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Document 62007CC0570

Conclusões do advogado-geral Poiares Maduro apresentadas em 30 de Septembro de 2009.
José Manuel Blanco Pérez e María del Pilar Chao Gómez contra Consejería de Salud y Servicios Sanitarios (C-570/07) e Principado de Asturias (C-571/07).
Pedidos de decisão prejudicial: Tribunal Superior de Justicia de Asturias - Espanha.
Artigo 49.º TFUE - Directiva 2005/36/CE - Liberdade de estabelecimento - Saúde pública - Farmácias - Proximidade - Fornecimento de medicamentos à população - Autorização de exploração - Repartição territorial das farmácias - Instituição de limites assentes num critério de densidade demográfica - Distância mínima entre as farmácias - Candidatos que exerceram a actividade profissional numa parte do território nacional - Prioridade - Discriminação.
Processos apensos C-570/07 e C-571/07.

Colectânea de Jurisprudência 2010 I-04629

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2009:587

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 30 de Setembro de 2009 1(1)

Processos apensos C‑570/07 e C‑571/07

José Manuel Blanco Pérez

e

María del Pilar Chao Gómez

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Superior de Justicia de Asturias (Espanha)]





1.        Não é novo o receio de que farmacêuticos ávidos de dinheiro desrespeitem os seus deveres profissionais. Tem sido um motivo de preocupação pelo menos desde que o Romeu, de Shakespeare, convenceu um «miserável» boticário a vender‑lhe veneno, com os seguintes versos:

«[…] Tens a fome nas faces; as angústias

e o infortúnio de fome em teu olhar estão morrendo;

Do dorso pendem‑te a miséria e a ofensa.

Não se te mostra amigo o mundo e, menos ainda, a lei do mundo.

Em todo o mundo não há uma lei para deixar‑te rico.

Não sejas pobre, então; passa por cima da lei e toma isto» (2).

2.        Na esteira do pensamento de Shakespeare, podemos dizer que a questão central do presente processo consiste em saber até que ponto a garantia da qualidade dos serviços farmacêuticos depende do enriquecimento de alguns farmacêuticos. Na realidade, as autoridades asturianas, e as de alguns Estados‑Membros com normas semelhantes, justificam as suas normas que limitam a abertura de novas farmácias, essencialmente, com a necessidade de garantir os incentivos financeiros adequados para que os serviços prestados pelas farmácias sejam assegurados o mais amplamente e da melhor forma possível. Alegam que, para tal, é necessário, por um lado, proteger as farmácias existentes dos «perigos» da concorrência e, por outro, atrair os farmacêuticos para áreas menos lucrativas, restringindo o acesso às áreas mais lucrativas. Não tenho dúvidas de que a situação financeira subjacente à prestação de um serviço pode afectar essa prestação. É legítimo que as regulamentações dos Estados sejam norteadas por essas preocupações, quando elas desempenhem uma função na prossecução de um interesse público, como é a protecção da saúde pública. Por outro lado, não basta que os Estados se limitem a invocar essa possível relação para justificar qualquer regulamentação. Há que examinar cuidadosamente as legislações que atribuem vantagens financeiras específicas a determinados operadores económicos, em detrimento de outros. A resposta a dar ao presente caso não é fácil. Por um lado, a protecção da saúde humana é da maior importância, devendo o Tribunal de Justiça aceitar as decisões dos Estados‑Membros neste domínio complexo. Por outro, cabe ao Tribunal de Justiça resolver situações em que os procedimentos políticos locais tenham sido usados para beneficiar operadores locais já estabelecidos, em detrimento, entre outros, dos nacionais de outros Estados‑Membros. O Tribunal de Justiça não se pode subtrair a este dever por estarem em causa questões de saúde pública. Com efeito, a necessidade de um árbitro imparcial é ainda maior quando o que está em causa não é apenas o lucro, mas sim a saúde humana. Por conseguinte, ao responder às questões suscitadas no presente caso, serão ponderados os interesses em causa, deixando aos Estados‑Membros as opções políticas e examinando cuidadosamente a respectiva execução para identificar indícios de «desvios de índole política» à luz dos requisitos de coerência e consistência decorrentes da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa às legislações nacionais que restringem a liberdade de circulação.

I –    Quadro factual e jurídico

3.        Os recorrentes nos presentes processos são ambos cidadãos espanhóis, detentores de um título profissional de farmacêutico, mas que não têm licença para abrir uma farmácia. Exerceram a sua actividade profissional durante vários anos em farmácias veterinárias. Pretendendo exercer a sua profissão numa farmácia sua, requereram autorização para abrir uma nova farmácia na Comunidade Autónoma das Astúrias, em Espanha. Por decisão do Ministro da Saúde e dos Serviços Sanitários do Principado das Astúrias, de 14 de Junho de 2002, foi‑lhes recusada a licença. Esta decisão foi confirmada pelo Conselho do Governo das Astúrias, em 10 de Outubro de 2002. Os requerentes recorreram desta decisão para o Tribunal Superior de Justicia de Asturias.

4.        As decisões das autoridades asturianas baseiam‑se no Decreto 72/2001, de 19 de Julho de 2001, relativo às farmácias e aos postos farmacêuticos no Principado das Astúrias, que institui um sistema de licenciamento que inclui determinadas restrições à abertura de farmácias na Comunidade Autónoma e um sistema que regula a atribuição de licenças entre candidatos concorrentes. Os requerentes alegam que este decreto viola o seu direito à liberdade de estabelecimento previsto no artigo 43.° CE. Face às dúvidas sobre a legalidade do decreto à luz do direito comunitário, o tribunal nacional submeteu ao Tribunal de Justiça duas questões prejudiciais:

«O artigo 43.° do Tratado CE opõe‑se ao disposto nos artigos 2.°, 3.° e 4.° do Decreto 72/2001 do Principado das Astúrias, de 19 de Julho, relativo às farmácias e postos farmacêuticos, e nos pontos 4) 6) e 7) do anexo do referido decreto? (processo C‑570/07)»

e

«O artigo 43.° [CE] opõe‑se ao disposto na legislação da Comunidade Autónoma do Principado das Astúrias, relativamente à autorização de instalação de farmácias? (processo C‑571/07)»

5.        Como acima se referiu, a legislação em causa limita a abertura de novas farmácias e institui critérios de distinção entre candidatos concorrentes para a atribuição de licenças de novas farmácias. As limitações mais importantes consistem numa restrição quantitativa que limita o número de farmácias numa área em função da população residente nessa área e numa restrição geográfica que impede a abertura de uma farmácia a menos de 250 metros de outra farmácia. As disposições aplicáveis são as seguintes:

«Artigo 2.° Módulos de população

1.      Em cada zona farmacêutica o número de farmácias deve corresponder ao módulo de 2 800 habitantes por farmácia. Quando se ultrapasse esta proporção pode ser criada uma nova farmácia para uma fracção superior a 2 000 habitantes.

2.       Em todas as zonas de base do sistema de saúde e em todos os concelhos pode existir pelo menos uma farmácia.

Artigo 3.° Cálculo da população

Para efeitos do presente decreto, o cálculo da população deve ser feito com base nos dados resultantes da última revisão do recenseamento do município.

Artigo 4.° Distâncias mínimas

1.       A distância mínima entre as instalações das farmácias deve ser, em geral, de 250 metros, independentemente da zona farmacêutica a que pertençam.

2.       Esta distância mínima de 250 metros deve ser observada também em relação aos centros de saúde de qualquer zona farmacêutica, sejam estes públicos ou privados com convenção de assistência extra‑hospitalar ou hospitalar, com realização de consultas externas ou dotados de serviços de urgência, e quer estes estejam em funcionamento ou em fase de construção.

Este requisito de distância em relação aos centros de saúde não é aplicável nas zonas farmacêuticas com uma única farmácia nem nas localidades que contem actualmente com uma única farmácia e em relação às quais não seja previsível, dadas as suas características, a abertura de novas farmácias.

Em ambos os casos, é necessário justificar a não aplicabilidade do requisito da distância em relação a um centro de saúde» (3).

6.        A legislação estabelece vários critérios de distinção entre candidatos à atribuição de licenças. Atribuem‑se pontos à experiência profissional e à experiência como docente, em função de uma multiplicidade de critérios. São atribuídos mais pontos ao exercício da actividade profissional desempenhada em localidades com menos de 2 800 habitantes do que ao exercício de outras actividades. O decreto dispõe igualmente o seguinte:

«1.       As circunstâncias e os méritos previstos na presente tabela devem ser comprovados por certidões oficiais da Administração ou da pessoa competente.

2.       A experiência profissional ou docente deve ser avaliada através do cálculo por meses completos, mesmo que os períodos trabalhados tenham sido descontínuos. Podem ser acumulados períodos descontínuos, por módulos de 21 dias ou de 168 horas que equivalem a um mês, até que seja atingido este mínimo.

Em caso de trabalho a tempo parcial, os méritos pela experiência profissional devem ser calculados da mesma forma, na proporção entre o trabalho a tempo parcial e o trabalho a tempo inteiro.

3.       Apenas será tida em conta uma actividade profissional para um mesmo período de tempo, excepto se se tratar de duas actividades exercidas a tempo parcial.

4.       A experiência profissional como farmacêutico titular ou co‑titular de uma farmácia ou qualquer outro tipo de méritos não são tidos em conta quando tenham servido anteriormente para obter uma autorização de instalação.

5.       No caso de se pretender obter a co‑titularidade de uma farmácia para não mais de dois co‑titulares, adiciona‑se 50% da pontuação por méritos de cada um. Se existirem mais de dois co‑titulares, toma‑se em consideração 50% da pontuação por méritos dos dois co‑titulares que tenham a melhor e a pior pontuação.

6.       Os méritos profissionais relativos à actividade profissional obtidos no Principado das Astúrias são calculados com um acréscimo de 20%.

7.       Em caso de empate resultante da aplicação da tabela, as autorizações são concedidas em conformidade com a seguinte ordem de prioridade:

(a)       Farmacêuticos que não tenham sido titulares de farmácias.

(b)      Farmacêuticos que tenham sido titulares de farmácias em zona farmacêutica ou município de população inferior a 2 800 habitantes.

(c)       Farmacêuticos que tenham exercido a sua actividade profissional no Principado das Astúrias.

(d)       Farmacêuticos que tenham mais méritos académicos» (4).

II – Análise

A –    Admissibilidade

7.        Algumas partes alegam a inadmissibilidade do presente processo, por os recorrentes serem nacionais espanhóis que contestam legislação espanhola. No entanto, o Tribunal de Justiça já declarou reiteradamente a admissibilidade desses processos (5). Compete em exclusivo ao juiz nacional apreciar a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão (6). O Tribunal de Justiça pronunciar‑se‑á a título prejudicial, excepto quando for manifesto que a questão prejudicial não tem nenhuma relação com a realidade da lide principal (7). A interpretação solicitada do direito comunitário pode ser necessária ao juiz nacional, ainda que se trate de uma situação puramente interna, uma vez que «essa resposta pode ser‑lhe útil no caso de o seu direito nacional impor, num processo como o do caso em apreço, fazer beneficiar um produtor nacional dos mesmos direitos que os de um produtor de outro Estado‑Membro retira do direito comunitário na mesma situação» (8). Como já referi anteriormente, em meu entender, este critério é justificado à luz do espírito de cooperação entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça e face à necessidade de evitar situações em que a aplicação do direito nacional, em conjugação com a aplicação do direito comunitário, determine um tratamento desfavorável para os próprios nacionais de um Estado‑Membro (9). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve pronunciar‑se sobre a interpretação do artigo 43.° CE no presente processo.

B –    Existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

8.        O direito comunitário não prejudica a competência dos Estados‑Membros para regularem os seus sistemas de saúde e de segurança social (10). Não obstante as farmácias serem empresas comerciais, fazem igualmente parte do sistema de prestação de cuidados de saúde. Por conseguinte, no âmbito do seu poder de organização desses sistemas, os Estados‑Membros podem adoptar disposições que regulem a organização das farmácias, à semelhança do que sucede com os outros serviços de saúde (11).

9.        Contudo, no exercício desta competência, os Estados‑Membros devem respeitar as disposições do Tratado relativas às liberdades de circulação, incluindo a liberdade de estabelecimento (12). O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que qualquer medida nacional que seja susceptível de perturbar ou de tornar menos atractivo o exercício, pelos nacionais comunitários, da liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado viola os direitos conferidos pelo artigo 43.° CE, ainda que a medida nacional em causa seja aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade (13).

10.      A limitação das liberdades fundamentais manifesta‑se frequentemente como um obstáculo ao acesso ao mercado nacional através de medidas que protegem as posições de mercado já adquiridas por operadores no mercado nacional (14). Uma autorização prévia que subordina o exercício de uma actividade que será desenvolvida apenas por determinados operadores ao preenchimento de requisitos pré determinados constitui uma restrição (15). Mais concretamente, «uma legislação nacional que subordina o exercício de uma actividade a uma condição relacionada com as necessidades económicas ou sociais dessa actividade constitui uma restrição na medida em que possa ter por efeito limitar o número de prestadores de serviços» (16). Com base no exposto, considerou‑se que a legislação nacional que só autorizava a criação de novas policlínicas dentárias quando as autoridades locais considerassem que eram necessárias mais clínicas restringe a liberdade de estabelecimento (17). Estas limitações são semelhantes àquelas que se considerou constituírem um obstáculo à liberdade de circulação de mercadorias através da protecção das posições de operadores económicos já estabelecidos, que limitavam consequentemente o acesso ao mercado nacional dos produtos originários de outros Estados‑Membros (18).

11.      Se aplicarmos estas regras ao regime em análise no presente caso, que sujeitam a abertura de novas farmácias ao preenchimento de requisitos de localização e de população, é manifesto que estas normas equivalem a uma restrição à liberdade de estabelecimento. Decorre destes requisitos que a abertura de novas farmácias depende de uma autorização prévia, e que essa autorização só é concedida se estiverem preenchidos os requisitos de localização e de população. São, com efeito, rigorosamente semelhantes ao requisito em causa no processo Hartlauer, segundo o qual não era possível criar uma policlínica dentária sem que fosse efectuada uma avaliação prévia da necessidade dessa policlínica. Se as autoridades nacionais considerarem que o número de habitantes de uma localidade não justifica a abertura de uma nova farmácia, a abertura dessa farmácia não é permitida. Ao congelarem o acesso ao mercado, as medidas em causa impedem aqueles que pretendam abrir uma farmácia no território das Astúrias de o fazer e, por conseguinte, impedem a abertura de farmácias com origem noutros Estados‑Membros.

C –    Quanto à justificação dessa restrição

12.      Determinar que a legislação nacional restringe a liberdade de estabelecimento constituiu apenas o primeiro passo da nossa análise. Tais medidas nacionais podem justificar‑se, caso estejam reunidas quatro condições. Mais concretamente, «[devem] aplicar[‑se] de modo não discriminatório, justificar[‑se] por razões imperativas de interesse geral, [ser] adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não [devem ultrapassar] o que é necessário para atingir esse objectivo» (19).

1.      Aplicação não discriminatória

13.      As principais disposições do decreto, respeitantes aos requisitos de população e de distâncias mínimas, são não discriminatórias. Aplicam‑se indistintamente a todos os farmacêuticos (20). Isto também é válido para os critérios, previstos pelas autoridades asturianas, de apreciação das candidaturas apresentadas para a obtenção de uma licença para abrir uma farmácia, que privilegiam os farmacêuticos que tenham anteriormente trabalhado em áreas pouco povoadas (21). Em princípio, esta disposição é aplicável a todos os farmacêuticos, independentemente da sua origem.

14.      No entanto, os critérios que atribuem maior prioridade aos candidatos que tenham trabalhado como farmacêuticos no território das Astúrias (22), equivalem a uma discriminação inadmissível em razão da nacionalidade. Esta afirmação é verdadeira, mesmo apesar de, à semelhança da disposição que privilegia farmacêuticos que tenham trabalhado em áreas pouco povoadas, esta disposição não atender à nacionalidade do farmacêutico e poder ser aplicada a um farmacêutico originário de outro Estado‑Membro que trabalhe nas Astúrias. Isto porque valoriza mais a experiência adquirida nas Astúrias do que a experiência equivalente adquirida noutros Estados‑Membros (23). Estes critérios não se justificam à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, porquanto é condição sine qua non da liberdade de circulação que se atribua valor igual às qualificações obtidas noutros Estados‑Membros.

15.      Este entendimento não é posto em causa pelo facto de os farmacêuticos espanhóis que não sejam originários das Astúrias também serem prejudicados por esta política. O Tribunal de Justiça tem sido claro quando afirma que, para que se verifique a existência de discriminação, «não é necessário que todas as empresas de um Estado‑Membro sejam beneficiadas em relação às empresas estrangeiras. Basta que o regime preferencial beneficie um prestador nacional» (24). A prioridade atribuída pelas autoridades asturianas a quem tenha exercido a sua profissão nas Astúrias põe claramente em desvantagem os farmacêuticos que venham de fora do principado, incluindo os de outros Estados‑Membros, e os farmacêuticos asturianos que tenham exercido o seu direito à liberdade de estabelecimento noutros Estados‑Membros (25). Esta política equivale a uma restrição discriminatória à liberdade de estabelecimento, que é proibida pelo Tratado.

16.      Por conseguinte, ao examinar os outros elementos que têm de estar reunidos para que a lei seja justificada, limitarei a minha análise aos elementos não discriminatórios da lei.

2.      Objectivo de interesse geral

17.      As restrições de população e geográfica prosseguem um objectivo de interesse geral de protecção da saúde pública, através da prestação de serviços farmacêuticos de qualidade em todo o território das Astúrias. A protecção da saúde pública é, sem dúvida alguma, uma exigência imperiosa de interesse geral (26). Numerosos argumentos das partes assentam na questão de saber qual é o critério que melhor protege a saúde pública e, especialmente no presente caso, que melhor assegura a prestação de serviços farmacêuticos de qualidade com a maior cobertura territorial possível: um critério que facilite a abertura de farmácias e simultaneamente, promova a concorrência entre elas, ou um critério que limite a abertura de farmácias em áreas mais povoadas, de forma a restringir a concorrência e a favorecer a sua abertura em áreas menos povoadas do país. As partes apresentam elementos de prova contraditórios, nomeadamente a experiência em diferentes Estados‑Membros, para demonstrar que o critério que preconizam é o que melhor protege a saúde pública.

18.      Sobre esta questão, penso que basta referir que cada Estado‑Membro tem um poder discricionário para conceber o seu próprio sistema de protecção de saúde pública e que o Tribunal de Justiça é obrigado a aceitar a margem de apreciação do Estado‑Membro (27). É o que sucede, designadamente, nos casos em que a falta de um consenso político é ocasionado pela existência de importantes diferenças das políticas nos Estados‑Membros. O facto de um Estado‑Membro, impor regras menos restritivas do que outro Estado‑Membro ou assumir uma questão como prioritária em detrimento de outra não significa que essas regras sejam incompatíveis com o direito comunitário (28). Para mais, o Tribunal de Justiça já reconheceu expressamente que a planificação de serviços médicos, incluindo a sua distribuição num Estado, está abrangida por esse poder discricionário (29). Quando se pronunciou sobre produtos e serviços farmacêuticos, o Tribunal de Justiça declarou que a fixação dos preços (30) e a restrição da concorrência (31) são métodos possíveis para atingir estes objectivos de saúde pública.

19.      Embora os objectivos de natureza meramente económica não possam justificar um entrave às liberdades fundamentais (32), podem justificar‑se quando sejam necessários para o correcto funcionamento, do ponto de vista económico, do sistema de saúde (33). Em especial, os «interesses de ordem económica que tenham por objectivo manter um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos», podem revestir um interesse público adequado. Esta situação pode incluir a planificação dos serviços hospitalares, a «sua repartição geográfica, a sua organização e [d]os equipamentos de que dispõem, ou ainda a natureza dos serviços médicos que estão em condições de oferecer, deve[ndo] poder ser objecto de uma planificação que responda, por um lado, em regra, ao objectivo de garantir, no território do Estado‑Membro em causa, uma acessibilidade suficiente e permanente a uma gama equilibrada de cuidados hospitalares de qualidade e, por outro, que participe da vontade de garantir um controlo dos custos e de evitar, na medida do possível, qualquer desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos» (34). Por conseguinte, sou da opinião de que há que considerar que a repartição de farmácias em todo o território constitui um requisito imperioso de interesse geral e que o Estado‑Membro não é obrigado a recorrer ao instrumento da livre concorrência para tentar garantir serviços farmacêuticos de elevada qualidade.

3.      Quanto à questão de saber se o decreto é adequado para atingir os objectivos acima referidos e não excede o necessário para os atingir.

20.      Embora haja que tomar devidamente em consideração a avaliação efectuada pelas autoridades legislativas e reguladoras nacionais, que, devido à maior proximidade e ao conhecimento específico da realidade, estão mais bem colocadas para identificar a melhor forma de atingir os objectivos de políticas públicas, como a protecção da saúde pública, a apreciação efectuada por essas autoridades não é isenta de riscos (35). Os interesses específicos que dominem uma determinada área podem conduzir a que essas autoridades sejam «desviadas para uma certa regulamentação», devido a essa mesma proximidade, à custa dos interesses dos consumidores e de potenciais concorrentes nacionais e estrangeiros. Há um motivo de especial preocupação num caso como o do presente processo, no qual uma escolha política feita pelas entidades locais beneficia os operadores estabelecidos, à custa de novos operadores no mercado.

21.      É nesta perspectiva que se compreende a crescente importância que a exigência de consistência e de coerência tem vindo a adquirir na jurisprudência do Tribunal de Justiça, ao analisar a prossecução dos objectivos fixados pela legislação nacional. A exigência de coerência e de consistência preceitua que «a legislação nacional só é apta a garantir a realização do objectivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática» (36). Esta exigência permite que o Tribunal de Justiça distinga uma legislação que prossegue efectivamente um interesse público legítimo de uma legislação que tenha eventualmente prosseguido no início esses objectivos, mas que acabou por ser desviada por determinados interesses. Pode dizer‑se que se trata de uma condição que pretende proteger a integridade do processo legislativo e regulamentar e dos mecanismos de responsabilidade política. Penso que esta exigência desempenha um papel fundamental na apreciação do presente caso.

22.      Deste modo, no acórdão Hartlauer, o Tribunal de Justiça aceitou o argumento do Estado relativo à eventual necessidade de limitar o número de consultórios médicos para assegurar um correcto funcionamento do sistema médico. No entanto, o Tribunal de Justiça considerou que a regulamentação não reflectia verdadeiramente a preocupação de atingir este objectivo, na medida em que as policlínicas e os consultórios de grupo podem ter o mesmo impacto, mas apenas as primeiras eram abrangidas pela legislação. Do mesmo modo, embora o Tribunal de Justiça não tenha questionado que as limitações de publicidade televisiva relativa a tratamentos médico‑cirúrgicos podem ser justificadas por motivos de saúde pública, considerou que a legislação específica em causa no processo Corporación Dermoestética não se justificava porque se aplicava aos canais de televisão de difusão nacional, mas não aos canais de televisão locais (37). Pelo contrário, quando considerou justificada a legislação alemã que impõe que as farmácias têm de ser detidas por farmacêuticos e que o fornecimento de produtos farmacêuticos aos hospitais só pode ser feito por farmácias que estejam geograficamente próximas do hospital, o Tribunal de Justiça fê‑lo baseando a sua convicção na pretensa coerência e consistência das disposições então em análise (38).

23.      O Tribunal de Justiça aplicou o mesmo entendimento a outras áreas sensíveis. No contexto do jogo, por exemplo, o Tribunal de Justiça declarou que determinados limites estritos ao número de licenças de actividades de jogos de fortuna e azar que o Estado autoriza só se justificavam se fossem coerentes e consistentes à luz do objectivo fixado de redução das actividades criminosas e fraudulentas, atraindo jogadores para actividades regulamentadas (39). O Tribunal de Justiça declarou que se o número de licenças fixado for tão baixo que os operadores autorizados não constituem uma alternativa atractiva aos operadores clandestinos, a legislação não estará conforme com esta exigência (40).

24.      Por conseguinte, há que determinar em que medida a legislação prossegue efectivamente de forma consistente e coerente os objectivos que o Estado‑Membro apresentou para a justificar. Foram dadas duas justificações principais a favor das restrições. Em primeiro lugar, alega‑se que a restrição do acesso ao mercado permite assegurar a qualidade dos serviços farmacêuticos. Em segundo lugar, alega‑se que as restrições de população e geográfica assegurarão o acesso universal às farmácias, porquanto conduzem a uma repartição das farmácias por todo o território. Desenvolverei, sucessivamente, cada um destes argumentos.

a)      Qualidade dos serviços farmacêuticos

25.      O primeiro argumento, preponderante nos recentes processos Apothekerkammer des Saarlandes e o. e Comissão/Itália (41), que tinham por objecto normas alemãs e italianas segundo as quais as farmácias têm de ser geridas por farmacêuticos, desempenha um papel menos importante no presente processo. É, no entanto, mencionado por algumas das partes e parece estar ligado ao risco de que uma concorrência crescente entre farmácias possa levar, para usar uma expressão coloquial, a que os farmacêuticos «facilitem».

26.      A título prévio, sublinho que é ao Estado que cabe provar que a medida é adequada e necessária para a prestação de um serviço de maior qualidade (42). Pondo Shakespeare de parte, não nos parece que se tenha escrito que o aumento da concorrência conduzirá os farmacêuticos a diminuírem a qualidade dos seus serviços. Não posso deixar de referir, a este respeito, que certos fundamentos nos quais assenta a argumentação apresentada por algumas das partes e alguns dos Estados‑Membros são contraditórios. Às vezes, as partes referem que os farmacêuticos têm por principal motivação os proveitos financeiros, ao ponto de todos procurarem exercer unicamente em locais muito povoados, estando preparados, caso haja concorrência, para que o lucro se sobreponha aos seus deveres profissionais. Outras vezes, as partes alegam que quando os farmacêuticos se encontram numa situação de «monopólio» numa área muito povoada, o exercício da sua actividade é guiado pelo cumprimento dos seus deveres profissionais, tendo por principal preocupação a prestação de serviços farmacêuticos de qualidade. Segundo alegam algumas das partes, parece que a concorrência transforma os santos em pecadores.

27.      Por outro lado, há que recordar que a natureza dos serviços farmacêuticos se alterou profundamente: antigamente, era o próprio farmacêutico ou a própria farmacêutica que «produziam» os medicamentos. Hoje em dia, o farmacêutico só vende medicamentos que já foram «produzidos» noutro local e é obrigado a respeitar normas estritas, incluindo, por exemplo, as relativas à possibilidade de um medicamento ser vendido sem receita médica. O próprio Tribunal de Justiça já reconheceu esta situação quando aceitou a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica através da Internet (43). Por conseguinte, considero que o Estado‑Membro não demonstrou que a limitação da concorrência é necessária ou proporcionada ao objectivo que consiste em prestar serviços farmacêuticos de qualidade.

28.      Há que reconhecer que, nos recentes acórdãos Apothekerkammer des Saarlandes e o. e Comissão/Itália, em que estavam em causa normas nacionais que limitavam a propriedade das farmácias aos farmacêuticos, o Tribunal de Justiça declarou que a necessidade de assegurar uma distribuição de medicamentos segura e de qualidade à população pode justificar as restrições ao acesso à propriedade de farmácias (44). No entanto, nesses processos estava em análise a formação, a experiência profissional e a responsabilidade dos farmacêuticos, as quais o Tribunal de Justiça considerou que podem conduzir a que a procura do lucro pelos farmacêuticos seja atenuada por outros interesses profissionais (45). Além disso, a aceitação dessa restrição pelo Tribunal de Justiça assentou na premissa de que os farmacêuticos gozam de uma verdadeira independência profissional (46). Esta independência, que decorre dos seus deveres profissionais e do facto de não fazerem parte da cadeia de produção e de distribuição dos produtos vendidos nas suas farmácias (47), garante que podem assim resistir mais facilmente do que os não farmacêuticos às pressões destinadas a encorajar o consumo excessivo de medicamentos e permite assegurar que a restrição em causa realiza efectivamente o objectivo de saúde pública.

29.      Este argumento vem, na realidade, apoiar a tese da incompatibilidade da legislação asturiana com o direito comunitário. Estando os farmacêuticos, nas Astúrias, obrigados a prestar um serviço de determinado nível, não apenas por força da lei mas também devido aos seus deveres profissionais, não há motivos para recear que a concorrência os conduzirá a diminuir a qualidade dos seus serviços, em violação dos seus deveres legais e éticos. Se fosse necessária mais protecção para que os farmacêuticos respeitassem os seus deveres profissionais, o Tribunal de Justiça, nos acórdãos Apothekerkammer des Saarlandes e Comissão/Itália, não teria concluído que a norma segundo a qual só os farmacêuticos podem ser proprietários de farmácias é adequada ao objectivo de prestar um serviço de saúde de qualidade.

b)      Assegurar uma distribuição geográfica de farmácias ampla e equilibrada

30.      O argumento mais forte invocado pelas partes que defendem a legalidade do decreto é a necessidade de assegurar uma distribuição geográfica de farmácias ampla e equilibrada. Por outras palavras, garantir à população, tanto quanto possível, uma disponibilidade universal de serviços farmacêuticos. Haverá que distinguir os dois critérios utilizados para atingir este objectivo: o critério da população e o critério da distância mínima entre farmácias. Há que avaliar, relativamente a cada um destes critérios, se são adequados para realizar o objectivo da distribuição geográfica e vão além do necessário para atingir este fim.

31.      Os critérios relativos ao número máximo de habitantes podem, em princípio, ser adequados para atingir o objectivo de uma distribuição ampla de farmácias. Ao limitar a possibilidade de os farmacêuticos abrirem farmácias em zonas urbanas mais rentáveis, a norma leva‑os a procurar outras oportunidades. No entanto, este efeito não é automático. Na verdade, se abrir uma farmácia numa área menos povoada fosse em si mesmo rentável, isso aconteceria, com toda a probabilidade, independentemente de qualquer restrição geográfica. Na realidade, aumentaria em proporção directa com a facilidade de abertura de uma farmácia e com o grau de concorrência por quotas de mercado em áreas mais povoadas. Pelo contrário, se, como alegado por algumas das partes, o problema residir no facto de a probabilidade de obter lucro ser reduzida em áreas menos povoadas, então correr‑se‑ia o risco de ninguém estar interessado em abrir uma farmácia nessas áreas. Afinal, por que motivo haveria uma pessoa de se dedicar a uma actividade não rentável, pelo simples facto de não poder aceder a uma actividade rentável? Restringir a abertura de farmácias apenas em áreas mais povoadas não preenche os requisitos de coerência e de consistência para se atingir o objectivo de saúde pública fixado. Só quando a política de restrição de abertura de farmácias em áreas mais povoadas estiver relacionada com a política que favorece aqueles que tenham aberto farmácias em zonas menos povoadas é que o sistema considerado como um todo fará sentido. Ao privilegiar farmacêuticos que tenham aberto farmácias em áreas com menos de 2 800 habitantes, o decreto incentiva os farmacêuticos a estabelecerem‑se em zonas subpovoadas, que, de outro modo não seriam servidas de farmácias, em troca do aumento das hipóteses de posteriormente lhes ser atribuída uma licença numa zona mais povoada (que as restrições tornam mais rentável). É possível que a perspectiva de ter direito a abrir uma farmácia numa zona muito povoada, em circunstâncias em que outros não poderão abrir uma farmácia concorrente, possa efectivamente encorajar os farmacêuticos a prestarem os seus serviços, durante algum tempo, em zonas subpovoadas. Como reconhecido na audiência por algumas das partes que defendem o presente regime, é a perspectiva dos rendimentos de um futuro monopólio numa área muito povoada que conduz os farmacêuticos a instalarem‑se inicialmente em áreas subpovoadas. No entanto, tal só acontece se o serviço nestas áreas subpovoadas conceder efectivamente àqueles que o prestam uma prioridade na atribuição de licenças em áreas muito povoadas.

32.      Como acima referido, impõe‑se um exame atento à coerência e à consistência do decreto, para garantir que este prossegue efectivamente este objectivo e que não é o resultado da influência exercida por farmácias já estabelecidas (48). Duas componentes do decreto suscitam preocupações. Em primeiro lugar, tal sistema devia beneficiar aqueles que abrem farmácias em áreas mal servidas de farmácias, em relação àqueles que aguardam simplesmente pela abertura numa área lucrativa. Contudo, o ponto 7 do anexo privilegia farmacêuticos que não tenham sido titulares de farmácias, em detrimento daqueles que tenham sido titulares de farmácias em zonas com menos de 2 800 habitantes. Além disso, nos termos do ponto 4 do anexo, um farmacêutico que tenha aberto uma farmácia numa área mal servida de farmácias não pode beneficiar da sua anterior experiência profissional quando pretenda abrir outra farmácia. As consequências destas disposições são parcialmente atenuadas pelo disposto no ponto 1 a) do anexo, que atribui mais pontos aos serviços desempenhados em zonas mal servidas de farmácias. No entanto, essas consequências suscitam preocupação acerca da consistência e da coerência da disposição.

33.      Em segundo lugar, para se considerar que os regulamentos prosseguem efectivamente um objectivo de cobertura universal, é necessário que as licenças em áreas muito povoadas possam ser atribuídas àqueles que exerceram a sua actividade em áreas pouco povoadas, quando os titulares das licenças mais lucrativas nas áreas muito povoadas pretendam cessar a exploração das suas farmácias. Um sistema que atribui aos detentores de licenças de farmácias em áreas muito povoadas um direito patrimonial sobre essas licenças, permitindo que estes as vendam ou as transfiram para a pessoa da sua escolha, limita o número de licenças disponíveis para aqueles que «cumpriram o seu tempo» em áreas subpovoadas. Este sistema exigiria que aqueles que pretendam mudar de uma farmácia numa zona pouco povoada para uma farmácia numa zona muito povoada tenham de pagar um preço pela licença, um preço que terá sido inflacionado a fim de tomar em consideração o lucro adicional gerado por essa farmácia devido às restrições à abertura de farmácias concorrentes (49). Tal sistema prejudicaria a estrutura de incentivos à obtenção de licenças em que alegadamente assenta o critério que limita a abertura de farmácias para encorajar a abertura de farmácias em áreas subpovoadas. Demais a mais, tal sistema também representaria o enriquecimento de alguns farmacêuticos, ocasionado pela restrição da concorrência no sector das farmácias; ora, trata‑se precisamente do tipo de desvio regulamentar que as liberdades previstas no Tratado pretendem combater. As restrições à liberdade de estabelecimento têm de ser justificadas pelos imperativos do bem comum e não devem servir de instrumento ao enriquecimento privado.

34.      Passando à análise da questão de saber se o requisito de população teria excedido o necessário, caso tivesse sido mais bem concebido de modo a que os farmacêuticos rurais pudessem beneficiar dos monopólios urbanos lucrativos, verifico que as partes não propuseram um regime claramente preferível. A Comissão alega que, em vez de fixar nenhum número máximo de farmácias, as Astúrias deviam estabelecer um número mínimo de farmácias por habitante e impedir a abertura de qualquer nova farmácia até que esse número mínimo fosse atingido. No entanto, este sistema cria um problema de acção colectiva. Nenhum farmacêutico, a título individual, seria incentivado a abrir uma farmácia rural menos lucrativa. Como tal, este sistema não parece ser o melhor para criar um aumento considerável do número de farmácias em zonas subpovoadas. A Comissão dá o exemplo de Navarra, onde se implementou temporariamente um plano semelhante. No entanto, atendendo a que o plano de Navarra foi alterado para fixar um número máximo de farmácias e a que alguns dos municípios mais pequenos de Navarra perderam as suas farmácias devido a esse plano, não posso concluir que as Astúrias ultrapassaram a sua margem de apreciação ao não adoptarem aquele modelo.

35.      Também foi alegado que noutros Estados‑Membros funcionaram bem os modelos de liberalização total (50). No entanto, esta questão foi alvo de uma disputa acesa entre as partes e, como já foi referido, os elementos de prova sobre esta questão são contraditórios. Num contexto de liberalização total, ter‑me‑ia pronunciado no sentido de que um sistema que limita a abertura de novas farmácias em zonas mais povoadas, para incentivar a abertura de farmácias em zonas menos povoadas, seria justificável caso fosse implementado de forma coerente e consistente. No entanto, pelos motivos acima referidos, não é o que sucede num sistema como o que foi implementado nas Astúrias.

36.      No que respeita ao requisito geográfico que proíbe a abertura de uma farmácia a menos de 250 metros de outra farmácia, ou a menos de 250 metros de uma infra‑estrutura de saúde pública, tenho de analisar primeiro se este requisito é adequado para atingir o objectivo de uma distribuição de farmácias por todo o território. Em primeiro lugar, é evidente que tal política encorajará essa repartição, ao garantir que as farmácias não se possam agrupar em pequenas zonas comerciais ou nas proximidades de centros de saúde, deixando outras áreas sem farmácia. A medida não é totalmente consistente, uma vez que não há requisitos de distância mínima relativamente a áreas farmacêuticas com apenas uma farmácia (51). No entanto, esta excepção não prejudica o carácter adequado da disposição porquanto a questão do agrupamento de farmácias não constitui um problema quando há apenas uma farmácia. Ademais, parece‑me que é razoável reconhecer que, em áreas tão pequenas, a zona comercial pode ser demasiado pequena para que as farmácias se possam disseminar.

37.      A segunda justificação é que este requisito contribui para o lucro que pode ser obtido por uma farmácia que opera numa zona urbana, aumentando assim o incentivo para os farmacêuticos se estabelecerem em áreas mal servidas, para poderem eventualmente ser autorizados a exercer a sua actividade numa área muito povoada. Relativamente a este objectivo, parece que este requisito foi aplicado de forma consistente e coerente. As partes não fizeram prova da concessão de excepções recentes que tenham prejudicado o objectivo fixado pela norma.

38.      Saber se a distância de 250 metros excede o necessário para atingir este objectivo é uma questão mais difícil. Algumas partes alegaram que este número está já ultrapassado e não é adequado à mais elevada densidade populacional, hoje existente em muitas zonas. Este requisito pode igualmente beneficiar farmácias já há muito estabelecidas e bem posicionadas, em detrimento de outras farmácias urbanas, diminuindo assim os eventuais lucros futuros da maioria dos farmacêuticos que decidam trabalhar durante algum tempo em áreas subpovoadas. A análise deste requisito depende de muitos factores, como a densidade populacional e a distribuição da população dentro dos municípios, não tendo sido apresentados elementos suficientes ao Tribunal de Justiça, para que este se possa pronunciar sobre esta questão. Cabe ao tribunal nacional analisá‑la, à luz do seu maior conhecimento da realidade asturiana, tendo presente o grau de interferência com o direito à liberdade de estabelecimento, a natureza do interesse público invocado e, atendendo ao número e à repartição de farmácias nas Astúrias e à repartição da população, o nível de cobertura universal que pode ser alcançado através de meios menos restritivos.

III – Conclusão

39.      Com base nas considerações que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma às questões prejudiciais:

«–      O artigo 43.° CE opõe‑se a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal que sujeita a abertura de uma nova farmácia a autorização e que privilegia os farmacêuticos que tenham exercido numa parte do território desse Estado‑Membro.

–        O artigo 43.° CE opõe‑se a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, nos termos da qual a autorização para a abertura de uma nova farmácia depende de um requisito de população que tem por objectivo promover o estabelecimento de farmácias em áreas menos povoadas, se esse objectivo não for prosseguido de forma coerente e consistente, nomeadamente se essa legislação não privilegiar claramente farmacêuticos que tenham aberto farmácias em áreas mal servidas, em detrimento dos que simplesmente aguardaram pela abertura de uma farmácia numa área lucrativa, e se atribuir um direito patrimonial à licença farmacêutica, que prejudique a eficácia desse regime de incentivo.

–        No que respeita ao requisito da distância mínima entre farmácias, cabe ao tribunal nacional decidir se a distância específica imposta se justifica, tendo presente o grau de interferência com o direito à liberdade de estabelecimento, a natureza do interesse público invocado e, atendendo ao número e à repartição de farmácias na região e à repartição da população e densidade populacional, o nível de cobertura universal que pode ser alcançado através de meios menos restritivos.»


1 – Língua original: inglês.


2 –      William Shakespeare, Romeu e Julieta, acto 5, cena 1.


3 –      Decreto 72/2001.


4 –      Anexo: Tabela de méritos para o acesso à titularidade de farmácias.


5 – Acórdãos de 5 de Dezembro de 2000, Guimont (C‑448/98, Colect., p. I‑10663, n.° 23); de 5 de Março de 2002, Reisch e o. (C‑515/99, C‑519/99 a C‑524/99 e C‑526/99 a C‑540/99, Colect., p. I‑2157, n.° 26); de 11 de Setembro de 2003, Anomar e o. (C‑6/01, Colect., p. I‑8621, n.° 41); de 30 de Março de 2006, Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti (C‑451/03, Colect., p. I‑2941, n.° 29); de 5 de Dezembro de 2006, Cipolla e o. (C‑94/04 e C‑202/04, Colect., p. I‑11421, n.° 30); e de 31 de Janeiro de 2008, Centro Europa 7 (C‑380/05, Colect., p. I‑349, n.° 69).


6 – V., entre outros, acórdão Centro Europa 7, já referido, n.° 52.


7 – Acórdão Centro Europa 7, já referido, n.° 53.


8 – Acórdão Guimont, já referido, n.° 23.


9 – V. as minhas conclusões apresentadas no processo Centro Europa 7, já referido, n.° 30.


10 – Acórdãos de 19 de Maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o. (C‑171/07 e C‑172/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 18), e de 11 de Setembro de 2008, Comissão/Alemanha (C‑141/07, Colect., p. I‑6935, n.° 22).


11 – Acórdãos, já referidos, Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.° 18, e Comissão/Alemanha, n.° 22.


12 – Acórdãos, já referidos, Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.° 18, e Comissão/Alemanha, n.os 22 e 23.


13 – Acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido, n.° 18, e acórdão de 10 de Março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 33).


14 – V. as minhas conclusões apresentadas no processo Cipolla e o., já referido, n.° 59.


15 – Acórdãos, já referidos, Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.° 23, e Hartlauer, n.° 34; e acórdão de 6 de Março de 2007, Placanica e o. (C‑338/04, C‑359/04 a C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.° 42).


16 – Acórdão Hartlauer, já referido, n.° 36.


17 – Acórdão Hartlauer, já referido, n.° 39.


18 – Sobre este ponto, v. as minhas conclusões apresentadas no processo Alfa Vita Vassilopoulos e Carrefour‑Marinopoulos (acórdão de 30 de Março de 2006, C‑158/04 e C‑159/04, Colect., pp. I‑8135, I‑8137, n.° 47).


19 – Acórdãos de 30 de Novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, Colect., p. I‑4165). V., igualmente, acórdão de 21 de Abril de 2005, Comissão/Grécia (C‑140/03, Colect., p. I‑3177).


20 – V., por exemplo, acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 33.


21 – V. ponto 7 b) do anexo do Decreto 72/2001.


22 – V. pontos 6 e 7c) do anexo do Decreto 72/2001.


23 – V. acórdão Gebhard, já referido, n.° 38. Por outro lado, há que referir que a vantagem atribuída a farmacêuticos com experiência anterior obtida nas Astúrias não tem nenhuma relação com o objectivo de promover o estabelecimento em áreas pouco povoadas, na medida em que a vantagem é atribuída a todos os farmacêuticos estabelecidos nas Astúrias, independentemente de terem contribuído para a realização desse objectivo ao terem‑se eles próprios estabelecido anteriormente em áreas pouco povoadas das Astúrias.


24 – Acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 38, e acórdão de 25 de Julho de 1991, Comissão/Países Baixos (C‑353/89, Colect., p. I‑4069, n.° 25).


25 – V. acórdão de 6 de Dezembro de 2007, Comissão/Alemanha (C‑456/05, Colect., p. I‑10517, n.° 58). V., igualmente, acórdãos de 7 de Maio de 1991, Vlassopoulou (C‑340/89, Colect., p. I‑2357), e de 14 de Setembro de 2000, Hocsman (C‑238/98, Colect., p. I‑6623).


26 – Acórdãos, já referidos, Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.° 27; Hartlauer, n.° 46; e Comissão/Alemanha, C‑141/07, n.os 46 e 47.


27 – V. acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido, n.° 19.


28 – Acórdão de 11 de Julho de 2002, Gräbner (C‑294/00, Colect., p. I‑6515, n.° 46).


29 – V. acórdão Comissão/Alemanha, C‑141/07, já referido, n.° 61.


30 – Acórdão de 11 de Dezembro de 2003, Deutscher Apothekerverband (C‑322/01, Colect., p. I‑14887, n.° 122).


31 – Acórdão Comissão/Alemanha, C‑141/07, já referido, n.° 59.


32 – V. nota 29, supra.


33 – Acórdão de 13 de Maio de 2003, Müller‑Fauré e van Riet (C‑385/99, Colect., p. I‑4509, n.° 73).


34 – Acórdão Comissão/Alemanha, C‑141/07, já referido, n.os 60 e 61.


35 – V. acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido, n.° 19.


36 – V. acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido, n.° 42.


37 – Acórdão de 17 de Julho de 2008, Corporación Dermoestética (C‑500/06, Colect., p. I‑5785, n.os 37 a 39).


38 – Acórdãos, já referidos, Comissão/Alemanha, C‑141/07, n.os 51 a 57, e Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.os 41 a 50.


39 – Acórdão Placanica, já referido, n.° 55.


40 – Acórdão Placanica, já referido, n.° 55.


41 – Acórdão de 19 de Maio de 2009, Comissão/Itália (C‑531/06, ainda não publicado na Colectânea).


42 – Acórdão Deutscher Apothekerverband, já referido, n.° 123.


43 – Acórdão Deutscher Apothekerverband, já referido.


44 – Acórdãos, já referidos, Apothekerkammer des Saarlandes e o., n.os 28 e 39, e Comissão/Itália, n.° 52.


45 – Acórdão Apothekerkammer des Saarlandes e o., já referido, n.os 37 a 39.


46 – Ibidem, n.os 33 a 37.


47 – Esta separação entre a produção e a revenda dos produtos farmacêuticos constitui, em minha opinião e à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o motivo fundamental que levou o Tribunal de Justiça a aceitar as normas que limitam a propriedade das farmácias aos farmacêuticos. V. n.° 40, no qual o Tribunal de Justiça referiu que farmacêuticos assalariados de produtores ou revendedores de produtos farmacêuticos podem não dispor da independência desejada. Por conseguinte, só se estiver garantida essa independência dos farmacêuticos face aos produtores e aos revendedores é que se poderá considerar que essas normas cumprem os requisitos de consistência e de coerência impostos pelo direito comunitário.


48 – Acórdãos de 7 de Dezembro de 2000, Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, Colect., p. I‑10745); de 25 de Março de 2004, Coname (C‑231/03, Colect., p. I‑7287); de 13 de Outubro de 2005, Parking Brixen (C‑458/03, Colect., p. I‑8585); de 6 de Abril de 2006, ANAV (C‑410/04, Colect., p. I‑3303); de 13 de Setembro de 2007, Comissão/Itália (C‑260/04, Colect., p. I‑7083); e de 17 de Julho de 2008, ASM Brescia (C‑347/06, Colect., p. I‑5641).


49 – Foi indicado na audiência que já houve quem pagasse preços extremamente elevados pelas licenças de farmácias em zonas superpovoadas. O facto de essas licenças atingirem preços tão elevados constitui um indício de que um sistema que, na sua génese, pode ter começado como uma forma de atingir uma repartição geográfica equilibrada dos serviços farmacêuticos se transformou num mero mercado económico, de algum modo afastado dos seus objectivos iniciais. É evidente que a liberalização desse sistema pode ter efeitos nefastos para aqueles que pagaram montantes significativos por licenças cujo valor foi inflacionado devido às medidas restritivas impostas pelas autoridades asturianas. No entanto, nos casos em que, por força do direito comunitário, as restrições às liberdades fundamentais desaparecem, a liberalização pode prejudicar os anteriores beneficiários dessas restrições. Por exemplo, no acórdão Centro Europa 7, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que o direito comunitário impunha que se autorizasse um operador a emitir nas radiofrequências atribuídas pela legislação nacional, independentemente do impacto nos interesses dos ocupantes de facto das mesmas frequências (v. n.os 40 e 108 a 116). Saber, neste tipo de processos, se existe alguma possibilidade de aqueles que investiram no mercado com base em determinadas expectativas jurídicas relativas à regulação do mercado poderem actuar judicialmente contra o Estado é uma questão de direito nacional sobre a qual, no entanto, o Tribunal de Justiça não tem de se pronunciar.


50 – V. observações apresentadas por Blanco Pérez, Chao Gómez e Plataforma para «la libre apertura de farmacias», p. 38 (versão espanhola). V., igualmente, observações escritas da Comissão, pp. 27 e 28 (versão espanhola).


51 – Artigo 4.°, n.° 2.

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