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Document 62007CJ0239

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 9 de Outubro de 2008.
    Julius Sabatauskas e o.
    Pedido de decisão prejudicial: Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas - Lituânia.
    Mercado interno da electricidade - Directiva 2003/54/CE - Artigo 20.º - Redes de transporte e de distribuição - Acesso de terceiros - Obrigações dos Estados-Membros - Livre acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade.
    Processo C-239/07.

    Colectânea de Jurisprudência 2008 I-07523

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2008:551

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

    9 de Outubro de 2008 ( *1 )

    «Mercado interno da electricidade — Directiva 2003/54/CE — Artigo 20.o — Redes de transporte e de distribuição — Acesso de terceiros — Obrigações dos Estados-Membros — Livre acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade»

    No processo C-239/07,

    que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas (Lituânia), por decisão de 8 de Maio de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em , no processo de fiscalização da constitucionalidade apresentado por

    Julius Sabatauskas e o.,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    composto por: A. Rosas, presidente de secção, A. Ó Caoimh, J. N. Cunha Rodrigues, U. Lõhmus e P. Lindh (relator), juízes,

    advogada-geral: J. Kokott,

    secretário: C. Strömholm, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 24 de Abril de 2008,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação de J. Sabatauskas e o., por G. Kaminskas, advokatas,

    em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e R. Mackevičienė, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo italiano, por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por W. Ferrante, avvocato dello Stato,

    em representação do Governo finlandês, por J. Heliskoski e A. Guimaraes-Purokoski, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por B. Schima e A. Steiblytė, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 12 de Junho de 2008,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 20.o da Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE (JO L 176, p. 37, e rectificação no JO 2004, L 16, p. 74, a seguir «directiva»).

    2

    Este pedido foi apresentado no quadro de um litígio que se encontra pendente no Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas (Tribunal Constitucional da República da Lituânia), que lhe foi submetido por J. Sabatauskas e o., membros do parlamento lituano, para fiscalização da constitucionalidade do artigo 15.o, n.o 2, da Lei relativa à electricidade, na versão resultante da Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004 (Lietuvos Respublikos elektros energetikos įstatymo pakeitimo įstatymas Nr. IX-2307, Žin., 2004, Nr. 107-3964).

    Quadro jurídico

    Regulamentação comunitária

    3

    Nos termos do artigo 1.o da directiva:

    «A presente directiva estabelece regras comuns para a produção, transporte, distribuição e fornecimento de electricidade. Define as normas relativas à organização e ao funcionamento do sector da electricidade e ao acesso ao mercado, bem como os critérios e mecanismos aplicáveis aos concursos, à concessão de autorizações e à exploração das redes.»

    4

    O segundo, quarto a sétimo, décimo terceiro, décimo quinto e décimo sétimo considerandos da directiva encontram-se formulados nos seguintes termos:

    «(2)

    A experiência adquirida com a aplicação da […] [d]irectiva [96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade (JO 1997, L 27, p. 20)] demonstra os benefícios que podem resultar do mercado interno da electricidade em termos de aumento de eficiência, reduções de preços, padrões de serviço mais elevados e maior competitividade. Todavia, subsistem deficiências significativas e possibilidades de melhorar o funcionamento do mercado, sendo necessárias medidas concretas, nomeadamente, para assegurar condições de concorrência equitativas a nível da produção e para reduzir os riscos de ocorrência de posições dominantes no mercado e de comportamentos predatórios, garantindo tarifas de transporte e distribuição não discriminatórias através do acesso à rede com base em tarifas publicadas antes da sua entrada em vigor […]

    […]

    (4)

    As liberdades que o Tratado [CE] garante aos cidadãos europeus, nomeadamente a liberdade de circulação de mercadorias, de prestação de serviços e de estabelecimento, pressupõem um mercado plenamente aberto que permita a todos os consumidores a livre escolha de fornecedores e a todos os fornecedores o livre abastecimento dos seus clientes.

    (5)

    Os principais obstáculos à realização de um mercado interno plenamente operacional e concorrencial encontram-se associados, entre outras, a questões de acesso à rede, a questões de tarifação e à diversidade de graus de abertura do mercado existentes nos Estados-Membros.

    (6)

    Uma concorrência eficaz implica um acesso à rede não discriminatório, transparente e a preços justos.

    (7)

    Para a plena realização do mercado interno da electricidade é da máxima importância o acesso não discriminatório à rede do operador da rede de transporte ou de distribuição […]

    […]

    (13)

    É necessário tomar novas medidas a fim de assegurar tarifas transparentes e não discriminatórias de acesso às redes. Essas tarifas deverão ser aplicáveis a todos os utilizadores da rede de forma não discriminatória.

    […]

    (15)

    A existência de uma regulação eficaz por parte de uma ou mais entidades reguladoras nacionais é um factor importante na garantia de acesso não discriminatório à rede. Os Estados-Membros devem especificar as funções, competências e poderes administrativos dessas entidades reguladoras. É importante que as entidades reguladoras de todos os Estados-Membros partilhem o mesmo conjunto mínimo de competências. Essas entidades deverão ter competência para fixar ou aprovar as tarifas ou, pelo menos, as metodologias subjacentes ao cálculo das tarifas de transporte e distribuição. A fim de se evitar situações de incerteza e diferendos dispendiosos e prolongados, essas tarifas deverão ser publicadas antes da sua entrada em vigor.

    […]

    (17)

    A fim de assegurar o acesso efectivo ao mercado a todos os agentes, incluindo os novos operadores, são necessários mecanismos de compensação não discriminatórios e que reflictam os custos. Para o conseguir, deverão criar-se, logo que a liquidez do mercado da electricidade o permita, mecanismos transparentes e baseados no mercado para o fornecimento e a compra da electricidade necessária aos requisitos de compensação. Na ausência de mercados em situação de liquidez, as entidades reguladoras nacionais deverão desempenhar um papel activo no sentido de garantir que as tarifas de compensação não sejam discriminatórias e reflictam os custos. Simultaneamente, deverão ser criados os incentivos adequados para manter o equilíbrio entre o aprovisionamento e a retirada de electricidade, evitando colocar a rede em perigo.»

    5

    O artigo 2.o da directiva, sob a epígrafe «Definições», determina:

    «Para efeitos da presente directiva, entende-se por:

    […]

    3)

    ‘Transporte’, o transporte de electricidade, mas sem incluir o fornecimento, numa rede interligada de muito alta tensão e de alta tensão, para efeitos de fornecimento a clientes finais ou a distribuidores;

    […]

    5)

    ‘Distribuição’ o transporte de electricidade em redes de distribuição de alta, média e baixa tensão, para entrega ao cliente, mas sem incluir o fornecimento;

    […]

    7)

    ‘Cliente’, o cliente grossista e o cliente final das empresas de electricidade;

    […]

    9)

    ‘Cliente final’, o cliente que compra electricidade para consumo próprio;

    10)

    ‘Cliente doméstico’, o cliente que compra electricidade para consumo doméstico próprio, excluindo actividades comerciais ou profissionais;

    […]

    12)

    ‘Cliente elegível’, o cliente livre de comprar electricidade ao fornecedor da sua escolha na acepção do artigo 21.o;

    […]

    18)

    ‘Utilizador da rede’, pessoa singular ou colectiva que alimenta uma rede de transporte ou de distribuição ou que é por ela servida;

    19)

    ‘Fornecimento’, a venda de electricidade a clientes, incluindo a revenda;

    […]»

    6

    Resulta do artigo 21.o, n.o 1, alínea c), da directiva que, a partir de 1 de Julho de 2007, os Estados-Membros devem garantir que todos os clientes sejam clientes elegíveis, na acepção da directiva.

    7

    O artigo 3.o da directiva, sob a epígrafe «Obrigações de serviço público e protecção dos consumidores», determina:

    «[…]

    3.   Os Estados-Membros devem garantir que todos os clientes domésticos e, nos casos em que o considerem adequado, as pequenas empresas, entendidas como empresas com menos de 50 trabalhadores e um volume de negócios ou um balanço anual não superior a 10 milhões de EUR, beneficiem de um serviço universal, ou seja, do direito de serem abastecidos, a preços razoáveis, fácil e claramente comprováveis e transparentes, de electricidade de uma qualidade específica no seu território. Para garantir a existência de um serviço universal, os Estados-Membros podem designar um fornecedor de último recurso. Os Estados-Membros devem impor às empresas de distribuição a obrigação de ligarem os clientes às respectivas redes, de acordo com condições e tarifas estabelecidas em conformidade com o disposto no n.o 2 do artigo 23.o A presente directiva não contém qualquer disposição que impeça os Estados-Membros de reforçar a posição de mercado dos consumidores domésticos, pequenos e médios mediante a promoção das possibilidades de associação voluntária dos representantes desta classe de consumidores.

    O disposto no primeiro parágrafo deve ser implementado de forma transparente e não discriminatória e não deve impedir a abertura do mercado prevista no artigo 21.o

    […]»

    8

    O artigo 5.o da directiva, sob a epígrafe «Normas técnicas», determina:

    «Os Estados-Membros devem assegurar que sejam elaboradas e publicadas normas técnicas que estabeleçam os requisitos mínimos de concepção e funcionamento em matéria de ligação à rede das instalações de produção, redes de distribuição, equipamento de clientes ligados directamente, circuitos de interligação e linhas directas. Essas normas técnicas devem garantir a interoperabilidade das redes e ser objectivas e não discriminatórias […]»

    9

    O artigo 20.o da directiva, sob a epígrafe «Acesso de terceiros», determina:

    «1.   Os Estados-Membros devem garantir a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição baseado em tarifas publicadas, aplicáveis a todos os clientes elegíveis e aplicadas objectivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede. Os Estados-Membros devem assegurar que essas tarifas, ou as metodologias em que se baseia o respectivo cálculo, sejam aprovadas nos termos do artigo 23.o antes de entrarem em vigor, bem como a publicação dessas tarifas — e das metodologias, no caso de apenas serem aprovadas metodologias — antes da respectiva entrada em vigor.

    2.   O operador da rede de transporte ou de distribuição pode recusar o acesso no caso de não dispor da capacidade necessária. Essa recusa deve ser devidamente fundamentada, especialmente tendo em conta o disposto no artigo 3.o Os Estados-Membros devem assegurar, se apropriado e quando o acesso for recusado, que o operador da rede de transporte ou distribuição forneça informações relevantes sobre as medidas necessárias para reforçar a rede. Pode ser cobrada ao requerente dessas informações uma taxa razoável que reflicta o custo do fornecimento das mesmas.»

    10

    O artigo 23.o da directiva, sob a epígrafe «Entidades reguladoras», estabelece:

    «1.   Os Estados-Membros devem designar um ou mais organismos competentes com funções de entidades reguladoras. Estas entidades devem ser totalmente independentes dos interesses do sector da electricidade. Compete-lhes, mediante a aplicação do presente artigo, no mínimo, garantir a não discriminação, uma concorrência efectiva e o bom funcionamento do mercado, acompanhando em especial:

    […]

    c)

    Os períodos de espera para a execução de ligações e reparações pelas empresas de transporte e distribuição;

    […]

    f)

    As condições e tarifas da ligação de novos produtores de electricidade para garantir a sua objectividade, transparência e carácter não discriminatório, em especial tendo plenamente em conta os custos e benefícios das tecnologias associadas às fontes de energia renováveis, da produção distribuída e da produção combinada de calor e electricidade;

    […]

    2.   As entidades reguladoras são responsáveis por fixar ou aprovar, antes da sua entrada em vigor, pelo menos as metodologias a utilizar para calcular ou estabelecer as condições de:

    a)

    Ligação e acesso às redes nacionais, incluindo as tarifas de transporte e distribuição. Estas tarifas ou metodologias devem permitir que os investimentos necessários nas redes sejam realizados de molde a garantir a sua viabilidade;

    […]»

    Legislação nacional

    11

    Resulta do despacho de reenvio que, em 1 de Julho de 2004, o parlamento lituano aprovou a Lei n.o IX-2307 que altera a lei relativa à electricidade. A Lei n.o IX-2307 destinava-se, designadamente, a transpor a directiva para direito nacional. Esta lei entrou em vigor em .

    12

    O artigo 15.o, n.o 2, da lei relativa à electricidade, na versão resultante da Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004, está redigido nos seguintes termos:

    «O operador da rede de transporte está obrigado a garantir que as condições de ligação dos produtores de electricidade, dos operadores da rede de distribuição e dos equipamentos dos clientes à rede de transporte satisfazem as exigências impostas pela legislação e não são discriminatórias. Os equipamentos de um cliente só podem ser ligados a uma rede de transporte se, devido às exigências técnicas ou de exploração impostas, o operador da rede de distribuição recusar ligar à rede de distribuição os equipamentos do cliente situados na zona de actividade definida na licença do operador da rede de distribuição.»

    Litígio no processo principal e questão prejudicial

    13

    Do despacho de reenvio resulta que, na Lituânia, os equipamentos da maior parte dos clientes de electricidade, ou seja, dos consumidores de electricidade, estão ligados a redes de distribuição exploradas por dois operadores desse tipo de rede. Estes dois operadores são os principais utilizadores das redes de transporte. Por outro lado, cinco empresas exploram redes locais de distribuição para satisfação das suas próprias necessidades e das dos habitantes de um território de pequena dimensão. Por último, seis sociedades que exploram empresas industriais estão directamente ligadas a redes de transporte. Estas ligações datam do período soviético, ou seja, de uma época em que não se fazia a distinção entre a produção, o transporte e a distribuição de electricidade. Foi por este motivo que certos consumidores de electricidade ficaram ligados às instalações dessas empresas industriais e que o seu abastecimento depende das capacidades técnicas e financeiras das referidas empresas.

    14

    Na sequência da alteração, pela Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004, da lei relativa à electricidade, designadamente do artigo 15.o, n.o 2, os novos clientes não podem escolher livremente a que tipo de rede podem ligar os seus equipamentos, devendo ligar-se a uma rede de distribuição. Só se o operador da rede de distribuição recusar a ligação à sua rede, por razões de ordem técnica ou de exploração, é que o cliente em questão pode ligar os seus equipamentos a uma rede de transporte.

    15

    Um grupo de membros do parlamento lituano requereu ao Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas que fiscalizasse a conformidade do artigo 15.o, n.o 2, da lei relativa à electricidade, na redacção resultante da Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004, com a Constituição. Esse órgão jurisdicional recorda que, nos termos do artigo 102.o da Constituição, compete-lhe fiscalizar a constitucionalidade das leis. Precisa que, nomeadamente, pode ser chamado a pronunciar-se a pedido de um grupo de membros do parlamento. Quando fiscaliza a constitucionalidade de uma lei, decide um litígio entre aquele ou aqueles que requereram essa fiscalização e a instituição que aprovou a lei em causa, ou seja, o parlamento lituano. As suas decisões não são passíveis de recurso.

    16

    O Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas precisa que, segundo a Constituição, as normas jurídicas da União Europeia fazem parte da ordem jurídica da República da Lituânia e que, quando isso decorre dos Tratados em que se funda a União, essas normas são directamente aplicáveis e, em caso de conflito de normas, primam sobre a norma nacional. Ora, como a directiva foi adoptada com base nos artigos 45.o CE, 55.o CE e 95.o CE, o órgão jurisdicional de reenvio considera que o artigo 15.o, n.o 2, da lei relativa à electricidade, na versão resultante da Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004, deve ser interpretado à luz da directiva.

    17

    Segundo os membros do parlamento que pediram a fiscalização da constitucionalidade, o referido artigo 15.o, n.o 2, não consagra a liberdade de o cliente escolher uma rede de transporte ou uma rede de distribuição, para ligar os seus equipamentos. Ora, o artigo 20.o da directiva não estabelece nenhuma restrição explícita a que um cliente de electricidade ligue os seus equipamentos a uma rede de transporte, nem a obrigação de essa ligação ser feita exclusivamente a uma rede de distribuição.

    18

    Da decisão de reenvio resulta que o parlamento lituano considera, pelo contrário, que os Estados-Membros podem determinar livremente as regras de ligação à rede de electricidade. No órgão jurisdicional de reenvio, foi invocada uma carta de 21 de Dezembro de 2005 de A. Piebalgs, membro da Comissão das Comunidades Europeias responsável pela área da energia, nos termos da qual se esclarecia que a directiva «não obriga a conferir ao cliente o direito de escolher discricionariamente entre a ligação a uma rede de transporte ou a uma rede de distribuição. O cliente tem direito a ligar-se à rede eléctrica; a concretização desse direito é uma questão a tratar na base da subsidiariedade».

    19

    O órgão jurisdicional de reenvio observa que da letra do artigo 20.o, n.o 1, da directiva resulta que é aos Estados-Membros que cabe criar um sistema em que os clientes que o solicitem possam aceder tanto às redes de transporte como às redes de distribuição. Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio também observa que as questões de ligação às redes de electricidade devem ser interpretadas à luz das disposições da directiva, designadamente do seu artigo 3.o, que prosseguem objectivos de natureza social, como o fornecimento do serviço universal, a protecção dos consumidores ou a protecção do ambiente. Ora, o artigo 15.o, n.o 2, da lei relativa à electricidade, na versão resultante da Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004, também parece prosseguir esses objectivos.

    20

    Nestas condições, o Lietuvos Respublikos Konstitucinis Teismas decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «O artigo 20.o da Directiva […] deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados-Membros a instituírem uma regulamentação nos termos da qual, desde que a rede de electricidade disponha da «capacidade necessária», qualquer terceiro tem o direito discricionário de escolher a rede — de transporte de electricidade ou de distribuição de electricidade — a que pretende aceder, estando o operador da rede em causa obrigado a fornecer-lhe o acesso à rede?»

    Quanto à questão prejudicial

    21

    Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 20.o da directiva deve ser interpretado no sentido de que os Estados-Membros devem aprovar uma regulamentação que preveja, por um lado, que qualquer terceiro pode escolher discricionariamente o tipo de rede — de transporte ou de distribuição — a que pretende aceder e, por outro, que o operador da rede é obrigado a deixá-lo aceder ou ligar-se à sua rede, desde que este último disponha da capacidade necessária.

    Observações apresentadas ao Tribunal

    22

    Os requerentes no processo principal defendem que o artigo 20.o da directiva obriga os Estados-Membros a criarem um sistema de acesso às redes que permita a todos os clientes que o solicitem aceder tanto às redes de transporte como às redes de distribuição. A única excepção a este princípio está enunciada no n.o 2 desse mesmo artigo. Resulta da definição do termo «transporte» constante do artigo 2.o da directiva que o transporte de electricidade até ao cliente se pode processar directamente, sem utilizar uma rede de distribuição.

    23

    O artigo 15.o, n.o 2, da lei relativa à electricidade, na versão resultante da Lei n.o IX-2307, de 1 de Julho de 2004, não confere ao cliente a liberdade de escolher a rede a que ligará os seus equipamentos. Assim, segundo os requerentes, esta disposição é discriminatória e contrária aos objectivos da directiva. Esta impossibilidade de escolha viola os direitos dos consumidores.

    24

    Os Governos lituano e finlandês, aos quais se associou a Comissão na audiência, sustentam que, para efeitos da interpretação do artigo 20.o da directiva, há que distinguir os conceitos de «acesso à rede» e de «ligação à rede». O acesso à rede abrange a possibilidade de utilizar a rede em função de uma tarifa publicada. A ligação à rede diz respeito à ligação física à rede. O citado artigo 20.o só se refere às obrigações que os Estados-Membros devem satisfazer para permitir o livre acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade, e não às questões de ligação a essas redes.

    25

    O Governo lituano considera que a directiva não estabelece nenhuma obrigação, para os Estados-Membros, no que respeita à ligação dos clientes às redes, salvo no que respeita às obrigações de serviço universal previstas no artigo 3.o, n.o 3, da directiva.

    26

    O referido governo afirma que, ao ligar-se a uma rede de electricidade, o cliente acede a essa rede. Assim, a regulamentação nacional em causa no processo principal garante-lhe um acesso efectivo às redes de electricidade e, além disso, também garante o cumprimento das obrigações de serviço público e de fornecimento de serviço universal previstas no artigo 3.o, n.os 2 e 3, da directiva.

    27

    Quanto ao demais, em sua opinião, os Estados-Membros podem livremente prever, prioritariamente, uma ligação dos clientes às redes de distribuição e, subsidiariamente, uma ligação às redes de transporte. O sistema posto em prática pela regulamentação nacional em causa no processo principal visa evitar, nomeadamente, que os grandes clientes se liguem directamente a redes de transporte, o que teria por efeito que os pequenos clientes fossem os únicos a suportar os encargos correspondentes às redes de distribuição e, portanto, implicaria um aumento dos preços da electricidade na ordem dos 10% a 30%. Além disso, a livre escolha de uma ligação a uma rede de transporte prejudicaria o desenvolvimento óptimo das redes.

    28

    Para o Governo finlandês, o conceito de «terceiro» utilizado no artigo 20.o da directiva designa um fornecedor de electricidade distinto da unidade de uma empresa verticalmente integrada que assegura a produção ou o fornecimento de electricidade. Esta disposição não se refere, portanto, ao acesso dos consumidores às redes.

    29

    Segundo o Governo italiano, a directiva não reconhece ao cliente a liberdade de escolher, discricionariamente, a rede a que se pretende ligar. Primeiramente, o cliente deve conformar-se com o «sistema de acesso» criado pela regulamentação nacional. O cliente dispõe, portanto, de um direito condicionado de acesso ao sistema. Todavia, se os Estados-Membros pudessem obrigar os clientes a dirigir-se primeiro a um operador de rede de distribuição, verificar-se-ia uma violação da liberdade de escolha do cliente e o risco de o operador da rede de distribuição aplicar de forma discriminatória as regras de acesso.

    30

    Segundo a Comissão, a questão da ligação, como não tem incidência directa na liberalização do mercado interno, é da competência dos Estados-Membros, excepto no que respeita à ligação dos clientes mais vulneráveis, relativamente aos quais os Estados-Membros devem pôr em prática um serviço universal, em conformidade com o disposto no artigo 3.o, n.o 3, da directiva.

    Resposta do Tribunal

    31

    Importa recordar que a directiva tem por objectivo melhorar o funcionamento do mercado interno da electricidade. Nos termos do seu sexto e sétimo considerandos, é necessário um acesso à rede não discriminatório, transparente e a preços justos, para que exista uma concorrência eficaz, e esse acesso é da máxima importância para a plena realização do mercado interno da electricidade (v. acórdão de 22 de Maio de 2008, citiworks, C-439/06, Colect., p. I-3913, n.os 38 e 40).

    32

    O quarto considerando da directiva precisa que um mercado plenamente aberto deve permitir ao consumidor a livre escolha do seu fornecedor e a este fornecedor o livre abastecimento dos seus clientes.

    33

    O Tribunal concluiu destas considerações que, por um lado, para que os clientes elegíveis possam escolher livremente os seus fornecedores, estes devem poder ter acesso às redes de transporte e de distribuição que encaminham a electricidade até ao cliente e que, por outro, o livre acesso de terceiros às redes de transporte e de distribuição constitui uma das medidas essenciais que os Estados-Membros são obrigados a pôr em prática para chegarem à plena realização do mercado interno da electricidade (v. acórdão citiworks, já referido, n.os 43 e 44).

    34

    A fim de responder à questão colocada, importa definir o âmbito dos conceitos de «acesso às redes» e de «terceiro», na acepção do artigo 20.o da directiva, e determinar as obrigações que, por força desse artigo 20.o, impendem sobre esses Estados-Membros para garantir o acesso de terceiros às redes.

    35

    O artigo 20.o, n.o 1, da directiva determina que os Estados-Membros devem garantir a aplicação «de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição […] a todos os clientes elegíveis» e que esse sistema deve ser aplicado «objectivamente e sem discriminação entre os utilizadores da rede».

    36

    Em primeiro lugar, no que respeita ao conceito de «acesso à rede», importa determinar se, como os Governos lituano e finlandês defenderam, bem como, na audiência, a Comissão, é necessário distinguir os conceitos de «acesso à rede» e de «ligação à rede».

    37

    A este respeito, importa observar que há uma diferença entre certas versões linguísticas da directiva. Com efeito, tanto a primeira frase do n.o 1 do artigo 20.o como a primeira frase do n.o 2 do mesmo artigo utilizam, em diversas versões linguísticas, o termo «acesso». É o que se passa, nomeadamente, com as versões espanhola («acceso»), alemã («Zugang»), inglesa («access»), francesa («accès») e italiana («accesso»). Em contrapartida, a versão lituana da directiva utiliza, no n.o 1 do artigo 20.o, o termo «prieiga», que se traduz para francês por «accès», e, no n.o 2 do mesmo artigo, o termo «prisijungti», que pode ser traduzido para francês por «connecter» ou «raccorder». O termo «prisijungti» é também utilizado no segundo e sexto considerandos da versão lituana da directiva, ao passo que as outras versões linguísticas referidas utilizam o termo «acesso» ou o seu equivalente.

    38

    Segundo jurisprudência constante, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição comunitária não pode servir de base única para a interpretação dessa norma, nem ser-lhe atribuído, a esse propósito, carácter prioritário em relação a outras versões linguísticas. Com efeito, tal abordagem seria incompatível com a exigência de aplicação uniforme do direito comunitário (v. acórdãos de 12 de Novembro de 1998, Institute of the Motor Industry, C-149/97, Colect., p. I-7053, n.o 16, e de , Endendijk, C-187/07, Colect., p. I-2115, n.o 23).

    39

    Em caso de disparidade entre as diversas versões linguísticas de um texto comunitário, a disposição em causa deve, assim, ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento (acórdãos de 9 de Março de 2000, EKW e Wein & Co, C-437/97, Colect., p. I-1157, n.o 42; de , Borgmann, C-1/02, Colect., p. I-3219, n.o 25; e Endendijk, já referido, n.o 24).

    40

    Importa observar que os termos «acesso» e «ligação» são utilizados na directiva com significados diferentes. O termo «acesso» está relacionado com o abastecimento de electricidade, de que fazem parte, designadamente, a qualidade, a regularidade e os custos do serviço. É frequentemente usado no contexto da garantia de tarifas não discriminatórias. Assim, resulta do segundo e do décimo terceiro considerando da directiva que o acesso à rede com base em tarifas publicadas antes da sua entrada em vigor assegura tarifas de transporte e de distribuição não discriminatórias; do seu sexto considerando, que esse acesso deve ser não discriminatório, transparente e a preços justos; do seu décimo quinto considerando, que a intervenção da autoridade reguladora deve garantir a existência de condições de acesso não discriminatório à rede; e do seu décimo sétimo considerando, que são necessários mecanismos de compensação não discriminatórios e que reflictam os custos a fim de assegurar o acesso efectivo ao mercado a todos os agentes.

    41

    O termo «ligação» é sobretudo utilizado num contexto técnico e refere-se à ligação física à rede. Assim, o artigo 5.o da directiva determina que os Estados-Membros devem assegurar que sejam elaboradas e publicadas normas técnicas que estabeleçam os requisitos mínimos de concepção e funcionamento em matéria de ligação à rede das instalações de produção, redes de distribuição, equipamento de clientes ligados directamente, circuitos de interligação e linhas directas. Do mesmo modo, o artigo 23.o, n.o 1, alínea c), da directiva precisa que às entidades reguladoras compete-lhes garantir a não discriminação e uma concorrência efectiva, em especial no que respeita aos períodos de espera para a execução de ligações pelas empresas de transporte e distribuição. Estas mesmas entidades devem igualmente, segundo o artigo 23.o, n.o 2, alínea a), da directiva, fixar ou aprovar as metodologias a utilizar para calcular ou estabelecer as condições de ligação às redes. A este respeito, e como a advogada-geral salientou no n.o 33 das suas conclusões, o referido artigo 23.o, n.o 2, alínea a), utiliza na mesma frase os termos «acesso» e «ligação». Deste facto infere-se que os dois termos têm acepções diferentes. Por outro lado, importa mencionar o artigo 3.o, n.o 3, da directiva, que especifica que, para garantir a existência de um serviço universal, os Estados-Membros podem impor às empresas de distribuição a obrigação de ligarem os clientes às respectivas redes.

    42

    Assim, resulta desta análise das disposições da directiva que, como a advogada-geral referiu nos n.os 34 e 36 das suas conclusões, o acesso à rede deve ser entendido como o direito de utilizar as redes de electricidade, e a ligação corresponde a uma ligação física à rede. O artigo 20.o da directiva só especifica as obrigações dos Estados-Membros no que respeita ao acesso às redes, e não relativamente à ligação a estas.

    43

    Por conseguinte, na medida em que, por um lado, o transporte e a distribuição não abrangem o fornecimento de electricidade e, por outro, os clientes elegíveis devem poder escolher livremente os seus fornecedores e estes últimos devem poder aceder às redes, como foi recordado no n.o 33 do presente acórdão, conclui-se que, para os clientes elegíveis, o direito de acesso às redes é exercido através de um fornecedor que os referidos clientes devem poder escolher livremente. Esta liberdade de escolha, como a advogada-geral referiu no n.o 41 das suas conclusões, é também garantida, independentemente de o fornecedor os ligar a uma rede de transporte ou a uma rede de distribuição.

    44

    Em seguida, quanto ao conceito de «terceiro», cabe observar que o próprio texto do artigo 20.o, n.o 1, da directiva precisa este conceito ao utilizar igualmente o de «utilizador da rede», que se encontra definido no artigo 2.o, n.o 18, da directiva e abrange as pessoas singulares ou colectivas que alimentam uma rede de transporte ou de distribuição, ou que são servidas por uma dessas redes. Os clientes estão entre essas pessoas.

    45

    Conclui-se que, ao incluir os utilizadores das redes no seu âmbito de aplicação, o artigo 20.o, n.o 1, da directiva atribui igualmente aos clientes elegíveis um direito de acesso não discriminatório às redes.

    46

    Um dos objectivos da directiva é que o acesso às redes seja livre, o que constitui, como se recordou no n.o 33 do presente acórdão, uma medida essencial para se chegar à plena realização do mercado interno da electricidade, e que esse acesso às redes seja fundado em critérios objectivos, não discriminatórios e transparentes, bem como em tarifas publicadas antes de entrarem em vigor, e não que esse acesso seja discricionário.

    47

    Conclui-se que os Estados-Membros possuem margem de manobra para orientarem os utilizadores das redes para um ou outro tipo de rede, desde que, todavia, o façam por motivos não discriminatórios e segundo considerações objectivas. Os utilizadores de redes têm, portanto, um direito de acesso a uma rede de electricidade, mas os Estados-Membros podem decidir que a ligação será feita a um ou outro tipo de rede. Contudo, importa verificar se os critérios adoptados pelos Estados-Membros são objectivos e não discriminatórios.

    48

    A este propósito, o objectivo de evitar que grandes clientes se liguem directamente a redes de transporte, que teria por efeito que os pequenos clientes fossem os únicos a suportar os encargos correspondentes às redes de distribuição e, portanto, implicaria um aumento dos preços da electricidade, pode justificar a obrigação de, prioritariamente, a ligação ser feita a uma rede de distribuição. Porém, é ao órgão jurisdicional nacional que compete verificar se esse motivos são reais e se se fundam em critérios objectivos e não discriminatórios.

    49

    Do conjunto destas considerações resulta que se deve responder à questão submetida que o artigo 20.o da directiva deve ser interpretado no sentido de que só define as obrigações dos Estados-Membros no que respeita ao acesso, e não à ligação de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade, e de que não prevê que o sistema de acesso às redes que os Estados-Membros são obrigados a pôr em prática deve permitir ao cliente elegível escolher de forma discricionária o tipo de rede a que se pretende ligar. O referido artigo 20.o também deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que prevê que os equipamentos de um cliente elegível só podem ser ligados a uma rede de transporte se o operador de uma rede de distribuição recusar, devido a exigências técnicas ou de exploração impostas, ligar à sua rede os equipamentos do cliente elegível, situados na zona de actividade definida na sua licença. Todavia, é ao órgão jurisdicional nacional que compete verificar se a implementação e a aplicação desse sistema se fazem de acordo com critérios objectivos e não discriminatórios entre os utilizadores das redes.

    Quanto às despesas

    50

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

     

    O artigo 20.o da Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE, deve ser interpretado no sentido de que só define as obrigações dos Estados-Membros no que respeita ao acesso, e não à ligação de terceiros às redes de transporte e de distribuição de electricidade, e de que não prevê que o sistema de acesso às redes que os Estados-Membros são obrigados a pôr em prática deve permitir ao cliente elegível escolher de forma discricionária o tipo de rede a que se pretende ligar.

     

    O referido artigo 20.o também deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que prevê que os equipamentos de um cliente elegível só podem ser ligados a uma rede de transporte se o operador de uma rede de distribuição recusar, devido a exigências técnicas ou de exploração impostas, ligar à sua rede os equipamentos do cliente elegível, situados na zona de actividade definida na sua licença. Todavia, é ao órgão jurisdicional nacional que compete verificar se a implementação e a aplicação desse sistema se fazem de acordo com critérios objectivos e não discriminatórios entre os utilizadores das redes.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: lituano.

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