Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62013CC0409

    Conclusões do advogado-geral N. Jääskinen apresentadas em 18 de dezembro de 2014.
    Conselho da União Europeia contra Comissão Europeia.
    Recurso de anulação — Assistência macrofinanceira a países terceiros — Decisão da Comissão de retirar uma proposta de regulamento‑quadro — Artigos 13.°, n.° 2, TUE e 17.° TUE — Artigo 293.° TFUE — Princípio da atribuição de competências — Princípio do equilíbrio institucional — Princípio da cooperação leal — Artigo 296.° TFUE — Dever de fundamentação.
    Processo C-409/13.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2014:2470

    Conclusões do Advogado-Geral

    Conclusões do Advogado-Geral

    I – Introdução

    1. O presente litígio, de caráter constitucional, opõe o Conselho da União Europeia à Comissão Europeia a respeito da existência do poder eventualmente conferido à Comissão de retirar uma proposta legislativa e, se for o caso, do seu alcance e dos seus limites. Antes de mais, gostaria de salientar que, apesar de as partes no presente processo terem optado por utilizar a expressão «direito de retirada» para descrever a competência da Comissão em litígio, tenciono, nas presentes conclusões, utilizar a expressão «poder de retirada» (2), dado que o exercício de tal poder só afeta a posição jurídica do colegislador na medida em que obsta à continuação do processo legislativo por parte deste.

    2. O recurso do Conselho tem por objeto a decisão de retirada da Comissão, de 8 de maio de 2013 (a seguir «decisão impugnada»), relativa à proposta de regulamento‑quadro do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece as disposições gerais para concessão de assistência macrofinanceira a países terceiros (a seguir «proposta de regulamento‑quadro») (3), que surgiu durante a primeira leitura do processo legislativo ordinário, na aceção do artigo 294.° TFUE, e antes de o Conselho ter adotado formalmente a sua posição quanto à referida proposta.

    3. O presente recurso assenta em três fundamentos, relativos, respetivamente, à violação do princípio da atribuição de competências previsto no artigo 13.°, n.° 2, TUE, bem como do princípio do equilíbrio institucional; à violação do princípio da cooperação leal contido no artigo 13.°, n.° 2, TUE, e à violação do dever de fundamentação, previsto no artigo 296.°, segundo parágrafo, TFUE.

    4. Dado que se trata do primeiro processo em que o Tribunal de Justiça é chamado a apreciar a validade de um ato de retirada de uma proposta legislativa por parte da Comissão, o presente processo exige uma tomada de posição de princípio quanto ao referido poder e às modalidades do seu exercício, bem como quanto ao alcance da fiscalização jurisdicional suscetível de ser exercida sobre um ato de retirada. Saliento, antes de mais, a este respeito, que o poder de retirada da Comissão é um tema inédito. Assim, não só é muito pouco tratado pela jurisprudência e pela doutrina como, além disso, quando aí surge, é descurado devido a uma amálgama com o direito de iniciativa da Comissão e com o princípio do equilíbrio institucional.

    5. Por estes motivos, as presentes conclusões procurarão apurar a essência do poder de retirada enquanto tal, propondo simultaneamente, no espírito do princípio da simplicidade, também conhecido pelo nome de «navalha de Ockham» (4), uma solução assente numa distinção entre o aspeto formal do poder de retirada, por um lado, e a análise da justeza do ato de retirada adotado pela Comissão no âmbito do processo legislativo ordinário, por outro. É com base nesta distinção que tenciono determinar os limites da fiscalização jurisdicional do poder de retirada.

    II – Antecedentes do litígio e decisão impugnada

    6. A assistência macrofinanceira é uma ajuda financeira de caráter macroeconómico atribuída a países terceiros com dificuldades a curto prazo a nível da sua balança de pagamentos. Inicialmente, era concedida, caso a caso, mediante decisões do Conselho adotadas com base no artigo 352.° TFUE (5) . Desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o artigo 212.° TFUE constitui uma base jurídica específica para as decisões de concessão de ajuda macrofinanceira, as quais devem ser adotadas pelo Parlamento e pelo Conselho em conformidade com o processo legislativo ordinário, sem prejuízo do processo de urgência previsto no artigo 213.° TFUE, em que o Conselho pode decidir por si só.

    7. Segundo os elementos dos autos, a proposta de regulamento‑quadro foi apresentada pela Comissão em 4 de julho de 2011, com base nos artigos 209.° TFUE e 212.° TFUE. O artigo 7.° da referida proposta respeitava ao procedimento de concessão de uma assistência macrofinanceira. Nos termos do n.° 1 deste artigo, o país que pretendesse beneficiar de uma assistência macrofinanceira devia apresentar um pedido por escrito à Comissão. O artigo 7.°, n.° 2, conjugado com o artigo 14.°, n.° 2, da proposta de regulamento‑quadro dispunha que, caso estivessem cumpridas as condições referidas nos artigos 1.°, 2.°, 4.° e 6.°, a Comissão concedia a assistência pedida, agindo em conformidade com o procedimento «de exame» previsto no artigo 5.° do Regulamento «Comitologia» (UE) n.° 182/2011 (6) .

    8. Após várias reuniões do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros, a proposta de regulamento‑quadro foi objeto de uma orientação geral do Conselho, aprovada pelo Comité de Representantes Permanentes (Coreper) em 15 de dezembro de 2011. Nesta orientação geral, o Conselho propôs, nomeadamente, no que respeita ao artigo 7.°, n.° 2, da referida proposta, a substituição da atribuição de uma competência de execução à Comissão pela aplicação do processo legislativo ordinário.

    9. Na sessão plenária de 24 de maio de 2012, o Parlamento adotou, por votação parcial em primeira leitura, o relatório que continha 53 propostas de alteração da proposta de regulamento‑quadro. Este relatório propunha, nomeadamente, o recurso a atos delegados, em vez de atos de execução, para efeitos da concessão de uma assistência macrofinanceira (7) .

    10. Foram realizados três trílogos informais entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão, em 5 e 28 de junho de 2012 bem como em 19 de setembro de 2012. Deles resultou que, apesar das divergências que existiam entre o Parlamento e o Conselho quanto ao procedimento a adotar para efeitos da concessão de uma assistência macrofinanceira, nem um nem outro eram favoráveis à proposta da Comissão de recorrer a atos de execução.

    11. Em 10 de janeiro de 2013, e com vista ao quarto trílogo, a Comissão apresentou um «non‑paper» intitulado «Landing zone on implementing acts, delegated acts and co‑decision in the MFA Framework Regulation» (a seguir «‘non‑paper’ da Comissão») que propunha uma solução de compromisso no que respeita ao procedimento de concessão de uma assistência macrofinanceira. Esta consistia numa «combinação de (i) condições pormenorizadas para a assistência macrofinanceira (ii) mecanismos de consulta informal a montante [do processo decisório proposto] (iii) a inclusão de um máximo de quatro atos delegados (iv) a utilização seletiva da comitologia e (v) mecanismos vários de avaliação e de apresentação de relatórios».

    12. Na sequência do quarto trílogo, em 30 de janeiro de 2013, o Parlamento e o Conselho ponderaram outra solução de compromisso, que consistia em aplicar o processo legislativo ordinário para a adoção de uma decisão de concessão de uma assistência macrofinanceira, em recorrer a um ato de execução para a adoção do acordo com o país beneficiário e em delegar na Comissão o poder de adotar certos atos relacionados com a assistência assim concedida (8) .

    13. Por ocasião do quinto trílogo, em 27 de fevereiro de 2013, os representantes do Parlamento e do Conselho confirmaram a sua vontade de manter o recurso ao processo legislativo ordinário para efeitos da concessão de uma assistência macrofinanceira. Segundo a petição de recurso, o representante da Comissão indicou nessa ocasião que a Comissão se interrogava se tal abordagem não desvirtuaria a sua proposta e que, sendo caso disso, poderia retirá‑la, em consequência do desvio imposto ao seu direito de iniciativa legislativa.

    14. A abordagem que consistia numa substituição do procedimento do ato de execução pelo processo legislativo ordinário foi objeto de um acordo de princípio entre o Parlamento e o Conselho, formalizado por ocasião do sexto trílogo, em 25 de abril de 2013. Nessa ocasião, o representante da Comissão expressou formalmente o seu desacordo com esta abordagem. Por carta de 6 de maio de 2013, dirigida a O. Rehn, Vice‑Presidente da Comissão, o Presidente do Coreper lamentou a declaração feita pelo representante da Comissão no sexto trílogo. Pediu à Comissão que revisse a sua posição, tendo em conta, nomeadamente, a perspetiva de um acordo iminente entre o Parlamento e o Conselho.

    15. Por carta de 8 de maio de 2013, dirigida aos Presidentes do Parlamento e do Conselho, que constitui a decisão impugnada, O. Rehn informou que, na sua 2045.ª reunião, o Colégio dos Comissários tinha decidido retirar a proposta de regulamento‑quadro, em conformidade com o artigo 293.°, n.° 2, TFUE. A ata dessa reunião indica, a este respeito, que «[a] Comissão aprova a linha de atuação indicada na nota SI(2013)231» (9) . Resulta de tal nota que os serviços da Comissão consideraram que o recurso ao processo legislativo ordinário constituía uma distorção da proposta de regulamento‑quadro na medida em que o procedimento se tornaria moroso e imprevisível e, sobretudo, na medida em que as decisões de concessão de assistência sob a forma de regulamentos específicos teriam o mesmo nível normativo que o regulamento‑quadro. Por outro lado, a nota expressava também preocupações de ordem constitucional relativas a uma limitação do direito de iniciativa da Comissão.

    16. O Parlamento e o Conselho formalizaram o seu acordo numa declaração conjunta, adotada em 9 de julho de 2013.

    III – Pedidos das partes e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

    17. Através do seu recurso, apresentado em 18 de julho de 2013, o Conselho pede ao Tribunal de Justiça que anule a decisão impugnada e que condene a Comissão nas despesas.

    18. Na sua contestação, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao recurso e condene o Conselho nas despesas.

    19. A República Checa, a República Federal da Alemanha, a República Francesa, a República Italiana, o Reino dos Países Baixos, a República Eslovaca, a República da Finlândia, o Reino da Suécia, bem como o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, foram admitidos a intervir em apoio dos pedidos do Conselho.

    20. Na audiência realizada em 23 de setembro de 2014 foram ouvidos a República Checa, a República Federal da Alemanha, a República Francesa, a República Italiana, o Reino Unido, o Conselho e a Comissão.

    IV – Quanto à admissibilidade

    21. Importa, antes de mais, determinar se a decisão impugnada é um ato suscetível de recurso, na aceção do artigo 263.° TFUE. Parece‑me que esta questão deve ser examinada oficiosamente pelo Tribunal de Justiça para determinar a sua competência para conhecer do recurso.

    22. De acordo com jurisprudência constante, são suscetíveis de recurso, na aceção do artigo 263.° TFUE, todos os atos adotados pelas instituições, quaisquer que sejam a sua natureza ou forma, que se destinem a produzir efeitos jurídicos vinculativos (10) . Para determinar se um ato impugnado produz tais efeitos, há que atender à sua própria essência, bem como à intenção do seu autor (11) . Consequentemente, a forma que um ato ou decisão reveste é, em princípio, indiferente no que respeita à admissibilidade de um recurso de anulação de tal ato ou decisão (12) .

    23. No caso em apreço, trata‑se de um ato atípico (13), a saber, uma carta do Vice‑Presidente da Comissão dirigida aos Presidentes do Parlamento e do Conselho, através da qual a Comissão os informa da decisão do seu Colégio de retirar a proposta de regulamento‑quadro, em conformidade com o artigo 293.°, n.° 2, TFUE.

    24. Daqui decorre que, através do ato impugnado, a Comissão pôs termo ao processo legislativo, privando assim o Conselho e o Parlamento de qualquer meio de ação. Com efeito, como o Conselho observou, o ato impugnado afetou a sua posição jurídica, impedindo‑o de adotar a proposta que lhe tinha sido previamente apresentada.

    25. No caso em apreço, há que concluir, portanto, que a decisão impugnada produziu efeitos jurídicos nas relações entre as instituições. Por conseguinte, a decisão impugnada visa efetivamente produzir efeitos jurídicos vinculativos. Daqui decorre que o recurso de anulação desta decisão é admissível.

    V – Quanto à violação do princípio da atribuição de competências e do princípio do equilíbrio institucional

    A – Argumentos das partes

    26. No âmbito do seu primeiro fundamento, o Conselho, apoiado pelos Estados‑Membros intervenientes, salientando o vínculo existente entre o princípio da atribuição de competências e o do equilíbrio institucional (14), alega que os Tratados não contêm referências explícitas a uma prerrogativa geral da Comissão que a autorize a retirar as propostas que apresente ao legislador.

    27. O Conselho contesta a existência de um «direito» de retirada de natureza simétrica do direito de iniciativa consagrado no artigo 17.°, n.° 2, TUE, quase absoluto na medida em que é discricionário. O direito de retirada da Comissão deve, pelo contrário, ser limitado a situações objetivas entre as quais se incluem o decurso do tempo ou a ocorrência de novas circunstâncias ou de dados técnicos ou científicos que tornem a proposta legislativa obsoleta ou desprovida de objeto, uma ausência duradoura de avanço apreciável do processo legislativo que permita antever um fracasso ou, ainda, a existência de uma estratégia comum partilhada com o legislador num espírito de cooperação leal e de respeito do equilíbrio institucional (15) . O papel da Comissão no âmbito do processo legislativo ordinário seria, assim, limitado ao de «honest broker» (16) .

    28. Segundo o Conselho, a prerrogativa geral de retirada não pode, portanto, ser reconhecida à Comissão com base no artigo 293.°, n.° 2, TFUE, sob pena de infringir tanto a letra como a finalidade desta disposição, que visa facilitar o processo legislativo. Além disso, reconhecer à Comissão uma prerrogativa geral de retirada equivaleria a retirar o efeito útil ao direito do Conselho, consagrado no artigo 293.°, n.° 1, TFUE, de alterar a proposta da Comissão dentro dos limites do seu objeto e da sua finalidade (17) .

    29. O Conselho salienta, de resto, que o poder discricionário de retirada sempre que a Comissão não concorde com as alterações acordadas entre os colegisladores ou não esteja satisfeita com o resultado final de uma negociação equivaleria a conferir‑lhe um instrumento de pressão injustificado sobre o andamento dos trabalhos legislativos bem como um direito de veto sobre a ação legislativa em função de considerações de oportunidade política, o que colocaria a Comissão em pé de igualdade com os colegisladores e levaria, assim, a um desvio do processo legislativo ordinário, a uma ingerência no poder legislativo reservado ao Parlamento e ao Conselho pelos artigos 14.°, n.° 1, e 16.°, n.° 1, TUE, e a permitir à Comissão exceder a sua competência de iniciativa. O reconhecimento à Comissão de um poder discricionário de retirada seria também contrário à separação de poderes bem como ao princípio da democracia, na aceção do artigo 10.°, n. os  1 e 2, TUE (18) .

    30. Nas suas observações (19), a República Federal da Alemanha acrescenta que, atendendo à revalorização do papel do Parlamento no âmbito do processo legislativo bem como à importância que as instituições da União atribuem ao processo de negociação informal no seio dos trílogos, a Comissão não pode já, sob pena de violar o princípio da cooperação leal, retirar a sua proposta legislativa a partir do momento em que surge um compromisso entre os colegisladores que permita antever a adoção do ato legislativo em questão.

    31. Na sua contestação, a Comissão alega que a retirada de uma proposta legislativa constitui, à semelhança da apresentação ou alteração de tal proposta, uma das expressões do seu direito de iniciativa no interesse geral da União, consagrado no artigo 17.°, n.° 1, primeira frase, TUE. Consequentemente, tal como incumbe unicamente à Comissão decidir apresentar, ou não apresentar, uma proposta legislativa e alterar, ou não, a sua proposta inicial ou uma proposta já alterada, é unicamente à Comissão que incumbe, enquanto a sua proposta não tiver sido adotada, decidir mantê‑la ou retirá‑la (20) . O artigo 7.° do Protocolo sobre a subsidiariedade, acima referido, demonstra que os autores do TFUE conceberam o direito de retirada da Comissão como um direito geral.

    32. A prática consolidada da Comissão assegura o respeito das competências das outras instituições da União e do princípio da cooperação leal. Para além dos casos de retiradas periódicas agrupadas, a Comissão procede a retiradas esporádicas quando constata uma falta de apoio político à sua iniciativa (21) .

    33. No caso em apreço, a Comissão contesta, em primeiro lugar, ter usurpado os poderes do legislador (22) . Ao adotar a decisão impugnada, assumiu as responsabilidades que lhe incumbem no âmbito do processo legislativo e que implicam, nos termos do artigo 17.°, n.° 1, TUE, que tome as iniciativas adequadas para promover o interesse geral da União, durante todo o processo. A Comissão contesta que a decisão impugnada viole o artigo 293.°, n.° 1, TFUE e salienta que esta disposição constitui uma regra processual e não a expressão de um qualquer princípio geral segundo o qual o Conselho tenha o direito de adotar um ato em todas as circunstâncias, à revelia da obrigação prevista no artigo 13.°, n.° 2, TUE. O referido artigo 293.°, n.° 1, TFUE também não proíbe a Comissão de retirar uma proposta legislativa.

    34. Quanto à disposição do artigo 293.°, n.° 2, TFUE, ilustra o facto de que o papel da Comissão no processo legislativo se mantém durante todo esse processo e consiste não só em facilitar os contactos entre os colegisladores para aproximar as suas posições respetivas como também em assumir, no âmbito dos trílogos, as suas próprias responsabilidades, defendendo a sua posição, retirando, se necessário, a sua proposta inicial em circunstâncias como as do caso em apreço.

    35. Por fim, a Comissão contesta que a decisão impugnada afete o princípio da democracia, salientando que, à semelhança das outras instituições da União, a Comissão tem a sua própria legitimidade democrática, nomeadamente ao abrigo do artigo 17.°, n. os  7 e 8, TUE, e política, perante o Parlamento.

    B – Análise (existência, alcance e exercício do poder de retirada de uma proposta legislativa no âmbito do processo legislativo ordinário, na aceção do artigo 294.° TFUE)

    1. Introdução

    36. Embora as partes no presente processo pareçam estar de acordo quanto à premissa segundo a qual o direito da União permite à Comissão retirar uma proposta legislativa, discordam quanto à base constitucional e ao alcance de tal competência. Consequentemente, tenciono, numa primeira fase, identificar a base jurídica e a substância do poder de retirada da Comissão, antes de abordar, numa segunda fase, a natureza jurídica exata da decisão de retirada na perspetiva do alcance da fiscalização jurisdicional a exercer sobre tal ato (23) .

    2. Base constitucional do poder de retirada

    37. Invocando uma violação do princípio da atribuição de competências, o Conselho expõe claramente, no seu primeiro fundamento, os receios no que respeita ao reconhecimento à Comissão de um poder ao abrigo do qual esta bloquearia a atividade legislativa da União e seria elevada ao nível de colegislador, dispondo de um veto legislativo, retirando, assim, ao Parlamento e ao Conselho as suas prerrogativas. Simultaneamente, o Conselho admite que a possibilidade de retirar uma proposta legislativa foi sempre, na prática, reconhecida à Comissão, como um corolário do direito de iniciativa, o que não permite, porém, deduzir daí a existência de um «direito» de retirada.

    38. Considero, todavia, por um lado, que estes receios não se justificam, dado que o reconhecimento de um poder de retirada da proposta legislativa durante um período limitado, em conformidade com o artigo 294.° TFUE contribui, em si, para a preservação do equilíbrio institucional, na aceção do artigo 13.°, n.° 2, TUE, na medida em que implica que cada uma das instituições exerça as suas competências com respeito pelas das outras (24) . Além disso, parece‑me que a abordagem que visa, por um lado, admitir a existência de uma faculdade pontual da Comissão de proceder a retiradas «limitadas a situações de natureza objetiva, independentes dos interesses particulares da Comissão» e, por outro, rejeitar a existência de tal poder da Comissão, enferma de uma contradição intrínseca.

    39. Todavia, também não partilho, por outro lado, da posição que parece ser defendida pela Comissão, quando alega que uma decisão de retirada está sujeita às mesmas regras que a apresentação da proposta legislativa. Considero, com efeito, que não é uma abordagem baseada numa perfeita simetria entre o direito de iniciativa legislativa e o poder de retirada que está subjacente às disposições dos Tratados. Pelo contrário, o poder de retirada constitui uma competência, importante, é certo, mas dotada de características próprias e de limites específicos.

    40. É pacífico que os Tratados não preveem expressamente a existência de tal poder de retirada de uma proposta legislativa da Comissão nem, por maioria de razão, as modalidades do seu exercício. Porém, segundo uma tradição consolidada, a Comissão procede a retiradas individuais ou agrupadas, a título de «limpeza administrativa» (25) . Na jurisprudência do Tribunal de Justiça, a possibilidade de retirada surge apenas a título incidental. Dela resulta que «a Comissão é livre de retirar ou de alterar a sua proposta […] se na sequência de uma nova apreciação dos interesses da Comunidade considerar supérflua a adoção d[as] medidas [em causa]»(26) . A eventualidade de uma retirada é igualmente admitida nos termos do Protocolo sobre a subsidiariedade, que prevê a retirada de um projeto legislativo atendendo a dúvidas expressas pelos parlamentos nacionais quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade.

    41. A este respeito, gostaria de salientar, antes de mais, que a legitimidade da União assenta na constatação de que os Tratados constitutivos são qualificados como uma carta constitucional geradora de uma ordem jurídica cujos sujeitos são os cidadãos da União (27) . Esta legitimidade implica que as regras relativas à formação da vontade das instituições, estabelecidas pelos Tratados, «não estão na disponibilidade nem dos Estados‑Membros nem das próprias instituições» (28) . Em especial, as limitações à competência conferida à Comissão por uma disposição específica do Tratado não podem ser deduzidas de um princípio geral, mas antes de uma interpretação dos próprios termos da disposição em causa (29) .

    42. Assim, nos termos do artigo 14.°, n.° 1, e do artigo 16.°, n.° 1, TUE, conjugados com o artigo 289.°, n.° 1, TFUE, a função de «legislar» é confiada ao Parlamento e ao Conselho. Estes exercem‑na conjuntamente. Em contrapartida, nos termos do artigo 17.°, n.° 2, TUE, os atos legislativos só podem ser adotados sob proposta da Comissão, salvo disposição em contrário dos Tratados. Em conformidade com o artigo 17.°, n.° 1, TUE, a Comissão promove o interesse geral da União e toma as iniciativas adequadas para esse efeito.

    43. A ideia que consiste em confiar à Comissão a tarefa de identificar o interesse geral do conjunto dos Estados‑Membros e de propor as soluções adequadas para o satisfazer levou, no sistema comunitário, a confiar à Comissão um quase monopólio da iniciativa legislativa (30) . Embora se refira, por vezes, a erosão política deste poder da Comissão, é essencial salientar que as reformas sucessivas do quadro institucional não alteraram o conteúdo do direito de iniciativa da Comissão (31) .

    44. Neste contexto, reconhecendo embora o impacto da evolução do direito da União sobre o conceito de «método comunitário» (32), este não deixa de ser aplicável e corresponde a um sistema original de repartição dos poderes (33) que conduz a processos decisórios que estão na origem da distinção entre a União e qualquer outra entidade estatal ou organização internacional intergovernamental. Tal método é, portanto, uma característica sui generis do mecanismo legislativo supranacional instituído pelos Tratados.

    45. Seria pois incorreto, na minha opinião, proceder a uma simples equiparação da missão desempenhada pela Comissão neste âmbito a um atributo da função executiva, na sua aceção estrita (34) . Com efeito, a Comissão não é chamada a expressar‑se apenas na qualidade de futuro órgão de execução das disposições legislativas que serão adotadas pelo Parlamento e pelo Conselho, mas como depositária do interesse geral da União e, na realidade, como instituição suscetível de o recordar (35) .

    46. A responsabilidade de promover o interesse da União que incumbe à Comissão por força do artigo 17.°, n.° 1, TUE constitui, na minha opinião, a base principal para lhe reconhecer um poder de retirada de uma proposta legislativa.

    47. O TUE não eleva, é certo, a Comissão ao nível de colegislador. Porém, a sua participação no processo legislativo resulta do seu poder de iniciativa, na aceção do artigo 17.° TUE, e da disposição constante do artigo 293.°, n.° 1, TFUE, nos termos da qual o Conselho só pode alterar uma proposta da Comissão deliberando por unanimidade, bem como do artigo 293.°, n.° 2, que a autoriza a alterar a proposta legislativa enquanto o Conselho não tiver deliberado. Consequentemente, o poder de retirada decorre do papel confiado à Comissão no âmbito do processo legislativo e baseia‑se, portanto, conjuntamente, no artigo 17.°, n. os  1 e 2, TUE e no artigo 293.°, n. os  1 e 2, TFUE.

    48. Acresce que, à luz da jurisprudência relativa ao equilíbrio institucional, e dado que os Tratados concedem à Comissão uma prerrogativa constitucional que lhe confere o poder de apreciar de modo totalmente independente a oportunidade de uma proposta legislativa ou da alteração de tal proposta, nenhuma outra instituição pode obrigar a Comissão a adotar uma iniciativa quando esta não veja em tal iniciativa um interesse da União (36) . O exercício do poder de retirada pode, portanto, ser considerado uma manifestação última do monopólio da iniciativa legislativa da Comissão, como expressão do seu papel de guardiã do interesse da União.

    49. Por esta razão, considero que, no estado atual do direito da União, o reconhecimento à Comissão de um poder de retirada, ou até a sua confirmação, não é suscetível de infringir o princípio da atribuição de competências, na aceção do artigo 13.°, n.° 2, TUE. Constitui, ao invés, uma expressão particular desse princípio, sem prejuízo das modalidades de exercício de tal poder que elas sim são suscetíveis, eventualmente, de prejudicar o equilíbrio constitucional, o que importa examinar seguidamente.

    50. A este respeito, há que reconhecer o valor do artigo 293.° TFUE(37), que constitui o instrumento destinado a assegurar o equilíbrio entre os poderes do Conselho e os da Comissão (38) . Com efeito, esta disposição, cuja redação pouco evoluiu desde a assinatura do Tratado CEE, contém duas disposições intimamente ligadas, a saber, uma que exclui a possibilidade de o Conselho adotar um texto sem o consentimento da Comissão e a outra que permite facilmente à Comissão alterar em qualquer momento a sua própria proposta, de modo a que o Conselho não se veja obrigado a deliberar por unanimidade (39) . Todavia, as alterações sucessivas do Tratado limitaram a utilização do seu n.° 1, em especial após a generalização da codecisão e, seguidamente, do processo legislativo ordinário, na aceção do Tratado de Lisboa. Com efeito, o artigo 293.°, n.° 1, TFUE não se aplica nem ao caso de um Comité de Conciliação, nem no de uma terceira leitura, na aceção do artigo 294.° TFUE, nem no âmbito do processo orçamental, sendo estas situações objeto de disposições específicas.

    51. Por fim, importa examinar o argumento relativo ao princípio da democracia, invocado pelo Governo alemão na perspetiva do reforço do papel do Parlamento como colegislador. Este governo propõe, com efeito, que se interprete o artigo 293.°, n.° 2, TFUE no sentido de visar, nomeadamente, o desenrolar das negociações entre o Conselho e o Parlamento. Esta interpretação parece partir da premissa segundo a qual, a partir do momento em que tivesse sido alcançado um acordo político entre os legisladores, a Comissão se veria impossibilitada de exercer as suas prerrogativas quanto à proposta legislativa, o que confirmaria o seu papel de mediador ao serviço do legislador («honest broker»).

    52. Embora admita que a participação do Parlamento no processo legislativo é o reflexo de um princípio democrático fundamental, segundo o qual os povos participam no exercício do poder por intermédio de uma assembleia representativa (40), considero que adotar, à partida, um princípio de preferência no sentido de maximizar a participação do Parlamento no processo decisório equivale a afetar o equilíbrio institucional estabelecido pelos Tratados (41) . Importa, além disso, reposicionar tal debate no seu contexto constitucional correto, a saber, o de um litígio relativo à base jurídica de um ato a adotar. Ora, o presente processo suscita a questão distinta da base constitucional do poder de retirada legislativa. Em qualquer caso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça não corrobora a abordagem defendida pelo referido governo (42) .

    53. Acresce que, a partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o Parlamento passou a estar, como colegislador, em posição de igualdade com o Conselho no âmbito do processo legislativo ordinário, o que, na minha opinião, constitui um sinal fundamental da valorização do Parlamento no estado atual de desenvolvimento do direito da União. Em especial, a importância da relação entre o Parlamento e o Conselho e a correspondente diminuição do papel da Comissão resulta claramente da comparação entre a primeira leitura e as leituras seguintes do processo legislativo, nos termos do artigo 294.° TFUE (43) . Deste modo, a segunda leitura já não tem por objeto a proposta da Comissão, mas sim as emendas à posição do Conselho, relativamente às quais a Comissão pode dar o seu acordo ou expressar um parecer negativo (44) . O processo continua então com uma terceira leitura, com base no projeto adotado pelo Parlamento e pelo Conselho (45) .

    54. É certo que a importância das negociações entre o Parlamento e o Conselho é reconhecida a partir da primeira leitura. O Conselho beneficia, assim, da adoção da «orientação geral», que é considerada, de facto, o elemento de base das negociações (46) . Em contrapartida, nada no texto dos artigos 293.° e 294.° TFUE permite suportar a tese de uma preponderância absoluta do acordo político formal ou informal entre o Conselho e o Parlamento em detrimento do exercício do direito de iniciativa da Comissão, na fase da primeira leitura. Pelo contrário, o exercício desta competência constitui uma expressão do equilíbrio institucional. A este respeito, o próprio Governo alemão admite que, em certos casos, a Comissão pode retirar a sua proposta, ao abrigo de um direito não escrito de caráter complementar.

    55. Atendendo a todas as considerações anteriores, afigura‑se que o reconhecimento à Comissão de um poder de retirada deve ser mitigado no sentido de que tal direito só pode ser exercido, tendo em conta os seus efeitos, respeitando os limites estabelecidos pelos Tratados e pelos princípios gerais de direito. Partilho, portanto, plenamente da posição do Conselho quando este salienta que o poder de retirada não pode ser exercido abusivamente (47) . Importa, portanto, delinear os contornos do poder de retirada.

    3. Quanto à essência do poder de retirada da Comissão

    56. Antes de mais, parece‑me incontestável que o reconhecimento do poder de retirada e, sobretudo, o seu exercício pela Comissão, afetam a posição normativa das outras instituições que participam no processo legislativo. Com efeito, assentando na responsabilidade confiada à Comissão, nos termos do Tratado UE, de promover o interesse da União, o seu exercício obsta à continuação do processo legislativo por parte dos colegisladores. Uma vez que afeta a sua posição jurídica de modo definitivo, o poder de retirada não pode ser ilimitado.

    57. Em primeiro lugar, o poder de retirada constitui, sobretudo, uma prerrogativa reconhecida à Comissão de modo limitado no tempo. No âmbito do processo legislativo ordinário, foram atribuídas à Comissão importantes funções de guardiã do interesse geral nas diferentes fases do processo, o que a leva a realizar arbitragens políticas entre as instituições, mantendo, porém, a sua autonomia própria. O papel da Comissão evolui consideravelmente ao longo do processo legislativo. O mesmo se deve passar, portanto, com o poder de retirada da proposta legislativa, que não deve ser confundido com um direito de veto legislativo, que constitui uma prerrogativa do executivo, geralmente reconhecida ao chefe de Estado para impedir de modo suspensivo ou definitivo a entrada em vigor de um ato legislativo adotado pela instituição investida do poder legislativo.

    58. É por esta razão que o artigo 293.°, n.° 2, TFUE, nos termos do qual a Comissão mantém o poder de alterar o projeto, deve ser entendido no sentido de implicar um limite temporal também para efeitos do exercício do poder de retirada.

    59. Com efeito, a comparação entre as diferentes leituras previstas pelo artigo 294.° TFUE revela que, na fase da primeira leitura, a Comissão exerce o seu poder de iniciativa sem prejuízo do respeito dos princípios gerais, ao passo que na fase da segunda e terceira leituras as suas prerrogativas constitucionais são cada vez mais limitadas.

    60. Depois de o Conselho ter adotado «a sua posição em primeira leitura» na aceção do artigo 294.°, n.° 5, TFUE, o Conselho «delibera» na aceção do artigo 293.°, n.° 1, TFUE, pelo que o papel da Comissão se limita, então, aplicando as disposições conjugadas do artigo 294.°, n. os  7, alínea c), e 9, TFUE, a emitir um parecer sobre as emendas propostas pelo Parlamento em segunda leitura, a partir da posição do Conselho em primeira leitura. Assim, a repartição do poder legislativo entre o Parlamento e o Conselho, que tem origem no antigo processo de cooperação, não permite à Comissão alterar ou, por maioria de razão, retirar a sua proposta depois de o Conselho ter adotado formalmente a sua posição. A Comissão mantém‑se, todavia, plenamente associada ao processo até ao seu termo. Com efeito, antes de poder pronunciar‑se sobre a posição do Parlamento, o Conselho deve ter obtido o parecer da Comissão sobre essas emendas (48) .

    61. Consequentemente, na medida em que o poder de retirada constitui uma das manifestações das responsabilidades confiadas à Comissão nos termos dos Tratados, nomeadamente do seu poder de iniciativa legislativa, há que interpretar o artigo 294.°, n.° 5, TFUE no sentido de que estabelece o limite temporal para além do qual a Comissão deixa de ter o direito de retirar a proposta de um ato legislativo (49) .

    62. O caso particular da retirada decorrente do Protocolo sobre a subsidiariedade abona também a favor de tal interpretação dos limites temporais do poder de retirada. Com efeito, se, apesar das dúvidas dos parlamentos nacionais relativamente ao respeito do princípio da subsidiariedade quanto a um projeto de ato legislativo, expressas nos termos do artigo 6.° do referido protocolo, a Comissão mantiver a sua proposta, o legislador é obrigado, nos termos do seu artigo 7.°, n.° 3, alínea a), a pronunciar‑se relativamente ao respeito do princípio da subsidiariedade antes de concluir a primeira leitura. Tal implica que as eventuais objeções dos parlamentos nacionais, bem como a decisão da Comissão sobre a retirada, a manutenção ou a alteração da proposta, devem ocorrer numa fase anterior e, em qualquer caso, antes da conclusão da primeira leitura.

    63. Além disso, esta determinação dos limites temporais confirma a legalidade das retiradas agrupadas até agora efetuadas pela Comissão. Com efeito, na falta de prazos imperativos no âmbito da primeira leitura, a Comissão continua responsável pelo destino das propostas legislativas nessa fase. A partir do momento em que a primeira leitura não está sujeita a qualquer prazo, os debates podem prolongar‑se tanto quanto as instituições julgarem útil, durante, até, vários anos. Neste contexto, parece coerente, portanto, reconhecer à Comissão o poder, ou até a obrigação, de retirar a sua proposta quando perde a convicção de que o ato em questão corresponde ainda ao interesse geral da União. Em contrapartida, na segunda e terceira leituras, os prazos imperativos, muito curtos (50), são de aplicação estrita e são os colegisladores que se tornam «donos» do ato a adotar.

    64. Por fim, enquadrar o poder de retirada através de uma disposição do Tratado responde ao imperativo elementar da segurança jurídica. Neste contexto, o argumento invocado pelo Governo alemão (51) segundo o qual é a formalização de um acordo entre o Parlamento e o Conselho, sob a forma de resultado dos trílogos, que obsta à retirada pela Comissão da proposta legislativa, não merece acolhimento. Há que reconhecer, é certo, a dupla dimensão do processo legislativo, jurídica mas também política, revelando‑se esta última determinante no sentido de que permite chegar a um consenso (52) . Todavia, a necessidade de uma disciplina jurídica decorrente do princípio constitucional da democracia representativa que exige uma transparência dos processos no âmbito da adoção de um ato legislativo prevalece, no sentido de que o consenso deve posteriormente ter apoio numa disposição do Tratado, sob pena de se expor ao risco da ilegalidade da atuação do legislador (53) .

    65. Em segundo lugar, no âmbito temporal atrás definido, o poder de retirada está sujeito a um limite fundamental, que resulta do respeito necessário do princípio da cooperação leal previsto no artigo 13.°, n.° 2, TUE. Com efeito, no âmbito do diálogo interinstitucional em que assenta o processo legislativo, são impostos às instituições os mesmos deveres recíprocos de cooperação leal que os que regem as relações entre os Estados‑Membros e as instituições da União (54) .

    66. Por fim, o poder de retirada esbarra como limite suscetível de constituir o fundamento de uma ação por omissão, nos termos do artigo 265.° TFUE. Com efeito, a retirada de uma proposta legislativa pode constituir uma violação, por parte da Comissão, de uma obrigação de agir (55) .

    4. Quanto à natureza da decisão de retirada da proposta legislativa e quanto aos limites da fiscalização exercida pelo juiz da União

    67. Na sua contestação, a Comissão alega que adotou a decisão impugnada por o ato legislativo que os colegisladores tencionavam adotar, apesar das suas advertências, constituir uma desvirtuação da sua proposta e comportar uma violação grave do equilíbrio institucional em resultado do acordo de princípio obtido entre o Parlamento e o Conselho no sentido de substituir, no artigo 7.° da proposta de regulamento‑quadro, a atribuição de uma competência de execução à Comissão pelo recurso ao processo legislativo ordinário, em detrimento dos objetivos de eficácia, de transparência e de coerência prosseguidos pela referida disposição. A Comissão acrescenta que as outras disposições do regulamento‑quadro proposto, que se destinavam a enquadrar as suas competências de execução, ficariam privadas de qualquer efeito jurídico em resultado da alteração acordada entre o Parlamento e o Conselho.

    68. Segundo a Comissão, a desvirtuação da proposta de regulamento‑quadro não resultava tanto da recusa de lhe atribuir a competência para adotar as decisões individuais de concessão de assistência macrofinanceira como da vontade dos colegisladores de manter o recurso ao processo legislativo ordinário. A Comissão salienta que a opção possível, nos termos da sugestão inicial do Parlamento, no sentido de recorrer a atos delegados, nos termos do artigo 290.°, n.° 2, TFUE, não teria, na sua opinião, implicado tal desvirtuação. Além disso, os colegisladores tinham preferido alterar a proposta da Comissão num sentido que não só a teria obrigado a apresentar uma proposta legislativa em cada caso individual em que estivessem reunidas as condições de concessão de assistência macrofinanceira (a seguir «AMF»), como teria também determinado em grande medida o próprio conteúdo das suas futuras propostas. O seu direito de iniciativa ficaria, assim, totalmente predeterminado e circunscrito.

    69. O Conselho alega que, mesmo admitindo que uma desvirtuação da proposta legislativa ou uma violação grave do equilíbrio institucional constitui uma razão de retirada válida, nenhuma dessas circunstâncias se verificou no caso em apreço.

    70. Atendendo aos termos do debate, afigura‑se essencial determinar previamente a natureza exata da decisão de retirada.

    71. A decisão de retirada da proposta legislativa dirigida ao Parlamento e ao Conselho surge durante o processo legislativo, que é uma forma particular de diálogo interinstitucional.

    72. No caso em apreço, resulta claramente dos autos que esta decisão, considerada sob a perspetiva das razões que levam a Comissão a interromper o processo legislativo, deve ser analisada a um duplo nível, que constitui o ponto de partida do meu exame. Importa, assim, distinguir, por um lado, o nível formal relativo ao exercício do poder de retirada (havendo aqui que verificar o respeito da própria essência do referido poder, tal como foi atrás definido) e, por outro, o nível material relativo à justeza da decisão de retirada numa situação específica (a saber, as justificações quanto ao mérito que levaram a Comissão a retirar a proposta concreta).

    73. Ora, na minha opinião, apenas o primeiro aspeto da decisão de retirada pode ser objeto da fiscalização jurisdicional do Tribunal de Justiça. Em contrapartida, o segundo aspeto, relativo à justeza da decisão, é abrangido pela fiscalização da legalidade do ato definitivo cuja adoção só seria possível se a Comissão não exercesse o seu poder de retirada ou se o exercesse indevidamente. Por outro lado, atendendo a esta distinção, a decisão de retirada não tem, na minha opinião, que satisfazer o dever de fundamentação previsto no artigo 296.° TFUE, dado que as razões subjacentes à adoção do ato estão sujeitas à fiscalização quanto ao mérito do ato definitivo. Voltarei a este assunto no âmbito do terceiro fundamento.

    74. Pelo contrário, se o Tribunal de Justiça procedesse à fiscalização do mérito da decisão de retirada da Comissão, tal equivaleria não só a contornar o sistema das vias de recurso estabelecido pelo Tratado, procedendo a uma fiscalização da legalidade ex ante (56) de um ato legislativo, como também a efetuar uma fiscalização indireta da legalidade de um ato legislativo in statu nascendi que não foi ainda adotado e que não tem, portanto, existência jurídica.

    75. Constato, portanto, que, no caso em apreço, o aspeto relativo à justeza da decisão impugnada comporta uma análise política da oportunidade da medida a adotar, um exame das particularidades da aplicação do ato em questão, nomeadamente das modalidades da assistência macrofinanceira, a escolha da base jurídica, a questão da repartição das competências na perspetiva da delegação das competências de execução da Comissão e, de um modo mais geral, a problemática da eventual ilegalidade de que o regulamento a adotar poderia enfermar. Ora, concluído o processo legislativo ordinário, estas diferentes questões podem ser submetidas ao Tribunal de Justiça no âmbito de um recurso de anulação do ato final.

    76. A Comissão sustenta, assim, que a decisão impugnada foi tomada não com base em considerações de oportunidade ou de opção política que alegadamente quis impor, considerando‑se, erradamente, colegisladora, mas por receio de o ato adotado pelos colegisladores vir a ser contrário aos interesses da União. Ora, na minha opinião, o Tribunal de Justiça não pode pronunciar‑se sobre a legalidade de tal argumentação antes da adoção da medida legislativa em questão, sem correr o risco de exceder as competências que lhe são confiadas pelos Tratados.

    77. Neste contexto, há que atribuir particular importância à fiscalização da violação do princípio da repartição dos poderes.

    78. Antes de mais, a argumentação relativa a uma pretensa desvirtuação da proposta legislativa deve, na minha opinião, ser apreciada no âmbito da fiscalização do ato definitivo, dado que a desvirtuação pelo colegislador de uma proposta da Comissão equivale a deliberar sem que tenha sido apresentada um proposta e, consequentemente, a violar o direito de iniciativa da Comissão. Nessa situação, é a medida definitiva que enferma de ilegalidade (57) .

    79. Por outro lado, a violação das prerrogativas das instituições resulta tipicamente de uma escolha incorreta da base jurídica. Com efeito, a escolha da base jurídica de um ato da União deve assentar em elementos objetivos suscetíveis de fiscalização jurisdicional, entre os quais figuram, designadamente, a finalidade e o conteúdo do ato (58) . O imperativo da segurança jurídica impõe que qualquer ato que vise produzir efeitos jurídicos retire a sua força vinculativa de uma disposição do direito da União, que deve expressamente ser referida como sua base legal e que prescreva a forma jurídica de que o ato se deve revestir (59) . Ora, esta jurisprudência não é aplicável antes da adoção do ato cuja justeza é contestada no âmbito de um processo incidental relativamente ao ato principal.

    80. Em qualquer caso, admitindo que o Tribunal de Justiça possa fiscalizar a justeza da decisão de retirada, a questão que se coloca é a de saber qual seria o efeito jurídico de tal acórdão do Tribunal de Justiça, sobretudo sob a perspetiva da autoridade de caso julgado que o acórdão revestiria.

    81. Consequentemente, se o Tribunal de Justiça considerasse procedentes as críticas relativas à fundamentação material da decisão de retirada e decidisse que a Comissão tinha considerado incorretamente que a atuação dos colegisladores era uma desvirtuação do seu projeto inicial, o processo legislativo poderia continuar. Na medida em que, nos termos do artigo 278.° TFUE, os recursos interpostos para o Tribunal de Justiça não têm efeito suspensivo, salvo se o Tribunal considerar que deve ser ordenada a suspensão, o processo deveria ser retomado na íntegra, o que implicaria que a Comissão apresentasse uma nova proposta legislativa. Surgiria, então, a questão de saber em que medida o acórdão do Tribunal de Justiça vincularia a Comissão, limitando o exercício do seu direito de iniciativa, no sentido de que a Comissão já não poderia apresentar nem a sua proposta inicial, nem uma proposta que se afastasse da posição dos colegisladores «ratificada» pelo Tribunal de Justiça. Ao penalizar, deste modo, a Comissão, o Tribunal de Justiça afastar‑se‑ia, na minha opinião, da jurisprudência atrás referida, segundo a qual as prerrogativas das instituições são um dos elementos do equilíbrio institucional criado pelos Tratados (60) .

    82. O mesmo aconteceria se o Tribunal de Justiça confirmasse a decisão de retirada, com fundamento, por exemplo, na circunstância de a base jurídica proposta pelos colegisladores ser incorreta relativamente à base utilizada na proposta da Comissão. Parece‑me útil recordar que, segundo as normas do TFUE que regem a atividade legislativa das instituições da União, o Parlamento e o Conselho, agindo conjuntamente, têm, nomeadamente ao abrigo do artigo 294.°, n. os  7, alínea a) e 13.°, TFUE, a faculdade de alterar, no decurso do processo legislativo, a base jurídica escolhida pela Comissão (61) .

    83. Parece‑me, portanto, que o Tribunal de Justiça se arrogaria assim uma função de árbitro por excelência no âmbito de um processo legislativo em curso.

    84. Consequentemente, por todos os fundamentos expostos, proponho ao Tribunal de Justiça que não se pronuncie, no âmbito do presente recurso, sobre as razões invocadas pela Comissão em apoio da sua decisão de retirada. Recordo, a este respeito, que a Comissão alega que podia proceder à retirada, nomeadamente, em caso de desvirtuação grave, de violação grave do equilíbrio institucional ou no caso de a proposta comportar uma ilegalidade manifesta. A Comissão pronuncia‑se também a favor de uma possibilidade de retirada com base na falta de competência da União ou, ainda, com fundamento numa violação do princípio da subsidiariedade. Na minha opinião, trata‑se de aspetos que devem ser apreciados, caso a caso, no âmbito da fiscalização da legalidade de um ato definitivo adotado após a conclusão do processo legislativo.

    85. Proponho, assim, que os argumentos invocados tanto pelo Conselho como pela Comissão quanto à justeza da decisão impugnada sejam julgados inoperantes e que se limite a fiscalização jurisdicional apenas aos elementos formais relativos à essência do direito de retirada, como foram expostos nos n. os  56 a 65 das presentes conclusões.

    86. Face ao exposto, proponho que o primeiro fundamento do Conselho seja julgado improcedente. Na medida em que decorre dos autos que a Comissão procedeu à retirada antes de o Conselho ter deliberado, na aceção do artigo 294.°, n.° 5, TFUE, há que examinar o segundo fundamento do Conselho, relativo à violação do princípio da cooperação leal.

    VI – Quanto à violação do princípio da cooperação leal, na aceção do artigo 13.°, n.° 2, TUE

    A – Argumentos das partes

    87. Através do seu segundo fundamento, o Conselho alega que a Comissão violou, no caso em apreço, o princípio da cooperação leal, o qual, por força de uma jurisprudência codificada no artigo 13.°, n.° 2, última frase, TUE, se impõe igualmente às instituições da União (62), nomeadamente no âmbito do processo legislativo ordinário (63) .

    88. O Conselho e os Estados‑Membros que intervieram em seu apoio alegam que, em vez de exprimir reservas, nomeadamente na fase da adoção da orientação geral do Conselho ou dos debates sobre o relatório do Parlamento, a Comissão indicou que este constituía uma boa base para discussões posteriores. Em novembro de 2011, um dos seus funcionários informou um funcionário do Conselho de que algumas emendas desvirtuavam a substância da sua proposta de regulamento‑quadro, sem referir especificamente a alteração do artigo 7.° desta proposta. O «non‑paper» da Comissão de janeiro de 2013 também não menciona a possibilidade de retirada da sua iniciativa legislativa. Apesar da sua presença constante nas sessões de trabalho do Conselho e nos trílogos, a Comissão só manifestou oficialmente a sua intenção de proceder a tal retirada numa fase tardia, a saber, por ocasião do trílogo de 25 de abril de 2013. A sua nota interna SI(2013)231 revela que a Comissão se apressou a retirar a sua proposta no próprio dia em que o Parlamento e o Conselho deviam rubricar o compromisso a que tinham chegado.

    89. Na reunião do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 7 de maio de 2013, a Comissão não referiu de modo algum que esta questão fazia parte da ordem de trabalhos do Colégio dos Comissários do dia seguinte, apesar de um convite expresso do Presidente do Conselho no sentido de informar as delegações da sua eventual intenção de proceder à retirada da proposta de regulamento‑quadro.

    90. O desrespeito pela Comissão do princípio da cooperação leal é agravado pela circunstância de esta não ter esgotado as vias processuais previstas nos artigos 3.°, n.° 2, e 11.°, n.° 1, do Regulamento Interno do Conselho (64), de modo a verificar se a unanimidade exigida pelo artigo 293.°, n.° 1, TFUE para alterar a sua proposta de regulamento‑quadro existia nesse caso concreto, e de também não ter pedido uma votação indicativa no seio das instâncias preparatórias do Conselho (65) .

    91. A República Checa e a República Federal da Alemanha sustentam que a Comissão cometeu um abuso de direito (66) . A República Italiana e o Reino Unido alegam que, independentemente do momento em que a Comissão procedeu à retirada da proposta de regulamento‑quadro, esta última excluiu, à partida, qualquer discussão e qualquer negociação com os colegisladores sobre o conteúdo do artigo 7.° da referida proposta, apesar de estes partilharem da mesma abordagem a este respeito.

    92. No atinente ao caráter alegadamente tardio da retirada, a Comissão salienta, por seu lado, que indicou claramente, nas reuniões do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 15 e de 22 de novembro de 2011, que as alterações pretendidas pelo Conselho desvirtuavam a sua proposta de regulamento‑quadro. Por ocasião da adoção da orientação geral do Conselho, em 15 de dezembro de 2011, não considerou necessário emitir uma reserva formal, dado que esta «orientação geral» constituía apenas a posição que a presidência do Conselho iria defender no âmbito dos trílogos. Em qualquer caso, não era certo, nessa altura, que a referida posição prevalecesse, tanto mais que o Parlamento não tinha ainda adotado a sua posição e que, quando a adotou, em maio de 2012, preconizava a tomada de decisão com base em atos delegados. Seguidamente, no seu «non‑paper» de janeiro de 2013, reiterou as suas objeções quanto à posição do Conselho, apresentando simultaneamente alguns elementos de apoio para sair do impasse.

    93. A Comissão indica, em segundo lugar, que, a partir do trílogo de 30 de janeiro de 2013, durante o qual surgiu um risco de desvirtuação da proposta de regulamento‑quadro, e imediatamente após terem sido autorizados para o efeito pelo Colégio dos Comissários, os seus representantes advertiram os colegisladores nas reuniões subsequentes de que a Comissão poderia retirar esta proposta (67) . Foi apenas quando se apercebeu, no princípio de maio de 2013, de que não conseguia convencer os colegisladores da necessidade de reverem a sua posição comum, que assumiu as suas responsabilidades, adotando a decisão impugnada.

    94. A Comissão afirma, em terceiro lugar, que, no momento em que foi redigida a nota interna SI(2013)231, não era ainda conhecida a data do trílogo seguinte. O facto de a decisão impugnada ter sido adotada no dia em que os colegisladores iam finalizar um acordo foi um acaso do calendário. A Comissão acrescenta que uma evocação prematura, da sua parte, da possibilidade de retirada da proposta de regulamento‑quadro teria prejudicado a serenidade dos debates interinstitucionais e o bom andamento do processo legislativo.

    95. No que respeita, por outro lado, ao não recurso a outras possibilidades processuais decorrentes do Regulamento Interno do Conselho, a Comissão afirma que a sua participação no conjunto dos trabalhos do grupo dos conselheiros financeiros do Conselho a levou a constatar que as posições dos Estados‑Membros eram perfeitamente claras e que uma votação formal não teria alterado a situação.

    B – Apreciação

    96. Antes de mais, e para determinar corretamente o alcance da problemática do princípio da cooperação leal, importa salientar que o primeiro limite imposto ao exercício do poder de retirada resulta da proibição do desvio de poder. Segundo jurisprudência constante, um ato só enferma de desvio de p oder caso se revele ter sido adotado exclusivamente, ou pelo menos de forma determinante, com fins diversos dos indicados ou com a finalidade de eludir um processo especialmente previsto pelo Tratado FUE para fazer face às circunstâncias do caso em apreço (68) .

    97. Consequentemente, uma eventual violação do princípio da cooperação leal não pode ser equiparada a um desvio de poder.

    98. Observo, a este respeito, por um lado, que o princípio da cooperação leal permite sanar as incertezas decorrentes de zonas cinzentas dos Tratados, tal como as resultantes das formas de exercício do poder de retirada. Por outro lado, embora seja aplicável à cooperação informal entre as instituições da União, este princípio não tem um conteúdo que possa ser apreendido com exatidão (69) .

    99. O princípio da cooperação leal, codificado nos termos do artigo 13.°, n.° 2, TUE, refere‑se ao respeito que é devido à repartição das competências respetivas e ao equilíbrio institucional (70) . Neste âmbito, e nos termos do artigo 295.° TFUE, para organizarem de comum acordo as formas da sua cooperação, o Parlamento, o Conselho e a Comissão podem celebrar acordos interinstitucionais, sendo caso disso, com caráter vinculativo.

    100. Através do seu fundamento, e atendendo à evolução cronológica dos factos na origem do litígio, o Conselho acusa, em substância, a Comissão de só ter manifestado a sua intenção de retirar a proposta numa fase muito tardia dos trílogos, quando estava iminente o acordo entre o Parlamento e Conselho sobre o recurso ao processo legislativo ordinário. O Conselho parece, assim, partir da premissa de que o facto de o trílogo estar programado para o mesmo dia que o da adoção da decisão impugnada se opunha a que a Comissão exercesse o seu poder de retirada.

    101. Ora, embora reconhecendo a importância de um trílogo (71) como expressão da cooperação interinstitucional, como já referi no âmbito do exame do primeiro fundamento, a dimensão política do processo legislativo não pode prevalecer sobre a sua dimensão jurídica.

    102. Com efeito, esses trílogos são conduzidos num contexto informal e podem ser realizados em todas as fases do processo e a vários níveis de representação, em função da natureza da discussão esperada (72) . À semelhança do Comité de Conciliação no âmbito do processo legislativo ordinário (e, anteriormente, da codecisão) o trílogo desempenha um papel de arbitragem dos diferendos que podem surgir entre as instituições e procura alcançar um acordo entre elas.

    103. Em contrapartida, diferentemente do Comité de Conciliação, o trílogo não tem existência própria no Tratado FUE e não constitui uma fase juridicamente vinculativa da tramitação do processo legislativo (73) . É também o que resulta da Declaração comum de 2007, nos termos da qual uma carta indica a disponibilidade do Conselho para aceitar [o] resultado [de um trílogo], sujeito a revisão jurídico‑linguística, no caso de o mesmo ser confirmado pela votação do plenário (74) . Considero, por esta razão, que a crítica relativa a uma comunicação alegadamente «tardia» da decisão impugnada não procede.

    104. Neste contexto, parece‑me essencial salientar que o ato de retirada deve ser precedido e seguido de ampla comunicação entre a Comissão e os colegisladores. Com efeito, a retirada não pode surgir inesperadamente nem violar o requisito da boa‑fé.

    105. Os termos dos acordos interinstitucionais podem fornecer indicações úteis a este respeito. Resulta, assim, nomeadamente, do Acordo‑quadro de 20 de novembro de 2010, celebrado entre o Parlamento e a Comissão, que a Comissão deve dar explicações pormenorizadas, oportunamente, antes da retirada das suas eventuais propostas sobre as quais o Parlamento já tenha expresso uma posição em primeira leitura (75) . Além disso, nos termos da Declaração comum de 2007, as instituições procuram cooperar lealmente durante todo o processo, respeitando plenamente o caráter político do processo decisório.

    106. No caso em apreço, a Comissão não parece ter cumprido plenamente a sua obrigação de comunicação, extensa e temporalmente adaptada, com outras instituições. Em especial, uma mera troca de mensagens de correio eletrónico entre os funcionários da Comissão e do Conselho de 25 de novembro de 2011, fazendo referência à desvirtuação da proposta da Comissão, não constitui um meio adequado para o efeito. Resulta dos autos, porém, que, a partir de fevereiro de 2013, a Comissão evocou a eventualidade da retirada em várias ocasiões e a alto nível.

    107. Assim, na reunião dos conselheiros financeiros de 26 de fevereiro de 2013, o representante da Comissão salientou que a orientação proposta desvirtuaria a proposta da Comissão, o que poderia levá‑la a considerar a possibilidade de retirar a sua proposta (76) . No quinto trílogo, as instituições, em especial o Parlamento, estavam manifestamente conscientes do risco de retirada, dado que o relator M. Kazak pediu à Comissão que promovesse a proposta, em vez de a retirar (77) . Seguidamente, na reunião dos conselheiros financeiros de 9 de abril de 2013, a Comissão reiterou claramente a possibilidade de retirada caso viesse a ser adotado o processo legislativo ordinário para as decisões AMF (78) . Acresce que, na reunião de 2 de maio de 2013, a Comissão não só evocou o risco de retirada, como admitiu que tal possibilidade era examinada pelos serviços da Comissão ao mais alto nível (79) .

    108. Consequentemente, os elementos factuais constantes dos autos não permitem constatar uma violação do princípio da cooperação leal por parte da Comissão.

    109. Por fim, no que respeita à questão do não esgotamento pela Comissão das possibilidades processuais oferecidas pelo Regulamento Interno do Conselho, recordo que os regulamentos internos das instituições são atos atípicos que regem os princípios de organização de cada uma delas. No que toca aos efeitos que deles podem decorrer relativamente a outras instituições, os regulamentos internos podem apenas visar as modalidades de colaboração entre as instituições. Parece‑me, assim, incontestável que podem afetar o comportamento de outra instituição, nomeadamente sujeitando‑a a uma determinada exigência ou atribuindo‑lhe certa competência. É o caso do artigo 3.°, n.° 2, conjugado com o artigo 11.°, n.° 1, do Regulamento Interno do Conselho, do qual resulta a faculdade da Comissão de pedir a inscrição na ordem do dia de um ponto que exija uma votação. Em contrapartida, nada na referida disposição implica uma obrigação para a Comissão.

    110. Por outro lado, o acórdão Parlamento/Conselho, citado pelo Conselho em apoio do seu fundamento (80), não visava censurar o não esgotamento das vias processuais por parte do Parlamento, mas o facto de a sua decisão se basear em fundamentos alheios ao ato em questão e, sobretudo, de não tomar em conta a urgência do processo e a necessidade de adotar o regulamento antes da data defendida, justificadamente, pelo Conselho.

    111. Consequentemente, atendendo ao princípio do equilíbrio institucional, que implica a autonomia das instituições, a tese segundo a qual a Comissão seria obrigada pelas disposições do Regulamento Interno do Conselho a pedir uma votação antes de proceder à retirada da sua proposta legislativa deve ser julgada improcedente.

    112. Constato, em qualquer caso, que os Tratados instauraram uma repartição clara entre as funções e os poderes das instituições políticas da União. Daí resulta que cada uma delas pode legitimamente adotar as suas próprias orientações políticas e utilizar os meios de ação disponíveis para exercer influência sobre as outras instituições. Assim, uma comunicação prévia relativa à eventualidade de uma retirada, tal como a efetuada pela Comissão no quinto trílogo, de 26 de fevereiro de 2013, não pode, de modo algum, ser equiparada a uma ameaça abusiva que constitua um desvio de poder.

    113. Consequentemente, proponho que o segundo fundamento seja julgado improcedente.

    VII – Quanto à violação do dever de fundamentação

    A – Argumentos das partes

    114. Embora admitindo que a decisão impugnada constitui um ato «não classificado», o Conselho alega, através do seu terceiro fundamento, que uma decisão de retirada de uma proposta legislativa é um ato suscetível de fiscalização jurisdicional. Por conseguinte, tal decisão de retirada deve respeitar a exigência de fundamentação prevista no artigo 296.°, segundo parágrafo, TFUE, conforme interpretada pela jurisprudência (81), independentemente da questão de saber se tal decisão constitui uma decisão na aceção do artigo 288.° TFUE (82) .

    115. Ora, a decisão impugnada não deu origem a qualquer explicação nem publicação e é omissa quanto aos fundamentos da retirada.

    116. A Comissão sustenta que o Conselho confunde a obrigação precisa prevista no artigo 296.° TFUE, que consiste em fundamentar os atos jurídicos da União, na aceção do artigo 288.° TFUE, inserindo uma fundamentação no próprio texto do ato em causa, com o princípio geral expresso no artigo 41.°, n.° 2, alínea c), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, segundo o qual qualquer decisão de uma instituição deve ser fundada em razões que devem ser transmitidas, por qualquer forma que seja, às partes interessadas.

    117. A Comissão alega que uma decisão de retirada, tal como a decisão impugnada, é uma decisão processual interna, e não um ato jurídico, na aceção do artigo 288.° TFUE. Tal decisão não tem destinatário, na aceção do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE ou do artigo 288.° TFUE. Não tem título, nem citações, nem considerandos, nem artigos. Não tem que ser notificada nem publicada, na aceção do artigo 297.°, n.° 2, TFUE, para produzir efeitos. Consequentemente, não lhe é aplicável o dever de fundamentação contido no artigo 296.° TFUE (83) .

    B – Análise

    118. Reconhecendo embora o valor constitucional do dever de fundamentação, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça (84), a natureza e o contexto da adoção do ato impugnado levam‑me a concluir que a decisão impugnada não é abrangida pelo âmbito do dever de fundamentação previsto no artigo 296.° TFUE.

    119. No caso em apreço, resulta dos termos da carta do Vice‑Presidente da Comissão que a decisão impugnada estabelece de modo inequívoco e definitivo a posição da Comissão (85), que traduz a intenção desta de interromper o processo legislativo. Trata‑se, portanto, de uma decisão processual interna das instituições.

    120. Recordo, a este respeito, que o Tribunal de Justiça, no contexto de um diálogo interinstitucional, já aceitou uma declaração oral de um comissário que refletia a proposta da Comissão como sendo uma etapa válida do processo legislativo. Segundo o Tribunal de Justiça, o facto de essa proposta alterada da Comissão não ter revestido a forma escrita era irrelevante. Com efeito, «[o] artigo 149.°, n.° 3, do Tratado [atual artigo 293.°, n.° 2 TFUE] [não exige] que essas propostas modificadas tenham obrigatoriamente forma escrita. Essas propostas modificadas fazem parte do processo legislativo comunitário, que se caracteriza por uma certa flexibilidade, necessária para alcançar uma convergência de posições entre as instituições. Elas distinguem‑se fundamentalmente dos atos que a Comissão adota e que dizem diretamente respeito aos particulares. Nestas condições, não se pode exigir para a aprovação destas propostas o respeito rigoroso das formalidades impostas para a adoção dos atos que dizem diretamente respeito aos particulares» (86) .

    121. Esta análise permite, por maioria de razão, admitir que uma carta de um comissário que expressa a posição do Colégio não está sujeita ao dever de fundamentação, dado que se inscreve no processo legislativo, conforme definido pelo Tribunal de Justiça.

    122. Acresce que, se o Tribunal de Justiça aceitar limitar a fiscalização da legalidade de um ato sui generis , em questão no caso em apreço, apenas ao nível formal relativo à essência do direito de retirada, é evidente que o dever de fundamentação, na aceção do artigo 296.° TFUE, baseado no princípio segundo o qual o ato em causa deve revelar de forma clara e inequívoca o raciocínio do autor do ato, de forma a permitir aos interessados conhecerem as justificações da medida tomada e ao tribunal competente exercer a sua fiscalização (87), não é pertinente.

    123. Na realidade, dado que a Comissão se mantém dentro dos limites da essência do poder de retirada, tais como foram atrás definidos, a fundamentação não se impõe se os colegisladores tiverem sido devidamente informados dos motivos da retirada durante os trílogos interinstitucionais e se tais razões estiverem intimamente associadas ao papel que a Comissão exerce em conformidade com o artigo 17.°, n.° 1, TUE.

    124. Consequentemente, o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente.

    125. Por fim, no que respeita às despesas, observo que, ao interpor o presente recurso, o Conselho se dirigiu legitimamente ao Tribunal de Justiça para obter esclarecimentos quanto ao alcance do poder constitucional de retirada da Comissão, o que poderia justificar, à partida, a repartição das despesas entre as duas instituições. Todavia, nos termos do artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Conselho e tendo este sido vencido, há, portanto, que condená‑lo nas despesas.

    VIII – Conclusão

    126. Por todas as razões atrás expostas, proponho ao Tribunal de Justiça:

    — que negue provimento ao recurso do Conselho da União e o condene nas despesas, e

    — que decida que, nos termos do artigo 140.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros intervenientes suportarão as suas próprias despesas.

    (1) .

    (2)  — Admitir a existência de tal poder equivale, na minha opinião, a reconhecer à Comissão uma competência normativa de decidir retirar ou manter a sua proposta legislativa sem carecer do consentimento explícito ou implícito das outras instituições.

    (3)  — COM(2011) 396 final.

    (4)  — Atribuído a Guilherme de Ockham, filósofo do século XIV, o princípio da simplicidade é aplicável no domínio das ciências ao enunciar que «as hipóteses suficientes mais simples são as mais plausíveis». Parece‑me ser transponível para o raciocínio jurídico a adotar no caso em apreço.

    (5)  — Ex‑artigos 308.° CE e 235.° do Tratado CE.

    (6)  — Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece as regras e os princípios gerais relativos aos mecanismos de controlo pelos Estados‑Membros do exercício das competências de execução pela Comissão (JO L 55, p. 13).

    (7)  — 2011/0176(COD) de 24 de maio de2012. Texto adotado pelo Parlamento, por votação parcial em primeira leitura/leitura única (JO 2012,C 264 E).

    (8)  — Esta solução foi pormenorizada num documento de 19 de fevereiro de 2013 que foi distribuído aos membros do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros, em que participavam representantes da Comissão.

    (9)  — A referida nota, que a Comissão juntou aos autos, é composta por um estudo preparado pela Direção‑Geral (DG) «Economia e finanças», sob a autoridade do gabinete de o. Rehn, que contém o desenrolar das negociações sobre a proposta de regulamento‑quadro bem como razões que justificam a retirada.

    (10)  — V. acórdãos Comissão/Conselho, dito «AETR» (22/70, EU:C:1971:32, n.° 42); Parlamento/Conselho e Comissão (C‑181/91 e C‑248/91, EU:C:1993:271, n.° 13), bem como Comissão/Conselho (C‑27/04, EU:C:2004:436, n.° 44).

    (11)  — V. acórdão Países Baixos/Comissão (C‑147/96, EU:C:2000:335, n.° 27).

    (12)  — Despacho Makhteshim‑Agan Holding e o./Comissão (C‑69/09 P, EU:C:2010:37, n. os  37 e 38).

    (13)  — V., igualmente, quanto à admissibilidade de uma decisão adotada pelos representantes dos Estados‑Membros na qualidade de representantes dos seus Governos, e não de membros do Conselho, o acórdão Comissão/Conselho (C‑114/12, EU:C:2014:2151, n. os  38 a 40).

    (14)  — V., a este respeito, acórdãos Meroni/Alta Autoridade (9/56, EU:C:1958:7, p. 44); Meroni/Alta Autoridade (10/56, EU:C:1958:8, p. 82); Roquette Frères/Conselho (138/79, EU:C:1980:249, n. os  33 e 34); Wybot (149/85, EU:C:1986:310, n.° 23); Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217, n.° 22), e Parlamento/Conselho (C‑133/06, EU:C:2008:257, n.° 57).

    (15)  — O Conselho refere‑se, a este respeito, ao artigo 7.°, n. os  2 e 3, do protocolo (n.° 2) relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, anexado aos Tratados UE e FUE (a seguir «Protocolo sobre a subsidiariedade»).

    (16)  — V., neste sentido, pontos 13, 17, 22, 24 e 27 da Declaração comum do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão sobre as regras práticas do processo de codecisão (artigo 251.° do Tratado CE) (JO 2007, C 145, p. 5, a seguir «Declaração comum de 2007»).

    (17)  — Acórdãos ACF Chemiefarma/Comissão (41/69, EU:C:1970:71); Comissão/Conselho (355/87, EU:C:1989:220, n.° 44), e Eurotunnel e o. (C‑408/95, EU:C:1997:532, n.° 39).

    (18)  — O Conselho refere‑se à jurisprudência segundo a qual este princípio encontra expressão tanto no Parlamento como no facto de os membros do Conselho pertencerem a governos nacionais politicamente responsáveis perante o seu parlamento nacional. V., neste sentido, acórdãos Roquette Frères/Conselho (EU:C:1980:249, n.° 33); Maizena/Conselho (139/79, EU:C:1980:250, n.° 34), e Comissão/Conselho (C‑300/89, EU:C:1991:244, n.° 20).

    (19) — É certo que este argumento é apresentado pela República Federal da Alemanha no âmbito do segundo fundamento, relativo à violação do princípio da cooperação leal. Todavia, a resposta a esta crítica é essencial para efeitos do reconhecimento do poder de retirada enquanto tal.

    (20)  — V., neste sentido, acórdão Fediol/Comissão (188/85, EU:C:1988:400, n.° 37).

    (21)  — A Comissão acrescenta que, entre 1977 e 1994, nos raros casos em que não foi possível obter uma solução conforme ao direito da União, retirou a sua proposta legislativa com fundamento em que o legislador tencionava adotar um ato que teria desvirtuado a sua proposta, prejudicado gravemente o equilíbrio institucional ou implicado uma manifesta ilegalidade. V. os programas de trabalho da Comissão para os anos de 2011, 2012 e 2013 (respectivamente COM[2010] 623 final, COM[2011]777 final e COM[2012] 629 final).

    (22)  — V., neste sentido, acórdão Eurotunnel e o. (EU:C:1997:532, n.° 39).

    (23)  — Em qualquer caso, a presente análise visa apenas o exercício das prerrogativas da Comissão no âmbito do processo legislativo ordinário, sendo limitada às relações com as outras instituições nesse âmbito.

    (24)  — Acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:1990:217, n.° 20).

    (25)  — A Comissão procede a tais «limpezas» ou no início do mandato do Colégio, ou anualmente no âmbito de uma revisão global, atendendo a objetivos imperativos, do avanço do processo legislativo bem como da verificação do respeito das exigências atuais de «legislar melhor». V., por exemplo, Comunicação da Comissão, intitulada «Conclusões da análise das propostas legislativas pendentes» [COM(2005) 462 final, ponto 1]. Quanto à problemática da autolimitação do poder legislativo da Comissão por razões políticas, a saber, para evitar a desvirtuação de uma proposta, cujo último exemplo remonta a 1994, v. Ponzano, P., «Le droit d’initiative de la Commission européenne: théorie et pratique», Revue des affaires européennes , 2009‑2010/1, p. 27 e segs. (disponível no endereço Internet: http://ddata.over‑blog.com/xxxyyy/2/48/17/48/Fichiers‑pdf/Europe/Droit‑d‑initiative‑de‑la‑Commission.pdf, p. 11), que remete para Rasmussen, A., «Challenging the Commission’s right of initiative», West European Politics , Vol. 30, n.°2, 244‑ 264, março de 2007. Por fim, ver resposta de 23 de janeiro de 1987 da Comissão à pergunta escrita n.° 2422/86 de Fernand Herman: retirada de proposta pela Comissão (JO 1987, C 220, p. 6.)

    (26)  — Acórdão Fediol/Comissão (EU:C:1988:400).

    (27)  — V., neste sentido, parecer 1/91 (EU:C:1991:490, n.° 21) e acórdão van Gend & Loos (26/62, EU:C:1963:1, p. 2).

    (28)  — Acórdão Reino Unido/Conselho (68/86, EU:C:1988:85, n.° 38) bem como conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Parlamento/Conselho (C‑133/06, EU:C:2007:551, n.° 29).

    (29)  — Acórdão França e o./Comissão (188/80 a 190/80, EU:C:1982:257, n.° 6).

    (30)  — V. contributo dos Comissários M. Barnier e A. Vitorino, membros da Convenção: « O direito de iniciativa da Comissão », Convenção Europeia, Bruxelas, 3 de setembro de 2002, CONV 230/02. É pacífico que este direito já não é exclusivo, nomeadamente à luz do artigo 7.° TUE, do artigo 11.°, n.° 4, TUE, do artigo 129.°, n. os  3 e 4, TFUE, do artigo 252.°, primeiro parágrafo, TFUE e do artigo 308.°, terceiro parágrafo, TFUE.

    (31)  — V., nomeadamente, os estudos de Soldatos, P., «L’urgence de protéger le pouvoir d’initiative législative de la Commission européenne», L’Union européenne et l’idéal de la meilleure législation , Editions Pédone 2013, pp. 175‑190.

    (32)  — Referindo‑se à construção europeia, Jean Monnet considerava que «a sua pedra de toque é o diálogo constante [que a Comunidade] organiza entre as instituições nacionais e as instituições comunitárias cujos objectivos estão ligados e só podem avançar solidariamente […]. Este diálogo inseparável da decisão é a própria essência da vida comunitária e o que a torna original nos sistemas políticos modernos», Monnet, J., Mémoires , Paris, 1976, p. 626. Na doutrina, v., por todos, Dehousse, R., La méthode communautaire, a‑t‑elle encore un avenir?, Mélanges en hommage à Jean‑Victor Louis , Vol. I (2003), p. 95, Manin, P., «La méthode communautaire: changement et permanence», Mélanges en hommage à Guy Isaac , T. 1 (2004), p. 213‑237. Quanto ao método comunitário como «núcleo duro» da integração europeia no âmbito das Comunidades, face às formas mais «intergovernamentais», v. também as conclusões do advogado‑geral J. Mazák no processo Comissão/Conselho (C‑440/05, EU:C:2007:393).

    (33)  — V. Livro branco sobre a governança europeia [COM(2001) 428]: o método baseia‑se nos princípios segundo os quais: «[1)]a Comissão é a única a apresentar propostas legislativas e de políticas. A sua independência reforça a sua capacidade para executar as políticas, atuar como guardiã do Tratado e representar a União nas negociações internacionais; [2)] os atos legislativos e orçamentais são adotados pelo Conselho […] (que representa os Estados‑Membros) e pelo Parlamento […] (que representa os cidadãos). […] A função executiva é conferida à Comissão e às autoridades nacionais; [3)] o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias garante o respeito do Estado de direito».

    (34)  — Tal equiparação procederia de um paralelismo com os sistemas parlamentares clássicos em que o direito de iniciativa legislativa pertence ao soberano. Ora, historicamente, esta prerrogativa do soberano foi afetada pela competência, reconhecida aos parlamentos nacionais, de propor alterações, aos quais, seguidamente, foi conferido um direito próprio de iniciativa legislativa.

    (35)  — Roland, S., Le triangle décisionnel communautaire à l’aune de la théorie de la séparation des pouvoirs , Bruylant, 2008 (citação de M. Troper), p. 315.

    (36)  — V., neste sentido, acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217, n.° 19).

    (37)  — A doutrina insiste no facto de que o artigo 293.° TFUE reflete, em si, a força do direito de iniciativa da Comissão. V., neste sentido, Grabitz/Hilf/Nettesheim, Krajewski/Rösslein, Das Recht der Europäischen Union , 53. Ergänzungslieferung 2014, AEUV Art. 293 Kommissionsvorschlag; Änderungsrecht, Rn. 1.

    (38)  — Recorde‑se que, nos termos do artigo 293.° TFUE: 1. Sempre que, por força dos Tratados, delibere sob proposta da Comissão, o Conselho só pode alterar a proposta deliberando por unanimidade, exceto nos casos previstos nos n. os  10 e 13 do artigo 294.°, nos artigos 310.°, 312.° e 314.° e no segundo parágrafo do artigo 315.° 2. Enquanto o Conselho não tiver deliberado, a Comissão pode alterar a sua proposta em qualquer fase dos procedimentos para a adoção de um ato da União.

    (39)  — Petite, M., «Avis de temps calme sur l’article 189 A, paragraphe 1», Revue du Marché Unique Européen , 1998/3, p. 197.

    (40)  — V. neste sentido, acórdãos Comissão/Conselho, dito «Dióxido de titânio» (C‑300/89, EU:C:1991:244, n.° 20); Parlamento/Conselho (C‑65/93, EU:C:1995:91, n.° 21) e Parlamento/Conselho (C‑155/07, EU:C:2008:605, n.° 78).

    (41)  — Partilho, portanto, da opinião expressa pelo advogado‑geral M. Poiares Maduro nas suas conclusões no processo Comissão/Parlamento e Conselho (C‑411/06, EU:C:2009:189, nota de pé de página n.° 5). Com efeito, admitindo embora a importância da representatividade diretamente democrática como medida da democracia europeia, salientou que a democracia europeia implicava igualmente um equilíbrio delicado entre as dimensões nacional e europeia da democracia, não tendo a segunda necessariamente que prevalecer sobre a primeira. É por este motivo que o Parlamento Europeu não dispõe do mesmo poder que os parlamentos nacionais no processo legislativo e, ainda que se possa defender um reforço dos poderes do Parlamento Europeu, seria aos povos europeus que competeria decidir esse assunto através de uma revisão dos Tratados.

    (42)  — Com efeito, segundo o Tribunal de Justiça, reconhecer a uma instituição a possibilidade de estabelecer bases jurídicas derivadas, quer no sentido de reforçar quer no de simplificar as modalidades de adoção de um ato, conduziria a permitir a essa instituição violar o princípio do equilíbrio institucional. V., neste sentido, acórdão Parlamento/Conselho ([C‑133/06,] EU:C:2008:257, n. os  56 e57).

    (43)  — O artigo 294.°, n. os  1 a 6, TFUE, tem a seguinte redação: «1. Sempre que nos Tratados se remeta para o processo legislativo ordinário para a adoção de um ato, aplicar‑se‑á o processo a seguir enunciado. 2. A Comissão apresenta uma proposta ao Parlamento Europeu e ao Conselho. Primeira leitura 3. O Parlamento Europeu estabelece a sua posição em primeira leitura e transmite‑a ao Conselho. 4. Se o Conselho aprovar a posição do Parlamento Europeu, o ato em questão é adotado com a formulação correspondente à posição do Parlamento Europeu. 5. Se o Conselho não aprovar a posição do Parlamento Europeu, adota a sua posição em primeira leitura e transmite‑a ao Parlamento Europeu. 6. O Conselho informa plenamente o Parlamento Europeu das razões que o conduziram a adotar a sua posição em primeira leitura. A Comissão informa plenamente o Parlamento Europeu da sua posição».

    (44)  — Nos termos do artigo 294.°, n.° 7, alínea c), TFUE, «[s]e, no prazo de três meses após essa transmissão, o Parlamento Europeu [p]ropuser emendas à posição do Conselho em primeira leitura, por maioria dos membros que o compõem, o texto assim alterado é transmitido ao Conselho e à Comissão, que emite parecer sobre essas emendas».

    (45)  — Nos termos do artigo 294.°, n.° 11, a Comissão participa nos trabalhos do Comité de Conciliação e toma todas as iniciativas necessárias para promover uma aproximação das posições do Parlamento Europeu e do Conselho.

    (46)  — V. Jacqué, J.‑P., «Le Conseil après Lisbonne», Revue des affaires européennes , 2012/2, pp. 213 e segs.

    (47)  — N.° 62 da petição.

    (48)  — Para mais detalhes, v. o Guia do processo legislativo ordinário, brochura do Conselho, de 2010, disponível no endereço Internet: http://consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/QC3109179FRC.pdf.

    (49)  — É evidente que se o Conselho aprovar a posição do Parlamento, na aceção do artigo 294.°, n.° 4, TFUE, a Comissão deixa de poder exercer o seu poder de retirada.

    (50)  — No âmbito do processo legislativo ordinário, a primeira fase é composta por uma primeira leitura, que não está sujeita a qualquer prazo, seguida de uma segunda leitura, sujeita a um prazo duplo de três meses mais um mês para a segunda leitura do Parlamento e de três meses mais um mês para a segunda leitura do Conselho. O Comité de Conciliação está sujeito a um prazo de seis semanas (sem prejuízo de uma prorrogação nos termos do artigo 294.°, n.° 14, TFUE). Seguidamente, no que respeita à terceira leitura do Parlamento e do Conselho, é aplicável este mesmo prazo de seis semanas.

    (51)  — No âmbito do segundo fundamento: contestando embora a licitude de uma retirada nos casos enumerados pela Comissão, o Governo alemão propõe, a título subsidiário, que se interprete o artigo 293.°, n.° 2, TFUE no sentido de que, tendo em conta o princípio da cooperação leal, o último momento para a Comissão poder exercer o seu direito de alteração e, por maioria de razão, a sua faculdade não escrita de retirada, corresponde à obtenção de um acordo entre o Parlamento e o Conselho.

    (52)  — Voltarei ao estatuto dos acordos interinstitucionais no âmbito do segundo fundamento.

    (53)  — V., a este respeito, quanto à exigência de transparência, artigo 16.°, n.° 8, TUE, por força do qual são públicas as reuniões do Conselho em que este delibere e vote sobre um projeto de ato legislativo, ou seja, quando age na qualidade de legislador. A transparência neste domínio contribui para reforçar a democracia, permitindo aos cidadãos fiscalizar todas as informações que constituíram o fundamento de um ato legislativo, v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Suécia e Turco/Conselho (C‑39/05 P e C‑52/05 P, EU:C:2008:374, n.° 46).

    (54)  — V., mutatis mutandis , acórdão Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.° 23).

    (55)  — V., a este respeito, despacho Parlamento/Comissão (C‑445/93, EU:C:1996:283). Este aspeto está intimamente associado ao f acto de o poder de retirada ser limitado pelo artigo 241.° TFUE, na medida em que a Comissão deve poder apresentar os motivos subjacentes a uma decisão de retirada no caso de o Conselho lhe solicitar que lhe apresente qualquer proposta adequada, nos termos do referido artigo. Os motivos em questão devem, nomeadamente, ser suscetíveis de demonstrar que uma eventual proposta legislativa não responderia a um interesse da União, na aceção do artigo 17.°, n.° 1, TUE. Tal reflete igualmente a questão do direito de iniciativa de jure e de facto . V. documento da Convenção, intitulado «O direito de iniciativa da Comissão», CONV 230/02, p. 4.

    (56)  — A única possibilidade de exame ex ante é a do processo previsto no artigo 218.°, n.° 11, TFUE. V., recentemente, acórdão Conselho/in ’t Veld (C‑350/12 P, EU:C:2014:2039, n.° 58).

    (57)  — V. Petite, M., op. cit .

    (58)  — V. acórdãos Dióxido de titânio (EU:C:1991:244, n.° 10), e Huber (C‑336/00, EU:C:2002:509, n.° 30).

    (59)  — V. acórdão Comissão/Conselho (C‑370/07, EU:C:2009:590, n. os  37 a 39).

    (60)  — Acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217, n.° 21).

    (61)  — Acórdão Comissão/Conselho (C‑63/12, EU:C:2013:752, n.° 62).

    (62)  — V., neste sentido, acórdãos Grécia/Conselho (204/86, EU:C:1988:450, n.° 16) e Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n. os  23 e 27).

    (63)  — V., neste sentido, a Declaração comum de 2007.

    (64)  — Decisão 2009/937/UE do Conselho, de 1 de dezembro de 2009, que adota o seu Regulamento Interno (JO L 325, p. 35) (a seguir «Regulamento Interno do Conselho»).

    (65)  — V., neste sentido, acórdão Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n. os  27 e 28).

    (66)  — V., nomeadamente, acórdão Emsland‑Stärke (C‑110/99, EU:C:2000:695, n. os  39, 52 e 53).

    (67)  — A Comissão refere‑se à reunião do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 26 de fevereiro de 2013 e por ocasião do trílogo de 27 de fevereiro 2013 (resulta dos autos que a Comissão enviou a mensagem por correio eletrónico de 12 de abril de 2013 pedindo a correção do «quadro recapitulativo» subsequente a esse trílogo), bem como a reuniões do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 9 de abril e de 2 de maio de 2013 e à reunião do trílogo de 25 de abril de 2013.

    (68)  — V., nomeadamente, acórdãos Espanha/Conselho (C‑310/04, EU:C:2006:521, n.° 69 e jurisprudência referida), bem como Espanha/Conselho (C‑442/04, EU:C:2008:276, n.° 49 e jurisprudência referida).

    (69)  — V., para uma análise aprofundada, Blumann, C., «Caractéristiques générales de la coopération interinstitutionnelle», L’union européenne carrefour de coopérations, LGDJ , 2000, pp. 29 a 61.

    (70)  — Acórdãos Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.° 23), e Grécia/Conselho (EU:C:1988:450, n.° 16).

    (71)  — Com efeito, trata‑se de uma instância importante, cuja instauração remonta aos anos 80, tendo os trílogos sido instituídos pela Declaração comum do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão relativa a diversas medidas que visam melhorar o processo orçamental (JO 1982, C 194, p. 1; EE 01 F3 p. 181).

    (72)  — Ponto 8 da Declaração comum de 2007.

    (73)  — É visado, todavia, pela Declaração comum de 2007 atrás referida, adotada antes do Tratado de Lisboa, da qual resulta (no ponto 14) que, caso seja alcançado um acordo, na fase da primeira leitura no Parlamento, através de negociações informais em trílogos, o Presidente do Coreper envia‑o sob a forma de alterações à proposta da Comissão.

    (74)  — V. ponto 14 da Declaração comum de 2007.

    (75)  — Acordo‑quadro sobre as relações entre o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia (JO 2010, L 304, p. 47). Este acordo faz parte do Regimento do Parlamento (como anexo XIII).

    (76) — V. documento transmitido pela Comissão, intitulado «Report: Financial Counsellors WG of 26 February 2013, ECFIN/D2/NL/SN324590» (p. 3).

    (77)  — Ibidem , p. 6: «He asked COM to encourage and not to withdraw its proposal».

    (78) — Documento transmitido pela Comissão, intitulado «Report: Financial Counsellors WG of 9 April 2013 on MFA, ECFIN/D2/NL dl Ares(2013)»(pp. 1 e 5).

    (79)  — Documento transmitido pela Comissão, intitulado «ECFIN/D2/NL/dl Ares (2013) Report: Financial Counsellors WG of 2 May 2013 on the MFA» (p. 2).

    (80)  — Acórdão Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n. os  27 e 28).

    (81)  — V., nomeadamente, acórdãos Conselho/Bamba (C‑417/11 P, EU:C:2012:718, n.° 50), e Kendrion/Comissão (C‑50/12 P, EU:C:2013:771, n. os  41 e 42).

    (82)  — V., neste sentido, acórdãos Comissão/Conselho (EU:C:2009:590, n.° 42), e Comissão/Conselho (EU:C:2013:752, n.° 28).

    (83)  — Por outro lado, o facto de os motivos de uma decisão processual não constarem da menção que, por força dos artigos 8.°, n.° 4, e 16.° do Regulamento Interno da Comissão (JO 2010, L 55, p. 61) dela deve ser feita numa ata ou numa relação dos atos adotados, não constitui uma violação do dever de fundamentação.

    (84)  — V., nomeadamente, acórdãos Comissão/Conselho (EU:C:2009:590, n. os  37 a 39 e n.° 42) e Suíça/Comissão (C‑547/10 P, EU:C:2013:139, n.° 67).

    (85)  — Para uma jurisprudência que recusa o caráter de ato impugnável à carta de um comissário da concorrência bem como à correspondência entre a DG e um Estado‑Membro, com fundamento em que se trata apenas de uma proposta de atenuar o efeito restritivo de um acordo entre empresas, v. acórdão Nefarma/Comissão (T‑113/89, EU:T:1990:82).

    (86)  — V. acórdão Alemanha/Conselho (C‑280/93, EU:C:1994:367, n.° 36).

    (87)  — Acórdão Deutsche Telekom/Comissão (C‑280/08 P, EU:C:2010:603, n. os  130 e 131).

    Top

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    NIILO JÄÄSKINEN

    apresentadas em 18 de dezembro de 2014 ( 1 )

    Processo C‑409/13

    Conselho da União Europeia

    contra

    Comissão Europeia

    «Recurso de anulação — Direito institucional — Artigo 293.o TFUE — Artigo 294.o TFUE — Princípio da repartição das competências entre as instituições da União — Princípio do equilíbrio institucional — Princípio da cooperação leal — Processo legislativo ordinário — Direito de iniciativa da Comissão — Poder de retirada de uma proposta de ato legislativo — Alcance da fiscalização jurisdicional do ato de retirada — Fundamentação de tal retirada»

    I – Introdução

    1.

    O presente litígio, de caráter constitucional, opõe o Conselho da União Europeia à Comissão Europeia a respeito da existência do poder eventualmente conferido à Comissão de retirar uma proposta legislativa e, se for o caso, do seu alcance e dos seus limites. Antes de mais, gostaria de salientar que, apesar de as partes no presente processo terem optado por utilizar a expressão «direito de retirada» para descrever a competência da Comissão em litígio, tenciono, nas presentes conclusões, utilizar a expressão «poder de retirada» ( 2 ), dado que o exercício de tal poder só afeta a posição jurídica do colegislador na medida em que obsta à continuação do processo legislativo por parte deste.

    2.

    O recurso do Conselho tem por objeto a decisão de retirada da Comissão, de 8 de maio de 2013 (a seguir «decisão impugnada»), relativa à proposta de regulamento‑quadro do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece as disposições gerais para concessão de assistência macrofinanceira a países terceiros (a seguir «proposta de regulamento‑quadro») ( 3 ), que surgiu durante a primeira leitura do processo legislativo ordinário, na aceção do artigo 294.o TFUE, e antes de o Conselho ter adotado formalmente a sua posição quanto à referida proposta.

    3.

    O presente recurso assenta em três fundamentos, relativos, respetivamente, à violação do princípio da atribuição de competências previsto no artigo 13.o, n.o 2, TUE, bem como do princípio do equilíbrio institucional; à violação do princípio da cooperação leal contido no artigo 13.o, n.o 2, TUE, e à violação do dever de fundamentação, previsto no artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE.

    4.

    Dado que se trata do primeiro processo em que o Tribunal de Justiça é chamado a apreciar a validade de um ato de retirada de uma proposta legislativa por parte da Comissão, o presente processo exige uma tomada de posição de princípio quanto ao referido poder e às modalidades do seu exercício, bem como quanto ao alcance da fiscalização jurisdicional suscetível de ser exercida sobre um ato de retirada. Saliento, antes de mais, a este respeito, que o poder de retirada da Comissão é um tema inédito. Assim, não só é muito pouco tratado pela jurisprudência e pela doutrina como, além disso, quando aí surge, é descurado devido a uma amálgama com o direito de iniciativa da Comissão e com o princípio do equilíbrio institucional.

    5.

    Por estes motivos, as presentes conclusões procurarão apurar a essência do poder de retirada enquanto tal, propondo simultaneamente, no espírito do princípio da simplicidade, também conhecido pelo nome de «navalha de Ockham» ( 4 ), uma solução assente numa distinção entre o aspeto formal do poder de retirada, por um lado, e a análise da justeza do ato de retirada adotado pela Comissão no âmbito do processo legislativo ordinário, por outro. É com base nesta distinção que tenciono determinar os limites da fiscalização jurisdicional do poder de retirada.

    II – Antecedentes do litígio e decisão impugnada

    6.

    A assistência macrofinanceira é uma ajuda financeira de caráter macroeconómico atribuída a países terceiros com dificuldades a curto prazo a nível da sua balança de pagamentos. Inicialmente, era concedida, caso a caso, mediante decisões do Conselho adotadas com base no artigo 352.o TFUE ( 5 ). Desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o artigo 212.o TFUE constitui uma base jurídica específica para as decisões de concessão de ajuda macrofinanceira, as quais devem ser adotadas pelo Parlamento e pelo Conselho em conformidade com o processo legislativo ordinário, sem prejuízo do processo de urgência previsto no artigo 213.o TFUE, em que o Conselho pode decidir por si só.

    7.

    Segundo os elementos dos autos, a proposta de regulamento‑quadro foi apresentada pela Comissão em 4 de julho de 2011, com base nos artigos 209.° TFUE e 212.° TFUE. O artigo 7.o da referida proposta respeitava ao procedimento de concessão de uma assistência macrofinanceira. Nos termos do n.o 1 deste artigo, o país que pretendesse beneficiar de uma assistência macrofinanceira devia apresentar um pedido por escrito à Comissão. O artigo 7.o, n.o 2, conjugado com o artigo 14.o, n.o 2, da proposta de regulamento‑quadro dispunha que, caso estivessem cumpridas as condições referidas nos artigos 1.°, 2.°, 4.° e 6.°, a Comissão concedia a assistência pedida, agindo em conformidade com o procedimento «de exame» previsto no artigo 5.o do Regulamento «Comitologia» (UE) n.o 182/2011 ( 6 ).

    8.

    Após várias reuniões do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros, a proposta de regulamento‑quadro foi objeto de uma orientação geral do Conselho, aprovada pelo Comité de Representantes Permanentes (Coreper) em 15 de dezembro de 2011. Nesta orientação geral, o Conselho propôs, nomeadamente, no que respeita ao artigo 7.o, n.o 2, da referida proposta, a substituição da atribuição de uma competência de execução à Comissão pela aplicação do processo legislativo ordinário.

    9.

    Na sessão plenária de 24 de maio de 2012, o Parlamento adotou, por votação parcial em primeira leitura, o relatório que continha 53 propostas de alteração da proposta de regulamento‑quadro. Este relatório propunha, nomeadamente, o recurso a atos delegados, em vez de atos de execução, para efeitos da concessão de uma assistência macrofinanceira ( 7 ).

    10.

    Foram realizados três trílogos informais entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão, em 5 e 28 de junho de 2012 bem como em 19 de setembro de 2012. Deles resultou que, apesar das divergências que existiam entre o Parlamento e o Conselho quanto ao procedimento a adotar para efeitos da concessão de uma assistência macrofinanceira, nem um nem outro eram favoráveis à proposta da Comissão de recorrer a atos de execução.

    11.

    Em 10 de janeiro de 2013, e com vista ao quarto trílogo, a Comissão apresentou um «non‑paper» intitulado «Landing zone on implementing acts, delegated acts and co‑decision in the MFA Framework Regulation» (a seguir «‘non‑paper’ da Comissão») que propunha uma solução de compromisso no que respeita ao procedimento de concessão de uma assistência macrofinanceira. Esta consistia numa «combinação de (i) condições pormenorizadas para a assistência macrofinanceira (ii) mecanismos de consulta informal a montante [do processo decisório proposto] (iii) a inclusão de um máximo de quatro atos delegados (iv) a utilização seletiva da comitologia e (v) mecanismos vários de avaliação e de apresentação de relatórios».

    12.

    Na sequência do quarto trílogo, em 30 de janeiro de 2013, o Parlamento e o Conselho ponderaram outra solução de compromisso, que consistia em aplicar o processo legislativo ordinário para a adoção de uma decisão de concessão de uma assistência macrofinanceira, em recorrer a um ato de execução para a adoção do acordo com o país beneficiário e em delegar na Comissão o poder de adotar certos atos relacionados com a assistência assim concedida ( 8 ).

    13.

    Por ocasião do quinto trílogo, em 27 de fevereiro de 2013, os representantes do Parlamento e do Conselho confirmaram a sua vontade de manter o recurso ao processo legislativo ordinário para efeitos da concessão de uma assistência macrofinanceira. Segundo a petição de recurso, o representante da Comissão indicou nessa ocasião que a Comissão se interrogava se tal abordagem não desvirtuaria a sua proposta e que, sendo caso disso, poderia retirá‑la, em consequência do desvio imposto ao seu direito de iniciativa legislativa.

    14.

    A abordagem que consistia numa substituição do procedimento do ato de execução pelo processo legislativo ordinário foi objeto de um acordo de princípio entre o Parlamento e o Conselho, formalizado por ocasião do sexto trílogo, em 25 de abril de 2013. Nessa ocasião, o representante da Comissão expressou formalmente o seu desacordo com esta abordagem. Por carta de 6 de maio de 2013, dirigida a O. Rehn, Vice‑Presidente da Comissão, o Presidente do Coreper lamentou a declaração feita pelo representante da Comissão no sexto trílogo. Pediu à Comissão que revisse a sua posição, tendo em conta, nomeadamente, a perspetiva de um acordo iminente entre o Parlamento e o Conselho.

    15.

    Por carta de 8 de maio de 2013, dirigida aos Presidentes do Parlamento e do Conselho, que constitui a decisão impugnada, O. Rehn informou que, na sua 2045.a reunião, o Colégio dos Comissários tinha decidido retirar a proposta de regulamento‑quadro, em conformidade com o artigo 293.o, n.o 2, TFUE. A ata dessa reunião indica, a este respeito, que «[a] Comissão aprova a linha de atuação indicada na nota SI(2013)231» ( 9 ). Resulta de tal nota que os serviços da Comissão consideraram que o recurso ao processo legislativo ordinário constituía uma distorção da proposta de regulamento‑quadro na medida em que o procedimento se tornaria moroso e imprevisível e, sobretudo, na medida em que as decisões de concessão de assistência sob a forma de regulamentos específicos teriam o mesmo nível normativo que o regulamento‑quadro. Por outro lado, a nota expressava também preocupações de ordem constitucional relativas a uma limitação do direito de iniciativa da Comissão.

    16.

    O Parlamento e o Conselho formalizaram o seu acordo numa declaração conjunta, adotada em 9 de julho de 2013.

    III – Pedidos das partes e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

    17.

    Através do seu recurso, apresentado em 18 de julho de 2013, o Conselho pede ao Tribunal de Justiça que anule a decisão impugnada e que condene a Comissão nas despesas.

    18.

    Na sua contestação, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao recurso e condene o Conselho nas despesas.

    19.

    A República Checa, a República Federal da Alemanha, a República Francesa, a República Italiana, o Reino dos Países Baixos, a República Eslovaca, a República da Finlândia, o Reino da Suécia, bem como o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, foram admitidos a intervir em apoio dos pedidos do Conselho.

    20.

    Na audiência realizada em 23 de setembro de 2014 foram ouvidos a República Checa, a República Federal da Alemanha, a República Francesa, a República Italiana, o Reino Unido, o Conselho e a Comissão.

    IV – Quanto à admissibilidade

    21.

    Importa, antes de mais, determinar se a decisão impugnada é um ato suscetível de recurso, na aceção do artigo 263.o TFUE. Parece‑me que esta questão deve ser examinada oficiosamente pelo Tribunal de Justiça para determinar a sua competência para conhecer do recurso.

    22.

    De acordo com jurisprudência constante, são suscetíveis de recurso, na aceção do artigo 263.o TFUE, todos os atos adotados pelas instituições, quaisquer que sejam a sua natureza ou forma, que se destinem a produzir efeitos jurídicos vinculativos ( 10 ). Para determinar se um ato impugnado produz tais efeitos, há que atender à sua própria essência, bem como à intenção do seu autor ( 11 ). Consequentemente, a forma que um ato ou decisão reveste é, em princípio, indiferente no que respeita à admissibilidade de um recurso de anulação de tal ato ou decisão ( 12 ).

    23.

    No caso em apreço, trata‑se de um ato atípico ( 13 ), a saber, uma carta do Vice‑Presidente da Comissão dirigida aos Presidentes do Parlamento e do Conselho, através da qual a Comissão os informa da decisão do seu Colégio de retirar a proposta de regulamento‑quadro, em conformidade com o artigo 293.o, n.o 2, TFUE.

    24.

    Daqui decorre que, através do ato impugnado, a Comissão pôs termo ao processo legislativo, privando assim o Conselho e o Parlamento de qualquer meio de ação. Com efeito, como o Conselho observou, o ato impugnado afetou a sua posição jurídica, impedindo‑o de adotar a proposta que lhe tinha sido previamente apresentada.

    25.

    No caso em apreço, há que concluir, portanto, que a decisão impugnada produziu efeitos jurídicos nas relações entre as instituições. Por conseguinte, a decisão impugnada visa efetivamente produzir efeitos jurídicos vinculativos. Daqui decorre que o recurso de anulação desta decisão é admissível.

    V – Quanto à violação do princípio da atribuição de competências e do princípio do equilíbrio institucional

    A – Argumentos das partes

    26.

    No âmbito do seu primeiro fundamento, o Conselho, apoiado pelos Estados‑Membros intervenientes, salientando o vínculo existente entre o princípio da atribuição de competências e o do equilíbrio institucional ( 14 ), alega que os Tratados não contêm referências explícitas a uma prerrogativa geral da Comissão que a autorize a retirar as propostas que apresente ao legislador.

    27.

    O Conselho contesta a existência de um «direito» de retirada de natureza simétrica do direito de iniciativa consagrado no artigo 17.o, n.o 2, TUE, quase absoluto na medida em que é discricionário. O direito de retirada da Comissão deve, pelo contrário, ser limitado a situações objetivas entre as quais se incluem o decurso do tempo ou a ocorrência de novas circunstâncias ou de dados técnicos ou científicos que tornem a proposta legislativa obsoleta ou desprovida de objeto, uma ausência duradoura de avanço apreciável do processo legislativo que permita antever um fracasso ou, ainda, a existência de uma estratégia comum partilhada com o legislador num espírito de cooperação leal e de respeito do equilíbrio institucional ( 15 ). O papel da Comissão no âmbito do processo legislativo ordinário seria, assim, limitado ao de «honest broker» ( 16 ).

    28.

    Segundo o Conselho, a prerrogativa geral de retirada não pode, portanto, ser reconhecida à Comissão com base no artigo 293.o, n.o 2, TFUE, sob pena de infringir tanto a letra como a finalidade desta disposição, que visa facilitar o processo legislativo. Além disso, reconhecer à Comissão uma prerrogativa geral de retirada equivaleria a retirar o efeito útil ao direito do Conselho, consagrado no artigo 293.o, n.o 1, TFUE, de alterar a proposta da Comissão dentro dos limites do seu objeto e da sua finalidade ( 17 ).

    29.

    O Conselho salienta, de resto, que o poder discricionário de retirada sempre que a Comissão não concorde com as alterações acordadas entre os colegisladores ou não esteja satisfeita com o resultado final de uma negociação equivaleria a conferir‑lhe um instrumento de pressão injustificado sobre o andamento dos trabalhos legislativos bem como um direito de veto sobre a ação legislativa em função de considerações de oportunidade política, o que colocaria a Comissão em pé de igualdade com os colegisladores e levaria, assim, a um desvio do processo legislativo ordinário, a uma ingerência no poder legislativo reservado ao Parlamento e ao Conselho pelos artigos 14.°, n.o 1, e 16.°, n.o 1, TUE, e a permitir à Comissão exceder a sua competência de iniciativa. O reconhecimento à Comissão de um poder discricionário de retirada seria também contrário à separação de poderes bem como ao princípio da democracia, na aceção do artigo 10.o, n.os 1 e 2, TUE ( 18 ).

    30.

    Nas suas observações ( 19 ), a República Federal da Alemanha acrescenta que, atendendo à revalorização do papel do Parlamento no âmbito do processo legislativo bem como à importância que as instituições da União atribuem ao processo de negociação informal no seio dos trílogos, a Comissão não pode já, sob pena de violar o princípio da cooperação leal, retirar a sua proposta legislativa a partir do momento em que surge um compromisso entre os colegisladores que permita antever a adoção do ato legislativo em questão.

    31.

    Na sua contestação, a Comissão alega que a retirada de uma proposta legislativa constitui, à semelhança da apresentação ou alteração de tal proposta, uma das expressões do seu direito de iniciativa no interesse geral da União, consagrado no artigo 17.o, n.o 1, primeira frase, TUE. Consequentemente, tal como incumbe unicamente à Comissão decidir apresentar, ou não apresentar, uma proposta legislativa e alterar, ou não, a sua proposta inicial ou uma proposta já alterada, é unicamente à Comissão que incumbe, enquanto a sua proposta não tiver sido adotada, decidir mantê‑la ou retirá‑la ( 20 ). O artigo 7.o do Protocolo sobre a subsidiariedade, acima referido, demonstra que os autores do TFUE conceberam o direito de retirada da Comissão como um direito geral.

    32.

    A prática consolidada da Comissão assegura o respeito das competências das outras instituições da União e do princípio da cooperação leal. Para além dos casos de retiradas periódicas agrupadas, a Comissão procede a retiradas esporádicas quando constata uma falta de apoio político à sua iniciativa ( 21 ).

    33.

    No caso em apreço, a Comissão contesta, em primeiro lugar, ter usurpado os poderes do legislador ( 22 ). Ao adotar a decisão impugnada, assumiu as responsabilidades que lhe incumbem no âmbito do processo legislativo e que implicam, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, TUE, que tome as iniciativas adequadas para promover o interesse geral da União, durante todo o processo. A Comissão contesta que a decisão impugnada viole o artigo 293.o, n.o 1, TFUE e salienta que esta disposição constitui uma regra processual e não a expressão de um qualquer princípio geral segundo o qual o Conselho tenha o direito de adotar um ato em todas as circunstâncias, à revelia da obrigação prevista no artigo 13.o, n.o 2, TUE. O referido artigo 293.o, n.o 1, TFUE também não proíbe a Comissão de retirar uma proposta legislativa.

    34.

    Quanto à disposição do artigo 293.o, n.o 2, TFUE, ilustra o facto de que o papel da Comissão no processo legislativo se mantém durante todo esse processo e consiste não só em facilitar os contactos entre os colegisladores para aproximar as suas posições respetivas como também em assumir, no âmbito dos trílogos, as suas próprias responsabilidades, defendendo a sua posição, retirando, se necessário, a sua proposta inicial em circunstâncias como as do caso em apreço.

    35.

    Por fim, a Comissão contesta que a decisão impugnada afete o princípio da democracia, salientando que, à semelhança das outras instituições da União, a Comissão tem a sua própria legitimidade democrática, nomeadamente ao abrigo do artigo 17.o, n.os 7 e 8, TUE, e política, perante o Parlamento.

    B – Análise (existência, alcance e exercício do poder de retirada de uma proposta legislativa no âmbito do processo legislativo ordinário, na aceção do artigo 294.o TFUE)

    1. Introdução

    36.

    Embora as partes no presente processo pareçam estar de acordo quanto à premissa segundo a qual o direito da União permite à Comissão retirar uma proposta legislativa, discordam quanto à base constitucional e ao alcance de tal competência. Consequentemente, tenciono, numa primeira fase, identificar a base jurídica e a substância do poder de retirada da Comissão, antes de abordar, numa segunda fase, a natureza jurídica exata da decisão de retirada na perspetiva do alcance da fiscalização jurisdicional a exercer sobre tal ato ( 23 ).

    2. Base constitucional do poder de retirada

    37.

    Invocando uma violação do princípio da atribuição de competências, o Conselho expõe claramente, no seu primeiro fundamento, os receios no que respeita ao reconhecimento à Comissão de um poder ao abrigo do qual esta bloquearia a atividade legislativa da União e seria elevada ao nível de colegislador, dispondo de um veto legislativo, retirando, assim, ao Parlamento e ao Conselho as suas prerrogativas. Simultaneamente, o Conselho admite que a possibilidade de retirar uma proposta legislativa foi sempre, na prática, reconhecida à Comissão, como um corolário do direito de iniciativa, o que não permite, porém, deduzir daí a existência de um «direito» de retirada.

    38.

    Considero, todavia, por um lado, que estes receios não se justificam, dado que o reconhecimento de um poder de retirada da proposta legislativa durante um período limitado, em conformidade com o artigo 294.o TFUE contribui, em si, para a preservação do equilíbrio institucional, na aceção do artigo 13.o, n.o 2, TUE, na medida em que implica que cada uma das instituições exerça as suas competências com respeito pelas das outras ( 24 ). Além disso, parece‑me que a abordagem que visa, por um lado, admitir a existência de uma faculdade pontual da Comissão de proceder a retiradas «limitadas a situações de natureza objetiva, independentes dos interesses particulares da Comissão» e, por outro, rejeitar a existência de tal poder da Comissão, enferma de uma contradição intrínseca.

    39.

    Todavia, também não partilho, por outro lado, da posição que parece ser defendida pela Comissão, quando alega que uma decisão de retirada está sujeita às mesmas regras que a apresentação da proposta legislativa. Considero, com efeito, que não é uma abordagem baseada numa perfeita simetria entre o direito de iniciativa legislativa e o poder de retirada que está subjacente às disposições dos Tratados. Pelo contrário, o poder de retirada constitui uma competência, importante, é certo, mas dotada de características próprias e de limites específicos.

    40.

    É pacífico que os Tratados não preveem expressamente a existência de tal poder de retirada de uma proposta legislativa da Comissão nem, por maioria de razão, as modalidades do seu exercício. Porém, segundo uma tradição consolidada, a Comissão procede a retiradas individuais ou agrupadas, a título de «limpeza administrativa» ( 25 ). Na jurisprudência do Tribunal de Justiça, a possibilidade de retirada surge apenas a título incidental. Dela resulta que «a Comissão é livre de retirar ou de alterar a sua proposta […] se na sequência de uma nova apreciação dos interesses da Comunidade considerar supérflua a adoção d[as] medidas [em causa]» ( 26 ). A eventualidade de uma retirada é igualmente admitida nos termos do Protocolo sobre a subsidiariedade, que prevê a retirada de um projeto legislativo atendendo a dúvidas expressas pelos parlamentos nacionais quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade.

    41.

    A este respeito, gostaria de salientar, antes de mais, que a legitimidade da União assenta na constatação de que os Tratados constitutivos são qualificados como uma carta constitucional geradora de uma ordem jurídica cujos sujeitos são os cidadãos da União ( 27 ). Esta legitimidade implica que as regras relativas à formação da vontade das instituições, estabelecidas pelos Tratados, «não estão na disponibilidade nem dos Estados‑Membros nem das próprias instituições» ( 28 ). Em especial, as limitações à competência conferida à Comissão por uma disposição específica do Tratado não podem ser deduzidas de um princípio geral, mas antes de uma interpretação dos próprios termos da disposição em causa ( 29 ).

    42.

    Assim, nos termos do artigo 14.o, n.o 1, e do artigo 16.o, n.o 1, TUE, conjugados com o artigo 289.o, n.o 1, TFUE, a função de «legislar» é confiada ao Parlamento e ao Conselho. Estes exercem‑na conjuntamente. Em contrapartida, nos termos do artigo 17.o, n.o 2, TUE, os atos legislativos só podem ser adotados sob proposta da Comissão, salvo disposição em contrário dos Tratados. Em conformidade com o artigo 17.o, n.o 1, TUE, a Comissão promove o interesse geral da União e toma as iniciativas adequadas para esse efeito.

    43.

    A ideia que consiste em confiar à Comissão a tarefa de identificar o interesse geral do conjunto dos Estados‑Membros e de propor as soluções adequadas para o satisfazer levou, no sistema comunitário, a confiar à Comissão um quase monopólio da iniciativa legislativa ( 30 ). Embora se refira, por vezes, a erosão política deste poder da Comissão, é essencial salientar que as reformas sucessivas do quadro institucional não alteraram o conteúdo do direito de iniciativa da Comissão ( 31 ).

    44.

    Neste contexto, reconhecendo embora o impacto da evolução do direito da União sobre o conceito de «método comunitário» ( 32 ), este não deixa de ser aplicável e corresponde a um sistema original de repartição dos poderes ( 33 ) que conduz a processos decisórios que estão na origem da distinção entre a União e qualquer outra entidade estatal ou organização internacional intergovernamental. Tal método é, portanto, uma característica sui generis do mecanismo legislativo supranacional instituído pelos Tratados.

    45.

    Seria pois incorreto, na minha opinião, proceder a uma simples equiparação da missão desempenhada pela Comissão neste âmbito a um atributo da função executiva, na sua aceção estrita ( 34 ). Com efeito, a Comissão não é chamada a expressar‑se apenas na qualidade de futuro órgão de execução das disposições legislativas que serão adotadas pelo Parlamento e pelo Conselho, mas como depositária do interesse geral da União e, na realidade, como instituição suscetível de o recordar ( 35 ).

    46.

    A responsabilidade de promover o interesse da União que incumbe à Comissão por força do artigo 17.o, n.o 1, TUE constitui, na minha opinião, a base principal para lhe reconhecer um poder de retirada de uma proposta legislativa.

    47.

    O TUE não eleva, é certo, a Comissão ao nível de colegislador. Porém, a sua participação no processo legislativo resulta do seu poder de iniciativa, na aceção do artigo 17.o TUE, e da disposição constante do artigo 293.o, n.o 1, TFUE, nos termos da qual o Conselho só pode alterar uma proposta da Comissão deliberando por unanimidade, bem como do artigo 293.o, n.o 2, que a autoriza a alterar a proposta legislativa enquanto o Conselho não tiver deliberado. Consequentemente, o poder de retirada decorre do papel confiado à Comissão no âmbito do processo legislativo e baseia‑se, portanto, conjuntamente, no artigo 17.o, n.os 1 e 2, TUE e no artigo 293.o, n.os 1 e 2, TFUE.

    48.

    Acresce que, à luz da jurisprudência relativa ao equilíbrio institucional, e dado que os Tratados concedem à Comissão uma prerrogativa constitucional que lhe confere o poder de apreciar de modo totalmente independente a oportunidade de uma proposta legislativa ou da alteração de tal proposta, nenhuma outra instituição pode obrigar a Comissão a adotar uma iniciativa quando esta não veja em tal iniciativa um interesse da União ( 36 ). O exercício do poder de retirada pode, portanto, ser considerado uma manifestação última do monopólio da iniciativa legislativa da Comissão, como expressão do seu papel de guardiã do interesse da União.

    49.

    Por esta razão, considero que, no estado atual do direito da União, o reconhecimento à Comissão de um poder de retirada, ou até a sua confirmação, não é suscetível de infringir o princípio da atribuição de competências, na aceção do artigo 13.o, n.o 2, TUE. Constitui, ao invés, uma expressão particular desse princípio, sem prejuízo das modalidades de exercício de tal poder que elas sim são suscetíveis, eventualmente, de prejudicar o equilíbrio constitucional, o que importa examinar seguidamente.

    50.

    A este respeito, há que reconhecer o valor do artigo 293.o TFUE ( 37 ), que constitui o instrumento destinado a assegurar o equilíbrio entre os poderes do Conselho e os da Comissão ( 38 ). Com efeito, esta disposição, cuja redação pouco evoluiu desde a assinatura do Tratado CEE, contém duas disposições intimamente ligadas, a saber, uma que exclui a possibilidade de o Conselho adotar um texto sem o consentimento da Comissão e a outra que permite facilmente à Comissão alterar em qualquer momento a sua própria proposta, de modo a que o Conselho não se veja obrigado a deliberar por unanimidade ( 39 ). Todavia, as alterações sucessivas do Tratado limitaram a utilização do seu n.o 1, em especial após a generalização da codecisão e, seguidamente, do processo legislativo ordinário, na aceção do Tratado de Lisboa. Com efeito, o artigo 293.o, n.o 1, TFUE não se aplica nem ao caso de um Comité de Conciliação, nem no de uma terceira leitura, na aceção do artigo 294.o TFUE, nem no âmbito do processo orçamental, sendo estas situações objeto de disposições específicas.

    51.

    Por fim, importa examinar o argumento relativo ao princípio da democracia, invocado pelo Governo alemão na perspetiva do reforço do papel do Parlamento como colegislador. Este governo propõe, com efeito, que se interprete o artigo 293.o, n.o 2, TFUE no sentido de visar, nomeadamente, o desenrolar das negociações entre o Conselho e o Parlamento. Esta interpretação parece partir da premissa segundo a qual, a partir do momento em que tivesse sido alcançado um acordo político entre os legisladores, a Comissão se veria impossibilitada de exercer as suas prerrogativas quanto à proposta legislativa, o que confirmaria o seu papel de mediador ao serviço do legislador («honest broker»).

    52.

    Embora admita que a participação do Parlamento no processo legislativo é o reflexo de um princípio democrático fundamental, segundo o qual os povos participam no exercício do poder por intermédio de uma assembleia representativa ( 40 ), considero que adotar, à partida, um princípio de preferência no sentido de maximizar a participação do Parlamento no processo decisório equivale a afetar o equilíbrio institucional estabelecido pelos Tratados ( 41 ). Importa, além disso, reposicionar tal debate no seu contexto constitucional correto, a saber, o de um litígio relativo à base jurídica de um ato a adotar. Ora, o presente processo suscita a questão distinta da base constitucional do poder de retirada legislativa. Em qualquer caso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça não corrobora a abordagem defendida pelo referido governo ( 42 ).

    53.

    Acresce que, a partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o Parlamento passou a estar, como colegislador, em posição de igualdade com o Conselho no âmbito do processo legislativo ordinário, o que, na minha opinião, constitui um sinal fundamental da valorização do Parlamento no estado atual de desenvolvimento do direito da União. Em especial, a importância da relação entre o Parlamento e o Conselho e a correspondente diminuição do papel da Comissão resulta claramente da comparação entre a primeira leitura e as leituras seguintes do processo legislativo, nos termos do artigo 294.o TFUE ( 43 ). Deste modo, a segunda leitura já não tem por objeto a proposta da Comissão, mas sim as emendas à posição do Conselho, relativamente às quais a Comissão pode dar o seu acordo ou expressar um parecer negativo ( 44 ). O processo continua então com uma terceira leitura, com base no projeto adotado pelo Parlamento e pelo Conselho ( 45 ).

    54.

    É certo que a importância das negociações entre o Parlamento e o Conselho é reconhecida a partir da primeira leitura. O Conselho beneficia, assim, da adoção da «orientação geral», que é considerada, de facto, o elemento de base das negociações ( 46 ). Em contrapartida, nada no texto dos artigos 293.° e 294.° TFUE permite suportar a tese de uma preponderância absoluta do acordo político formal ou informal entre o Conselho e o Parlamento em detrimento do exercício do direito de iniciativa da Comissão, na fase da primeira leitura. Pelo contrário, o exercício desta competência constitui uma expressão do equilíbrio institucional. A este respeito, o próprio Governo alemão admite que, em certos casos, a Comissão pode retirar a sua proposta, ao abrigo de um direito não escrito de caráter complementar.

    55.

    Atendendo a todas as considerações anteriores, afigura‑se que o reconhecimento à Comissão de um poder de retirada deve ser mitigado no sentido de que tal direito só pode ser exercido, tendo em conta os seus efeitos, respeitando os limites estabelecidos pelos Tratados e pelos princípios gerais de direito. Partilho, portanto, plenamente da posição do Conselho quando este salienta que o poder de retirada não pode ser exercido abusivamente ( 47 ). Importa, portanto, delinear os contornos do poder de retirada.

    3. Quanto à essência do poder de retirada da Comissão

    56.

    Antes de mais, parece‑me incontestável que o reconhecimento do poder de retirada e, sobretudo, o seu exercício pela Comissão, afetam a posição normativa das outras instituições que participam no processo legislativo. Com efeito, assentando na responsabilidade confiada à Comissão, nos termos do Tratado UE, de promover o interesse da União, o seu exercício obsta à continuação do processo legislativo por parte dos colegisladores. Uma vez que afeta a sua posição jurídica de modo definitivo, o poder de retirada não pode ser ilimitado.

    57.

    Em primeiro lugar, o poder de retirada constitui, sobretudo, uma prerrogativa reconhecida à Comissão de modo limitado no tempo. No âmbito do processo legislativo ordinário, foram atribuídas à Comissão importantes funções de guardiã do interesse geral nas diferentes fases do processo, o que a leva a realizar arbitragens políticas entre as instituições, mantendo, porém, a sua autonomia própria. O papel da Comissão evolui consideravelmente ao longo do processo legislativo. O mesmo se deve passar, portanto, com o poder de retirada da proposta legislativa, que não deve ser confundido com um direito de veto legislativo, que constitui uma prerrogativa do executivo, geralmente reconhecida ao chefe de Estado para impedir de modo suspensivo ou definitivo a entrada em vigor de um ato legislativo adotado pela instituição investida do poder legislativo.

    58.

    É por esta razão que o artigo 293.o, n.o 2, TFUE, nos termos do qual a Comissão mantém o poder de alterar o projeto, deve ser entendido no sentido de implicar um limite temporal também para efeitos do exercício do poder de retirada.

    59.

    Com efeito, a comparação entre as diferentes leituras previstas pelo artigo 294.o TFUE revela que, na fase da primeira leitura, a Comissão exerce o seu poder de iniciativa sem prejuízo do respeito dos princípios gerais, ao passo que na fase da segunda e terceira leituras as suas prerrogativas constitucionais são cada vez mais limitadas.

    60.

    Depois de o Conselho ter adotado «a sua posição em primeira leitura» na aceção do artigo 294.o, n.o 5, TFUE, o Conselho «delibera» na aceção do artigo 293.o, n.o 1, TFUE, pelo que o papel da Comissão se limita, então, aplicando as disposições conjugadas do artigo 294.o, n.os 7, alínea c), e 9, TFUE, a emitir um parecer sobre as emendas propostas pelo Parlamento em segunda leitura, a partir da posição do Conselho em primeira leitura. Assim, a repartição do poder legislativo entre o Parlamento e o Conselho, que tem origem no antigo processo de cooperação, não permite à Comissão alterar ou, por maioria de razão, retirar a sua proposta depois de o Conselho ter adotado formalmente a sua posição. A Comissão mantém‑se, todavia, plenamente associada ao processo até ao seu termo. Com efeito, antes de poder pronunciar‑se sobre a posição do Parlamento, o Conselho deve ter obtido o parecer da Comissão sobre essas emendas ( 48 ).

    61.

    Consequentemente, na medida em que o poder de retirada constitui uma das manifestações das responsabilidades confiadas à Comissão nos termos dos Tratados, nomeadamente do seu poder de iniciativa legislativa, há que interpretar o artigo 294.o, n.o 5, TFUE no sentido de que estabelece o limite temporal para além do qual a Comissão deixa de ter o direito de retirar a proposta de um ato legislativo ( 49 ).

    62.

    O caso particular da retirada decorrente do Protocolo sobre a subsidiariedade abona também a favor de tal interpretação dos limites temporais do poder de retirada. Com efeito, se, apesar das dúvidas dos parlamentos nacionais relativamente ao respeito do princípio da subsidiariedade quanto a um projeto de ato legislativo, expressas nos termos do artigo 6.o do referido protocolo, a Comissão mantiver a sua proposta, o legislador é obrigado, nos termos do seu artigo 7.o, n.o 3, alínea a), a pronunciar‑se relativamente ao respeito do princípio da subsidiariedade antes de concluir a primeira leitura. Tal implica que as eventuais objeções dos parlamentos nacionais, bem como a decisão da Comissão sobre a retirada, a manutenção ou a alteração da proposta, devem ocorrer numa fase anterior e, em qualquer caso, antes da conclusão da primeira leitura.

    63.

    Além disso, esta determinação dos limites temporais confirma a legalidade das retiradas agrupadas até agora efetuadas pela Comissão. Com efeito, na falta de prazos imperativos no âmbito da primeira leitura, a Comissão continua responsável pelo destino das propostas legislativas nessa fase. A partir do momento em que a primeira leitura não está sujeita a qualquer prazo, os debates podem prolongar‑se tanto quanto as instituições julgarem útil, durante, até, vários anos. Neste contexto, parece coerente, portanto, reconhecer à Comissão o poder, ou até a obrigação, de retirar a sua proposta quando perde a convicção de que o ato em questão corresponde ainda ao interesse geral da União. Em contrapartida, na segunda e terceira leituras, os prazos imperativos, muito curtos ( 50 ), são de aplicação estrita e são os colegisladores que se tornam «donos» do ato a adotar.

    64.

    Por fim, enquadrar o poder de retirada através de uma disposição do Tratado responde ao imperativo elementar da segurança jurídica. Neste contexto, o argumento invocado pelo Governo alemão ( 51 ) segundo o qual é a formalização de um acordo entre o Parlamento e o Conselho, sob a forma de resultado dos trílogos, que obsta à retirada pela Comissão da proposta legislativa, não merece acolhimento. Há que reconhecer, é certo, a dupla dimensão do processo legislativo, jurídica mas também política, revelando‑se esta última determinante no sentido de que permite chegar a um consenso ( 52 ). Todavia, a necessidade de uma disciplina jurídica decorrente do princípio constitucional da democracia representativa que exige uma transparência dos processos no âmbito da adoção de um ato legislativo prevalece, no sentido de que o consenso deve posteriormente ter apoio numa disposição do Tratado, sob pena de se expor ao risco da ilegalidade da atuação do legislador ( 53 ).

    65.

    Em segundo lugar, no âmbito temporal atrás definido, o poder de retirada está sujeito a um limite fundamental, que resulta do respeito necessário do princípio da cooperação leal previsto no artigo 13.o, n.o 2, TUE. Com efeito, no âmbito do diálogo interinstitucional em que assenta o processo legislativo, são impostos às instituições os mesmos deveres recíprocos de cooperação leal que os que regem as relações entre os Estados‑Membros e as instituições da União ( 54 ).

    66.

    Por fim, o poder de retirada esbarra como limite suscetível de constituir o fundamento de uma ação por omissão, nos termos do artigo 265.o TFUE. Com efeito, a retirada de uma proposta legislativa pode constituir uma violação, por parte da Comissão, de uma obrigação de agir ( 55 ).

    4. Quanto à natureza da decisão de retirada da proposta legislativa e quanto aos limites da fiscalização exercida pelo juiz da União

    67.

    Na sua contestação, a Comissão alega que adotou a decisão impugnada por o ato legislativo que os colegisladores tencionavam adotar, apesar das suas advertências, constituir uma desvirtuação da sua proposta e comportar uma violação grave do equilíbrio institucional em resultado do acordo de princípio obtido entre o Parlamento e o Conselho no sentido de substituir, no artigo 7.o da proposta de regulamento‑quadro, a atribuição de uma competência de execução à Comissão pelo recurso ao processo legislativo ordinário, em detrimento dos objetivos de eficácia, de transparência e de coerência prosseguidos pela referida disposição. A Comissão acrescenta que as outras disposições do regulamento‑quadro proposto, que se destinavam a enquadrar as suas competências de execução, ficariam privadas de qualquer efeito jurídico em resultado da alteração acordada entre o Parlamento e o Conselho.

    68.

    Segundo a Comissão, a desvirtuação da proposta de regulamento‑quadro não resultava tanto da recusa de lhe atribuir a competência para adotar as decisões individuais de concessão de assistência macrofinanceira como da vontade dos colegisladores de manter o recurso ao processo legislativo ordinário. A Comissão salienta que a opção possível, nos termos da sugestão inicial do Parlamento, no sentido de recorrer a atos delegados, nos termos do artigo 290.o, n.o 2, TFUE, não teria, na sua opinião, implicado tal desvirtuação. Além disso, os colegisladores tinham preferido alterar a proposta da Comissão num sentido que não só a teria obrigado a apresentar uma proposta legislativa em cada caso individual em que estivessem reunidas as condições de concessão de assistência macrofinanceira (a seguir «AMF»), como teria também determinado em grande medida o próprio conteúdo das suas futuras propostas. O seu direito de iniciativa ficaria, assim, totalmente predeterminado e circunscrito.

    69.

    O Conselho alega que, mesmo admitindo que uma desvirtuação da proposta legislativa ou uma violação grave do equilíbrio institucional constitui uma razão de retirada válida, nenhuma dessas circunstâncias se verificou no caso em apreço.

    70.

    Atendendo aos termos do debate, afigura‑se essencial determinar previamente a natureza exata da decisão de retirada.

    71.

    A decisão de retirada da proposta legislativa dirigida ao Parlamento e ao Conselho surge durante o processo legislativo, que é uma forma particular de diálogo interinstitucional.

    72.

    No caso em apreço, resulta claramente dos autos que esta decisão, considerada sob a perspetiva das razões que levam a Comissão a interromper o processo legislativo, deve ser analisada a um duplo nível, que constitui o ponto de partida do meu exame. Importa, assim, distinguir, por um lado, o nível formal relativo ao exercício do poder de retirada (havendo aqui que verificar o respeito da própria essência do referido poder, tal como foi atrás definido) e, por outro, o nível material relativo à justeza da decisão de retirada numa situação específica (a saber, as justificações quanto ao mérito que levaram a Comissão a retirar a proposta concreta).

    73.

    Ora, na minha opinião, apenas o primeiro aspeto da decisão de retirada pode ser objeto da fiscalização jurisdicional do Tribunal de Justiça. Em contrapartida, o segundo aspeto, relativo à justeza da decisão, é abrangido pela fiscalização da legalidade do ato definitivo cuja adoção só seria possível se a Comissão não exercesse o seu poder de retirada ou se o exercesse indevidamente. Por outro lado, atendendo a esta distinção, a decisão de retirada não tem, na minha opinião, que satisfazer o dever de fundamentação previsto no artigo 296.o TFUE, dado que as razões subjacentes à adoção do ato estão sujeitas à fiscalização quanto ao mérito do ato definitivo. Voltarei a este assunto no âmbito do terceiro fundamento.

    74.

    Pelo contrário, se o Tribunal de Justiça procedesse à fiscalização do mérito da decisão de retirada da Comissão, tal equivaleria não só a contornar o sistema das vias de recurso estabelecido pelo Tratado, procedendo a uma fiscalização da legalidade ex ante ( 56 ) de um ato legislativo, como também a efetuar uma fiscalização indireta da legalidade de um ato legislativo in statu nascendi que não foi ainda adotado e que não tem, portanto, existência jurídica.

    75.

    Constato, portanto, que, no caso em apreço, o aspeto relativo à justeza da decisão impugnada comporta uma análise política da oportunidade da medida a adotar, um exame das particularidades da aplicação do ato em questão, nomeadamente das modalidades da assistência macrofinanceira, a escolha da base jurídica, a questão da repartição das competências na perspetiva da delegação das competências de execução da Comissão e, de um modo mais geral, a problemática da eventual ilegalidade de que o regulamento a adotar poderia enfermar. Ora, concluído o processo legislativo ordinário, estas diferentes questões podem ser submetidas ao Tribunal de Justiça no âmbito de um recurso de anulação do ato final.

    76.

    A Comissão sustenta, assim, que a decisão impugnada foi tomada não com base em considerações de oportunidade ou de opção política que alegadamente quis impor, considerando‑se, erradamente, colegisladora, mas por receio de o ato adotado pelos colegisladores vir a ser contrário aos interesses da União. Ora, na minha opinião, o Tribunal de Justiça não pode pronunciar‑se sobre a legalidade de tal argumentação antes da adoção da medida legislativa em questão, sem correr o risco de exceder as competências que lhe são confiadas pelos Tratados.

    77.

    Neste contexto, há que atribuir particular importância à fiscalização da violação do princípio da repartição dos poderes.

    78.

    Antes de mais, a argumentação relativa a uma pretensa desvirtuação da proposta legislativa deve, na minha opinião, ser apreciada no âmbito da fiscalização do ato definitivo, dado que a desvirtuação pelo colegislador de uma proposta da Comissão equivale a deliberar sem que tenha sido apresentada um proposta e, consequentemente, a violar o direito de iniciativa da Comissão. Nessa situação, é a medida definitiva que enferma de ilegalidade ( 57 ).

    79.

    Por outro lado, a violação das prerrogativas das instituições resulta tipicamente de uma escolha incorreta da base jurídica. Com efeito, a escolha da base jurídica de um ato da União deve assentar em elementos objetivos suscetíveis de fiscalização jurisdicional, entre os quais figuram, designadamente, a finalidade e o conteúdo do ato ( 58 ). O imperativo da segurança jurídica impõe que qualquer ato que vise produzir efeitos jurídicos retire a sua força vinculativa de uma disposição do direito da União, que deve expressamente ser referida como sua base legal e que prescreva a forma jurídica de que o ato se deve revestir ( 59 ). Ora, esta jurisprudência não é aplicável antes da adoção do ato cuja justeza é contestada no âmbito de um processo incidental relativamente ao ato principal.

    80.

    Em qualquer caso, admitindo que o Tribunal de Justiça possa fiscalizar a justeza da decisão de retirada, a questão que se coloca é a de saber qual seria o efeito jurídico de tal acórdão do Tribunal de Justiça, sobretudo sob a perspetiva da autoridade de caso julgado que o acórdão revestiria.

    81.

    Consequentemente, se o Tribunal de Justiça considerasse procedentes as críticas relativas à fundamentação material da decisão de retirada e decidisse que a Comissão tinha considerado incorretamente que a atuação dos colegisladores era uma desvirtuação do seu projeto inicial, o processo legislativo poderia continuar. Na medida em que, nos termos do artigo 278.o TFUE, os recursos interpostos para o Tribunal de Justiça não têm efeito suspensivo, salvo se o Tribunal considerar que deve ser ordenada a suspensão, o processo deveria ser retomado na íntegra, o que implicaria que a Comissão apresentasse uma nova proposta legislativa. Surgiria, então, a questão de saber em que medida o acórdão do Tribunal de Justiça vincularia a Comissão, limitando o exercício do seu direito de iniciativa, no sentido de que a Comissão já não poderia apresentar nem a sua proposta inicial, nem uma proposta que se afastasse da posição dos colegisladores «ratificada» pelo Tribunal de Justiça. Ao penalizar, deste modo, a Comissão, o Tribunal de Justiça afastar‑se‑ia, na minha opinião, da jurisprudência atrás referida, segundo a qual as prerrogativas das instituições são um dos elementos do equilíbrio institucional criado pelos Tratados ( 60 ).

    82.

    O mesmo aconteceria se o Tribunal de Justiça confirmasse a decisão de retirada, com fundamento, por exemplo, na circunstância de a base jurídica proposta pelos colegisladores ser incorreta relativamente à base utilizada na proposta da Comissão. Parece‑me útil recordar que, segundo as normas do TFUE que regem a atividade legislativa das instituições da União, o Parlamento e o Conselho, agindo conjuntamente, têm, nomeadamente ao abrigo do artigo 294.o, n.os 7, alínea a) e 13.°, TFUE, a faculdade de alterar, no decurso do processo legislativo, a base jurídica escolhida pela Comissão ( 61 ).

    83.

    Parece‑me, portanto, que o Tribunal de Justiça se arrogaria assim uma função de árbitro por excelência no âmbito de um processo legislativo em curso.

    84.

    Consequentemente, por todos os fundamentos expostos, proponho ao Tribunal de Justiça que não se pronuncie, no âmbito do presente recurso, sobre as razões invocadas pela Comissão em apoio da sua decisão de retirada. Recordo, a este respeito, que a Comissão alega que podia proceder à retirada, nomeadamente, em caso de desvirtuação grave, de violação grave do equilíbrio institucional ou no caso de a proposta comportar uma ilegalidade manifesta. A Comissão pronuncia‑se também a favor de uma possibilidade de retirada com base na falta de competência da União ou, ainda, com fundamento numa violação do princípio da subsidiariedade. Na minha opinião, trata‑se de aspetos que devem ser apreciados, caso a caso, no âmbito da fiscalização da legalidade de um ato definitivo adotado após a conclusão do processo legislativo.

    85.

    Proponho, assim, que os argumentos invocados tanto pelo Conselho como pela Comissão quanto à justeza da decisão impugnada sejam julgados inoperantes e que se limite a fiscalização jurisdicional apenas aos elementos formais relativos à essência do direito de retirada, como foram expostos nos n.os 56 a 65 das presentes conclusões.

    86.

    Face ao exposto, proponho que o primeiro fundamento do Conselho seja julgado improcedente. Na medida em que decorre dos autos que a Comissão procedeu à retirada antes de o Conselho ter deliberado, na aceção do artigo 294.o, n.o 5, TFUE, há que examinar o segundo fundamento do Conselho, relativo à violação do princípio da cooperação leal.

    VI – Quanto à violação do princípio da cooperação leal, na aceção do artigo 13.o, n.o 2, TUE

    A – Argumentos das partes

    87.

    Através do seu segundo fundamento, o Conselho alega que a Comissão violou, no caso em apreço, o princípio da cooperação leal, o qual, por força de uma jurisprudência codificada no artigo 13.o, n.o 2, última frase, TUE, se impõe igualmente às instituições da União ( 62 ), nomeadamente no âmbito do processo legislativo ordinário ( 63 ).

    88.

    O Conselho e os Estados‑Membros que intervieram em seu apoio alegam que, em vez de exprimir reservas, nomeadamente na fase da adoção da orientação geral do Conselho ou dos debates sobre o relatório do Parlamento, a Comissão indicou que este constituía uma boa base para discussões posteriores. Em novembro de 2011, um dos seus funcionários informou um funcionário do Conselho de que algumas emendas desvirtuavam a substância da sua proposta de regulamento‑quadro, sem referir especificamente a alteração do artigo 7.o desta proposta. O «non‑paper» da Comissão de janeiro de 2013 também não menciona a possibilidade de retirada da sua iniciativa legislativa. Apesar da sua presença constante nas sessões de trabalho do Conselho e nos trílogos, a Comissão só manifestou oficialmente a sua intenção de proceder a tal retirada numa fase tardia, a saber, por ocasião do trílogo de 25 de abril de 2013. A sua nota interna SI(2013)231 revela que a Comissão se apressou a retirar a sua proposta no próprio dia em que o Parlamento e o Conselho deviam rubricar o compromisso a que tinham chegado.

    89.

    Na reunião do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 7 de maio de 2013, a Comissão não referiu de modo algum que esta questão fazia parte da ordem de trabalhos do Colégio dos Comissários do dia seguinte, apesar de um convite expresso do Presidente do Conselho no sentido de informar as delegações da sua eventual intenção de proceder à retirada da proposta de regulamento‑quadro.

    90.

    O desrespeito pela Comissão do princípio da cooperação leal é agravado pela circunstância de esta não ter esgotado as vias processuais previstas nos artigos 3.°, n.o 2, e 11.°, n.o 1, do Regulamento Interno do Conselho ( 64 ), de modo a verificar se a unanimidade exigida pelo artigo 293.o, n.o 1, TFUE para alterar a sua proposta de regulamento‑quadro existia nesse caso concreto, e de também não ter pedido uma votação indicativa no seio das instâncias preparatórias do Conselho ( 65 ).

    91.

    A República Checa e a República Federal da Alemanha sustentam que a Comissão cometeu um abuso de direito ( 66 ). A República Italiana e o Reino Unido alegam que, independentemente do momento em que a Comissão procedeu à retirada da proposta de regulamento‑quadro, esta última excluiu, à partida, qualquer discussão e qualquer negociação com os colegisladores sobre o conteúdo do artigo 7.o da referida proposta, apesar de estes partilharem da mesma abordagem a este respeito.

    92.

    No atinente ao caráter alegadamente tardio da retirada, a Comissão salienta, por seu lado, que indicou claramente, nas reuniões do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 15 e de 22 de novembro de 2011, que as alterações pretendidas pelo Conselho desvirtuavam a sua proposta de regulamento‑quadro. Por ocasião da adoção da orientação geral do Conselho, em 15 de dezembro de 2011, não considerou necessário emitir uma reserva formal, dado que esta «orientação geral» constituía apenas a posição que a presidência do Conselho iria defender no âmbito dos trílogos. Em qualquer caso, não era certo, nessa altura, que a referida posição prevalecesse, tanto mais que o Parlamento não tinha ainda adotado a sua posição e que, quando a adotou, em maio de 2012, preconizava a tomada de decisão com base em atos delegados. Seguidamente, no seu «non‑paper» de janeiro de 2013, reiterou as suas objeções quanto à posição do Conselho, apresentando simultaneamente alguns elementos de apoio para sair do impasse.

    93.

    A Comissão indica, em segundo lugar, que, a partir do trílogo de 30 de janeiro de 2013, durante o qual surgiu um risco de desvirtuação da proposta de regulamento‑quadro, e imediatamente após terem sido autorizados para o efeito pelo Colégio dos Comissários, os seus representantes advertiram os colegisladores nas reuniões subsequentes de que a Comissão poderia retirar esta proposta ( 67 ). Foi apenas quando se apercebeu, no princípio de maio de 2013, de que não conseguia convencer os colegisladores da necessidade de reverem a sua posição comum, que assumiu as suas responsabilidades, adotando a decisão impugnada.

    94.

    A Comissão afirma, em terceiro lugar, que, no momento em que foi redigida a nota interna SI(2013)231, não era ainda conhecida a data do trílogo seguinte. O facto de a decisão impugnada ter sido adotada no dia em que os colegisladores iam finalizar um acordo foi um acaso do calendário. A Comissão acrescenta que uma evocação prematura, da sua parte, da possibilidade de retirada da proposta de regulamento‑quadro teria prejudicado a serenidade dos debates interinstitucionais e o bom andamento do processo legislativo.

    95.

    No que respeita, por outro lado, ao não recurso a outras possibilidades processuais decorrentes do Regulamento Interno do Conselho, a Comissão afirma que a sua participação no conjunto dos trabalhos do grupo dos conselheiros financeiros do Conselho a levou a constatar que as posições dos Estados‑Membros eram perfeitamente claras e que uma votação formal não teria alterado a situação.

    B – Apreciação

    96.

    Antes de mais, e para determinar corretamente o alcance da problemática do princípio da cooperação leal, importa salientar que o primeiro limite imposto ao exercício do poder de retirada resulta da proibição do desvio de poder. Segundo jurisprudência constante, um ato só enferma de desvio de poder caso se revele ter sido adotado exclusivamente, ou pelo menos de forma determinante, com fins diversos dos indicados ou com a finalidade de eludir um processo especialmente previsto pelo Tratado FUE para fazer face às circunstâncias do caso em apreço ( 68 ).

    97.

    Consequentemente, uma eventual violação do princípio da cooperação leal não pode ser equiparada a um desvio de poder.

    98.

    Observo, a este respeito, por um lado, que o princípio da cooperação leal permite sanar as incertezas decorrentes de zonas cinzentas dos Tratados, tal como as resultantes das formas de exercício do poder de retirada. Por outro lado, embora seja aplicável à cooperação informal entre as instituições da União, este princípio não tem um conteúdo que possa ser apreendido com exatidão ( 69 ).

    99.

    O princípio da cooperação leal, codificado nos termos do artigo 13.o, n.o 2, TUE, refere‑se ao respeito que é devido à repartição das competências respetivas e ao equilíbrio institucional ( 70 ). Neste âmbito, e nos termos do artigo 295.o TFUE, para organizarem de comum acordo as formas da sua cooperação, o Parlamento, o Conselho e a Comissão podem celebrar acordos interinstitucionais, sendo caso disso, com caráter vinculativo.

    100.

    Através do seu fundamento, e atendendo à evolução cronológica dos factos na origem do litígio, o Conselho acusa, em substância, a Comissão de só ter manifestado a sua intenção de retirar a proposta numa fase muito tardia dos trílogos, quando estava iminente o acordo entre o Parlamento e Conselho sobre o recurso ao processo legislativo ordinário. O Conselho parece, assim, partir da premissa de que o facto de o trílogo estar programado para o mesmo dia que o da adoção da decisão impugnada se opunha a que a Comissão exercesse o seu poder de retirada.

    101.

    Ora, embora reconhecendo a importância de um trílogo ( 71 ) como expressão da cooperação interinstitucional, como já referi no âmbito do exame do primeiro fundamento, a dimensão política do processo legislativo não pode prevalecer sobre a sua dimensão jurídica.

    102.

    Com efeito, esses trílogos são conduzidos num contexto informal e podem ser realizados em todas as fases do processo e a vários níveis de representação, em função da natureza da discussão esperada ( 72 ). À semelhança do Comité de Conciliação no âmbito do processo legislativo ordinário (e, anteriormente, da codecisão) o trílogo desempenha um papel de arbitragem dos diferendos que podem surgir entre as instituições e procura alcançar um acordo entre elas.

    103.

    Em contrapartida, diferentemente do Comité de Conciliação, o trílogo não tem existência própria no Tratado FUE e não constitui uma fase juridicamente vinculativa da tramitação do processo legislativo ( 73 ). É também o que resulta da Declaração comum de 2007, nos termos da qual uma carta indica a disponibilidade do Conselho para aceitar [o] resultado [de um trílogo], sujeito a revisão jurídico‑linguística, no caso de o mesmo ser confirmado pela votação do plenário ( 74 ). Considero, por esta razão, que a crítica relativa a uma comunicação alegadamente «tardia» da decisão impugnada não procede.

    104.

    Neste contexto, parece‑me essencial salientar que o ato de retirada deve ser precedido e seguido de ampla comunicação entre a Comissão e os colegisladores. Com efeito, a retirada não pode surgir inesperadamente nem violar o requisito da boa‑fé.

    105.

    Os termos dos acordos interinstitucionais podem fornecer indicações úteis a este respeito. Resulta, assim, nomeadamente, do Acordo‑quadro de 20 de novembro de 2010, celebrado entre o Parlamento e a Comissão, que a Comissão deve dar explicações pormenorizadas, oportunamente, antes da retirada das suas eventuais propostas sobre as quais o Parlamento já tenha expresso uma posição em primeira leitura ( 75 ). Além disso, nos termos da Declaração comum de 2007, as instituições procuram cooperar lealmente durante todo o processo, respeitando plenamente o caráter político do processo decisório.

    106.

    No caso em apreço, a Comissão não parece ter cumprido plenamente a sua obrigação de comunicação, extensa e temporalmente adaptada, com outras instituições. Em especial, uma mera troca de mensagens de correio eletrónico entre os funcionários da Comissão e do Conselho de 25 de novembro de 2011, fazendo referência à desvirtuação da proposta da Comissão, não constitui um meio adequado para o efeito. Resulta dos autos, porém, que, a partir de fevereiro de 2013, a Comissão evocou a eventualidade da retirada em várias ocasiões e a alto nível.

    107.

    Assim, na reunião dos conselheiros financeiros de 26 de fevereiro de 2013, o representante da Comissão salientou que a orientação proposta desvirtuaria a proposta da Comissão, o que poderia levá‑la a considerar a possibilidade de retirar a sua proposta ( 76 ). No quinto trílogo, as instituições, em especial o Parlamento, estavam manifestamente conscientes do risco de retirada, dado que o relator M. Kazak pediu à Comissão que promovesse a proposta, em vez de a retirar ( 77 ). Seguidamente, na reunião dos conselheiros financeiros de 9 de abril de 2013, a Comissão reiterou claramente a possibilidade de retirada caso viesse a ser adotado o processo legislativo ordinário para as decisões AMF ( 78 ). Acresce que, na reunião de 2 de maio de 2013, a Comissão não só evocou o risco de retirada, como admitiu que tal possibilidade era examinada pelos serviços da Comissão ao mais alto nível ( 79 ).

    108.

    Consequentemente, os elementos factuais constantes dos autos não permitem constatar uma violação do princípio da cooperação leal por parte da Comissão.

    109.

    Por fim, no que respeita à questão do não esgotamento pela Comissão das possibilidades processuais oferecidas pelo Regulamento Interno do Conselho, recordo que os regulamentos internos das instituições são atos atípicos que regem os princípios de organização de cada uma delas. No que toca aos efeitos que deles podem decorrer relativamente a outras instituições, os regulamentos internos podem apenas visar as modalidades de colaboração entre as instituições. Parece‑me, assim, incontestável que podem afetar o comportamento de outra instituição, nomeadamente sujeitando‑a a uma determinada exigência ou atribuindo‑lhe certa competência. É o caso do artigo 3.o, n.o 2, conjugado com o artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento Interno do Conselho, do qual resulta a faculdade da Comissão de pedir a inscrição na ordem do dia de um ponto que exija uma votação. Em contrapartida, nada na referida disposição implica uma obrigação para a Comissão.

    110.

    Por outro lado, o acórdão Parlamento/Conselho, citado pelo Conselho em apoio do seu fundamento ( 80 ), não visava censurar o não esgotamento das vias processuais por parte do Parlamento, mas o facto de a sua decisão se basear em fundamentos alheios ao ato em questão e, sobretudo, de não tomar em conta a urgência do processo e a necessidade de adotar o regulamento antes da data defendida, justificadamente, pelo Conselho.

    111.

    Consequentemente, atendendo ao princípio do equilíbrio institucional, que implica a autonomia das instituições, a tese segundo a qual a Comissão seria obrigada pelas disposições do Regulamento Interno do Conselho a pedir uma votação antes de proceder à retirada da sua proposta legislativa deve ser julgada improcedente.

    112.

    Constato, em qualquer caso, que os Tratados instauraram uma repartição clara entre as funções e os poderes das instituições políticas da União. Daí resulta que cada uma delas pode legitimamente adotar as suas próprias orientações políticas e utilizar os meios de ação disponíveis para exercer influência sobre as outras instituições. Assim, uma comunicação prévia relativa à eventualidade de uma retirada, tal como a efetuada pela Comissão no quinto trílogo, de 26 de fevereiro de 2013, não pode, de modo algum, ser equiparada a uma ameaça abusiva que constitua um desvio de poder.

    113.

    Consequentemente, proponho que o segundo fundamento seja julgado improcedente.

    VII – Quanto à violação do dever de fundamentação

    A – Argumentos das partes

    114.

    Embora admitindo que a decisão impugnada constitui um ato «não classificado», o Conselho alega, através do seu terceiro fundamento, que uma decisão de retirada de uma proposta legislativa é um ato suscetível de fiscalização jurisdicional. Por conseguinte, tal decisão de retirada deve respeitar a exigência de fundamentação prevista no artigo 296.o, segundo parágrafo, TFUE, conforme interpretada pela jurisprudência ( 81 ), independentemente da questão de saber se tal decisão constitui uma decisão na aceção do artigo 288.o TFUE ( 82 ).

    115.

    Ora, a decisão impugnada não deu origem a qualquer explicação nem publicação e é omissa quanto aos fundamentos da retirada.

    116.

    A Comissão sustenta que o Conselho confunde a obrigação precisa prevista no artigo 296.o TFUE, que consiste em fundamentar os atos jurídicos da União, na aceção do artigo 288.o TFUE, inserindo uma fundamentação no próprio texto do ato em causa, com o princípio geral expresso no artigo 41.o, n.o 2, alínea c), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, segundo o qual qualquer decisão de uma instituição deve ser fundada em razões que devem ser transmitidas, por qualquer forma que seja, às partes interessadas.

    117.

    A Comissão alega que uma decisão de retirada, tal como a decisão impugnada, é uma decisão processual interna, e não um ato jurídico, na aceção do artigo 288.o TFUE. Tal decisão não tem destinatário, na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE ou do artigo 288.o TFUE. Não tem título, nem citações, nem considerandos, nem artigos. Não tem que ser notificada nem publicada, na aceção do artigo 297.o, n.o 2, TFUE, para produzir efeitos. Consequentemente, não lhe é aplicável o dever de fundamentação contido no artigo 296.o TFUE ( 83 ).

    B – Análise

    118.

    Reconhecendo embora o valor constitucional do dever de fundamentação, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça ( 84 ), a natureza e o contexto da adoção do ato impugnado levam‑me a concluir que a decisão impugnada não é abrangida pelo âmbito do dever de fundamentação previsto no artigo 296.o TFUE.

    119.

    No caso em apreço, resulta dos termos da carta do Vice‑Presidente da Comissão que a decisão impugnada estabelece de modo inequívoco e definitivo a posição da Comissão ( 85 ), que traduz a intenção desta de interromper o processo legislativo. Trata‑se, portanto, de uma decisão processual interna das instituições.

    120.

    Recordo, a este respeito, que o Tribunal de Justiça, no contexto de um diálogo interinstitucional, já aceitou uma declaração oral de um comissário que refletia a proposta da Comissão como sendo uma etapa válida do processo legislativo. Segundo o Tribunal de Justiça, o facto de essa proposta alterada da Comissão não ter revestido a forma escrita era irrelevante. Com efeito, «[o] artigo 149.o, n.o 3, do Tratado [atual artigo 293.o, n.o 2 TFUE] [não exige] que essas propostas modificadas tenham obrigatoriamente forma escrita. Essas propostas modificadas fazem parte do processo legislativo comunitário, que se caracteriza por uma certa flexibilidade, necessária para alcançar uma convergência de posições entre as instituições. Elas distinguem‑se fundamentalmente dos atos que a Comissão adota e que dizem diretamente respeito aos particulares. Nestas condições, não se pode exigir para a aprovação destas propostas o respeito rigoroso das formalidades impostas para a adoção dos atos que dizem diretamente respeito aos particulares» ( 86 ).

    121.

    Esta análise permite, por maioria de razão, admitir que uma carta de um comissário que expressa a posição do Colégio não está sujeita ao dever de fundamentação, dado que se inscreve no processo legislativo, conforme definido pelo Tribunal de Justiça.

    122.

    Acresce que, se o Tribunal de Justiça aceitar limitar a fiscalização da legalidade de um ato sui generis, em questão no caso em apreço, apenas ao nível formal relativo à essência do direito de retirada, é evidente que o dever de fundamentação, na aceção do artigo 296.o TFUE, baseado no princípio segundo o qual o ato em causa deve revelar de forma clara e inequívoca o raciocínio do autor do ato, de forma a permitir aos interessados conhecerem as justificações da medida tomada e ao tribunal competente exercer a sua fiscalização ( 87 ), não é pertinente.

    123.

    Na realidade, dado que a Comissão se mantém dentro dos limites da essência do poder de retirada, tais como foram atrás definidos, a fundamentação não se impõe se os colegisladores tiverem sido devidamente informados dos motivos da retirada durante os trílogos interinstitucionais e se tais razões estiverem intimamente associadas ao papel que a Comissão exerce em conformidade com o artigo 17.o, n.o 1, TUE.

    124.

    Consequentemente, o terceiro fundamento deve ser julgado improcedente.

    125.

    Por fim, no que respeita às despesas, observo que, ao interpor o presente recurso, o Conselho se dirigiu legitimamente ao Tribunal de Justiça para obter esclarecimentos quanto ao alcance do poder constitucional de retirada da Comissão, o que poderia justificar, à partida, a repartição das despesas entre as duas instituições. Todavia, nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Conselho e tendo este sido vencido, há, portanto, que condená‑lo nas despesas.

    VIII – Conclusão

    126.

    Por todas as razões atrás expostas, proponho ao Tribunal de Justiça:

    que negue provimento ao recurso do Conselho da União e o condene nas despesas, e

    que decida que, nos termos do artigo 140.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros intervenientes suportarão as suas próprias despesas.


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) Admitir a existência de tal poder equivale, na minha opinião, a reconhecer à Comissão uma competência normativa de decidir retirar ou manter a sua proposta legislativa sem carecer do consentimento explícito ou implícito das outras instituições.

    ( 3 ) COM(2011) 396 final.

    ( 4 ) Atribuído a Guilherme de Ockham, filósofo do século XIV, o princípio da simplicidade é aplicável no domínio das ciências ao enunciar que «as hipóteses suficientes mais simples são as mais plausíveis». Parece‑me ser transponível para o raciocínio jurídico a adotar no caso em apreço.

    ( 5 ) Ex‑artigos 308.° CE e 235.° do Tratado CE.

    ( 6 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece as regras e os princípios gerais relativos aos mecanismos de controlo pelos Estados‑Membros do exercício das competências de execução pela Comissão (JO L 55, p. 13).

    ( 7 ) 2011/0176(COD) de 24 de maio de2012. Texto adotado pelo Parlamento, por votação parcial em primeira leitura/leitura única (JO 2012,C 264 E).

    ( 8 ) Esta solução foi pormenorizada num documento de 19 de fevereiro de 2013 que foi distribuído aos membros do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros, em que participavam representantes da Comissão.

    ( 9 ) A referida nota, que a Comissão juntou aos autos, é composta por um estudo preparado pela Direção‑Geral (DG) «Economia e finanças», sob a autoridade do gabinete de o. Rehn, que contém o desenrolar das negociações sobre a proposta de regulamento‑quadro bem como razões que justificam a retirada.

    ( 10 ) V. acórdãos Comissão/Conselho, dito «AETR» (22/70, EU:C:1971:32, n.o 42); Parlamento/Conselho e Comissão (C‑181/91 e C‑248/91, EU:C:1993:271, n.o 13), bem como Comissão/Conselho (C‑27/04, EU:C:2004:436, n.o 44).

    ( 11 ) V. acórdão Países Baixos/Comissão (C‑147/96, EU:C:2000:335, n.o 27).

    ( 12 ) Despacho Makhteshim‑Agan Holding e o./Comissão (C‑69/09 P, EU:C:2010:37, n.os 37 e 38).

    ( 13 ) V., igualmente, quanto à admissibilidade de uma decisão adotada pelos representantes dos Estados‑Membros na qualidade de representantes dos seus Governos, e não de membros do Conselho, o acórdão Comissão/Conselho (C‑114/12, EU:C:2014:2151, n.os 38 a 40).

    ( 14 ) V., a este respeito, acórdãos Meroni/Alta Autoridade (9/56, EU:C:1958:7, p. 44); Meroni/Alta Autoridade (10/56, EU:C:1958:8, p. 82); Roquette Frères/Conselho (138/79, EU:C:1980:249, n.os 33 e 34); Wybot (149/85, EU:C:1986:310, n.o 23); Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217, n.o 22), e Parlamento/Conselho (C‑133/06, EU:C:2008:257, n.o 57).

    ( 15 ) O Conselho refere‑se, a este respeito, ao artigo 7.o, n.os 2 e 3, do protocolo (n.o 2) relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, anexado aos Tratados UE e FUE (a seguir «Protocolo sobre a subsidiariedade»).

    ( 16 ) V., neste sentido, pontos 13, 17, 22, 24 e 27 da Declaração comum do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão sobre as regras práticas do processo de codecisão (artigo 251.o do Tratado CE) (JO 2007, C 145, p. 5, a seguir «Declaração comum de 2007»).

    ( 17 ) Acórdãos ACF Chemiefarma/Comissão (41/69, EU:C:1970:71); Comissão/Conselho (355/87, EU:C:1989:220, n.o 44), e Eurotunnel e o. (C‑408/95, EU:C:1997:532, n.o 39).

    ( 18 ) O Conselho refere‑se à jurisprudência segundo a qual este princípio encontra expressão tanto no Parlamento como no facto de os membros do Conselho pertencerem a governos nacionais politicamente responsáveis perante o seu parlamento nacional. V., neste sentido, acórdãos Roquette Frères/Conselho (EU:C:1980:249, n.o 33); Maizena/Conselho (139/79, EU:C:1980:250, n.o 34), e Comissão/Conselho (C‑300/89, EU:C:1991:244, n.o 20).

    ( 19 ) É certo que este argumento é apresentado pela República Federal da Alemanha no âmbito do segundo fundamento, relativo à violação do princípio da cooperação leal. Todavia, a resposta a esta crítica é essencial para efeitos do reconhecimento do poder de retirada enquanto tal.

    ( 20 ) V., neste sentido, acórdão Fediol/Comissão (188/85, EU:C:1988:400, n.o 37).

    ( 21 ) A Comissão acrescenta que, entre 1977 e 1994, nos raros casos em que não foi possível obter uma solução conforme ao direito da União, retirou a sua proposta legislativa com fundamento em que o legislador tencionava adotar um ato que teria desvirtuado a sua proposta, prejudicado gravemente o equilíbrio institucional ou implicado uma manifesta ilegalidade. V. os programas de trabalho da Comissão para os anos de 2011, 2012 e 2013 (respectivamente COM[2010] 623 final, COM[2011]777 final e COM[2012] 629 final).

    ( 22 ) V., neste sentido, acórdão Eurotunnel e o. (EU:C:1997:532, n.o 39).

    ( 23 ) Em qualquer caso, a presente análise visa apenas o exercício das prerrogativas da Comissão no âmbito do processo legislativo ordinário, sendo limitada às relações com as outras instituições nesse âmbito.

    ( 24 ) Acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:1990:217, n.o 20).

    ( 25 ) A Comissão procede a tais «limpezas» ou no início do mandato do Colégio, ou anualmente no âmbito de uma revisão global, atendendo a objetivos imperativos, do avanço do processo legislativo bem como da verificação do respeito das exigências atuais de «legislar melhor». V., por exemplo, Comunicação da Comissão, intitulada «Conclusões da análise das propostas legislativas pendentes» [COM(2005) 462 final, ponto 1]. Quanto à problemática da autolimitação do poder legislativo da Comissão por razões políticas, a saber, para evitar a desvirtuação de uma proposta, cujo último exemplo remonta a 1994, v. Ponzano, P., «Le droit d’initiative de la Commission européenne: théorie et pratique», Revue des affaires européennes, 2009‑2010/1, p. 27 e segs. (disponível no endereço Internet: http://ddata.over‑blog.com/xxxyyy/2/48/17/48/Fichiers‑pdf/Europe/Droit‑d‑initiative‑de‑la‑Commission.pdf, p. 11), que remete para Rasmussen, A., «Challenging the Commission’s right of initiative», West European Politics, Vol. 30, n.o2, 244‑ 264, março de 2007. Por fim, ver resposta de 23 de janeiro de 1987 da Comissão à pergunta escrita n.o 2422/86 de Fernand Herman: retirada de proposta pela Comissão (JO 1987, C 220, p. 6.)

    ( 26 ) Acórdão Fediol/Comissão (EU:C:1988:400).

    ( 27 ) V., neste sentido, parecer 1/91 (EU:C:1991:490, n.o 21) e acórdão van Gend & Loos (26/62, EU:C:1963:1, p. 2).

    ( 28 ) Acórdão Reino Unido/Conselho (68/86, EU:C:1988:85, n.o 38) bem como conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Parlamento/Conselho (C‑133/06, EU:C:2007:551, n.o 29).

    ( 29 ) Acórdão França e o./Comissão (188/80 a 190/80, EU:C:1982:257, n.o 6).

    ( 30 ) V. contributo dos Comissários M. Barnier e A. Vitorino, membros da Convenção: «O direito de iniciativa da Comissão», Convenção Europeia, Bruxelas, 3 de setembro de 2002, CONV 230/02. É pacífico que este direito já não é exclusivo, nomeadamente à luz do artigo 7.o TUE, do artigo 11.o, n.o 4, TUE, do artigo 129.o, n.os 3 e 4, TFUE, do artigo 252.o, primeiro parágrafo, TFUE e do artigo 308.o, terceiro parágrafo, TFUE.

    ( 31 ) V., nomeadamente, os estudos de Soldatos, P., «L’urgence de protéger le pouvoir d’initiative législative de la Commission européenne», L’Union européenne et l’idéal de la meilleure législation, Editions Pédone 2013, pp. 175‑190.

    ( 32 ) Referindo‑se à construção europeia, Jean Monnet considerava que «a sua pedra de toque é o diálogo constante [que a Comunidade] organiza entre as instituições nacionais e as instituições comunitárias cujos objectivos estão ligados e só podem avançar solidariamente […]. Este diálogo inseparável da decisão é a própria essência da vida comunitária e o que a torna original nos sistemas políticos modernos», Monnet, J., Mémoires, Paris, 1976, p. 626. Na doutrina, v., por todos, Dehousse, R., La méthode communautaire, a‑t‑elle encore un avenir?, Mélanges en hommage à Jean‑Victor Louis, Vol. I (2003), p. 95, Manin, P., «La méthode communautaire: changement et permanence», Mélanges en hommage à Guy Isaac, T. 1 (2004), p. 213‑237. Quanto ao método comunitário como «núcleo duro» da integração europeia no âmbito das Comunidades, face às formas mais «intergovernamentais», v. também as conclusões do advogado‑geral J. Mazák no processo Comissão/Conselho (C‑440/05, EU:C:2007:393).

    ( 33 ) V. Livro branco sobre a governança europeia [COM(2001) 428]: o método baseia‑se nos princípios segundo os quais: «[1)]a Comissão é a única a apresentar propostas legislativas e de políticas. A sua independência reforça a sua capacidade para executar as políticas, atuar como guardiã do Tratado e representar a União nas negociações internacionais; [2)] os atos legislativos e orçamentais são adotados pelo Conselho […] (que representa os Estados‑Membros) e pelo Parlamento […] (que representa os cidadãos). […] A função executiva é conferida à Comissão e às autoridades nacionais; [3)] o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias garante o respeito do Estado de direito».

    ( 34 ) Tal equiparação procederia de um paralelismo com os sistemas parlamentares clássicos em que o direito de iniciativa legislativa pertence ao soberano. Ora, historicamente, esta prerrogativa do soberano foi afetada pela competência, reconhecida aos parlamentos nacionais, de propor alterações, aos quais, seguidamente, foi conferido um direito próprio de iniciativa legislativa.

    ( 35 ) Roland, S., Le triangle décisionnel communautaire à l’aune de la théorie de la séparation des pouvoirs, Bruylant, 2008 (citação de M. Troper), p. 315.

    ( 36 ) V., neste sentido, acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217, n.o 19).

    ( 37 ) A doutrina insiste no facto de que o artigo 293.o TFUE reflete, em si, a força do direito de iniciativa da Comissão. V., neste sentido, Grabitz/Hilf/Nettesheim, Krajewski/Rösslein, Das Recht der Europäischen Union, 53. Ergänzungslieferung 2014, AEUV Art. 293 Kommissionsvorschlag; Änderungsrecht, Rn. 1.

    ( 38 ) Recorde‑se que, nos termos do artigo 293.o TFUE: 1. Sempre que, por força dos Tratados, delibere sob proposta da Comissão, o Conselho só pode alterar a proposta deliberando por unanimidade, exceto nos casos previstos nos n.os 10 e 13 do artigo 294.o, nos artigos 310.°, 312.° e 314.° e no segundo parágrafo do artigo 315.o 2. Enquanto o Conselho não tiver deliberado, a Comissão pode alterar a sua proposta em qualquer fase dos procedimentos para a adoção de um ato da União.

    ( 39 ) Petite, M., «Avis de temps calme sur l’article 189 A, paragraphe 1», Revue du Marché Unique Européen, 1998/3, p. 197.

    ( 40 ) V. neste sentido, acórdãos Comissão/Conselho, dito «Dióxido de titânio» (C‑300/89, EU:C:1991:244, n.o 20); Parlamento/Conselho (C‑65/93, EU:C:1995:91, n.o 21) e Parlamento/Conselho (C‑155/07, EU:C:2008:605, n.o 78).

    ( 41 ) Partilho, portanto, da opinião expressa pelo advogado‑geral M. Poiares Maduro nas suas conclusões no processo Comissão/Parlamento e Conselho (C‑411/06, EU:C:2009:189, nota de pé de página n.o 5). Com efeito, admitindo embora a importância da representatividade diretamente democrática como medida da democracia europeia, salientou que a democracia europeia implicava igualmente um equilíbrio delicado entre as dimensões nacional e europeia da democracia, não tendo a segunda necessariamente que prevalecer sobre a primeira. É por este motivo que o Parlamento Europeu não dispõe do mesmo poder que os parlamentos nacionais no processo legislativo e, ainda que se possa defender um reforço dos poderes do Parlamento Europeu, seria aos povos europeus que competeria decidir esse assunto através de uma revisão dos Tratados.

    ( 42 ) Com efeito, segundo o Tribunal de Justiça, reconhecer a uma instituição a possibilidade de estabelecer bases jurídicas derivadas, quer no sentido de reforçar quer no de simplificar as modalidades de adoção de um ato, conduziria a permitir a essa instituição violar o princípio do equilíbrio institucional. V., neste sentido, acórdão Parlamento/Conselho ([C‑133/06,] EU:C:2008:257, n.os 56 e57).

    ( 43 ) O artigo 294.o, n.os 1 a 6, TFUE, tem a seguinte redação: «1. Sempre que nos Tratados se remeta para o processo legislativo ordinário para a adoção de um ato, aplicar‑se‑á o processo a seguir enunciado. 2. A Comissão apresenta uma proposta ao Parlamento Europeu e ao Conselho. Primeira leitura 3. O Parlamento Europeu estabelece a sua posição em primeira leitura e transmite‑a ao Conselho. 4. Se o Conselho aprovar a posição do Parlamento Europeu, o ato em questão é adotado com a formulação correspondente à posição do Parlamento Europeu. 5. Se o Conselho não aprovar a posição do Parlamento Europeu, adota a sua posição em primeira leitura e transmite‑a ao Parlamento Europeu. 6. O Conselho informa plenamente o Parlamento Europeu das razões que o conduziram a adotar a sua posição em primeira leitura. A Comissão informa plenamente o Parlamento Europeu da sua posição».

    ( 44 ) Nos termos do artigo 294.o, n.o 7, alínea c), TFUE, «[s]e, no prazo de três meses após essa transmissão, o Parlamento Europeu [p]ropuser emendas à posição do Conselho em primeira leitura, por maioria dos membros que o compõem, o texto assim alterado é transmitido ao Conselho e à Comissão, que emite parecer sobre essas emendas».

    ( 45 ) Nos termos do artigo 294.o, n.o 11, a Comissão participa nos trabalhos do Comité de Conciliação e toma todas as iniciativas necessárias para promover uma aproximação das posições do Parlamento Europeu e do Conselho.

    ( 46 ) V. Jacqué, J.‑P., «Le Conseil après Lisbonne», Revue des affaires européennes, 2012/2, pp. 213 e segs.

    ( 47 ) N.o 62 da petição.

    ( 48 ) Para mais detalhes, v. o Guia do processo legislativo ordinário, brochura do Conselho, de 2010, disponível no endereço Internet: http://consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/QC3109179FRC.pdf.

    ( 49 ) É evidente que se o Conselho aprovar a posição do Parlamento, na aceção do artigo 294.o, n.o 4, TFUE, a Comissão deixa de poder exercer o seu poder de retirada.

    ( 50 ) No âmbito do processo legislativo ordinário, a primeira fase é composta por uma primeira leitura, que não está sujeita a qualquer prazo, seguida de uma segunda leitura, sujeita a um prazo duplo de três meses mais um mês para a segunda leitura do Parlamento e de três meses mais um mês para a segunda leitura do Conselho. O Comité de Conciliação está sujeito a um prazo de seis semanas (sem prejuízo de uma prorrogação nos termos do artigo 294.o, n.o 14, TFUE). Seguidamente, no que respeita à terceira leitura do Parlamento e do Conselho, é aplicável este mesmo prazo de seis semanas.

    ( 51 ) No âmbito do segundo fundamento: contestando embora a licitude de uma retirada nos casos enumerados pela Comissão, o Governo alemão propõe, a título subsidiário, que se interprete o artigo 293.o, n.o 2, TFUE no sentido de que, tendo em conta o princípio da cooperação leal, o último momento para a Comissão poder exercer o seu direito de alteração e, por maioria de razão, a sua faculdade não escrita de retirada, corresponde à obtenção de um acordo entre o Parlamento e o Conselho.

    ( 52 ) Voltarei ao estatuto dos acordos interinstitucionais no âmbito do segundo fundamento.

    ( 53 ) V., a este respeito, quanto à exigência de transparência, artigo 16.o, n.o 8, TUE, por força do qual são públicas as reuniões do Conselho em que este delibere e vote sobre um projeto de ato legislativo, ou seja, quando age na qualidade de legislador. A transparência neste domínio contribui para reforçar a democracia, permitindo aos cidadãos fiscalizar todas as informações que constituíram o fundamento de um ato legislativo, v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Suécia e Turco/Conselho (C‑39/05 P e C‑52/05 P, EU:C:2008:374, n.o 46).

    ( 54 ) V., mutatis mutandis, acórdão Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.o 23).

    ( 55 ) V., a este respeito, despacho Parlamento/Comissão (C‑445/93, EU:C:1996:283). Este aspeto está intimamente associado ao facto de o poder de retirada ser limitado pelo artigo 241.o TFUE, na medida em que a Comissão deve poder apresentar os motivos subjacentes a uma decisão de retirada no caso de o Conselho lhe solicitar que lhe apresente qualquer proposta adequada, nos termos do referido artigo. Os motivos em questão devem, nomeadamente, ser suscetíveis de demonstrar que uma eventual proposta legislativa não responderia a um interesse da União, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, TUE. Tal reflete igualmente a questão do direito de iniciativa de jure e de facto. V. documento da Convenção, intitulado «O direito de iniciativa da Comissão», CONV 230/02, p. 4.

    ( 56 ) A única possibilidade de exame ex ante é a do processo previsto no artigo 218.o, n.o 11, TFUE. V., recentemente, acórdão Conselho/in ’t Veld (C‑350/12 P, EU:C:2014:2039, n.o 58).

    ( 57 ) V. Petite, M., op. cit.

    ( 58 ) V. acórdãos Dióxido de titânio (EU:C:1991:244, n.o 10), e Huber (C‑336/00, EU:C:2002:509, n.o 30).

    ( 59 ) V. acórdão Comissão/Conselho (C‑370/07, EU:C:2009:590, n.os 37 a 39).

    ( 60 ) Acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217, n.o 21).

    ( 61 ) Acórdão Comissão/Conselho (C‑63/12, EU:C:2013:752, n.o 62).

    ( 62 ) V., neste sentido, acórdãos Grécia/Conselho (204/86, EU:C:1988:450, n.o 16) e Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.os 23 e 27).

    ( 63 ) V., neste sentido, a Declaração comum de 2007.

    ( 64 ) Decisão 2009/937/UE do Conselho, de 1 de dezembro de 2009, que adota o seu Regulamento Interno (JO L 325, p. 35) (a seguir «Regulamento Interno do Conselho»).

    ( 65 ) V., neste sentido, acórdão Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.os 27 e 28).

    ( 66 ) V., nomeadamente, acórdão Emsland‑Stärke (C‑110/99, EU:C:2000:695, n.os 39, 52 e 53).

    ( 67 ) A Comissão refere‑se à reunião do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 26 de fevereiro de 2013 e por ocasião do trílogo de 27 de fevereiro 2013 (resulta dos autos que a Comissão enviou a mensagem por correio eletrónico de 12 de abril de 2013 pedindo a correção do «quadro recapitulativo» subsequente a esse trílogo), bem como a reuniões do grupo de trabalho dos conselheiros financeiros de 9 de abril e de 2 de maio de 2013 e à reunião do trílogo de 25 de abril de 2013.

    ( 68 ) V., nomeadamente, acórdãos Espanha/Conselho (C‑310/04, EU:C:2006:521, n.o 69 e jurisprudência referida), bem como Espanha/Conselho (C‑442/04, EU:C:2008:276, n.o 49 e jurisprudência referida).

    ( 69 ) V., para uma análise aprofundada, Blumann, C., «Caractéristiques générales de la coopération interinstitutionnelle», L’union européenne carrefour de coopérations, LGDJ, 2000, pp. 29 a 61.

    ( 70 ) Acórdãos Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.o 23), e Grécia/Conselho (EU:C:1988:450, n.o 16).

    ( 71 ) Com efeito, trata‑se de uma instância importante, cuja instauração remonta aos anos 80, tendo os trílogos sido instituídos pela Declaração comum do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão relativa a diversas medidas que visam melhorar o processo orçamental (JO 1982, C 194, p. 1; EE 01 F3 p. 181).

    ( 72 ) Ponto 8 da Declaração comum de 2007.

    ( 73 ) É visado, todavia, pela Declaração comum de 2007 atrás referida, adotada antes do Tratado de Lisboa, da qual resulta (no ponto 14) que, caso seja alcançado um acordo, na fase da primeira leitura no Parlamento, através de negociações informais em trílogos, o Presidente do Coreper envia‑o sob a forma de alterações à proposta da Comissão.

    ( 74 ) V. ponto 14 da Declaração comum de 2007.

    ( 75 ) Acordo‑quadro sobre as relações entre o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia (JO 2010, L 304, p. 47). Este acordo faz parte do Regimento do Parlamento (como anexo XIII).

    ( 76 ) V. documento transmitido pela Comissão, intitulado «Report: Financial Counsellors WG of 26 February 2013, ECFIN/D2/NL/SN324590» (p. 3).

    ( 77 ) Ibidem, p. 6: «He asked COM to encourage and not to withdraw its proposal».

    ( 78 ) Documento transmitido pela Comissão, intitulado «Report: Financial Counsellors WG of 9 April 2013 on MFA, ECFIN/D2/NL dl Ares(2013)»(pp. 1 e 5).

    ( 79 ) Documento transmitido pela Comissão, intitulado «ECFIN/D2/NL/dl Ares (2013) Report: Financial Counsellors WG of 2 May 2013 on the MFA» (p. 2).

    ( 80 ) Acórdão Parlamento/Conselho (EU:C:1995:91, n.os 27 e 28).

    ( 81 ) V., nomeadamente, acórdãos Conselho/Bamba (C‑417/11 P, EU:C:2012:718, n.o 50), e Kendrion/Comissão (C‑50/12 P, EU:C:2013:771, n.os 41 e 42).

    ( 82 ) V., neste sentido, acórdãos Comissão/Conselho (EU:C:2009:590, n.o 42), e Comissão/Conselho (EU:C:2013:752, n.o 28).

    ( 83 ) Por outro lado, o facto de os motivos de uma decisão processual não constarem da menção que, por força dos artigos 8.°, n.o 4, e 16.° do Regulamento Interno da Comissão (JO 2010, L 55, p. 61) dela deve ser feita numa ata ou numa relação dos atos adotados, não constitui uma violação do dever de fundamentação.

    ( 84 ) V., nomeadamente, acórdãos Comissão/Conselho (EU:C:2009:590, n.os 37 a 39 e n.o 42) e Suíça/Comissão (C‑547/10 P, EU:C:2013:139, n.o 67).

    ( 85 ) Para uma jurisprudência que recusa o caráter de ato impugnável à carta de um comissário da concorrência bem como à correspondência entre a DG e um Estado‑Membro, com fundamento em que se trata apenas de uma proposta de atenuar o efeito restritivo de um acordo entre empresas, v. acórdão Nefarma/Comissão (T‑113/89, EU:T:1990:82).

    ( 86 ) V. acórdão Alemanha/Conselho (C‑280/93, EU:C:1994:367, n.o 36).

    ( 87 ) Acórdão Deutsche Telekom/Comissão (C‑280/08 P, EU:C:2010:603, n.os 130 e 131).

    Top