdade do devedor de alterar a proposta de acordo.»

    II. Matéria de facto

    11.

    A Junta da Região de Marcas ( 6 ) aprovou, em 9 de novembro de 2010, um anúncio para a concessão de apoios a certas atividades das pequenas e médias empresas, no âmbito do programa operacional regional do FEDER para o período 2007‑2013. ( 7 )

    12.

    O anúncio continha no seu anexo I, entre outras, as cláusulas aplicáveis aos «beneficiários» (artigo 1.o), às «causas de inadmissibilidade» para participar no concurso (artigo10.3 e 19.°), aos «deveres relativos à estabilidade das operações» (artigo 17.3) e às «causas de revogação» dos auxílios concedidos (artigo 20.o).

    13.

    Quanto aos beneficiários, a cláusula n.o 1 previa os requisitos necessários para as empresas que pretendessem aceder aos incentivos, entre os quais, no que diz respeito ao litígio, que «no momento da apresentação do pedido [as empresas] não se encontram em situação de dificuldade, na aceção do artigo 1.o, n.o 7, do Regulamento n.o 800/2008» ( 8 ).

    14.

    O artigo 17.3, dispõe que «o beneficiário do auxílio está obrigado a respeitar o vínculo de estabilidade da própria operação, garantindo que, durante os cinco anos subsequentes à data de conclusão da operação cofinanciada, não se verifiquem, relativamente à mesma, modificações substanciais que alterem a sua natureza ou as modalidades de execução, ou que gerem vantagens indevidas para uma empresa ou para uma entidade pública e impliquem uma alteração da natureza da propriedade de uma infraestrutura ou a cessação de uma atividade.»

    15.

    A empresa Nerea apresentou, em 13 de abril de 2011, um pedido de apoio, que foi aceite, tendo‑lhe sido atribuído, em 20 de março de 2012, um montante de 144052,58 euros.

    16.

    Após ter recebido, a título de antecipação, 50% do auxílio (72026,29 euros), a Nerea realizou os investimentos a que se tinha comprometido ( 9 ) e apresentou as contas finais em 18 de novembro de 2013, pedindo, em simultâneo, o pagamento do saldo remanescente.

    17.

    Pouco mais de um mês após essa data, em 24 de dezembro de 2013, a Nerea apresentou um pedido de acordo com os credores no Tribunale di Macerata (Tribunal de Macerata), que deu início ao processo correspondente em 15 de outubro de 2014.

    18.

    Em 11 de fevereiro de 2015, o organismo gestor dos auxílios ( 10 ) notificou a Nerea do início do procedimento de revogação do incentivo, devido «à perda dos requisitos de admissibilidade […] como consequência da admissão da empresa a um processo de insolvência, de acordo com a aplicação conjugada dos artigos 1.° e 20.° do anúncio do concurso».

    19.

    A Nerea pediu a anulação do procedimento de revogação, pretensão que foi indeferida, em 20 de março de 2015, pelo MMC, alegando que a sua sujeição ao processo de acordo com os credores impedia o acesso ao auxílio, nos termos do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 e da cláusula n.o 1 do anúncio.

    20.

    Por decisão de 11 de maio de 2015, o órgão competente da Região de Marcas revogou o auxílio concedido e exigiu à Nerea o reembolso do montante já pago, acrescido de 4997, 30 euros a título de juros.

    21.

    A Nerea interpôs recurso no Tribunale Amministrativo Regionale per le Marche (Tribunal Administrativo da Região de Marcas, Itália), tendo este submetido ao Tribunal de Justiça o pedido de decisão prejudicial.

    III. Questões prejudiciais

    22.

    As questões prejudiciais, submetidas ao Tribunal de Justiça em 28 de abril de 2016, têm a seguinte redação:

    «1.

    A título preliminar, o artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 refere‑se unicamente aos processos que podem ser iniciados oficiosamente pelas autoridades administrativas e judiciais dos Estados‑Membros (em Itália, por exemplo, a insolvência) ou também aos que podem ser iniciados unicamente a pedido do empresário interessado (como, no direito nacional, o acordo com os credores [‘concordato preventivo’]), tendo em conta que a disposição refere ‘ser objeto’ de um processo coletivo de insolvência?

    2.

    Caso se considere que o Regulamento n.o 800/2008 se refere a todos os processos de insolvência, e especialmente ao instituto do acordo com os credores com continuação da atividade previsto pelo artigo 186.o‑A do Decreto Real n.o 267/1942, deve o artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 ser interpretado no sentido de que o simples facto de estarem preenchidos os requisitos de um processo por insolvência contra o empresário que pretende obter uma contribuição com recurso a fundos estruturais impede a concessão do financiamento ou obriga a autoridade nacional de gestão a revogar os financiamentos já concedidos ou, pelo contrário, a situação de dificuldade deve ser verificada in concreto, tomando em conta, por exemplo, o momento de início do processo, o cumprimento, pelo empresário, dos compromissos assumidos e quaisquer outras circunstâncias relevantes?»

    23.

    Segundo o tribunal de reenvio, a Nerea encontrar‑se‑ia, em princípio, numa situação incompatível com a concessão do auxílio controvertido, uma vez que, por um lado, o anúncio estabelecia a obrigação de respeitar durante cinco anos o dever de estabilidade da operação subvencionada, e, por outro, «é muito difícil negar a existência de uma situação de dificuldade na aceção do artigo 1.o, n.os 6 e 7, do Regulamento n.o 800/2008, num caso em que o pedido de acordo com os credores surge pouquíssimos dias após a apresentação das contas finais dos auxílios [uma vez que] é evidente que o estado de ‘dificuldade’ de uma empresa em honrar os seus compromissos não ocorre em poucos dias» ( 11 ).

    24.

    No entanto, o tribunal de reenvio entende que importa notar «uma possível falta de sintonia interna num sistema que, por um lado, em nome da proteção da economia geral da União, permite que as empresas em dificuldade, mas que conservem margens objetivas de produtividade, se reestruturem gozando de incontestáveis vantagens competitivas (compensadas, todavia, pela sujeição a uma fiscalização judicial externa) e, por outro lado, permite que as mesmas empresas sejam privadas — incluindo ex post — de recursos financeiros de origem pública que, até prova em contrário […], devem considerar‑se utilizados precisamente para prosseguir o objetivo do saneamento e da recuperação» ( 12 ).

    IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

    25.

    Apresentaram observações escritas a Região de Marcas e os Governos italiano e polaco, bem como a Comissão.

    26.

    Segundo a Região de Marcas, a revogação do auxílio e a recuperação do montante entregue à Nerea são procedentes, nos termos do artigo 1.o e do artigo 17.3, do anúncio, segundo o qual o beneficiário estava obrigado, durante os cinco anos seguintes à data de execução da operação cofinanciada, a respeitar o dever de estabilidade de tal operação. Uma vez que a abertura do processo de acordo com os credores demonstrava que a Nerea se encontrava em situação de dificuldade quando pediu o pagamento do saldo do auxílio, a empresa não preenchia o requisito de solidez financeira exigido pelo anúncio.

    27.

    Para além disso, a Região de Marcas alega que o facto de, no caso em apreço, o pedido de acordo com os credores ter sido admitido é irrelevante, dado que o programa do FEDER foi aprovado antes da entrada em vigor da legislação nacional que regula este novo processo de insolvência. Na ausência de disposições derrogatórias específicas, da União ou nacionais, não se podem tomar em consideração as peculiaridades do referido instituto.

    28.

    Quanto à primeira questão, o Governo italiano afirma que o tribunal de reenvio parte erradamente da ideia de que uma empresa não está sujeita a um processo coletivo de insolvência quando este tem início a seu pedido. Em sua opinião, o que é relevante é determinar, em primeiro lugar, se o acordo com os credores corresponde à definição de «processo coletivo de insolvência» e, posteriormente, analisar, em caso de resposta negativa, se, pedido ou não um acordo com os credores, estão cumpridas as condições de abertura de um processo coletivo de insolvência.

    29.

    Para o Governo italiano, uma vez que o acordo com os credores envolve uma situação de dificuldade que não tem necessariamente de implicar a insolvência da empresa afetada, não se pode concluir que esse tipo de acordo constitua um processo coletivo de insolvência. No entanto, nada exclui que uma empresa sujeita a um acordo com estas características reúna, também, os requisitos necessários para ser objeto de um processo coletivo de insolvência.

    30.

    Relativamente à segunda questão, o Governo italiano indica, a partir das suas considerações relativas à questão anterior, que a mera verificação das condições de início de um acordo com os credores não pode impedir o acesso aos fundos estruturais nem impor a revogação dos fundos já concedidos. Tal atuação seria dificilmente conciliável com a finalidade desse acordo, que não é senão permitir a continuidade da empresa. O indeferimento ou, se for o caso, a revogação do auxílio teriam apenas lugar, portanto, uma vez verificada in concreto a existência de uma situação de dificuldade na aceção do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008.

    31.

    O Governo polaco defende, quanto à primeira questão, que, de acordo com as orientações 2004, o conceito de «processo coletivo de insolvência», na aceção do artigo 1.o, n.o 7, do Regulamento n.o 800/2008, deverá ser interpretado como aplicando‑se a processos judiciais e administrativos sem os quais uma empresa é incapaz de fazer face, com os seus próprios meios ou com os dos seus proprietários/acionistas e credores, a prejuízos que a condenam a um desaparecimento certo a curto ou médio prazo. É irrelevante que os referidos processos tenham sido iniciados oficiosamente ou a pedido da empresa afetada, dado que o Regulamento n.o 800/2008 não prevê nenhuma limitação a esse respeito.

    32.

    Quanto à segunda questão, o Governo polaco defende que os requisitos exigidos para o benefício de um auxílio previstos no Regulamento n.o 800/2008 devem estar preenchidos no momento da sua concessão, sem que a alteração posterior das circunstâncias implique o dever de o restituir.

    33.

    Para a Comissão, no que diz respeito à primeira questão, o artigo 1.o, n.o 6, alínea c), e o artigo 7.o, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 abrangem todos os processos coletivos de insolvência, entre os quais se encontra, nos termos do direito italiano, o acordo com os credores. Compete às autoridades nacionais determinar se se verificam as condições previstas pelo direito interno (para o qual remete o direito da União) para dar seguimento a esses processos, sendo irrelevante que sejam iniciados oficiosamente ou a pedido da empresa afetada. O facto de a Nerea ter pedido o processo de acordo com os credores pressupõe que era uma empresa em dificuldade, nos termos do Regulamento n.o 800/2008.

    34.

    Quanto à segunda questão, a Comissão entende que o Regulamento n.o 800/2008 exclui as empresas que se encontrem em dificuldade no momento da concessão do auxílio, mas não impõe a sua restituição, uma vez concedido, às que não se encontravam nessa situação no momento do acordo. Assim, a Nerea, não estaria em situação de dificuldade quando lhe foi concedido o incentivo e, portanto, o direito da União não obrigaria as autoridades nacionais a revogá‑lo. Isto sem prejuízo de que os Estados‑Membros são livres para conceder ou indeferir, de acordo com o seu direito nacional, um auxílio compatível com o mercado comum e, se for o caso, para o recuperar.

    V. Análise

    A. Considerações preliminares

    35.

    Para dar uma resposta útil ao tribunal de reenvio, parece‑me oportuno distinguir dois planos da controvérsia. O primeiro diz respeito à interpretação do direito da União (concretamente, do Regulamento n.o 800/2008) no âmbito do litígio no processo principal. O segundo, pelo contrário, circunscreve‑se à exegese das disposições de direito nacional (em particular, de determinadas cláusulas do anúncio) que não exigem necessariamente a aplicação do referido regulamento.

    36.

    No que diz respeito ao primeiro plano, a análise do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 seria adequada se a Nerea tivesse sido objeto de um processo de insolvência (e fosse, portanto, qualificável de empresa em dificuldade) quando pediu e obteve o incentivo cofinanciado com fundos FEDER. Mas, como é admitido por todas as partes e salientado pelo tribunal de reenvio, nesses momentos (2011, para o pedido do auxílio, e 2012, para a respetiva concessão), a Nerea não se encontrava em dificuldade nem sujeita a nenhum processo de insolvência, que apenas teria início no final de 2013.

    37.

    A cláusula n.o 1 do anúncio, que remetia expressamente para o artigo 1.o do Regulamento n.o 800/2008 para o preenchimento do conceito de empresa em dificuldade excluída do regime de incentivos, dispõe que estes não podiam ser concedidos às empresas que, no momento da apresentação do seu pedido, se encontrassem nas situações de dificuldade previstas no referido artigo do Regulamento n.o 800/2008. A Nerea, insisto, cumpria esta condição (negativa), pelo que, sob essa perspetiva, podia ser beneficiária do auxílio. O artigo 1.o do Regulamento n.o 800/2008 não se opunha, portanto, à concessão do auxílio nem, simetricamente, exigiria a sua revogação.

    38.

    Situação diferente é que outra cláusula do anúncio (a n.o 17, ponto 3) exigisse um requisito de «estabilidade das operações» que, enquanto tal, já não se ligava a uma situação inicial de dificuldade, mas sim a circunstâncias supervenientes no decurso dos cinco anos posteriores ao fim das atividades cofinanciadas. Nem esta cláusula, nem a exigência de estabilidade que consagra, têm relação direta com o direito da União (rectius, com o Regulamento n.o 800/2008). O facto de este fornecer, ou não, orientações de interpretação para a sua aplicação, como parece sugerir o tribunal de reenvio, é algo sobre o qual me pronunciarei posteriormente.

    B. Conveniência de reformular as duas questões prejudiciais

    39.

    Lida nos seus próprios termos, a primeira questão do tribunal de reenvio (que o mesmo qualifica de «preliminar») limitar‑se‑ia a esclarecer, apenas, se os processos coletivos de insolvência a que se refere o artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 abrangem tanto os processos iniciados a pedido do empresário como os iniciados oficiosamente pelas autoridades administrativas e judiciais.

    40.

    A resposta a essa questão não suscita muitos problemas interpretativos: a referida disposição do Regulamento n.o 800/2008 simplesmente não estabelece uma distinção entre os processos coletivos de insolvência segundo a sua origem, oficiosa ou a pedido da parte, pelo que é aplicável a ambos. Concordo nesta análise com os governos que intervieram no processo prejudicial e com a Comissão.

    41.

    Concretamente, o «acordo com os credores com continuação da atividade», introduzido pela legislação italiana em 2012 (e que pode ser pedido pelas empresas com dificuldades de liquidez como alternativa ao seu desaparecimento), constitui uma modalidade do acordo com os credores que se enquadra, na minha opinião, no conceito de processo coletivo de insolvência do Regulamento n.o 800/2008.

    42.

    A resposta afirmativa a esta questão conduziria à segunda, isto é, a de saber se o facto de estarem preenchidos os requisitos de um processo coletivo de insolvência (seja oficiosamente, seja a pedido da parte) permite dar como provada uma situação de dificuldade que impeça a concessão de um auxílio (ou exija a revogação do auxílio já concedido) ou, pelo contrário, a verificação dessa situação deve ser apreciada in concreto.

    43.

    Para esclarecer esta dúvida, é imperativo decifrar, previamente, o conceito de «empresa em dificuldade», na aceção do artigo 1.o, n.o 6, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008, já que as empresas nessa situação são excluídas dos auxílios que a disposição regula. Se, nos termos do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do mesmo regulamento, «será considerada como sendo uma empresa em dificuldade» a PME que «preencha nos termos do direito nacional as condições para ser objeto de um processo coletivo de insolvência», não se pode prescindir dos ordenamentos nacionais na interpretação deste último conceito. ( 13 )

    44.

    Parece‑me, portanto, mais útil reformular as duas questões, analisando tanto em que consiste um «processo de insolvência», na aceção do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008, como o conceito de «empresa em dificuldade» referido no n.o 6, alínea c), do mesmo regulamento. A resposta a estas questões ajudará a abordar com maior segurança as dúvidas do tribunal de reenvio relativas à questão que constitui, para o referido tribunal, a chave do litígio: se, pelo facto de se encontrar numa situação que favorece o início de um processo coletivo de insolvência, a empresa afetada deve ser qualificada de empresa em dificuldade, de forma que não possa reivindicar o incentivo pedido ou que, se o mesmo lhe tiver sido concedido, este tenha de lhe ser revogado.

    C. Conceito de «empresa em dificuldade » previsto no artigo 1.o, n.o 6, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008

    45.

    Quando da adoção das orientações 2004, a Comissão admitia que «[n]ão existe qualquer definição comunitária de ‘empresa em dificuldade’». Era, assim, necessário definir num texto as características essenciais desse conceito, uma vez que dele dependia a aplicação de outras disposições do direito da União (como, por exemplo, as regras em matéria de auxílios de Estado ou as que regulam o controlo de concentrações) que não podem prescindir da realidade jurídica, económica e social que as empresas em situação de dificuldade representam.

    46.

    Assim, teve de recorrer a construções conceptuais ad hoc, capazes de atribuir a essa realidade complexa um sentido específico no contexto da aplicação das regras da União que a tiveram por objeto. Com este propósito foram publicadas as orientações 2004, destinadas a orientar a atividade da Comissão no âmbito dos auxílios estatais de emergência e à reestruturação de empresas em dificuldade. O Regulamento n.o 800/2008 assumiu como próprias as apreciações vertidas nessas orientações, atribuindo‑lhes valor normativo enquanto elementos constitutivos de um conceito que não pode senão qualificar‑se de autónomo, sob a perspetiva do direito da União.

    47.

    Segundo o considerando 15 do Regulamento n.o 800/2008, os auxílios a empresas em dificuldade «devem ser apreciados à luz das referidas orientações», embora, para as PME, «a definição do que é considerado uma empresa em dificuldade deve ser simplificada, em face da definição utilizada no referido enquadramento.»

    48.

    As orientações 2004 converteram‑se, assim, em critérios constitutivos, juridicamente vinculativos, do conceito normativo de «empresa em dificuldade». Um conceito que, repito, é necessariamente autónomo e privativo do direito da União, na medida em que, sendo aplicável no conjunto dos Estados‑Membros, opere em todos eles com um mesmo significado.

    49.

    Constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que «decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa» ( 14 ).

    50.

    A definição de «empresas em dificuldade» adotada pelo Regulamento n.o 800/2008 (para as excluir do seu âmbito de aplicação) não é exatamente a adotada pela Comissão nas orientações 2004, mas sim, como já referi, uma versão simplificada das mesmas. A leitura do artigo 1.o, n.o 7, do Regulamento n.o 800/2008 permite inferir que essa simplificação consistiu em consagrar apenas os elementos do conceito de «empresa em dificuldade» do ponto 10 das orientações 2004, excluindo, portanto, os previstos no seu ponto 11.

    51.

    De facto, o ponto 10 das orientações 2004 é reproduzido de forma quase literal no artigo 1.o, n.o 7, do Regulamento n.o 800/2008, sendo apenas acrescentada uma referência às PME criadas há menos de três anos, já avançada no considerando 15 do regulamento. Nada é dito, no entanto, relativamente aos fatores que, de acordo com o ponto 11 das orientações 2004, também poderiam conduzir ao mesmo resultado, mas cuja verificação exigiria uma maior atividade probatória. Optou‑se por prescindir dos mesmos a fim de «reduzir a carga administrativa que pesa sobre os Estados‑Membros».

    52.

    Das três situações qualificativas utilizadas pelo artigo 1.o, n.o 7, do Regulamento n.o 800/2008, a fim de, para os efeitos do seu âmbito de aplicação, determinar quando é que uma PME se encontra em dificuldade, as correspondentes às alíneas a) ( 15 ) e b) ( 16 ) não são relevantes para este processo. Nestes dois casos, os critérios definitórios estão previstos, de forma completa, pelo próprio Regulamento n.o 800/2008, pelo que não é necessário recorrer ao direito dos Estados‑Membros para determinar a sua verificação numa situação determinada. A autonomia do conceito comunitário é, assim, inegável no que diz respeito a ambos.

    53.

    O terceiro dos critérios, que é o que aqui importa («a empresa [que] preencha nos termos do direito nacional as condições para ser objeto de um processo coletivo de insolvência»), faz apelo, é certo, às regras internas de cada Estado‑Membro. Não é, no entanto, uma remissão absoluta, uma vez que o recurso ao direito interno se limita à definição das condições de abertura de um processo que, por seu lado, terá de corresponder também a um conceito autónomo do direito da União.

    D. Conceito de «processo coletivo de insolvência » utilizado no artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008

    54.

    A mesma necessidade de unidade e de coerência do sistema que é imposta pela configuração do conceito de «empresa em dificuldade», enquanto categoria própria do direito da União, estende‑se ao conceito de «processo coletivo de insolvência», não obstante o recurso aos ordenamentos nacionais para a sua concretização.

    55.

    A utilização desta categoria jurídica tem de se realizar no âmbito do Regulamento n.o 800/2008 (isto é, atendendo ao seu objeto e à sua finalidade), com fundamento no facto de o conceito de «processo coletivo de insolvência» não ser desconhecido do direito da União, contando com uma consagração comunitária expressa.

    56.

    O Regulamento (CE) n.o 1346/2000 ( 17 ) definia no seu artigo 2.o, alínea a), o processo de insolvência como «os processos coletivos a que se refere o n.o 1 do artigo 1.o» do mesmo regulamento, ou seja, «em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um sindico.» Partindo desta premissa, o artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 1346/2000 incorporou a lista dos diferentes processos nacionais de insolvência, especificados na súmula constante do seu anexo A.

    57.

    Nesse anexo, e no que diz respeito à Itália, foi incluído o denominado «concordato preventivo». ( 18 ) Não foi então referido o acordo com continuação da atividade da empresa, porque este viria a ser introduzido posteriormente no direito italiano (segundo o tribunal de reenvio, em 2012). Assim, é legítimo perguntar se o modo como o direito nacional configurou esse acordo o converte num processo diferente do concordato preventivo ou numa simples variante deste.

    58.

    A resposta compete, como é lógico, à jurisdição nacional, embora a localização do artigo 186.o‑A na economia da Lei italiana de insolvência e o seu teor literal pareçam suportar a ideia de que o acordo com os credores com continuação da atividade não é senão uma (nova) modalidade de concordato preventivo, em geral, isto é, que não se constitui como algo diferente desta última categoria, mais ampla. ( 19 ) O próprio tribunal de reenvio reconhece que o acordo com os credores com continuação da atividade constitui um «genus dos processos coletivos de insolvência». ( 20 )

    59.

    Consequentemente, creio que, se o tribunal de reenvio confirmar que o acordo com os credores com continuação da atividade constitui uma modalidade do concordato preventivo referido no anexo A do Regulamento n.o 1346/2000, deve deduzir‑se que esse acordo constitui um processo coletivo de insolvência na aceção do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008.

    60.

    Para além disso, como já referi, na medida em que o artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento n.o 800/2008 não estabelece uma distinção entre os processos coletivos de insolvência iniciados oficiosamente e os iniciados a pedido do empresário ou dos seus credores, entendo que constitui uma distinção irrelevante para os efeitos que aqui estão em causa.

    E. Verificação das condições previstas para o início de um processo coletivo de insolvência

    61.

    O tribunal de reenvio pretende saber — e tal constitui o núcleo da dúvida que o levou a dirigir‑se ao Tribunal de Justiça — se a simples verificação das condições que justificam o início de um processo coletivo de insolvência determina que a empresa afetada se encontra em situação de dificuldade, na aceção do Regulamento n.o 800/2008, ou se, pelo contrário, se deve evitar qualquer automatismo e analisar as circunstâncias de cada caso, para determinar se a empresa se encontra ou não numa situação realmente crítica.

    62.

    Enquanto a Região de Marcas e a Comissão optam pela primeira solução, os Governos italiano e polaco defendem a segunda.

    63.

    Creio que se pode deduzir da finalidade do Regulamento n.o 800/2008 e da vontade explícita do legislador que uma empresa estará em dificuldade, no sentido do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), dessa disposição, quando reúna as condições objetivas para ser objeto de um processo coletivo de insolvência, em termos puramente formais.

    64.

    O Regulamento n.o 800/2008 pretendeu «simplificar» a definição de «empresa em dificuldade» das orientações 2004 e fê‑lo prescindindo dos elementos enumerados no ponto 11 dessas orientações, isto é, daqueles cuja apreciação por parte das autoridades dos Estados‑Membros implicaria para estas uma carga administrativa que, de acordo com o mesmo regulamento, se pretende aliviar.

    65.

    Seria dificilmente conciliável com esse objetivo de simplificação — e seria contrário ao desejo legislativo de evitar o conteúdo do ponto 11 das orientações 2004 — que as autoridades nacionais não tivessem de se limitar a constatar se se verificam as circunstâncias para iniciar um processo coletivo de insolvência, e estivessem obrigadas, indo para além dessa constatação — que, por si só, nem sempre é fácil —, a efetuar uma apreciação material como a que sugere o tribunal de reenvio.

    66.

    Ao que precede acrescem dois argumentos complementares. O primeiro diz respeito ao facto de que compete aos órgãos judiciais competentes em matéria de insolvência, nos quais tem de ser apresentado o acordo com os credores, decidir, precisamente em função das circunstâncias particulares de cada empresa, quando é que se encontra numa situação que exija a suspensão dos pagamentos aos seus credores (por outras palavras, quando é que se encontra em dificuldade financeira). No caso dos autos, o Tribunale di Macerata (Tribunal de Macerata) que, segundo a tribunal de reenvio, «homologou» ( 21 ) o acordo com os credores, teve de verificar, de facto, se ocorriam as circunstâncias legalmente previstas para tal.

    67.

    O segundo argumento complementar, no mesmo sentido, consiste no facto de a finalidade do Regulamento não ser declarar compatíveis com o mercado comum quaisquer categorias de auxílios, mas apenas as que tenham por objeto a satisfação de necessidades para as quais é preciso contar, precisamente, com empresas que se encontrem em condições de as abordar, o que exclui os incentivos às que estão em dificuldade. Na minha opinião, reunir as condições para ser objeto de um processo coletivo de insolvência constitui, por si só, um motivo suficientemente razoável para duvidar da viabilidade da atividade em cujo benefício se pede o incentivo, e permite suspeitar que, com o auxílio pedido, se pretende fazer face a uma situação de dificuldade, eludindo a aplicação das orientações 2004, facto que o Regulamento n.o 800/2008 pretende evitar.

    68.

    Em última análise, não se pode esquecer que, «na medida em que atenuam a regra geral da obrigação de notificação [dos auxílios estatais], o Regulamento n.o 800/2008 e as condições aí previstas devem ser interpretados de modo estrito» ( 22 ).

    69.

    Consequentemente, entendo que se deveria responder à questão submetida pelo tribunal de reenvio que, se uma empresa preenche os requisitos exigíveis para ser objeto de um processo coletivo de insolvência, não pode ser beneficiária de um auxílio público com recurso a fundos estruturais.

    70.

    No entanto, esta declaração tem de ser matizada de imediato, dada a dúvida do tribunal de reenvio, que também pretende saber se, uma vez iniciado um processo coletivo de insolvência após a atribuição de um auxílio (tal como no caso da Nerea), as autoridades nacionais de gestão estão obrigadas a revogá‑lo. Questão que se relaciona com aquilo a que chamei, nas minhas considerações preliminares, segundo plano da controvérsia, isto é, o que diz respeito à exegese e à aplicação das cláusulas do anúncio.

    F. Quanto à revogação ( 23 )dos auxílios concedidos

    71.

    Como já expliquei, a aptidão da empresa que pede um auxílio deve ser apreciada quando este lhe é concedido, isto é, «no momento em que o direito de os receber é conferido ao beneficiário em virtude da regulamentação nacional aplicável». ( 24 ) Não existe, na realidade, divergência relativamente ao facto de que a Nerea preenchia os requisitos para receber o auxílio controvertido quando este lhe foi atribuído.

    72.

    A situação de dificuldade da Nerea, evidenciada ao declarar‑se iniciado o processo coletivo de insolvência em 15 de outubro de 2014, verificou‑se quando já tinha recebido 50% do auxílio e realizado (segundo o tribunal de reenvio) o investimento financiado, do qual apresentou as contas finais em 18 de novembro de 2013.

    73.

    Se a Nerea não fosse uma «empresa em dificuldade», até depois de lhe ter sido concedido o auxílio (e, mais ainda, depois de ter cumprido os seus compromissos de investimento), nenhuma disposição do Regulamento n.o 800/2008 impunha a revogação do auxílio. O direito da União não exige a devolução do incentivo em casos como este.

    74.

    Ora, tal como afirma a Comissão, ( 25 ) o facto de um auxílio estatal ser declarado compatível com o mercado interno não significa que um Estado‑Membro seja obrigado a concedê‑lo ou que não possa exigir a sua devolução quando as disposições nacionais, quer de ordem geral, quer constantes do anúncio, assim o determinem.

    75.

    O artigo 17.o, n.o 3, do anúncio previa o que creio poder qualificar‑se de uma condição resolutiva em sentido técnico‑jurídico: o beneficiário estava obrigado a «respeitar o dever de estabilidade» da operação cofinanciada, durante os cinco anos subsequentes à data de conclusão dessa operação. Esse compromisso incluía o de evitar que se verificassem «modificações substanciais que alterem a sua natureza [da operação] ou as modalidades de execução ou que gerem vantagens indevidas para uma empresa ou para um organismo público.» Tal condição, tivesse ou não caráter resolutivo, é alheia ao Regulamento n.o 800/2008, que não pode, portanto, fornecer orientações para a sua interpretação ou para a sua execução.

    76.

    Não tendo o Tribunal de Justiça competência para se pronunciar sobre o conteúdo e o alcance dessa cláusula concreta do anúncio de auxílios, terá de ser o tribunal de reenvio a decidir se, de facto, a cláusula não foi cumprida ( 26 ) e quais seriam as consequências desse incumprimento.

    77.

    Com efeito, o problema decorrente do surgimento (superveniente) de uma situação de dificuldade empresarial, uma vez recebido o auxílio e cumpridos os compromissos de investimento do beneficiário, não encontra resposta nas disposições analisadas do Regulamento n.o 800/2008. A interpretação dos conceitos do referido regulamento, a que já me referi, não fornece orientações para a solução do paradoxo que o tribunal de reenvio descreve, quando contrasta, por um lado, o objetivo de incentivar a reestruturação das PMES em dificuldade de liquidez, mas que conservem margens objetivas de produtividade, e, por outro, a regra nacional que as priva «ex post […] de recursos financeiros de origem pública adequados para prosseguir o objetivo de saneamento e de recuperação».

    78.

    Compete ao tribunal de reenvio, em definitivo, decidir até que ponto o incumprimento dessa condição de estabilidade se traduzirá na revogação do auxílio e na recuperação do montante pago à Nerea. Se, por imperativo das disposições de direito interno aplicáveis, o referido auxílio tivesse de ser revogado e fosse exigível, para além disso, a recuperação do montante pago e dos seus juros, não seria violado, por esse motivo, o Regulamento n.o 800/2008 nem seria afetada a compatibilidade do auxílio com o mercado interno quando foi concedido, as únicas questões relativamente às quais o Tribunal de Justiça se pode pronunciar no que diz respeito à interpretação do referido Regulamento.

    79.

    Sugiro, assim, como resposta à questão submetida que, nos termos do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 800/2008, a verificação dos requisitos previstos no direito nacional para que uma empresa seja objeto de um processo coletivo de insolvência é relevante no momento da concessão do auxílio, e não quando esse facto se verifique de forma superveniente, em circunstâncias como as do processo principal. As autoridades nacionais poderão, no entanto, revogar o auxílio e exigir a recuperação dos montantes já pagos se, de acordo com o seu direito interno, a empresa beneficiária não tiver cumprido as cláusulas do anúncio que regulavam a concessão desse auxílio.

    VI. Conclusão

    80.

    Atendendo a todas as considerações efetuadas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Tribunale Ammnistrativo Regionale per le Marche (Tribunal Administrativo da Região de Marcas) nos seguintes termos:

    «1.

    O artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 800/2008 da Comissão, de 6 de agosto de 2008, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado comum, em aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado, deve ser interpretado no sentido de que se refere tanto aos processos coletivos de insolvência que podem ser iniciados oficiosamente pelas autoridades administrativas e jurisdicionais como aos iniciados a pedido da empresa afetada.

    2.

    Caso o acordo com os credores com continuação da atividade se inclua na modalidade processual do concordato preventivo referido no anexo A do Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, cuja determinação compete ao tribunal de reenvio, o referido acordo constituiria um processo coletivo de insolvência, na aceção do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 800/2008.

    3.

    Nos termos do artigo 1.o, n.o 7, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 800/2008, a verificação dos requisitos previstos no direito nacional para que uma empresa seja objeto de um processo coletivo de insolvência é relevante no momento da concessão do auxílio, e não quando esse facto se verifique de forma superveniente, em circunstâncias como as do processo principal. As autoridades nacionais poderão, no entanto, revogar o auxílio e exigir a recuperação dos montantes já pagos se, de acordo com o seu direito interno, a empresa beneficiária não tiver cumprido as cláusulas do anúncio que regulavam a concessão desse auxílio.»


    ( 1 ) Língua original: espanhol.

    ( 2 ) Utilizarei a expressão «empresas en crisis», que corresponde à versão espanhola do Regulamento n.o 800/2008, chamando no entanto a atenção para o facto de que a expressão mais próxima a outras versões linguísticas seria «empresa em dificuldade», que foi adotada, por exemplo, nas versões italiana (imprese in difficoltà), francesa (entreprises en difficulté), inglesa (undertakings in difficulty), portuguesa (empresas em dificuldade), alemã (Unternehmen in Schwierigkeiten) ou neerlandesa (ondernemingen in moeilijkheden). [Referência não pertinente para a versão portuguesa do presente documento.]

    ( 3 ) Regulamento da Comissão, de 6 de agosto de 2008, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado comum, em aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado (JO 2008, L 214, p. 3).

    ( 4 ) JO 2004 C 244, p. 2, «a seguir orientações 2004». O texto atualmente em vigor consta, com o título «Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade», da Comunicação da Comissão 2014/C 249/01 (JO 2014, C 249, p. 1).

    ( 5 ) Regio decreto 16 marzo 1942, n.o 267 (Decreto Real de 16 de março de 1942; GURI n.o 81, de 6 de abril de 1942), a seguir «Lei da insolvência», na versão alterada pelo Decreto‑legge del 22 giugno 2012 n.o 83 (Decreto‑Lei n.o 83, de 22 de junho de 2012; GURI n.o 147, de 26 de junho de 2012), convertida na Lei n.o 134, de 7 de agosto de 2012.

    ( 6 ) Concretamente, a autoridade administrativa que assinou o decreto regulador dos auxílios, com o número 267/IRE_11, foi o «diretor da posição funcional inovação, investigação, desenvolvimento económico e competitividade dos setores produtivos da Região de Marcas».

    ( 7 ) Programa Operacional Regional (POR) do FEDER Marcas 2007‑2013, aprovado pela Comissão Europeia pela Decisão n.o 3986, de 17 de agosto de 2007.

    ( 8 ) Numa nota de pé de página acrescentava‑se que «[se] entende[…] por empresa em dificuldade uma P.M.E. que satisfaça as seguintes condições […]», transcrevendo‑se de seguida as condições contidas no Regulamento n.o800/2008.

    ( 9 ) N.o 1.2 do despacho de reenvio.

    ( 10 ) Denominado, segundo o despacho de reenvio, «Organismo intermedio Medio Credito centrale (MMC)».

    ( 11 ) N.o 9, terceiro travessão, do despacho de reenvio.

    ( 12 ) N.o 15 do despacho de reenvio.

    ( 13 ) No entanto, procurarei defender que o recurso aos ordenamentos nacionais não impede que se advogue o caráter autónomo, isto é, próprio do direito da União, do conceito de empresa em dificuldade.

    ( 14 ) Acórdão de 15 de outubro de 2015, Axa Belgium (C‑494/14, EU:C:2015:692, n.o 21 e jurisprudência aí referida).

    ( 15 ) No caso de uma sociedade de responsabilidade limitada, quando mais de metade do seu capital social tiver desaparecido e tiver sido perdido durante os últimos 12 meses mais de um quarto desse capital.

    ( 16 ) No caso de sociedades em que alguns sócios têm responsabilidade ilimitada, quando tiver desaparecido mais de metade dos seus fundos próprios e mais de um quarto desses fundos tiver sido perdido durante os últimos 12 meses.

    ( 17 ) Regulamento do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO 2000 L 160, p. 1).

    ( 18 ) O concordato preventivo italiano constava também, nominalmente, do anexo A («Processos de insolvência a que se refere o artigo 2.o, ponto 4») do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência (reformulação).

    ( 19 ) A advogada‑geral E. Sharpston, nas suas conclusões do processo Degano Trasporti (C‑546/14, EU:C:2016:13, n.o 43), em que também estavam em causa os processos coletivos de insolvência italianos, afirmava que não é possível pronunciar‑se neste contexto relativamente às peculiaridades da legislação nacional relativa à insolvência. Em particular — acrescento agora — não compete ao Tribunal de Justiça efetuar uma taxonomia das suas diversas variedades processuais.

    ( 20 ) N.o 10 do despacho de reenvio.

    ( 21 ) N.o 15, in fine, do despacho de reenvio.

    ( 22 ) Acórdão de 21 de julho de 2016, Dilly’s Wellnesshotel (C‑493/14, EU:C:2016:577, n.o 37). Uma tal abordagem, continua o Tribunal de Justiça no n.o 38, «encontra apoio nos objetivos prosseguidos pelos regulamentos gerais de isenção por categoria de auxílio», uma vez que, «se a Comissão está autorizada a adotar tais regulamentos, de modo a assegurar o controlo eficaz das regras de concorrência em matéria de auxílios de Estado e a simplificar a gestão administrativa sem enfraquecer o controlo da Comissão neste domínio, tais regulamentos têm igualmente por objetivo aumentar a transparência e a segurança jurídica. O respeito pelas condições previstas nesses regulamentos, incluindo, consequentemente, o Regulamento n.o 800/2008, permite assegurar que esses objetivos sejam plenamente alcançados.»

    ( 23 ) Durante todo o processo principal foi utilizada o termo revogação, que (segundo o tribunal de reenvio) foi o utilizado pelo organismo gestor dos auxílios na sua decisão originária. Não pretendendo suscitar uma polémica a esse respeito, poder‑se‑ia perguntar se devia, verdadeiramente, revogar a concessão do auxílio, uma vez que o ato pelo qual foi aprovado não estava integrado numa ação de nulidade ou de anulabilidade, como é característico das revogações unilaterais no contexto deste tipo de relações administrativas. O artigo 20.o do anúncio não impedia, no entanto, a adoção desta medida perante «o não cumprimento das obrigações […] do beneficiário previstas no artigo 20.o, alíneas b), c), e h), e das disposições constantes do anúncio».

    ( 24 ) Acórdão de 21 de março de 2013, Magdeburger Mühlenwerke (C‑129/12, EU:C:2013:200, n.o 40), que reproduz de forma quase literal o considerando 36 do Regulamento n.o 800/2008.

    ( 25 ) Observações da Comissão, n.o 44.

    ( 26 ) Tal parece ser o seu entendimento quando afirma que «[e]ntre as modificações substanciais deve certamente incluir‑se a ocorrência de uma situação de dificuldade da empresa que seja suscetível de gerar, por exemplo, uma vantagem indevida, na aceção do artigo 17.3, do anúncio».

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