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Document 62008CC0440

    Conclusões do advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer apresentadas em 27 de Outubro de 2009.
    F. Gielen contra Staatssecretaris van Financiën.
    Pedido de decisão prejudicial: Hoge Raad der Nederlanden - Países Baixos.
    Fiscalidade directa - Artigo 43.º CE - Contribuinte não residente - Empresário - Direito a dedução concedido aos trabalhadores independentes - Critério das horas trabalhadas - Discriminação entre os contribuintes residentes e os não residentes - Opção de equiparação.
    Processo C-440/08.

    Colectânea de Jurisprudência 2010 I-02323

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2009:661

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER

    apresentadas em 27 de Outubro de 2009 1(1)

    Processo C‑440/08

    F. Gielen

    contra

    Staatssecretaris van Financiën

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

    «Liberdade de estabelecimento – Artigo 43.° CE – Fiscalidade directa – Regime de tributação de não residentes – Dedução fiscal – Discriminação – Imposto sobre o rendimento que permite escolher entre o regime de tributação de residentes e de não residentes»





    1.        O Hoge Raad (Supremo Tribunal dos Países Baixos) apresenta uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, relativa à conformidade com o artigo 43.° CE de uma dedução do imposto sobre o rendimento neerlandês que discrimina os contribuintes não residentes, ainda que lhes permita escolher previamente entre o regime aplicável aos residentes e o seu próprio regime.

    2.        O presente processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de esclarecer se, à luz da sua jurisprudência sobre a fiscalidade directa, uma opção de tributação neutraliza um tratamento discriminatório. Não obstante, como a seguir refiro, a equiparação entre residentes e não residentes pode esconder um equívoco, dado que há ocasiões em que se deve afirmar, parafraseando o porco propagandista de O triunfo dos porcos, que todos os contribuintes europeus são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros (2).

    3.        A questão prejudicial suscitada proporciona um bom exemplo desta deformação orwelliana.

    I –    Quadro jurídico

    A –    Regulamentação comunitária

    4.        O artigo 43.° CE consagra a liberdade de estabelecimento das empresas e dos profissionais em toda a Comunidade:

    «No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado‑Membro estabelecidos no território de outro Estado‑Membro.

    A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.°, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais».

    B –    Regulamentação neerlandesa

    5.        Nos Países Baixos, o imposto sobre o rendimento é regulado pela Lei relativa ao imposto sobre o rendimento de 2001 (Wet Inkomstenbelating 2001). Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, desta lei, as pessoas singulares não residentes no referido país são sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento, sempre e quando obtenham rendimentos em território neerlandês.

    6.        O artigo 7.2 descreve a matéria colectável do imposto do seguinte modo:

    «1.      A matéria colectável, como resultado dos rendimentos do trabalho e prediais, é constituída pelos rendimentos tributáveis do trabalho e prediais, depois de deduzidos os prejuízos nos termos do capítulo 3.

    2.      A matéria colectável resultante dos rendimentos do trabalho e prediais, constitui o rendimento global, composto pelos:

    a)      lucros de uma empresa neerlandesa gerida através de um estabelecimento estável nos Países Baixos ou de um representante estável no mesmo país (empresa neerlandesa).

    […]».

    7.        A dedução concedida ao empresário é definida no artigo 3.°, n.° 74, da referida lei, mas o n.° 76 especifica que a dedução concedida a trabalhadores por conta própria é aplicável àqueles que prestem um número mínimo de horas. O montante desta dedução depende do valor do lucro, sendo calculado mediante uma escala degressiva estabelecida pela lei.

    8.        Nos termos do artigo 3.°, n.° 6, do referido diploma, por «número mínimo de horas» entende‑se:

    «[…] a dedicação, durante o ano civil, de, pelo menos, 1225 horas a actividades de uma ou várias empresas, das quais o sujeito passivo obtém lucros enquanto empresário».

    9.        Embora a legislação nacional não o refira expressamente, para o órgão jurisdicional de reenvio, neste período horário só são contabilizadas as horas em que um sujeito passivo não residente exerce actividades num estabelecimento nos Países Baixos. Consta dos autos que, nos termos do artigo 9.° do Decreto de 2001 para a prevenção da dupla tributação (Besluit voorkoming dubbele belasting 2001), os residentes nesse país podem incluir no cálculo do tempo total as horas de trabalho tanto nos Países Baixos como no estrangeiro.

    10.      O artigo 2.°, n.° 5, da lei estabelece um regime opcional de tributação para os empresários não residentes, com as seguintes condições:

    «O sujeito passivo residente que não permaneça nos Países Baixos durante o ano completo do exercício e o sujeito passivo não residente, enquanto residente noutro Estado da União Europeia ou num Estado terceiro especificado por decisão ministerial, com o qual os Países Baixos tenham celebrado um acordo para evitar a dupla tributação e fomentar a permuta de informações, susceptível de ser tributado num Estado europeu ou num Estado terceiro, poderão optar pelo regime aplicável aos sujeitos passivos residentes. Por decisão ministerial, apresentar‑se‑ão os elementos de prova exigíveis para que esta disposição seja aplicável. […]».

    II – Factos

    11.      F. Gielen trabalha por conta própria e reside na Alemanha, seu país de origem, onde, com dois sócios, explora uma empresa de horticultura de estufa. A empresa de F. Gielen tem uma sucursal nos Países Baixos para plantas ornamentais.

    12.      No ano de 2001, F. Gielen declarou, nos Países Baixos, rendimentos de 11 577 EUR relativos à sua delegação neerlandesa. Tendo dedicado menos de 1 225 horas ao estabelecimento neerlandês, não preenchia os requisitos do artigo 3.°, n.° 6, da lei e, portanto, não foi autorizado a deduzir da matéria colectável os 6 084 EUR a que teria direito relativamente aos seus rendimentos nesse Estado.

    13.      Depois da decisão da administração tributária que lhe negou o direito à dedução, F. Gielen apresentou uma reclamação que foi indeferida, pelo que interpôs recurso jurisdicional no Tribunal de Breda, o qual também considerou o recurso improcedente. Recorreu da decisão deste tribunal para o Gerechtshof (tribunal de segunda instância) de Hertogenbosch (Bois‑le‑Duc), que deu provimento parcial ao pedido do recorrente, por considerar que F. Gielen tinha direito a efectuar a dedução, apesar de ter trabalhado menos de 1 225 horas nos Países Baixos, mas calculou o montante a partir da percentagem correspondente aos lucros obtidos nos Países Baixos em relação à totalidade dos seus rendimentos. Com este pressuposto, o Gerechtshof reduziu a liquidação para 11 188 EUR.

    14.      F. Gielen recorreu da decisão para o Hoge Raad, insistindo no seu direito à dedução integral de 6 084 EUR, à qual teria direito atendendo aos seus rendimentos nos Países Baixos. Por sua vez, a administração recorrida apresentou a defesa da tese oposta.

    15.      Em 4 de Outubro de 2007, o advogado‑geral do Hoge Raad, J.A.C.A. Overgaauw, apresentou as suas conclusões, nas quais apoiou a posição de F. Gielen, alegando que um não residente, que é impedido de considerar as horas de trabalho efectuadas noutro Estado‑Membro para efeitos de uma dedução fiscal, sofre uma discriminação contrária ao direito comunitário. Acrescentou que o regime fiscal neerlandês permite que os empresários não residentes, como F. Gielen, optem pelo regime dos residentes, de acordo com o qual são consideradas todas as horas de trabalho, tanto nos Países Baixos como noutros Estados da União. Esta opção corrige a discriminação anteriormente referida, salvaguardando a sua compatibilidade com o Tratado CE.

    III – Questão prejudicial e tramitação processual no Tribunal de Justiça

    16.      Tendo em conta as alegações das partes, bem como as conclusões do advogado‑geral J. Overgaauw, a Terceira Secção do Hoge Raad suspendeu a instância e, por despacho de 12 de Setembro de 2008, submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «O artigo 43.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à aplicação de uma disposição do sistema fiscal de um Estado‑Membro aos lucros que um nacional de outro Estado‑Membro (sujeito passivo estrangeiro) realizou na parte da sua empresa explorada no primeiro Estado‑Membro, se essa disposição, interpretada de um certo modo, cria na realidade uma discriminação, por si só contrária ao artigo 43.° CE, entre os sujeitos passivos nacionais e os sujeitos passivos estrangeiros, mas o sujeito passivo estrangeiro em causa teve a possibilidade de optar por ser tratado como um sujeito passivo nacional, possibilidade de que, por razões pessoais, não fez uso?»

    17.      O pedido prejudicial foi registado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 6 de Outubro de 2008.

    18.      F. Gielen, os Governos dos Países Baixos, da Alemanha, da Estónia, da Suécia e de Portugal, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas.

    19.      Na audiência, realizada em 17 de Setembro de 2009, apresentaram alegações o representante de F. Gielen, os agentes dos Governos neerlandês, sueco, alemão, português e estónio, bem como o da Comissão Europeia.

    IV – Admissibilidade

    20.      O Governo português e F. Gielen alegam que as questões apresentadas pelo Hoge Raad são de natureza hipotética e dependem unicamente da interpretação do direito interno, função que incumbe exclusivamente aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros.

    21.      Segundo jurisprudência constante, compete ao juiz nacional a quem foi submetido o litígio apreciar tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que coloca nos termos do artigo 234.° CE (3). Todavia, o Tribunal de Justiça aceitou, em circunstâncias excepcionais, examinar as condições em que é solicitado a intervir pelo órgão jurisdicional nacional, com vista a verificar a sua própria competência (4). Assim acontece quando a dúvida for de natureza puramente hipotética (5), pois o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento da questão prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal do Luxemburgo, que é contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros, e não peça opiniões consultivas sobre questões gerais ou teóricas (6).

    22.      No Hoge Raad, como anteriormente referi, discute‑se uma opção regulada pela legislação neerlandesa. F. Gielen escolheu uma das duas possibilidades ao seu alcance (a relativa aos não residentes), denunciando a desvantagem em que fica em relação à dos residentes dos Países Baixos. Embora a alternativa ao dispor do recorrente só possa ser avaliada com uma aplicação «hipotética» do regime neerlandês, para realizar um teste de igualdade, é preciso ter um parâmetro de referência (7). Quando se aprecia uma discriminação prevista numa disposição jurídica, a comparação é efectuada cotejando essa disposição com outras. Para completar o raciocínio, o parâmetro de referência é sempre aplicado em «hipóteses», não conferindo, contudo, natureza «hipotética» ao litígio.

    23.      Além disso, não creio que tenha sido utilizado um parâmetro de referência errado para apoiar a comparação entre residentes e não residentes. Este aspecto integra‑se na apreciação da igualdade a efectuar em sede de apreciação do mérito do processo e, como tal, não respeita à pertinência da questão prejudicial, mas à análise pormenorizada desse aspecto.

    24.      Em consequência, recomendo ao Tribunal de Justiça que declare a questão prejudicial admissível.

    V –    Análise da questão prejudicial

    25.      Esta análise deve ser efectuada em duas fases.

    26.      Em primeiro lugar, F. Gielen alega que a impossibilidade de considerar as horas de trabalho na Alemanha, para efeitos de uma dedução da matéria colectável do imposto neerlandês sobre o rendimento, constitui uma limitação que, nos Países Baixos, só existe para os não residentes que invocam o estatuto que lhes é próprio. Os Estados que apresentaram observações neste processo prejudicial, bem como a Comissão e F. Gielen, defenderam posições opostas quanto a este ponto.

    27.      Em segundo lugar, o Hoge Raad centra as suas questões na justificação invocada pelo Governo neerlandês. Os trabalhadores por conta própria não residentes nos Países Baixos mas que obtêm lucros nesse território, têm a possibilidade de invocar o estatuto dos residentes. Assim, F. Gielen pôde escolher o segundo estatuto e considerar as horas de trabalho na Alemanha. Não o fez por sua livre decisão, razão pela qual não foi objecto de qualquer discriminação na legislação controvertida, dado que foi tratado de forma desigual por assim ter escolhido.

    28.      O órgão jurisdicional de reenvio não tem dúvidas sobre o carácter discriminatório e contrário ao artigo 43.° CE da dedução em litígio para os não residentes nos Países Baixos. Se o Tribunal de Justiça aceitasse essa premissa, trataria unicamente dos efeitos da opção da lei relativa ao imposto, já referida. Contudo, nem todos os intervenientes neste processo prejudicial partilham a tese do Hoge Raad. E, como acertadamente refere o Governo alemão, se a restrição à contabilização de horas no estrangeiro fosse conforme com o direito comunitário, não faria sentido pronunciar‑se sobre o regime opcional da regulamentação fiscal em apreço.

    29.      Em suma, cumpre determinar se o sistema de deduções em vigor nos Países Baixos para os trabalhadores por conta própria não residentes é compatível com o artigo 43.° CE. Se se responder negativamente, há que aprofundar o regime opcional da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento, que habilita os não residentes a escolher o estatuto fiscal dos residentes.

    A –    Dedução atribuída aos trabalhadores por conta própria e natureza discriminatória do cálculo de horas estabelecido para os não residentes

    30.      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as normas de igualdade proíbem as discriminações ostensivas em razão da nacionalidade e também todas as formas dissimuladas de discriminação que, aplicando outros critérios de distinção, conduzam, na prática, ao mesmo resultado (8). Assim, tanto na sua dimensão directa como indirecta, a discriminação consiste na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou da mesma regra a situações diferentes (9).

    31.      A partir do acórdão Schumacker (10), o Tribunal de Justiça insistiu em que, em matéria de fiscalidade directa, os residentes e os não residentes não são comparáveis (11). Os rendimentos auferidos no território de um Estado por um não residente constitui, normalmente, uma parte dos seus rendimentos globais, obtidos no país da residência. Por outro lado, a capacidade contributiva pessoal do não residente, resultante da tomada em consideração do conjunto dos seus rendimentos e da sua situação pessoal e familiar, pode mais facilmente ser apreciada no local onde tem o centro dos seus interesses pessoais e patrimoniais (12). Esse local coincide, frequentemente, com a sua residência habitual.

    32.      Esta afirmação levou o Tribunal de Justiça a admitir que, mesmo quando um Estado‑Membro impede um não residente de beneficiar de certas vantagens fiscais atribuídas aos residentes, não é discriminatório, pois estas duas categorias de sujeitos passivos não se encontram numa situação comparável (13).

    33.      Os princípios apresentados não conferem aos Estados‑Membros um cheque em branco nem os habilitam a estabelecer regimes abertamente discriminatórios em relação aos contribuintes não residentes. Antes pelo contrário, o acórdão Schumacker pretendia evitar medidas nacionais que tratassem de maneira diferente os não residentes que se encontrem em circunstâncias semelhantes às dos residentes (14). O processo Schumacker parece muito significativo a este respeito, pois era relativo a um nacional belga, com residência na Bélgica, cujos rendimentos foram obtidos quase exclusivamente na Alemanha. O Tribunal de Justiça considerou que, encontrando‑se num contexto semelhante ao de um trabalhador que resida na Alemanha e ao não poder ponderar‑se o enquadramento pessoal e familiar de R. Schumacker, este fora objecto de discriminação. A argumentação dos processos Wielockx, Gschwind ou Meindl assentou no mesmo raciocínio (15).

    34.      Desta jurisprudência se deduz que uma desigualdade se torna lícita quando as condições pessoais e familiares variam sensivelmente entre residentes e não residentes. Mas a discriminação torna‑se ilegal se a diferença se prende com deduções que estão directamente ligadas à actividade que gerou os rendimentos tributáveis (16). A sensu contrario, o Tribunal de Justiça mostra‑se respeitador das regulamentações fiscais nacionais que incentivam, premeiam ou castigam, através de uma política fiscal, qualquer actividade económica ligada à situação pessoal dos contribuintes (17). Esta distinção aceita abertamente que os Estados‑Membros gozam de menor margem de manobra quando se protege uma determinada actividade económica, independentemente da referida conjuntura pessoal dos que a exerçam. Todavia, a jurisprudência garante que a soberania fiscal de cada país seja salvaguardada quando o obstáculo se limita à referida situação pessoal do contribuinte, algo que cada autoridade deve apreciar com critérios territoriais. Esta análise, embora não isenta de dificuldades (18), tem a sua lógica, pois as competências em matéria tributária continuam a pertencer a cada país e o Tribunal de Justiça não quer interferir num aspecto tão delicado, que incide directamente sobre os cofres dos Estados‑Membros (19).

    35.      Tanto os não residentes como os residentes podem invocar a dedução estabelecida no artigo 3.°, n.° 74, da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento neerlandês. Os primeiros devem cumprir um mínimo anual de 1225 horas nos Países Baixos, enquanto os segundos devem contabilizar não só as horas de trabalho no referido país, mas também as efectuadas noutros Estados. Há uma diferença de tratamento evidente que o Governo neerlandês reconhece. Mas alguns Estados recusam equiparar a situação dos não residentes com a dos residentes e reiteram que a discriminação é compatível com o artigo 43.° CE.

    36.      Não concordo com esta posição.

    37.      A dedução controvertida tem um objectivo referido pelos Países Baixos neste processo: que a tributação dos rendimentos dos trabalhadores por conta própria onere os que desempenham as actividades a título principal (20). O direito fiscal neerlandês estabeleceu um regime para os trabalhadores por conta própria que compensa os que, de forma significativa, assumem uma actividade empresarial; para garantir esse resultado, é necessário exceder um limite de horas.

    38.      Um não residente que trabalhe por conta própria nos Países Baixos, onde é tributado, deve atingir uma duração mínima de trabalho para requerer a dedução prevista no artigo 3.°, n.° 74, da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento. Deve também comprovar esse número de horas para demonstrar que a sua actividade principal é empresarial (21). Como adequadamente indicou a Comissão nas suas observações escritas, a exigência de horas da legislação neerlandesa não pretende condicionar ou avaliar a situação pessoal ou familiar do contribuinte, mas certificar‑se de que aqueles que praticam uma actividade específica (no presente processo, uma actividade por conta própria) não mentem (22). Ao exigir que o tempo de trabalho estipulado tenha sido efectuado nos Países Baixos, a regulamentação nacional não contribui para demonstrar o tipo de actividade.

    39.      O artigo 3.°, n.° 74, da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento diz respeito à natureza da prestação tributada e não às circunstâncias pessoais ou familiares do sujeito passivo, pelo que a situação de um trabalhador por conta própria não residente é comparável à de um trabalhador por conta própria residente, pelo menos no que respeita à dedução sobre a matéria colectável mencionada na referida disposição.

    40.      Portanto, considero que os Países Baixos discriminam os trabalhadores por conta própria não residentes, ao impedi‑los (mas não aos residentes) de considerar o tempo de trabalho noutro Estado‑Membro para realçar o carácter relevante da sua actividade económica.

    41.      Neste contexto, cabe analisar se a discriminação é justificada por o contribuinte não residente ter podido submeter‑se voluntariamente ao estatuto fiscal dos residentes.

    42.      Aí radica o nó górdio desta questão prejudicial.

    B –    Regime opcional de tributação para não residentes e sua função como mecanismo neutralizador de uma discriminação

    43.      Como referi, o Hoge Raad considera que as deduções da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento aplicáveis aos trabalhadores por conta própria implicam uma discriminação. Partilham esta ideia os Governos neerlandês e sueco, bem como F. Gielen. Mas há divergências face à dúvida principal deste processo em relação à possibilidade atribuída pela regulamentação neerlandesa aos empresários não residentes de serem tributados como residentes e não sofrerem o tratamento discriminatório imputado.

    44.      Quanto a este aspecto, todos os Estados que apresentaram observações concordam em defender a denominada «tese da neutralização», nos termos da qual a opção de tributação permite ao contribuinte ponderar as vantagens e desvantagens de cada estatuto. Se prefere um regime discriminatório, que teria evitado escolhendo a outra alternativa, não há que denunciar a desigualdade daí decorrente. Manifestou‑se também neste sentido, no processo principal, o advogado‑geral do Hoge Raad.

    45.      F. Gielen e a Comissão defendem uma posição divergente para responder à questão prejudicial, centrando‑se, nomeadamente, nos encargos administrativos que implica para um trabalhador por conta própria não residente sujeitar‑se ao estatuto de residente.

    1.      Opção como instrumento de convalidação de uma ilegalidade

    46.      Este processo coloca um problema delicado relativamente ao princípio de igualdade. Em termos mais abstractos, o Hoge Raad pergunta ao Tribunal de Justiça se uma discriminação ilícita pode tornar‑se lícita quando tiver sido livremente escolhida pela vítima. A questão assume especial relevo no âmbito fiscal, em que frequentemente se facultam ao contribuinte vários regimes que, em alguns casos, contêm elementos nem sempre vantajosos (23).

    47.      Quem sofre uma discriminação legislativa não se encontra numa situação comparável à de quem é objecto de uma discriminação individualizada ou de facto. Quando o legislador ou a administração estabelecem um quadro jurídico geral e estável, estudam uma ampla gama de possibilidades e gozam de uma grande discricionariedade. Porém, quem toma uma decisão individual ou incorre numa prática de facto, costuma apoiar‑se num enquadramento jurídico mais definido e concreto. Por conseguinte, confere‑se um maior poder ao legislador e nesse leque de opções que lhe é concedido, só pode ter origem uma discriminação em circunstâncias de especial gravidade (24). A mera regulamentação implica sempre um tratamento diferenciado, dado que a regra é normalmente aplicável a determinados sujeitos, mas não a todos (25). Esta distinção não afecta per se o princípio da igualdade, como também não o afecta um regime que abranja diversas opções e, portanto, estatutos jurídicos divergentes.

    48.      Os Estados intervenientes neste processo prejudicial sustentam que quem escolhe livremente submeter‑se a um regime não pode denunciá‑lo depois. Assim, quando o direito atribui a alguém a faculdade de escolher entre vários regimes, entre os quais o discriminatório, essa faculdade salva o princípio da igualdade. Dito de outro modo, se se discriminar um sujeito num estatuto que aceitou sem restrições, a preferência expressa neutraliza o tratamento desigual. Portanto, bastaria que o legislador concedesse uma margem de discricionariedade a alguém, para aprovar, posteriormente, contra o mesmo, disposições abertamente discriminatórias com total impunidade.

    49.      Discordando dos que apoiam o efeito neutralizador da opção, considero que as dúvidas do Hoge Raad se colocam num plano mais abstracto que, afastando as características deste processo, permitem resolver a questão apresentada.

    50.      O raciocínio dos Estados assenta, pois, numa premissa errada, segundo a qual há que escolher uma opção legal ou outra ilegal.

    51.      Segundo um aforismo bem aceite, não há desigualdade na ilegalidade (26). Por exemplo, se uma administração tributária comete um erro e liquida a uma sociedade um imposto inferior ao que devia, as concorrentes não podem alegar um tratamento discriminatório e, consequentemente, exigir uma liquidação fiscal semelhante. Neste contexto, quando um sujeito se inclina para uma opção legal ou outra ilegal, a mera escolha também não converte o discriminatório em igualitário.

    52.      Para refutar esta argumentação, o Governo português invoca o adágio latino venire contra factum proprium, reflexo do princípio dos actos próprios. Contudo, cumpre realçar que esse adágio foi sempre utilizado no contexto da legalidade. Se não se admite a igualdade na ilegalidade, também não se deve conferir valor jurídico aos actos próprios que violam o direito, pois isso convalidaria um acto ilegal, algo inaceitável para o ordenamento jurídico.

    53.      Além disso, a opção é facultada a todos os empresários por conta própria, sem que os Países Baixos tenham referido outros requisitos adicionais para invocar esse mecanismo. Com estes antecedentes, essa possibilidade de escolha «bruta», incondicional e aberta a qualquer empresário, sem ter em atenção as especificidades das diferentes categorias de empresários por conta própria, torna ainda mais difícil reconhecer‑lhe uma função neutralizadora (27).

    54.      A questão prejudicial apresentada devia considerar‑se respondida neste momento. Porém, para o caso de o Tribunal de Justiça considerar que a referida possibilidade convalida uma discriminação, conferindo‑lhe carácter lícito, analiso a susceptibilidade de comparar os residentes estrangeiros que exercem a opção com os verdadeiros residentes neerlandeses.

    2.      Consequências para o contribuinte de aceitar a opção dos residentes

    55.      Segundo o Governo dos Países Baixos, se F. Gielen tivesse optado pela tributação dos residentes, a sua dívida fiscal ter‑se‑ia equiparado à de uma pessoa com domicílio fiscal efectivo nos Países Baixos. A defesa de F. Gielen não partilha esta opinião e, tanto na gestão como na tributação, identifica disparidades notórias que reduzem o regime opcional a uma falsa alternativa.

    56.      Há que analisar em seguida estes últimos argumentos.

    a)      Custos de gestão administrativa

    57.      A Comissão e F. Gielen aludem às despesas de gestão de uma declaração sobre o rendimento no regime dos residentes.

    58.      Esta referência pode ser extrapolada para a maioria dos sistemas fiscais dos Estados‑Membros, pois existe um princípio, amplamente consolidado no direito tributário internacional, segundo o qual incumbe a cada Estado tributar os rendimentos obtidos no seu território (princípio da territorialidade), princípio que é cumprido atribuindo jurisdição tributária tanto ao Estado de residência (tributação no Estado de residência), como ao Estado do lugar onde é realizada a actividade tributada (tributação no Estado da fonte) (28). O primeiro representa o local em que mais facilmente é apreciada a capacidade contributiva individual e exige ao contribuinte a declaração de todos os seus rendimentos, sem prejuízo de aplicar posteriormente mecanismos correctores destinados a evitar a dupla tributação (princípio da tributação na fonte). No segundo, pelo seu carácter alheio ao contexto individual do contribuinte, declaram‑se e tributam‑se unicamente os rendimentos aí obtidos.

    59.      Parece evidente que a primeira hipótese exige do contribuinte maior esforço probatório perante a administração fiscal.

    60.      Com esta premissa, F. Gielen podia aceitar o estatuto fiscal de residente nos Países Baixos através da ficção criada pelo legislador neerlandês, ainda que não fosse eximido da obrigação de apresentar uma declaração na Alemanha, de acordo com o estatuto de residente (desta vez, alemão). Assim, ao estabelecer o domicílio de F. Gielen na Alemanha, tem que declarar aí os seus rendimentos globais. Algo que ocorreria igualmente nos Países Baixos, se escolhesse o estatuto de residente da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento neerlandês. Depois de apresentadas as declarações em cada Estado, proceder‑se‑ia ao acerto correspondente em cada um, em razão do princípio da territorialidade.

    61.      O estatuto fiscal dos trabalhadores por conta própria residentes causa ao contribuinte não residente um custo adicional com que o sujeito passivo residente não é necessariamente onerado. Enquanto quem tem o seu domicílio nos Países Baixos só apresenta uma declaração global de rendimentos e é tributado no estrangeiro pelos rendimentos aí obtidos, um sujeito passivo como F. Gielen deveria apresentar uma declaração global de rendimentos em dois Estados‑Membros, adaptando as suas normas contabilísticas a dois ordenamentos jurídicos nacionais e assumindo custos de gestão administrativa perante duas administrações fiscais que, além disso, utilizam línguas diferentes (29). É evidente que um contribuinte como F. Gielen, que não reside nos Países Baixos, não se encontra nas mesmas condições que outro que seja tributado e resida nesse Estado.

    62.      O Tribunal de Justiça mostrou‑se severo ao apreciar os custos administrativos impostos por um Estado‑Membro aos contribuintes não residentes. O risco destas medidas para o bom funcionamento do mercado interno levou a jurisprudência a admitir tacitamente que a obrigação de um não residente de acatar as disposições contabilísticas do Estado em que obtém os rendimentos pode tornar‑se um obstáculo contrário ao artigo 43.° CE (30).

    63.      Ora, no processo em causa, não se discute se os custos administrativos decorrentes da opção do artigo 2.°, n.° 5, da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento infringem as liberdades de circulação. Tal apreciação apenas demonstra que um trabalhador por conta própria não residente, apesar de poder ser tributado segundo o regime dos residentes, não goza das mesmas vantagens. Assim o afirmaram F. Gielen e a Comissão, ainda que não tenham recebido réplica bastante nas observações escritas e nas alegações orais dos Países Baixos nem nas dos outros Estados‑Membros.

    b)      Montante da dívida fiscal

    64.      Na audiência deste processo prejudicial, o Governo dos Países Baixos reiterou que os rendimentos que constituem a matéria colectável do regime de residentes, para efeitos da aplicação da correspondente dedução do artigo 2.°, n.° 5, da lei, são os rendimentos globais do sujeito passivo, o que significa que F. Gielen, se tivesse optado pelo regime de residentes, não teria declarado os 11 577 EUR ganhos nos Países Baixos, mas os 88 849 EUR de rendimento relativos a esse ano nos seus dois estabelecimentos, o neerlandês e o alemão. Assim, a dedução em apreço respeita aos rendimentos mais elevados e ascende a 2 984 EUR. O cálculo não fica concluído, pois F. Gielen só podia subtrair da sua matéria colectável a parte proporcional aos lucros obtidos nos Países Baixos.

    65.      Segundo a defesa do recorrente, para calcular a dedução final, dividem‑se os rendimentos obtidos nos Países Baixos pelos lucros globais, multiplicando o resultado pela dedução aplicável. Numericamente, a operação traduz‑se assim:

    (11 577/88 849) x 2 984 = 389 EUR

    66.      Não obstante, também segundo F. Gielen, um residente nos Países Baixos que seja tributado por todos os seus rendimentos, independentemente da sua origem neerlandesa ou estrangeira, não calcula a percentagem do montante da dedução, subtraindo o montante total à matéria colectável. Esta discriminação é justificada pelo facto de F. Gielen, ainda que sujeito ao regime aplicável aos residentes, só dever ser tributado pelos rendimentos obtidos nos Países Baixos, o sendo o cálculo da percentagem efectuado para que o contribuinte não residente não goze de um estatuto melhor do que o dos verdadeiros residentes.

    67.      Na audiência, o Governo dos Países Baixos apresentou um método de cálculo alternativo, segundo o qual as consequências financeiras para um verdadeiro residente e para um não residente que escolhe o estatuto de residente são idênticas. Mas, embora o representante de F. Gielen tenha insistido em que esse método não é correcto e que o resultado económico final é diferente para os dois sujeitos passivos, este Tribunal de Justiça não tem elementos suficientes para esclarecer essa polémica, pois não deve imiscuir‑se no controlo da legalidade tributária neerlandesa, algo que excede largamente o seu âmbito de competência.

    68.      Considero, por isso, que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se o montante da dívida tributária é o mesmo para os dois casos.

    69.      Apesar da incerteza referida, custa imaginar que sejam situações comparáveis.

    70.      Tal como explicou a agente do Governo neerlandês na audiência, ainda que a dívida fiscal seja a mesma, as normas aplicáveis variam em função dos contribuintes. Também, na linha da argumentação da Comissão, e como já exposto nos n.os 57 a 63, realizar duas declarações dos rendimentos globais, uma nos Países Baixos e outra na Alemanha, implica um encargo pesado, especialmente quando os rendimentos obtidos nos Países Baixos são reduzidos. Assim sendo, a discriminação inicial, analisada nos n.os 30 a 42 destas conclusões, não foi reparada, uma vez que o contribuinte não residente não é equiparado ao residente, mesmo que opte pelo regime fiscal deste.

    c)      Corolário provisório

    71.      O contribuinte estrangeiro que prefere ser tributado de acordo com o regime aplicável aos residentes não fica numa situação equivalente à dos nacionais. Esta ausência de homogeneidade impede concluir que a faculdade conferida pelo artigo 2.°, n.° 5, da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento neutraliza as discriminações ilegais associadas a uma das alternativas. Esta asserção reforça‑se se se observar numa perspectiva mais geral, especialmente com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

    3.      Opção de tributação e jurisprudência Schumacker

    72.      O Governo dos Países Baixos em insiste que o imposto sobre o rendimento neerlandês, ao prever a possibilidade de escolha entre o estatuto de residente e o de não residente, segue o acórdão Schumacker, indo até mais longe do que o mesmo dispõe (31).

    73.      Discordo desta ideia, que se apoia numa interpretação incorrecta do referido acórdão.

    74.      O acórdão em apreço declarou que, quando um não residente não dispõe de rendimentos significativos no Estado de residência e obtém o essencial dos seus rendimentos numa actividade exercida noutro Estado, não se podem tributar mais pesadamente esses rendimentos no Estado em que os obteve do que os de residentes que exerçam a mesma actividade. Está, pois, subjacente neste acórdão a susceptibilidade de comparação, pois um indivíduo que trabalha quase exclusivamente num país distinto do da sua residência, deve receber no Estado do empregador um tratamento equivalente ao dos residentes. Caso se obtém uma equiparação desta natureza, o sistema fiscal do Estado de acolhimento tem que tomar em consideração as circunstâncias pessoais e familiares do trabalhador não residente, sobretudo quando estas circunstâncias também não são tidas em consideração no seu Estado de residência (32).

    75.      Não é possível invocar o acórdão Schumacker para justificar a neutralização de uma discriminação como a de que foi objecto F. Gielen. Esta jurisprudência tem um âmbito específico, que não coincide com o dos autos, e segue parâmetros, os do trabalhador cuja situação familiar e pessoal não é apreciada, que a afastam do caso em apreço. Por conseguinte, não se pode afirmar, como fazem os Países Baixos, que o artigo 2.°, n.° 5, da Lei relativa ao Imposto sobre os Rendimentos se mostra mais protector do que o acórdão Schumacker.

    76.      Além disso, a aplicação maximalista do acórdão Schumacker defendida pelos Países Baixos teria efeitos perversos. O litígio objecto do presente processo assim o demonstra. Também não se pode admitir que, ao adoptar estatutos fiscais opcionais para o não residente, um país pode aprovar as discriminações que considere oportunas, considerando que a mera escolha neutraliza o tratamento desigual. Se o Tribunal de Justiça aceitasse a tese do Governo neerlandês, deveriam estabelecer‑se reservas para refrear a expansão das discriminações identificadas para os não residentes e reduzi‑las a um âmbito escrupulosamente delimitado. Sendo difícil estabelecer tais reservas, sou levado a excluir que a alternativa em apreço tenha efeito convalidatório.

    4.      Reflexão final

    77.      Não quero concluir estas conclusões sem frisar que, neste processo, não é impugnado o regime opcional estabelecido pelo artigo 2.°, n.° 5, da Lei relativa ao Imposto sobre o Rendimento. Apesar do que precede, há que insistir em que a análise efectuada visa apreciar o efeito neutralizador do regime opcional quanto a uma discriminação observada para os não residentes.

    78.      Há que insistir nesta reserva, dado que o sistema estabelecido pelos Países Baixos assume vantagens evidentes (33). Segundo opiniões autorizadas, permitir que um contribuinte seja tributado pela totalidade dos seus rendimentos tanto no Estado da residência como no da fonte pode ter óptimas consequências, especialmente na tributação transnacional das pessoas singulares (34). Em face dos diversos modelos fiscais vigentes nos Estados‑Membros, o sistema neerlandês contém elementos positivos que não discuto. Também não se pretende impugnar a legalidade do referido modelo, cingindo‑se o debate à dimensão neutralizadora desse sistema. Apenas nesse contexto o artigo 2.°, n.° 5, da Lei relativa ao Imposto sobre os Rendimentos se mostra insuficiente para justificar a discriminação ilegal que sofrem os não residentes como F. Gielen.

    VI – Conclusão

    79.      Tendo em conta as explicações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial do Hoge Raad, declarando que:

    «O artigo 43.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição nacional que discrimina os trabalhadores por conta própria não residentes, mesmo quando o sujeito passivo estrangeiro teve a possibilidade, de que não fez uso, de optar por ser tratado como um trabalhador por conta própria residente».


    1 – Língua original: espanhol.


    2 – Orwell, G., O triunfo dos porcos, narra que o famoso mandamento final, que refunde e deforma os sete iniciais num único, é referido pelo porquinho Squealer, «de bochechas redondas, olhos brilhantes, movimentos ágeis e voz esganiçada. Era um orador brilhante e quando discutia algum assunto complicado, tinha o costume de se balouçar de um lado para o outro, sacudindo a cauda, o que, inexplicavelmente, era bastante persuasivo. Os outros diziam que Squealer conseguia transformar o preto em branco» [tradução livre].


    3 – Acórdãos de 16 de Julho de 1992, Meilicke (C‑83/91, Colect., p. I‑4871, n.° 23); de 18 de Março de 2004, Siemens e ARGE Telekom (C‑314/01, Colect., p. I‑2549, n.° 34); de 22 de Novembro de 2005, Mangold (C‑144/04, Colect., p. I‑9981, n.° 34); de 18 de Julho de 2007, Lucchini (C‑119/05, Colect., p. I‑6199, n.° 43); e de 6 de Novembro de 2008, Trespa International (C‑248/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 32).


    4 – Acórdão de 16 de Dezembro de 1981, Foglia (244/80, Recueil, p. 3045, n.° 21).


    5 – Acórdãos de 13 de Março de 2001, Preusen Elektra (C‑379/98, Colect., p. I‑2099, n.° 39); de 22 de Janeiro de 2002, Canal Satélite Digital (C‑390/99, Colect., p. I‑607, n.° 19); de 5 de Fevereiro de 2004, Schneider (C‑380/01, Colect., p. I1389, n.° 22); e de 12 de Junho de 2008, Gourmet Classic (C‑458/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 25).


    6 – Acórdãos Foglia, já referido, n.os 18 e 20; de 3 de Fevereiro de 1983, Robards (149/82, Recueil, p. 171, n.° 19); Meilike, já referido, n.° 64; e de 18 de Dezembro de 2007, ZF Zefeser (C‑62/06, Colect., p. I‑11995, n.° 15).


    7 – Tridimas, T., The General Principles of EU Law, 2ª ed., Ed. Oxford University Press, Oxford, 2006, pp. 81 a 83.


    8 – Acórdãos de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu (152/73, Colect., p. 91, Recueil, p. 153, n.° 11); de 21 de Novembro de 1991, Le Manoir (C‑27/91, Colect., p. I‑5531, n.° 10); de 11 de Agosto de 1995, Wielockx (C‑80/94, Colect., p. I‑2493, n.° 16); e de 27 de Novembro de 1997, Meints (C‑57/96, Colect., p. I‑6689, n.° 44).


    9 – Acórdãos de 11 de Agosto de 1995, Wielockx, já referido, n.° 17; de 7 de Maio de 1998, Lease Plan (C‑390/96, Colect., p. I‑2553, n.° 34); de 19 de Setembro de 2000, Alemanha/Comissão (C‑156/98, Colect., p. I‑6857, n.° 84); e de 13 de Março de 2007, Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation (C‑524/04, Colect., p. I‑2107, n.° 46).


    10 – Acórdão de 14 de Fevereiro de 1995 (C‑279/93, Colect., p. I‑225).


    11 – Acórdãos Schumacker, já referido, n.° 31; de 12 de Maio de 1998, Gilly (C‑336/96, Colect., p. I‑2793, n.° 49); e de 9 de Novembro de 2006, Turpeinen (C‑520/04, Colect., p. I‑10685, n.° 26).


    12 – Acórdãos Schumacker, já referido, n.os 31 e 32; de 14 de Setembro de 1999, Gschwind (C‑391/97, Colect., p. I‑5451, n.° 22); de 16 de Maio de 2000, Zurstrassen (C‑87/99, Colect., p. I‑3337, n.° 21); de 12 de Junho de 2003, Gerritse (C‑234/01, Colect., p. I‑5933, n.° 43); de 1 de Julho de 2004, Wallentin (C‑169/03, Colect., p. I‑6443, n.° 15); de 6 de Julho de 2006, Conijn (C‑346/04, Colect., p. I‑6137, n.° 20); e de 25 de Janeiro de 2007, Meindl (C‑329/05, Colect., p. I‑0000, n.° 23).


    13 – Acórdão Schumacker, já referido, n.° 33.


    14 – Nas minhas conclusões no processo Gschwind, já referido, reitero esta ideia, acrescentando, no n.° 42, que o acórdão Schumacker «não pretendeu acabar com o princípio geralmente reconhecido pelo direito fiscal internacional, incorporado no direito dos Estados‑Membros através do modelo de convenção‑tipo da OCDE em matéria de dupla tributação, e segundo o qual compete ao Estado de residência tributar globalmente o sujeito passivo, tendo em conta os elementos da sua situação pessoal e familiar».


    15 – Acórdãos já referidos.


    16 – Acórdãos de 8 de Maio de 1990, Biehl (C‑175/88, Colect., p. I‑1779, n.° 16); Schumacker, já referido, n.° 36; Gerritse, também já referido, n.os 27 e 28; de 3 de Outubro de 2006, FKP Scorpio Konzertproduktionen (C‑290/04, Colect., p. I‑9461, n.° 42); de 15 de Fevereiro de 2007, Centro Equestre da Lezíria Grande, Lda. (C‑345/04, Colect., p. I‑1425, n.° 23); e de 11 de Setembro de 2008, Eckelkamp e o. (C‑11/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 50).


    17 – Jurisprudência referida na nota anterior e Almendral, V., «La tributación del no residente comunitario: entre la armonización fiscal y el derecho tributario internacional», EUI Working Papers LAW 2008/25, pp. 17 a 21 e 23 a 26.


    18 – Como sublinha Almendral, V., já referido, p. 21, a jurisprudência não concretiza, ao não distinguir (porque o Tribunal de Justiça não quer ou não pode) objectivamente a dedução ligada ao rendimento da dedução pessoal.


    19 – O Tribunal de Justiça reconheceu que a fiscalidade directa é da competência dos Estados‑Membros, embora estes devam exercer essa competência no respeito do direito comunitário. Acórdãos de 15 de Maio de 1997, Futura Participations e Singer (C‑250/95, Colect., p. I‑2471, n.° 19); de 26 de Outubro de 1999, Eurowings Luftverkehr (C‑294/97, Colect., p. I‑7447, n.° 32); de 28 de Outubro de 1999, Vestergaard (C‑55/98, Colect., p. I‑7641, n.° 15); de 14 de Dezembro de 2000, AMID (C‑141/99, Colect., p. I‑11619, n.° 19); e de 13 de Dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, Colect., p. I‑10837, n.° 29).


    20 – Assim o confirmou a agente do Governo neerlandês, durante a audiência.


    21 – F. Gielen refere as conclusões do advogado‑geral do Hoge Raad no processo principal, em cujo n.° 6.2.3 se observa que «o critério horário não pode ser dissociado da vantagem conferida aos trabalhadores por conta própria […]. No essencial, os antecedentes históricos da lei mostram que o objectivo do critério horário impede que os «falsos» empresários beneficiem das vantagens atribuídas aos trabalhadores por conta própria ou, por outras palavras, que só os «verdadeiros» empresários exerçam o direito às deduções previstas na lei».


    22 – N.° 10 das observações escritas da Comissão.


    23 – Wouters, J., «The Principle of Non‑discrimination in European Community Law», European Community Tax Review, n.° 2, 1999, p. 102; Peters, C. y Snellaars, M., «Non‑discrimination and Tax Law: Structure and Comparison of the Various Non‑discrimination Clauses», European Community Tax Review, n.° 1, 2001, p. 13; e Zalasinski, A., «The Limits of the EC Concept of ‘Direct Tax Restriction on Free Movement Rights’, the Principles of Equality and Ability to Pay, and the Interstate Fiscal Equity», Intertax, vol. 37, n.° 5, p. 283.


    24 – Assim o reconheceu o Tribunal de Justiça desde uma jurisprudência inicial. V., designadamente, acórdãos de 5 de Outubro de 1994, Alemanha/Conselho (C‑280/93, Colect., p. I‑4973, n.os 89 e 90); de 12 de Novembro de 1996, Reino Unido/Conselho (C‑84/94, Colect., p. I‑5755, n.° 58); de 14 de Julho de 1998, Safety Hi‑Tech (C‑284/95, Colect., p. I‑4301, n.° 37); Bettati (C‑341/95, Colect., p. I‑4355, n.° 35); de 19 de Novembro de 1998, Reino Unido/Conselho (C‑150/94, Colect., p. I‑7235, n.° 53); de 17 de Julho de 1997, SAM Schiffahrt e Stapf (C‑248/95 e C‑249/95, Colect., p. I‑4475); de 15 de Dezembro de 2005, Grécia/Comissão (C‑86/03, Colect., p. I‑10979, n.° 88); e de 16 de Dezembro de 2008, Arcelor Atlantique e Lorraine e o. (C‑127/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 57).


    25 – Como refere o advogado‑geral M. Poiares Maduro nas conclusões do processo Arcelor, já referido, «faz parte da própria natureza da experimentação legislativa entrar em tensão com o princípio da igualdade» (n.° 46). Também Rubio Llorente, F., «Juez y ley desde el punto de vista del principio de igualdad», La forma del poder, Ed. CEPC, Madrid, 1997, p. 642.


    26 – García Prats, A., Imposición directa, no discriminación y derecho comunitario, Ed. Tecnos, Madrid, 1998, pp. 222 a 224.


    27 – Neste sentido, as conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi, apresentadas em 18 de Março de 2009, no processo HSBC Holdings (C‑569/07, Colect., p. I‑0000, n.os 71 e 72).


    28 – Pistone, P., The Impact of Community Law on Tax Treaties: Issues and Solutions, Ed. Kluwer, Haia‑Londres‑Nova Iorque, 2002, pp. 197 a 200.


    29 – No aspecto linguístico, a agente do Governo neerlandês reconheceu na audiência que a administração fiscal do seu país aceita documentos e comunicações em «línguas correntes», distintas do neerlandês, mas sempre informalmente e sem qualquer garantia legal. Para esse efeito, a agente não prestou qualquer informação sobre a verdadeira situação de quem deve dirigir‑se às autoridades neerlandesas num idioma que não seja o neerlandês. Não obstante, o representante de F. Gielen explicou ao Tribunal de Justiça que, nos Países Baixos, quem estabelece contacto com os serviços fiscais deve fazê‑lo na língua oficial do território, o que me parece mais credível.


    30 – Acórdão de 15 de Maio de 1997, Futura Participations e Singer (C‑250/95, Colect., p. I‑2471, n.° 25).


    31 – Esta posição do Governo neerlandês é também acolhida nas observações escritas de F. Gielen, ao recordar que os trabalhos parlamentares da Lei relativa ao Imposto sobre os Rendimentos têm justificação análoga: o cumprimento do acórdão Schumacker e a atribuição aos não residentes de um regime fiscal mais vantajoso do que o analisado na referida decisão [MvT Kamerstukken (documentos parlamentares) II 1998/99, n.° 3, pp. 79 e 80 (referência extraída das observações escritas de F. Gielen, p. 11)].


    32– Lenaerts, K. e Bernardeau, L., «L’encadrement communautaire de la fiscalité directe», Cahiers de droit européen, n.os 1 e 2, 2007, pp. 77 a 80.


    33 – O regime neerlandês aqui analisado estabelece uma opção incondicional para os trabalhadores por conta própria não residentes. Todavia, vários Estados‑Membros adoptaram sistemas de opção como o neerlandês, embora limitando‑os a quem recebe uma percentagem elevada dos seus rendimentos num país da Comunidade distinto do da sua residência. Esta medida foi apoiada pela Comissão, na Recomendação 94/79/CE, de 21 de Dezembro de 1993, relativa à tributação de certos rendimentos auferidos por não residentes num Estado‑Membro diferente do da sua residência (JO 1994, L 39, p. 22), referindo que o regime dos residentes deveria poder ser aplicável aos contribuintes não residentes, desde que estes obtenham mais de 75% dos seus rendimentos no Estado da fonte.


    34 – Terra, B. J. M. e Wattel, P. J., European Tax Law, 4ª ed., Ed. Kluwer, Deventer, 2005, pp. 80 a 82.

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