EUR-Lex Access to European Union law

Back to EUR-Lex homepage

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62003CC0537

Conclusões do advogado-geral Geelhoed apresentadas em 10 de Março de 2005.
Katja Candolin, Jari-Antero Viljaniemi e Veli-Matti Paananen contra Vahinkovakuutusosakeyhtiö Pohjola e Jarno Ruokoranta.
Pedido de decisão prejudicial: Korkein oikeus - Finlândia.
Seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - Directivas 84/5/CEE e 90/232/CEE - Regime de responsabilidade civil - Contribuição do passageiro para a produção do dano - Exclusão ou limitação do direito a uma indemnização.
Processo C-537/03.

Colectânea de Jurisprudência 2005 I-05745

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2005:160

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

L. A. GEELHOED

apresentadas em 10 de Março de 2005 (1)

Processo C-537/03

Katja Candolin

Jari-Antero Viljaniemi

Veli-Matti Paananen

contra

Vahinkovakuutusosakeyhtiö Pohjola

Jarno Ruokoranta

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein oikeus (Finlândia)]





«Seguro automóvel obrigatório – Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Danos causados aos passageiros»

I –    Introdução

1.     No presente processo, o Korkein oikeus (tribunal de cassação) coloca ao Tribunal de Justiça uma série de questões sobre a interpretação da Directiva 72/166/CEE de 24 de Abril de 1972 (2) (a seguir «Primeira Directiva»), da Directiva 84/5/CEE de 30 de Dezembro de 1983 (3) (a seguir «Segunda Directiva») e da Directiva 90/232/CEE de 14 de Maio de 1990 (4) (a seguir «Terceira Directiva»), relativas à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis.

2.     Com as suas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o direito nacional pode excluir, total ou parcialmente, da protecção conferida pelas directivas comunitárias sobre o seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, um passageiro que sofreu danos em consequência de uma acidente de automóvel e sabia ou tinha a obrigação de saber que o condutor do veículo conduzia sob a influência do álcool no momento do acidente.

II – Direito comunitário

3.     Desde 1972, o legislador comunitário procedeu, por meio de directivas, à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis.

4.     A Primeira Directiva prevê a abolição dos controlos nas fronteiras da carta verde e a criação, em todos os Estados‑Membros, de um seguro obrigatório de responsabilidade civil que cubra os danos causados no território de todos os Estados‑Membros.

5.     Adoptando o princípio da indemnização das vítimas de acidentes de viação, desde que demonstrada a existência de responsabilidade, o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Directiva dispõe:

«Cada Estado‑Membro [...] adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.»

6.     Com a Segunda Directiva, o legislador comunitário pretendeu harmonizar os diferentes aspectos que comporta essa obrigação de seguro com o objectivo de garantir um nível mínimo de protecção das vítimas dos acidentes de viação e de reduzir as diferenças existentes no interior da Comunidade relativamente ao alcance do referido seguro.

7.     A Segunda Directiva diz respeito ao alcance, isto é, ao que deve ser coberto pelo seguro obrigatório e fixa os montantes mínimos deste. O artigo 1.°, n.os 1 e 2, da Segunda Directiva dispõe:

«1. O seguro referido no n.° 1 do artigo 3.° da Directiva 72/166/CEE, deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.

2. Sem prejuízo de montantes de garantia superiores eventualmente estabelecidos pelos Estados‑Membros, cada Estado‑Membro deve exigir que os montantes pelos quais este seguro é obrigatório, se situem, pelo menos, nos seguintes valores:

–       350 000 ecus, relativamente aos danos corporais, quando haja apenas uma vítima, devendo tal montante ser multiplicado pelo número de vítimas, sempre que haja mais do que uma vítima em consequência de um mesmo sinistro;

–       100 000 ecus por sinistro, relativamente a danos materiais seja qual for o número de vítimas.

Os Estados‑Membros podem estabelecer, em vez dos montantes mínimos acima referidos, um montante mínimo de 500 000 ecus para os danos corporais, sempre que haja mais que uma vítima em consequência de um mesmo sinistro, ou um montante global mínimo de 600 000 ecus por sinistro, para danos corporais e materiais seja qual for o número de vítimas ou a natureza dos danos.»

8.     Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Segunda Directiva «[c]ada Estado‑Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro […] que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

–       pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer; ou

–       pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa; ou

–       pessoas que não cumpram as obrigações legais de carácter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa;

seja [...] considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.»

9.     Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, a disposição ou a cláusula a que se refere o primeiro travessão do n.° 1 pode, todavia, ser oponível às pessoas que, por sua livre vontade se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido roubado.

10.   A Terceira Directiva foi adoptada para clarificar algumas disposições referentes ao seguro obrigatório, uma vez que ainda subsistiam importantes divergências quanto à extensão da cobertura do seguro.

11.   Nos termos do quinto considerando da Terceira Directiva, existem lacunas na cobertura pelo seguro obrigatório dos passageiros de veículos automóveis em certos Estados‑Membros. Para proteger essa categoria particularmente vulnerável de vítimas potenciais, é conveniente preencher essas lacunas.

12.   Por último, o artigo 1.° da Terceira Directiva dispõe:

«Sem prejuízo do n.° 1, segundo parágrafo, do artigo 2.° da Directiva 84/5/CEE, o seguro referido no n.° 1 do artigo 3.° da Directiva 72/166/CEE cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, excepto o condutor, resultantes da circulação de um veículo».

III – Direito nacional aplicável

13.   As disposições gerais referentes ao seguro obrigatório dos veículos automóveis constam da Liikennevakuutuslaki (a seguir «lei do seguro dos veículos automóveis»). Por força desta lei, os danos corporais ou materiais causados pela circulação de um veículo automóvel devem estar cobertos por um seguro.

14.   No que respeita à contribuição do próprio sinistrado para causar os danos por ele sofridos, o § 7, n.° 1, da lei do seguro dos veículos automóveis dispõe:

«Quando o próprio lesado num acidente de viação tiver concorrido para a sua produção, a indemnização pelos danos que sofreu, que não físicos, pode ser-lhe recusada ou sofrer uma redução, consoante o seu grau de culpa, a forma como conduzia o veículo e as demais circunstâncias que levaram à produção dos danos. Se os danos físicos sofridos forem imputáveis ao próprio lesado, que actuou com dolo ou culpa grave, este só será indemnizado se e na medida em que outras circunstâncias tiverem contribuído para a produção dos danos.»

15.   O § 7, n.° 3, da lei do seguro dos veículos automóveis contém uma disposição específica, relativa ao direito dos passageiros de um veículo a serem indemnizados por danos corporais pela seguradora do veículo se o condutor estava sob a influência do álcool ou de estupefacientes:

«Se os danos físicos sofridos forem imputáveis ao próprio lesado por, quando conduzia ou imediatamente após, a sua taxa de álcool no sangue ser de, pelo menos, 1,2 por mil ou a sua taxa de álcool por litro de ar expirado ser de, pelo menos, 0,6 miligramas, ou por conduzir o veículo sob a influência do álcool ou de estupefacientes ou sob a influência conjunta do álcool e de estupefacientes, estando por isso a sua capacidade de actuar sem cometer erros consideravelmente diminuída, só há obrigação de a seguradora indemnizar caso existam razões atendíveis. O disposto relativamente ao direito do condutor à indemnização é igualmente aplicável aos passageiros que se encontravam no interior do veículo quando da produção dos danos, desde que conhecessem ou devessem conhecer o estado em que se encontrava o condutor.»

IV – Matéria de facto e tramitação processual

16.   Em 21 de Abril de 1997, T. Candolin, mãe de K. Candolin, J.‑A. Viljaniemi e V.‑M. Paananen viajavam no veículo propriedade de V.‑M. Paananen, conduzido por J. Ruokoranta à velocidade de 180 km/hora numa zona em que a velocidade estava sucessivamente limitada a 60 e 80 km/hora. O condutor perdeu o controlo do veículo, que saiu da estrada. A taxa de álcool no sangue de J. Ruokoranta era, à data dos factos, de 2,08 por mil. Os passageiros também se encontravam em estado de embriaguez.

17.   T. Candolin faleceu em consequência do acidente. J.‑A. Viljaniemi sofreu um deslocamento da anca e V.‑M. Paananen sofreu uma lesão completa da medula espinal, bem como uma lesão cerebral e paralisia dos membros inferiores. A roupa que J.‑A. Viljaniemi trazia ficou danificada.

18.   O veículo estava segurado pela companhia de seguros Vahinkovakuutusosakeyhtiö Pohjola.

19.   O órgão jurisdicional de primeira instância – o Porin Käräjäoikeus – considerou J. Ruokoranta culpado de condução sob a influência do álcool, de ter gravemente posto em perigo a circulação, de homicídio por negligência e de ofensas corporais graves por negligência. O Porin Käräjäoikeus condenou J. Ruokoranta a uma pena de prisão por estes delitos. Além disso, considerou V.‑M. Paananen culpado de ter permitido que o seu veículo fosse conduzido uma pessoa sob a influência do álcool mas dispensou‑o do cumprimento de uma pena, devido às graves lesões que sofrera.

20.   O órgão jurisdicional de primeira instância condenou J. Ruokoranta a pagar a K. Candolin uma pensão alimentar até 2 de Setembro de 2000 e a indemnizá‑la do custo do funeral. O mesmo órgão condenou ainda J. Ruokaranta a indemnizar J.‑A. Viljaniemi das despesas hospitalares, pelos danos patrimoniais e morais sofridos e da sua roupa danificada. Além disso, condenou J. Ruokoranta a indemnizar V.‑M. Paananen das despesas médicas e hospitalizares, os danos patrimoniais e morais e as sequelas físicas irreversíveis e a pagar‑lhe, durante um período de 24 anos, uma indemnização mensal por perda de rendimentos. O Käräjäoikeus decidiu que, face à intencionalidade e à gravidade dos actos de J. Ruokoranta, não se justificava a redução das indemnizações.

21.   No tocante à questão do pagamento das indemnizações pela seguradora do veículo conduzido por J. Ruokoranta, o Käräjäoikeus considerou que todos os elementos do grupo passaram várias horas juntos a consumir álcool, tendo posteriormente entrado de livre vontade no veículo que J. Ruokoranta conduziu. Todos eles se deveriam ter apercebido do estado de embriaguez de J. Ruokoranta. Nos termos do artigo 7.°, n.° 3, da lei do seguro dos veículos automóveis, nenhum deles poderá exigir à companhia de seguros o pagamento de uma indemnização, salvo se houver uma razão atendível para o pagamento de uma indemnização, na acepção da referida disposição.

22.   O Käräjäoikeus considerou, quanto a V.‑M. Paananen, que, tendo em conta as suas graves e irreversíveis lesões e a situação financeira de J. Ruokoranta, a perda total das indemnizações que lhe foram concedidas seria desproporcionada e determinou que as mesmas fossem pagas pela seguradora do veículo de J. Ruokoranta. Quanto a K. Candolin e J.‑A. Viljaniemi, o Käräjäoikeus entendeu que não existiam razões atendíveis que justificassem que as indemnizações lhes fossem pagas pela companhia de seguros.

23.   Em sede de recurso, o Turun Hovioikeus considerou que, face ao grau da culpa de J. Ruokoranta, não se justificava a redução, devido à sua situação económica ou ao facto de os passageiros terem contribuído para a produção dos danos que sofreram, das indemnizações que este foi condenado a pagar. No que respeita ao pagamento das indemnizações pela companhia de seguros, o Hovioikeus reformou a sentença do Käräjäoikeus, entendendo que a companhia de seguros também não tinha de pagar a indemnização devida a V.‑M. Paananen.

24.   K. Candolin, J.‑A. Viljaniemi e V.‑M. Paananen recorreram para o Korkein oikeus, pedindo que as indemnizações que lhes foram concedidas fossem pagas pela companhia de seguros. Por acórdão de 19 de Dezembro de 2003, o Korkein oikeus decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 1.° da Terceira Directiva 90/232/CEE, nos termos do qual o seguro cobre a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, excepto os do condutor, resultantes da circulação de um veículo, ou qualquer outra disposição ou princípio do direito comunitário impõem restrições à apreciação, em direito interno, da importância da contribuição do passageiro para a produção dos danos sofridos, no âmbito do seu direito à indemnização pelo seguro automóvel obrigatório?

2)      É conforme com o direito comunitário, em qualquer outra situação para além da referida no artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva, recusar ou limitar, com fundamento no comportamento do passageiro do veículo, o seu direito à indemnização pelo seguro automóvel obrigatório relativamente aos danos sofridos em consequência do acidente? Verifica-se um comportamento desse tipo quando, por exemplo, a pessoa tenha tomado lugar no veículo apesar de ter podido aperceber-se de que o risco de acidente e de sofrer danos era mais elevado do que o habitual?

3)      O direito comunitário obsta a que se considere como elemento a tomar em conta o estado de embriaguez do condutor, que tem influência sobre a sua capacidade para a condução de um veículo automóvel com toda a segurança?

4)      O direito comunitário obsta a que o direito de o proprietário de um veículo, que nele viajou como passageiro, a ser indemnizado pelo seguro automóvel obrigatório pelos danos corporais sofridos seja apreciado de forma mais rigorosa do que o direito dos demais passageiros, por ter permitido que uma pessoa em estado de embriaguez conduzisse o veículo?»

V –    Observações das partes

25.   Na análise das observações, referir‑me‑ei, sobretudo, às observações do Governo finlandês, da Comissão e de V.‑M. Paananen. Uma vez que os Governos finlandês, sueco, austríaco, alemão e norueguês, e a companhia de seguros Pohjolae apresentaram argumentos mais ou menos idênticos, salvo algumas excepções, incluí‑los‑ei na minha síntese dos principais argumentos do Governo finlandês.

26.   O Governo finlandês entende que o direito comunitário não tem por objectivo harmonizar os regimes de responsabilidade civil. Tal resulta do acórdão Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira (5) no qual o Tribunal de Justiça declarou que o direito comunitário não tem qualquer influência no tipo de responsabilidade civil – pelo risco ou por culpa – que deve ser coberta pelo seguro. As directivas apenas impõem a obrigação de garantir que a responsabilidade civil relativa à circulação dos veículos, esteja coberta por um seguro. Daí decorre que os Estados‑Membros continuam livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos.

27.   O direito comunitário não impõe qualquer restrição à apreciação, nos casos individuais, da importância da contribuição da vítima para a produção dos danos. No âmbito do direito nacional da responsabilidade, vigora a regra de que a vítima que contribuiu, ela própria, para a produção dos danos não pode ser indemnizada ou não pode ser integralmente indemnizada. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar em que medida as disposições gerais relativas à responsabilidade devem ser aplicadas a cada caso concreto.

28.   A indemnização pode ser limitada ou excluída no caso de a vítima aceitar conscientemente um risco acrescido de sofrer um acidente. O órgão jurisdicional pode, com base nos princípios gerais da responsabilidade civil, limitar ou recusar a indemnização quando um passageiro entra num veículo sabendo que corre um risco nitidamente mais elevado do que o habitual de sofrer um dano durante o trajecto. O direito comunitário não se opõe a que o estado de embriaguês do condutor influa na apreciação da questão de saber se há lugar à limitação da indemnização. Além disso, o direito comunitário também não deverá opor‑se a que constitua uma circunstância agravante para o proprietário de um veículo, que estava entre os passageiros, o facto de ter permitido que o mesmo fosse conduzido por uma pessoa que se encontrava sob a influência do álcool. O Governo austríaco observa ainda que o proprietário ou detentor do veículo, enquanto vítima, não é um terceiro, mas tem uma relação contratual com a seguradora, pelo que, em circunstâncias como as supramencionadas, a responsabilidade do proprietário do veículo pode ser apreciada de forma mais rigorosa do que o dos outros passageiros.

29.   De acordo com o Governo alemão, as directivas apenas se referem à relação jurídica entre a seguradora do veículo e o proprietário deste. As directivas não regulam a relação jurídica entre a pessoa responsável pelo acidente e as vítimas. A esta relação jurídica é aplicável o direito nacional em matéria de ressarcimento de danos e de responsabilidade.

30.   Os Governos sueco e austríaco introduzem uma nuance adicional. O Governo sueco refere que o ajustamento da indemnização não pode levar a que seja totalmente excluído do direito à indemnização uma determinada categoria de pessoas ou um determinado tipo de danos. O Governo austríaco entende que o contrato de seguro obrigatório não pode prever que a seguradora possa limitar ou excluir a sua obrigação de indemnizar os passageiros, em caso de embriaguez do condutor do veículo.

31.   Segundo a Comissão, as questões prejudiciais referem‑se à relação entre a seguradora e a pessoa que sofreu danos. A questão da responsabilidade da pessoa que sofreu danos e, eventualmente, da correlativa obrigação de indemnização deve ser respondida com base no direito nacional.

32.   A Comissão entende igualmente que o seguro obrigatório não pode prever a exclusão da indemnização dos danos corporais e patrimoniais sofridos pelos passageiros do veículo segurado, em especial quando o condutor do veículo se encontre embriagado (6). Em apoio da sua argumentação, a Comissão referiu, em especial, o acórdão Ruiz Bernáldez (7). Resulta deste acórdão que o Tribunal de Justiça tem em conta a situação que as próprias vítimas tenham causado, mas apenas nos casos referidos no artigo 2.°, n.° 1, primeiro parágrafo, da Segunda Directiva, que enumera os casos especiais de exclusão do seguro.

33.   Além disso, o direito comunitário opõe‑se a uma apreciação mais rigorosa do comportamento do proprietário do veículo que nele se encontrava como passageiro, uma vez que o artigo 1.° da Terceira Directiva apenas distingue, no que diz respeito ao direito de indemnização, entre o condutor e os passageiros.

34.   V.‑M. Paananen entende que decorre das directivas que o seguro dos veículos a motor deve cobrir a indemnização de todos os passageiros, excepto o condutor. A indemnização só pode ser recusada em circunstâncias excepcionais. V.‑M. Paananen salienta que a indemnização dos danos deve ser a regra uma vez que é impossível aos passageiros demonstrar que desconheciam o estado de embriaguês do condutor.

VI – Apreciação

35.   Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se os Estados‑Membros podem incluir na sua legislação nacional exclusões do direito dos passageiros à indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, para além das previstas nas directivas. Se os Estados‑Membros não puderem estabelecer exclusões para além das previstas nas directivas, haverá que determinar se o direito nacional pode excluir, total ou parcialmente, do direito a indemnização um passageiro que sofreu danos e que sabia ou tinha a obrigação de saber que o condutor do veículo conduzia sob a influência do álcool no momento do acidente. Por último, coloca‑se a questão de saber se o comportamento do proprietário do veículo pode ser apreciado de forma mais rigorosa do que o dos outros passageiros, por ter permitido que uma pessoa em estado de embriaguez conduzisse o veículo.

A –    Observação prévia

36.   As três directivas contêm prescrições mínimas para o seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis. A Primeira Directiva prevê a criação, em todos os Estados‑Membros, de um seguro obrigatório de responsabilidade civil que cubra os danos causados no território de todos os Estados‑Membros. Inicialmente, foi deixada aos Estados‑Membros a determinação do âmbito da cobertura e das modalidades do seguro obrigatório. Em 1984, a Segunda Directiva introduziu prescrições mínimas relativas à extensão da cobertura obrigatória de danos materiais e corporais, através das quais foram objectivados os riscos decorrentes da circulação rodoviária no interior da Comunidade Europeia. Posteriormente, a Terceira Directiva alargou o âmbito de aplicação ratione personae aos outros passageiros dos veículos automóveis, para além do condutor.

37.   Os Estados‑Membros têm, nos termos destas três directivas, a obrigação de velar por que cada possuidor ou detentor de um veículo automóvel, transfira, por contrato de seguro, a responsabilidade civil relativa ao veículo em questão para uma companhia de seguros (8). Além disso, qualquer apólice de seguro obrigatório relativa à responsabilidade pela utilização de um veículo deve abranger todo o território da Comunidade (9) e deve, com base num prémio único, prever a cobertura legalmente exigida em cada um dos outros Estados‑Membros (10). Ao harmonizar‑se a cobertura em toda a Comunidade, é garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado‑Membro onde o sinistro ocorra (11).

38.   Este conjunto de directivas tem por objecto, por um lado, garantir a livre circulação tanto dos veículos que habitualmente circulam no território da Comunidade como das pessoas que neles viajam e, por outro, assegurar que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da Comunidade em que o acidente tenha ocorrido (12).

39.   A protecção da vítima ocupa nas três directivas um lugar importante. Embora a protecção da vítima já fosse de importância fulcral na Primeira Directiva, a posição jurídica das potenciais vítimas foi melhorada e alargada pela Segunda e Terceira Directivas. Estas duas últimas directivas têm como objectivo corrigir determinadas imperfeições do regime, parte das quais só surgiram com o passar do tempo. Para melhorar a posição da vítima, a Segunda Directiva dispõe que determinadas cláusulas de exclusão não são oponíveis à vítima. Além disso, o artigo 1.°, n.° 4, da Segunda Directiva permite expressamente «qualquer outra prática mais favorável às vítimas» (13). Na Terceira Directiva, o círculo das vítimas é alargado para proteger uma «categoria particularmente vulnerável de vítimas potenciais», a saber os passageiros.

B –    É permitido aos Estados‑Membros incluir na sua legislação nacional exclusões do direito dos passageiros a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, para além das previstas nas directivas?

40.   No que diz respeito ao direito dos passageiros a indemnização dos danos pessoais pela companhia de seguros, o legislador finlandês adoptou uma disposição especial para os casos em que o condutor se encontrava no estado de embriaguês (§ 7, n.° 3, da lei do seguro dos veículos automóveis). Esta disposição era aplicável à data dos factos. A disposição prescreve que os danos causados pelo condutor em estado de embriaguês só serão indemnizados pela seguradora do veículo quando para tal exista uma razão atendível. Os passageiros que se encontravam no veículo no momento do acidente, e que estavam ou deviam estar cientes do estado do condutor, também só serão indemnizados pela seguradora do veículo quando para tal exista uma razão atendível.

41.   O artigo 2.°, n.° 1, da Segunda Directiva prescreve determinadas exclusões de cobertura, consideradas admissíveis, que só são aplicáveis no âmbito das relações contratuais entre segurado e seguradora, e que não podem ser oponíveis a terceiros vítimas de um sinistro. O segundo parágrafo do n.° 1 prevê uma excepção. Se a seguradora puder provar que as pessoas que de livre vontade se encontravam no veículo causador do sinistro tinham conhecimento de que o mesmo tinha sido roubado, esta circunstância é oponível aos passageiros.

42.   O legislador comunitário pretendeu, com esta última disposição, prever uma excepção à regra, segundo a qual nenhuma disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro é oponível aos passageiros e terceiros vítimas de um sinistro. Esta excepção deve ser interpretada de forma restritiva e exaustiva, uma vez que constitui uma derrogação à regra geral (14). Qualquer outra interpretação teria por consequência permitir aos Estados‑Membros limitar a indemnização dos terceiros vítimas de um acidente de viação a certos tipos de danos, provocando assim disparidades de tratamento entre as vítimas consoante o local em que o acidente ocorresse, situação que as directivas têm precisamente como objectivo evitar (15).

43.   Esta interpretação do artigo 2.° da Segunda Directiva é corroborada pelo artigo 1.° da Terceira Directiva, que alarga o círculo das vítimas aos passageiros para proteger essa categoria particularmente vulnerável de vítimas potenciais. Com esta medida, o legislador comunitário pretendeu aumentar deliberadamente o âmbito pessoal da protecção oferecida pelas directivas. Tendo em conta a finalidade da directiva, a saber a protecção da vítima, entendo que uma disposição nacional que, de antemão, exclui automaticamente qualquer cobertura, viola as três directivas.

44.   O § 7, n.° 3 da lei do seguro dos veículos automóveis exclui integralmente do direito à indemnização determinadas categorias de segurados, no que se refere a determinados elementos do seu comportamento. Esta disposição estabelece uma presunção de co‑responsabilidade por parte do passageiro que toma lugar num veículo cujo condutor se encontra embriagado. No n.° 42 cheguei à conclusão de que o artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva prevê uma enumeração exaustiva dos casos em que uma seguradora pode opor aos passageiros uma disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro. Por conseguinte, não é permitido aos Estados‑Membros incluir na respectiva legislação nacional exclusões do direito dos passageiros à indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, para além das previstas nas directivas.

45.   Refira‑se ainda, a este propósito, que uma seguradora não pode, por conseguinte, invocar disposições legais nacionais ou cláusulas contratuais para se recusar a indemnizar os passageiros vítimas de um acidente causado pelo veículo segurado. Caso contrário, os direitos que a Terceira Directiva confere ao passageiro seriam ilusórios.

46.   A minha resposta à pergunta formulada no n.° 35 é, por conseguinte, a de que o direito comunitário se opõe a que sejam invocadas, contra os passageiros, outras exclusões de cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, para além das previstas no artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva.

C –    O direito nacional pode excluir, total ou parcialmente, do direito a indemnização um passageiro que sofreu danos e que sabia ou tinha a obrigação de saber que o condutor do veículo conduzia sob a influência do álcool no momento do acidente?

47.   As directivas não contêm disposições especiais relativamente à escolha de um determinado tipo de responsabilidade. Conforme resulta do acórdão Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira, o alcance da responsabilidade do passageiro é, em princípio, determinado pelo direito nacional (16). Neste acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que «[n]o estado actual do direito comunitário, os Estados‑Membros continuam livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos, mas são obrigados a garantir que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme às disposições das [...] directivas [...]».

48.   A amplitude da obrigação de indemnização nos casos concretos é deixada, pelo menos em parte, à livre apreciação dos Estados‑Membros. O alcance da eventual co‑responsabilidade da vítima e as consequências daí resultantes para os seus direitos à indemnização são, em princípio, determinados pelo direito nacional. Se, de acordo com o direito nacional, for determinada a responsabilidade do condutor e o direito a indemnização das vítimas, a seguradora é obrigada a pagar, observando o disposto nas directivas. Estas directivas opõem‑se a que uma seguradora possa limitar ou excluir a indemnização, mesmo que invoque a legislação nacional. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional, em cada caso individual e tendo em conta as circunstâncias, determinar e eventualmente limitar a indemnização com base nos princípios gerais da responsabilidade civil.

49.   No entanto, a aplicação do direito nacional da responsabilidade não pode resultar no esvaziamento das disposições materiais da directiva.

50.   Em regra, só raramente é imputável a um passageiro, que é um utilizador passivo dos meios de transporte, a culpa por um acidente. Contudo, um passageiro que entra num veículo sabendo que corre um risco nitidamente mais elevado do que é habitual de sofrer um dano durante o trajecto, aceita um risco acrescido de sofrer um acidente. Pode entender‑se que esta conduta constitui uma forma de culpa. A esta forma de culpa não pode ser associada a consequência jurídica automática da negação, por definição, de qualquer direito a indemnização.

51.   Apenas em situações excepcionais se poderá limitar a extensão da indemnização da vítima, com base numa apreciação individual da sua conduta (17). A questão de saber se tal se verifica no caso em apreço depende das circunstâncias, especialmente de saber se os comportamentos da vítima no caso concreto criaram uma situação de perigo grave ou se, enquanto passageiro, tinha consciência desse perigo. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional apreciar esta questão.

52.   Por conseguinte, a minha resposta à segunda questão é que o direito comunitário não se opõe a que o direito nacional limite parcialmente o direito de indemnização de um passageiro, ao qual é imputável um grau de culpa no acidente, que sofreu danos e que sabia ou tinha a obrigação de saber que o condutor do veículo conduzia sob a influência do álcool no momento do acidente. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional apreciar esta questão, com base numa avaliação individual e tendo em conta as circunstâncias.

D –    O comportamento do proprietário do veículo pode ser apreciado de forma mais rigorosa do que o dos outros passageiros, por ter permitido que uma pessoa em estado de embriaguez conduzisse o veículo?

53.   Como a Comissão afirmou correctamente, a directiva, relativamente ao direito de indemnização, apenas distingue entre o condutor e os passageiros. O artigo 1.° da Terceira Directiva determina que o seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo. O sétimo considerando da Segunda Directiva refere que é do interesse das vítimas que os efeitos de certas cláusulas de exclusão sejam limitados às relações entre a seguradora e o responsável pelo acidente.

54.   Daí resulta que, no caso de um condutor, que não é o possuidor ou o titular do registo do veículo, causar um acidente, e de o passageiro ser quem celebrou o seguro do veículo, a relação jurídica entre o tomador do seguro e a seguradora é transferida para o causador dos danos. Nesta situação, o primitivo tomador do seguro tem apenas uma relação com a seguradora enquanto vítima. Conforme se referiu no n.° 39, a protecção da vítima ocupa um lugar importante nas três directivas.

55.   Por conseguinte, o comportamento do proprietário do veículo não pode ser apreciado de forma mais rigorosa do que o dos outros passageiros, por ter permitido que uma pessoa que estava sob a influência do álcool conduzisse o veículo.

VII – Conclusão

56.   Pelo exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Korkein oikeus da seguinte forma:

1)      O direito comunitário opõe‑se a que sejam invocadas, em detrimento dos passageiros, outras exclusões de cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, além das previstas no artigo 2.°, n.° 1, segundo parágrafo, da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis.

2)      A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, não se opõem a que o direito nacional limite parcialmente o direito de indemnização de um passageiro – ao qual seja imputável um grau de culpa no acidente – que sofreu danos e que sabia ou tinha a obrigação de saber que o condutor do veículo conduzia sob a influência do álcool no momento do acidente. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional apreciar esta questão, com base numa avaliação individual e tendo em conta as circunstâncias.

3)       A Directiva 72/166, a Segunda Directiva 84/5 e a Terceira Directiva 90/232 opõem‑se a que o comportamento do proprietário do veículo seja apreciado de forma mais rigorosa do que o dos outros passageiros, por ter permitido que uma pessoa que estava sob a influência do álcool conduzisse o veículo.


1 – Língua original: neerlandês.


2  – Primeira Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113).


3  – Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244).


4  – Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (JO L 129, p. 33).


5  – Acórdão de 14 de Setembro de 2000 (C‑348/98, Colect., p. I‑6711, n.os 23, 28 e 29).


6  – V. acórdão de 28 de Março de 1996, Ruiz Bernáldez (C‑129/94, Colect., p. I‑1829, segundo parágrafo, sétima frase, da parte decisória do acórdão, em conjugação com o artigo 1.° da Terceira Directiva).


7  – Já referido na nota 6, n.os 18‑21.


8  – Artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Directiva.


9  – Artigo 3.°, n.° 2, da Primeira Directiva.


10  – Artigo 2.°, da Terceira Directiva.


11  – Quinto considerando da Segunda Directiva.


12  – V. acórdão Ruiz Bernáldez, n.° 13, já referido na nota 6.


13  – V. conclusões do advogado‑geral C. O. Lenz no acórdão Ruiz Bernáldez (já referido na nota 6, n.° 23).


14  – V., também, acórdão do Tribunal de Justiça da AECL, de 17 de Novembro de 1999, Storebrand and Finanger, Report of EFTA Court 1999, p. 119, n.° 25.


15  – V., neste sentido, acórdão Ruiz Bernáldez, referido na nota 6, n.° 19 e o acórdão do Tribunal de Justiça da EFTA referido na nota 14, n.° 24.


16  – Já referido na nota 5, n.° 29.


17  – V. acórdão do Tribunal de Justiça AELE, já referido na nota 14, n.° 26.

Top