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Document 62003CC0264

    Conclusões do advogado-geral Poiares Maduro apresentadas em 24 de Novembro de 2004.
    Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa.
    Incumprimento de Estado - Contratos públicos - Directiva 92/50/CEE - Procedimento de adjudicação de contratos públicos de serviços - Livre prestação de serviços - Mandato por delegação do dono da obra - Pessoas a quem pode ser confiada a missão de representação do dono da obra por delegação - Lista taxativa de pessoas colectivas de direito francês.
    Processo C-264/03.

    Colectânea de Jurisprudência 2005 I-08831

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2004:747

    Conclusions

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
    M. POIARES MADURO
    apresentadas em 24 de Novembro de 2004(1)



    Processo C-264/03



    Comissão das Comunidades Europeias
    contra
    República Francesa



    «Acção por incumprimento – Contratos públicos – Procedimento de adjudicação de contratos públicos de serviços – Directiva 92/50/CEE – Propriedade de obra pública – Lista taxativa de pessoas colectivas de direito francês»






    1.        Através da presente acção por incumprimento, a Comissão pede que seja declarado que, ao reservar, no artigo 4.° da Lei n.° 85‑704, de 12 de Julho de 1985, relativa à propriedade de obra pública e às suas relações com a direcção privada da obra, conforme alterada pela Lei n.° 91‑662, de 13 de Julho de 1991, e pela Lei n.° 96‑987, de 14 de Novembro de 1996  (2) , a uma lista restrita de pessoas colectivas de direito francês a missão de representação do dono da obra por delegação, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços  (3) , mais particularmente dos seus artigos 8.° e 9.°, bem como do artigo 49.° CE.

    2.        Esta acção permite definir o âmbito de aplicação material da Directiva 92/50 e, designadamente, o conceito de contrato. Além disso, faz referência ao respeito da referida directiva e ao mesmo tempo ao princípio da livre prestação de serviços inscrito no artigo 49.° CE, o que impõe que seja definida a articulação entre estes dois textos.

    I – Contexto factual e regulamentar

    3.        Esclareça‑se previamente que o artigo 4.° da Lei n.° 85‑704, objecto da presente acção, está em fase de modificação. O Decreto n.° 2004‑566, de 17 de Junho de 2004, altera este artigo, permitindo que o mandato passe a ser confiado tanto a uma entidade pública como a uma entidade privada  (4) . O decreto cria uma incompatibilidade entre a função de mandatário e «qualquer missão de direcção de obra, de realização de obras ou de controlo técnico respeitante à obra ou às obras a que o mandato se refira», a fim de evitar situações de conflitos de interesses  (5) . A incompatibilidade é alargada às empresas ligadas ao mandatário. Foi apresentado à Assembleia Nacional, em 15 de Setembro de 2004, um projecto de lei destinado a ratificar o referido decreto. No entanto, segundo jurisprudência constante, o incumprimento deve ser apreciado por referência à data em que expira o prazo de dois meses contado a partir do parecer fundamentado, isto é, 27 de Junho de 2002. Por esta razão, faremos referência, ao longo destas conclusões, à lei francesa, na versão em vigor nesse momento.

    4.        Antes de explicar as posições da República Francesa e da Comissão sobre estes dois aspectos, exponho brevemente as disposições nacionais e comunitárias pertinentes.

    5.        A Directiva 90/50 coordena a adjudicação de contratos públicos de serviços. Tem por objectivo «suprimir os entraves à livre circulação de serviços e, deste modo, proteger os interesses dos operadores económicos estabelecidos num Estado‑Membro que desejam propor bens ou serviços às entidades adjudicantes estabelecidas num outro Estado‑Membro»  (6) . Para alcançar este objectivo, a directiva esforça‑se por «garantir que empresas de outros Estados‑Membros tenham a possibilidade de concorrer a empreitadas ou conjuntos de empreitadas susceptíveis de apresentar um interesse por razões objectivas relacionadas com o seu valor»  (7) . A Directiva 92/50 sujeita a um regime diferente duas categorias de serviços classificados nos seus anexos I A e I B. Em conformidade com o artigo 9.° da directiva, as regras aplicáveis aos serviços inscritos no anexo I B referem‑se unicamente a uma exigência de definição das especificações técnicas e à transmissão de um parecer sobre o resultado do procedimento de adjudicação. Em contrapartida, os serviços inscritos no anexo I A da directiva estão sujeitos, em conformidade com o seu artigo 8.°, a obrigações mais completas: devem, por exemplo, ser objecto de publicidade prévia de acordo com condições precisas e dentro dos prazos fixados.

    6.        O princípio da livre prestação de serviços inscrito no artigo 49.° CE aplica‑se a todas as prestações de serviços, desde que estas não estejam abrangidas pelas excepções previstas nos artigos 45.° CE e 46.° CE. Uma vez que a Directiva 92/50 só é aplicável às prestações de serviços que tenham por base um contrato público  (8) , os serviços prestados noutras bases estão sujeitos unicamente ao princípio da livre prestação de serviços. Os contratos que não ultrapassem os limiares financeiros indicados no artigo 13.° da Directiva 92/50 estão igualmente sujeitos ao artigo 49.° CE.

    7.        A lei que constitui objecto da presente acção organiza e regulamenta a propriedade de obra pública. É aplicável à realização de todas as obras relativas a edifícios ou a infra‑estruturas bem como aos equipamentos industriais para exploração das mesmas, cujos donos da obra sejam o Estado, os organismos públicos ou os organismos privados indicados  (9) . Nesse âmbito, o dono da obra pode celebrar um contrato de mandato em conformidade com as disposições da referida lei.

    8.        As características desse contrato estão indicadas no artigo 5.° da Lei n.° 85‑704: «As relações entre o dono da obra e o [mandatário] são definidas por convenção que prevê, sob pena de nulidade: a obra que constitui o objecto da convenção, as atribuições confiadas ao mandatário, as condições em que o dono da obra dá por concluída a missão do mandatário, as modalidades de remuneração deste último, as sanções que lhe são aplicáveis em caso de incumprimento das suas obrigações e as condições de rescisão da convenção […]».

    9.        A referida lei enumera, no artigo 3.°, as atribuições que o dono da obra pode confiar ao mandatário:

    «–
    definição das condições administrativas e técnicas a que obedecerão o estudo e a execução da obra;

    preparação da selecção da entidade a incumbir da direcção da obra, assinatura do contrato de direcção da obra após aprovação, pelo dono da obra, da selecção da entidade que dirigirá a obra, e gestão do contrato de direcção da obra;

    aprovação dos anteprojectos e dos acordos relativos ao projecto;

    preparação da selecção do empreiteiro, assinatura do contrato de empreitada após aprovação da selecção do empreiteiro pelo dono da obra, e gestão do contrato de empreitada;

    pagamento da remuneração da missão de direcção da obra e de execução da obra;

    recepção da obra;

    e cumprimento de todos os actos relativos às atribuições supramencionadas».

    10.      Segundo o artigo 2.° da referida lei, determinadas missões não podem ser delegadas pelo dono da obra. Trata‑se da concepção geral da obra e da condução da sua realização.

    11.      Como resulta das disposições referidas da lei que constitui o objecto da acção, as atribuições que podem ser confiadas pelo dono da obra ao mandatário são extremamente vastas. Mas o que faz a especificidade do contrato de mandato é a identidade do mandatário, que o dono da obra apenas pode escolher de entre as categorias taxativamente designadas no artigo 4.° da lei em causa:

    «–
    as pessoas colectivas indicadas nos n. os  1 e 2 do artigo 1.° da presente lei [isto é, o Estado e respectivos estabelecimentos públicos, as colectividades territoriais e respectivos estabelecimentos públicos, os estabelecimentos públicos de ordenamento urbano e respectivos agrupamentos e os sindicatos mistos], com excepção dos estabelecimentos públicos sanitários e sociais, os quais só poderão ser mandatários de outros estabelecimentos públicos sanitários e sociais;

    as pessoas colectivas cujo capital é detido, pelo menos em metade, directamente ou por interposta pessoa, pelas pessoas colectivas indicadas nos n. os  1 e 2 do artigo 1.° e cuja missão é prestar assistência ao dono da obra, na condição de não exercerem uma actividade de direcção de obras ou de empreiteiro por conta de terceiros;

    os organismos privados de habitação de renda económica indicados no artigo L. 411‑2 do Código da Construção e da Habitação, mas unicamente para outros organismos de habitação de renda económica, bem como relativamente a obras ligadas a operações subsidiadas de alojamento;

    as sociedades locais de economia mista reguladas pela Lei n.° 83‑597, de 7 de Julho de 1983, relativa às sociedades de economia mista local;

    os estabelecimentos públicos constituídos em aplicação do artigo L. 321‑1 do Código do Urbanismo, bem como as associações imobiliárias urbanas autorizadas ou constituídas oficiosamente em aplicação dos artigos L. 322‑1 do Código do Urbanismo;

    as sociedades constituídas em aplicação do artigo 9.° da Lei n.° 51‑592, de 24 de Maio de 1951, relativa às contas especiais do Tesouro do ano de 1951, modificado pelo artigo 28.° da Lei n.° 62‑933, de 8 de Agosto de 1962, que complementa a lei relativa à orientação agrícola;

    qualquer entidade pública ou privada à qual esteja confiada a realização de uma zona de ordenamento concertado ou de um loteamento nos termos do título primeiro do livro III do Código do Urbanismo, no que respeita às obras incluídas nessas operações;

    as sociedades que celebrem o contrato previsto no artigo L. 122‑1 do Código da Construção e da Habitação para a realização de operações de reestruturação urbana de grandes aglomerados e bairros de habitação degradada indicados em I do artigo 1466.° A do Código Geral dos Impostos.»

    12.      Os contratos de mandato celebrados em aplicação da Lei n.° 85‑704 não estão sujeitos ao Código dos Contratos Públicos francês  (10) . Não é imposta ao dono da obra, para a escolha do seu mandatário, uma abertura prévia à concorrência. Em contrapartida, o mandatário está, ele próprio, sujeito, relativamente aos contratos que celebra em nome do dono da obra, ao Código dos Contratos Públicos francês  (11) . A questão que se coloca consiste em saber se os contratos de mandato celebrados em aplicação da Lei n.° 85‑704 devem estar sujeitos aos princípios da abertura à concorrência e da publicidade prévia decorrentes da Directiva 92/50 e das disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços.

    13.      Depois de ter enviado à República Francesa, em 31 de Maio de 2000, uma carta pedindo informações, a Comissão, não satisfeita com as respostas que obteve, enviou‑lhe, em 25 de Julho de 2001, uma notificação para cumprir. Uma vez que as respostas fornecidas pelas autoridades francesas não convenceram a Comissão, esta última emitiu um parecer fundamentado em 27 de Junho de 2002. Embora a República Francesa tenha anunciado a supressão iminente das disposições controvertidas, a Comissão decidiu recorrer ao Tribunal de Justiça.

    14.      Observemos que as acusações da Comissão se articulam à volta de dois aspectos. Por um lado, o contrato de mandato, conforme descrito pela lei francesa, está abrangido, segundo a Comissão, pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50 e o seu regime não é compatível com os artigos 8.° e 9.° desta última. Por outro lado, nos casos em que a Directiva 92/50 não é aplicável, o artigo 4.° da lei em causa, na medida em que reserva os contratos de mandato a determinadas pessoas colectivas, não é conforme com as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços.

    15.      Na medida em que a Directiva 92/50 seja aplicável, o seu cumprimento será objecto de estudo. Num segundo momento, terá de se determinar se a Lei n.° 85‑704 é conforme com o artigo 49.° CE nos casos em que a directiva não seja aplicável.

    II – Incompatibilidade da Lei n.° 85‑704 com a Directiva 92/50

    16.      A fim de determinar se o artigo 4.° da Lei n.° 85‑704 é incompatível, como a Comissão sustenta na sua acção, com as disposições da Directiva 92/50, devemos, num primeiro momento, examinar se as situações visadas por esta lei se integram no âmbito de aplicação da directiva.

    A – Inclusão do contrato de mandato, conforme definido pela Lei n.° 85‑704, no âmbito de aplicação da Directiva 92/50

    17.      As partes não estão de acordo, no essencial, sobre a questão de saber se os contratos de mandato, conforme definidos pela Lei n.° 85‑704, são abrangidos pelo âmbito de aplicação material da Directiva 92/50. Ora, o âmbito de aplicação da referida directiva está definido no seu artigo 1.° Assim, para determinar a existência de um eventual incumprimento, há que examinar em primeiro lugar se o contrato de mandato, conforme definido na Lei n.° 85‑704, preenche os critérios enunciados no artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50.

    18.      Segundo a definição dada por este artigo, «[o]s contratos públicos de serviços são contratos onerosos celebrados por escrito entre um prestador de serviços e uma entidade adjudicante». Estes critérios parecem estar preenchidos no caso vertente.

    19.      Em primeiro lugar, são consideradas entidades adjudicantes na acepção do artigo 1.°, alínea b), da directiva, «o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público, as associações formadas por uma ou mais autarquias ou organismos de direito público». Os organismos de direito público são definidos no mesmo artigo, de modo funcional, como «qualquer organismo criado com o objectivo específico de satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial» e controlado pelo Estado, quer esse controlo resulte da detenção maioritária de capital quer resulte da possibilidade de designar os órgãos de gestão do organismo em questão. Nos termos do artigo 1.° da Lei n.° 85‑704, as pessoas que podem exercer as funções de dono da obra são o Estado e respectivos organismos públicos, as colectividades territoriais e respectivos organismos públicos, os estabelecimentos públicos de ordenamento urbano e respectivos agrupamentos, bem como os sindicatos mistos. Podem igualmente celebrar contratos de mandato em aplicação da Lei n.° 85‑704 os organismos privados indicados no artigo L. 64 do Código da Segurança Social e respectivas uniões e federações, bem como os organismos privados de habitação de renda económica e as sociedades de economia mista, relativamente aos alojamentos para arrendamento subsidiados pelo Estado e construídos por estes organismos e sociedades. Não há dúvida de que todos estes organismos são entidades adjudicantes na acepção da Directiva 92/50.

    20.      Em segundo lugar, resulta do artigo 5.° da Lei n.° 85‑704 que o contrato de mandato deve ser celebrado por escrito. A segunda condição formulada no artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50 está, portanto, preenchida.

    21.      Em terceiro lugar, o artigo 5.° da referida lei prevê a remuneração do mandatário, sob pena de nulidade do contrato de mandato. O contrato de mandato de representação do dono da obra é, portanto, um contrato oneroso.

    22.      Em quarto lugar, as atribuições conferidas ao mandatário, conforme descritas no artigo 4.° da referida lei, parecem corresponder à execução de prestações de serviços.

    23.      Em aplicação destes critérios, resulta, em primeira análise, que o contrato de mandato na acepção da lei francesa é um contrato público de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50.

    24.      No entanto, a República Francesa apresenta dois argumentos contra essa qualificação. Alega, em primeiro lugar, que, tendo em conta as suas múltiplas especificidades, o contrato de mandato, conforme definido na Lei n.° 85‑704, não pode ser analisado como um contrato público de serviços. Além disso, considera que o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no acórdão Ordine degli Architetti e o.  (12) , aplicável por analogia, levaria igualmente à exclusão do contrato de mandato regulado na Lei n.° 85‑704 do âmbito de aplicação da Directiva 92/50.

    1. O contrato de mandato de representação do dono da obra opera uma transferência de autoridade pública?

    25.      Do ponto de vista do Estado demandado, o contrato de mandato de representação do dono da obra distingue‑se de um contrato de prestação de serviços sob vários aspectos. A essência do contrato de mandato reside no poder que ele confere ao mandatário para representar o dono da obra. Um elo indissolúvel liga esta função de representação às restantes atribuições conferidas ao mandatário. Assim, o mandatário fica investido de uma missão de interesse geral e detém mesmo um poder de co‑decisão juntamente com o dono da obra. As relações que se estabelecem entre o dono da obra e o mandatário são completamente diferentes daquelas que resultam de um contrato de natureza comercial. Estas especificidades, globalmente consideradas, impedem que um contrato de mandato seja equiparado a um contrato de prestação de serviços.

    26.      A Comissão contesta cada um dos argumentos invocados. Considera que o facto de uma prestação de serviços ser efectuada em execução de um contrato de mandato não basta para a excluir do âmbito de aplicação da Directiva 92/50. Assim, os contratos de mandato celebrados entre um advogado e o seu cliente são abrangidos, por exemplo, pelo âmbito de aplicação da referida directiva, nos termos do ponto 21 do seu anexo I B. Esta análise é, além disso, conforme com a defendida pelo Conseil d’État no seu acórdão de 5 de Março de 2003  (13) , no qual considerou que uma exclusão geral e sistemática dos contratos de mandato do Código dos Contratos Públicos francês não era compatível com a Directiva 92/50. Por último, a existência de considerações de interesse geral também não exclui a qualificação de contrato de prestação de serviços na acepção da directiva, uma vez que esses elementos estão frequentemente presentes nos contratos a que a directiva é aplicável  (14) . Assim, nenhuma das especificidades invocadas pela República Francesa se afigura susceptível de o excluir do âmbito de aplicação da Directiva 92/50.

    27.      A primeira questão a resolver prende‑se com a natureza do contrato celebrado entre o dono da obra e o seu mandatário. Ainda que, em princípio, seja indiferente saber como é que o direito nacional qualifica o contrato celebrado entre uma entidade adjudicante e um prestador de serviços, para efeitos da qualificação em direito comunitário, observe‑se, no entanto, que a directiva apenas se aplica aos «contratos» de serviços, excluindo, entre outros, as concessões de serviços públicos.

    28.      Sem afirmar que a relação contratual em causa é equiparável a uma concessão  (15) , a República Francesa defende que, no entanto, há transferência do exercício da autoridade pública, do dono da obra para o mandatário. Tenta, desta forma, estabelecer um paralelismo entre a jurisprudência proferida em matéria de concessões e a orientação que o Tribunal de Justiça poderia adoptar relativamente ao contrato de mandato de representação do dono da obra. Com efeito, resulta da análise da jurisprudência que é precisamente a existência dessa transferência de autoridade pública para o concessionário que justifica a sua exclusão do âmbito de aplicação da Directiva 92/50. Depois de ter apresentado a jurisprudência comunitária relativa às concessões, vejamos se a mesma é eventualmente transponível para o contrato de mandato em causa no presente processo.

    29.      Ao passo que as concessões de obras públicas estão expressamente sujeitas à Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas  (16) , o destino das concessões de serviços não é regulado pela Directiva 92/50. Determinou‑se que estão excluídas do seu âmbito de aplicação  (17) . A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços  (18) , que substitui, designadamente, a Directiva 92/50, mantém esta exclusão das concessões de serviços do seu âmbito de aplicação.

    30.      O critério da concessão, ainda que não seja estabelecido por disposições de valor legislativo, pode ser determinado por comparação com a definição inscrita na Directiva 93/37  (19) . Na sua comunicação interpretativa sobre as concessões em direito comunitário  (20) , a Comissão tenta igualmente elaborar uma definição deste conceito e acolhe a existência do risco de exploração como critério decisivo. Note‑se que a Directiva 2004/18 elimina, a este respeito, quaisquer incertezas, porque define as concessões de serviços no seu artigo 1.°, n.° 4, como «um contrato com as mesmas características que um contrato público de serviços, com excepção de que a contrapartida dos serviços a prestar consiste quer unicamente no direito de exploração do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento».

    31.      O Tribunal de Justiça declarou, no acórdão BFI Holding, que um contrato qualificado em direito nacional como contrato de concessão, que tinha por objecto a recolha de resíduos, podia ser abrangido pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50  (21) . Com efeito, o Tribunal de Justiça, prescindindo da qualificação nacional, referiu‑se unicamente às condições previstas no artigo 1.° da Directiva 92/50.

    32.      Nas suas conclusões no processo Telaustria e Telefonadress, o advogado‑geral N. Fennelly tinha proposto que se tivesse em conta, em primeiro lugar, o facto «de ser o próprio concessionário a ter que suportar o risco económico principal»  (22) . O facto de o contrato de concessão ser celebrado em benefício de terceiros utentes é um critério subsidiário e a exigência do carácter de interesse público do serviço concedido deve, em seu entender, ser afastada. Neste processo, o Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre a delimitação precisa do conceito, considerando embora que existia concessão se «a contrapartida fornecida pela primeira empresa à segunda consistir na obtenção por esta última do direito de explorar, com vista à sua retribuição, a sua própria prestação»  (23) .

    33.      Quando estudou a concessão do Loto em Itália  (24) , o Tribunal de Justiça entendeu que, não havendo transferência de autoridade para o concessionário, a concessão deveria ser considerada um contrato abrangido pela Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público  (25) .

    34.      O critério relativo à remuneração do concessionário não pode ser transposto para um raciocínio que diga respeito ao contrato de mandato. Com efeito, não pode existir direito de exploração no âmbito de um mandato de representação do dono da obra. Ao invés, verifiquemos se o contrato de mandato opera uma transferência de autoridade pública do dono da obra para o mandatário. Isso seria um indício de que esse contrato não constitui efectivamente um contrato na acepção da Directiva 92/50. Pelo contrário, se não houver essa transferência, o argumento apresentado pela República Francesa deve ser rejeitado.

    35.      A dificuldade do caso presente reside na natureza específica do contrato de mandato, nos termos do qual o mandatário representa o mandante. No entanto, e é por isso que o argumento do Estado demandado, baseado nessa particularidade, não pode proceder, o contrato de mandato de representação do dono da obra, conforme é definido na Lei n.° 85‑704, não é apenas um contrato através do qual o mandatário se compromete a representar o dono da obra. Como resulta da lista das várias atribuições que podem ser confiadas ao mandatário, em conformidade com o artigo 3.° da referida lei, este último exerce paralelamente funções de assistente do dono da obra  (26) .

    36.      A República Francesa defende que as duas funções exercidas pelo mandatário são indissociáveis. No entanto, o facto de o artigo 3.° da Lei n.° 85‑704 se limitar a fornecer uma lista indicativa das funções que podem ser confiadas ao mandatário milita contra a interpretação preconizada pelo Estado demandado. Segundo esta disposição da lei em causa, o dono da obra pode perfeitamente recorrer a um prestador de serviços para a execução de determinadas prestações e apenas confiar ao mandatário funções de representação. Ao invés, é‑lhe permitido confiar a integralidade das tarefas enumeradas no artigo 3.° da referida lei à mesma e única pessoa. A sua margem de manobra é enquadrada unicamente pelo artigo 2.° da mesma lei, que o proíbe de se demitir da sua função de «responsável principal pela obra». A escolha deixada ao dono da obra das missões que quer confiar ou não ao mandatário demonstra que é perfeitamente concebível dissociar as diversas missões que lhe podem incumbir: por um lado, as que correspondem a prestações de serviços e, por outro, as que incluem uma função de representação do dono da obra.

    37.      Dado que é possível distinguir dois tipos de atribuições confiadas ao mandatário, nada impede que estas duas categorias de tarefas estejam eventualmente sujeitas a um regime diferente. Quanto às prestações de serviços executadas no cumprimento de um contrato de mandato de representação do dono da obra, elas correspondem à noção de contrato público de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50. Consequentemente, pelo menos na medida em que inclua prestações de serviços, um contrato de mandato de representação do dono da obra concluído em aplicação da Lei n.° 85‑704 estará sujeito às normas desta directiva.

    38.      Analisemos agora a segunda categoria de tarefas confiadas ao mandatário a fim de determinar se podem escapar ao campo de aplicação da directiva, na medida em que correspondam a uma transferência da autoridade pública. O mandatário representa o dono da obra em dois casos: no momento da assinatura do contrato de direcção da obra e no momento da assinatura do contrato de empreitada, por um lado, e quando paga aos prestadores de serviços e aos empreiteiros as respectivas remunerações, por outro.

    39.      Embora o mandatário esteja autorizado a assinar os contratos de direcção da obra e de empreitada em nome do dono da obra, só pode fazê‑lo depois de ter obtido o acordo deste  (27) . Nesta hipótese, não pode haver uma verdadeira transferência de autoridade pública, uma vez que o mandatário não pode tomar essas decisões de maneira autónoma.

    40.      Quanto ao pagamento da remuneração aos prestadores de serviços e aos empreiteiros, o financiamento é garantido pelo dono da obra, pelo que, neste domínio, o mandatário também não possui qualquer margem de manobra. Limita‑se a adiantar fundos que lhe são reembolsados pelo dono da obra.

    41.      Por conseguinte, ainda que o mandatário possa praticar determinados actos jurídicos em nome do dono da obra, não é por isso que tem autonomia suficiente no cumprimento dos seus actos a ponto de poder afirmar‑se que é beneficiário de uma transferência de autoridade pública  (28) . Por esta razão, o argumento apresentado pela República Francesa relativo à especificidade do mandato de representação do dono da obra deve ser recusado e este contrato deve ficar sujeito, na íntegra, à Directiva 92/50.

    2. A eventual relevância da jurisprudência Ordine degli Architetti e o. 

    42.      Segundo a República Francesa, o raciocínio do acórdão Ordine degli Architetti e o., já referido, é aplicável por analogia e leva a excluir todos os contratos de mandato do âmbito de aplicação das directivas relativas aos contratos públicos. Naquele processo, o Tribunal de Justiça tinha sido interrogado por um órgão jurisdicional italiano sobre a compatibilidade, com o direito comunitário, de uma legislação nacional que previa que o requerente de uma licença para construir pudesse ser total ou parcialmente isento do pagamento de uma contribuição devida pela concessão da referida licença como contraprestação pela realização directa de uma obra de equipamento (como as vias residenciais, as áreas de estacionamento ou as redes de distribuição de gás).

    43.      Depois de ter considerado que a realização dessas obras estava abrangida pelos limites da Directiva 93/37, o Tribunal de Justiça concluiu que uma norma nacional como a que estava em causa era incompatível com a referida directiva, uma vez que o valor da obra em questão excedia o limiar fixado na directiva  (29) . Por outras palavras, o Tribunal de Justiça considerou que o contrato celebrado entre a comuna e o proprietário de um terreno requerente de uma licença para construção era abrangido pelo âmbito de aplicação da referida directiva. Antes de chegar a essa conclusão, o Tribunal de Justiça emitiu uma reserva no n.° 100 do acórdão: «Tal não significa que, para que a directiva seja respeitada em caso de realização de uma obra de equipamento, a administração comunal deva, necessariamente, aplicar ela própria os processos de contratação previstos nesta mesma directiva. O seu efeito útil será também conseguido se a legislação nacional permitir à administração comunal obrigar o titular do loteamento detentor da licença, através dos acordos que com ele celebrar, a realizar as obras acordadas através do recurso aos processos previstos na directiva, e isto para cumprir as obrigações que incumbem à administração comunal, a este respeito, por força da referida directiva. Com efeito, neste caso, o titular do loteamento deve ser visto, por força dos acordos celebrados com a comuna que o exoneram da contribuição para as despesas de equipamento como contrapartida da realização de uma obra pública de equipamento, como detentor de um mandato expresso da comuna para a execução desta obra. Uma tal possibilidade de aplicação das regras de publicidade da directiva por outras pessoas que não a entidade adjudicante está, aliás, expressamente prevista no seu artigo 3.°, n.° 4, em caso de concessão de obras públicas».

    44.      A Comissão e a República Francesa dão a esta passagem interpretações divergentes.

    45.      A República Francesa quer inferir deste número uma teoria geral do mandato  (30) . Segundo a leitura que esta propõe deste número, bastaria, para que o prescrito na Directiva 93/37 ou na Directiva 92/50 fosse respeitado, que o mandatário estivesse, ele próprio, vinculado pelas referidas directivas. Segundo a República Francesa, a Lei n.° 85‑704 é, por conseguinte, conforme ao direito comunitário, uma vez que sujeita os contratos celebrados pelo mandatário às mesmas obrigações a que estariam sujeitos se fossem celebrados pelo dono da obra  (31) .

    46.      A Comissão tenta identificar as diferenças entre o processo principal e aquele que esteve na origem do acórdão Ordine degli Architetti e o. Começa por observar que estão em causa directivas distintas. Seguidamente, sublinha que, numa hipótese como a do acórdão Ordine degli Architetti e o., a comuna não pode escolher o seu mandatário, que é necessariamente o contribuinte titular da licença de construção. Finalmente, o contrato celebrado entre uma comuna e o proprietário de um terreno requerente de uma licença de construção limita‑se a prever a dedução de um encargo devido como contraprestação pela construção de obras de equipamento, excluindo quaisquer outras prestações de serviços efectuadas em benefício da comuna.

    47.     À luz destes elementos, parece‑me que o acórdão Ordine degli Architetti e o. não pode ser interpretado conforme a República Francesa sugere. Com efeito, como a Comissão explica, uma vez que os contratos de empreitadas de obras celebrados pelo proprietário estão sujeitos ao prescrito na Directiva 93/37, o efeito útil desta directiva é preservado  (32) . Por outras palavras, é indiferente, para o respeito dos objectivos da Directiva 93/37, que o dono da obra sujeito a uma obrigação de abertura à concorrência seja a comuna ou o proprietário requerente da licença de construção.

    48.      Ora, se se admitisse, por analogia, que o contrato de prestação de serviços celebrado entre o dono da obra e o mandatário podia ser excluído dos limites da Directiva 92/50, ir‑se‑ia contra o efeito útil desta directiva. Com efeito, diversamente da hipótese estudada pelo Tribunal de Justiça no processo Ordine degli Architetti e o., é necessário distinguir, por um lado, as missões de representação, como a assinatura dos contratos celebrados em nome do dono da obra, e, por outro, as prestações efectuadas a título oneroso pelo mandatário para o dono da obra. A eventual aplicação do acórdão Ordine degli Architetti e o. só pode referir‑se às primeiras. Se houvesse transferência de autoridade do dono da obra para o mandatário, poder‑se‑ia considerar que a aplicação da Directiva 92/50 apenas ao mandatário bastaria para assegurar o efeito útil deste texto. Em contrapartida, no que respeita às prestações de serviços executadas em benefício do dono da obra, o simples facto de serem realizadas no âmbito de um contrato de mandato não pode impedir a sua sujeição à referida directiva.

    49.      No que respeita às actividades de representação do mandatário, não havendo transferência de autoridade pública, estas actividades só podem ser equiparadas a prestações de serviços. Além disso, na medida em que nada impede que o dono da obra confie a um prestador de serviços, no âmbito de um contrato de empreitada e não nos termos de um mandato, prestações de assistência idênticas às que poderiam ser efectuadas por um mandatário, não podem subsistir dúvidas quanto à aplicabilidade da Directiva 92/50 ao contrato de mandato de representação do dono da obra. Ora, é pacífico que a qualificação de um contrato em direito nacional não pode ter por efeito contornar a aplicabilidade do direito comunitário. Daí resulta que a Directiva 92/50 é aplicável às prestações de serviços efectuadas pelo mandatário para o dono da obra, sem que a qualificação da relação contratual em direito nacional possa ter qualquer relevância.

    50.      De qualquer forma, e como veremos mais precisamente na terceira parte, mesmo que o contrato de mandato, conforme definido pela lei francesa, não entrasse no âmbito de aplicação da directiva, estaria sujeito às disposições relativas à livre prestação de serviços.

    B – Incompatibilidade do artigo 4.° da Lei n.° 85‑704 com a Directiva 92/50

    51.      Uma vez que o contrato de mandato na acepção da Lei n.° 85‑704 é abrangido pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50, vejamos se a norma francesa é compatível com a referida directiva. O artigo 4.° da Lei n.° 85‑704, objecto da presente acção, reserva o papel de mandatário a categorias de entidades públicas de direito francês taxativamente enumeradas.

    52.      Isso revela‑se claramente contrário ao objectivo da Directiva 92/50, de conceder igual acesso à procura pública a todos os prestadores de serviços  (33) . Com efeito, como o Tribunal de Justiça declarou a propósito da Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas  (34) , «embora a directiva não faça expressamente referência ao princípio de igualdade de tratamento dos proponentes, não é menos verdade que o dever de respeitar esse princípio corresponde à própria essência da directiva»  (35) . A mesma afirmação é válida para a Directiva 92/50. Assim, o artigo 4.° da Lei n.° 85‑704 é claramente contrário ao princípio da igualdade de tratamento dos concorrentes, pelo facto de reservar exclusivamente a determinadas categorias de pessoas colectivas de direito público a possibilidade de celebrarem contratos de mandato de representação do dono da obra.

    53.      Além disso, a Lei n.° 85‑704 não impõe nenhuma abertura prévia à concorrência para a adjudicação de um contrato de mandato, pelo que o dono da obra tem inteira liberdade de escolha, dentro das categorias de entidades públicas designadas no artigo 4.° da referida lei, mesmo que o montante das prestações de serviços em questão exceda o limiar previsto no artigo 13.° da Directiva 92/50.

    54.      Conforme atrás recordado, as obrigações de abertura à concorrência e de publicidade prévia são diferentes consoante os serviços prestados à entidade adjudicante figurem na lista do anexo I A ou I B da Directiva 92/50. A questão de saber se um serviço está abrangido pela categoria I A ou I B tem, portanto, relevância para o regime que lhe é aplicável. Os contratos que tenham por objecto os serviços enumerados no anexo I B estão sujeitos a obrigações mais reduzidas do que os que tenham por objecto serviços a que se refere o anexo I A. Em caso de contrato misto, o artigo 10.° da Directiva 92/50 prevê: «Os contratos que tenham simultaneamente por objecto serviços enumerados no anexo I A e serviços enumerados no anexo I B serão celebrados de acordo com o disposto nos títulos III a VI sempre que o valor dos serviços enumerados no anexo I A seja superior ao valor dos serviços enumerados no anexo I B. Caso contrário, serão celebrados de acordo com o disposto nos artigos 14.° e 16.°».

    55.      No caso vertente, e sem que seja sequer necessário determinar que processo deveria ser aplicado ao contrato de mandato de representação do dono da obra, basta observar que a lei criticada não prevê nenhum procedimento de abertura à concorrência relativamente ao mandatário. Assim, quer as prestações de serviços que lhe são confiadas estejam abrangidas pelo anexo I A ou pelo anexo I B, deve declarar‑se que a Lei n.° 85‑704 não é compatível com os artigos 8.° e 9.° da Directiva 92/50.

    56.      Mesmo que a classificação das prestações efectuadas pelo mandatário tenha pouca relevância relativamente à incompatibilidade da lei nacional com a Directiva 92/50, impõe‑se uma clarificação, uma vez que as partes defendem pontos de vista opostos  (36) . O Estado‑Membro demandado defende, a título subsidiário, que as prestações efectuadas pelo mandatário correspondem essencialmente a serviços jurídicos, como os referidos no ponto 21 do anexo I B da Directiva 92/50, e, acessoriamente, a missões administrativas, como a preparação dos procedimentos de abertura à concorrência e de adjudicação das empreitadas bem como os aspectos relativos à contabilidade, abrangidos pela categoria 27 (Outros serviços) do mesmo anexo. A Comissão defende que o mandatário presta maioritariamente serviços de arquitectura e de engenharia, classificados no ponto 12 do anexo I A. As funções puramente representativas do mandatário podem ser abrangidas, segundo a Comissão, pelo ponto 27 do anexo I B da Directiva 92/50, intitulado «Outros serviços».

    57.      Da leitura do artigo 3.° da Lei n.° 85‑704, referido no n.° 9 das presentes conclusões, que descreve as missões atribuídas ao mandatário, é difícil afirmar, como faz a Comissão, que as missões confiadas ao mandatário consistem unicamente em serviços de concepção de planos de arquitectura ou de serviços de engenharia que figuram na categoria 12 do anexo I A, mesmo que a «definição das condições administrativas e técnicas segundo as quais a obra será estudada e executada»  (37) , bem como «a recepção da obra»  (38) pareçam estar abrangidas por esta categoria. A este respeito, não se pode evitar o exame caso a caso. Em conformidade com o artigo 10.° da Directiva 92/50, o dono da obra pode determinar qual o regime aplicável ao contrato de mandato de representação do dono da obra em causa, pois não parece possível, em razão da diversidade do objecto de tais contratos, submetê‑los a um regime uniforme  (39) .

    58.      Atentas estas considerações, deve declarar‑se a incompatibilidade do artigo 4.° da lei em causa com os artigos 8.° e 9.° da Directiva 92/50  (40) . Para os casos em que a directiva não se aplica, há que determinar se o artigo 4.° da Lei n.° 85‑704 é conforme ao princípio da livre prestação de serviços.

    III – Incompatibilidade do artigo 4.° da Lei n.° 85‑704 com o artigo 49.° CE

    59.      Poderia colocar‑se a questão do interesse de uma aplicação cumulativa dos artigos do Tratado relativos à liberdade de prestação de serviços e à liberdade de estabelecimento com as directivas que regulam os contratos públicos, e, no caso vertente, a Directiva 92/50. Todavia, para todos os contratos públicos que escapam ao âmbito de aplicação das directivas, as disposições do Tratado relativas à livre circulação são, por natureza, aplicáveis  (41) . Do mesmo modo, os contratos não abrangidos pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50, tal como os contratos de concessão, continuam a estar sujeitos às regras gerais do Tratado  (42) . Assim, na hipótese de o contrato de mandato de representação do dono da obra não atingir os limiares financeiros fixados na Directiva 92/50  (43) , ou se o mesmo puder beneficiar de uma excepção à directiva, há que determinar se o artigo 4.° da lei em causa é conforme com o artigo 49.° CE.

    60.      Segundo a República Francesa, o artigo 49.° CE não é aplicável ao caso presente, porque o mandatário não efectua uma prestação de serviços. Diversamente de um prestador de serviços, o mandatário participa numa missão de interesse geral, exerce uma função de representação de uma entidade pública e beneficia de uma transferência de atribuições acompanhada de um poder de decisão.

    61.      Como atrás foi exposto, nada parece dever opor‑se à qualificação como prestações de serviços das missões executadas pelo mandatário.

    62.      Além disso, o Estado demandado reitera a sua argumentação baseada no acórdão Ordine degli Architetti e o., já referido, e considera que a sua legislação é conforme com o artigo 49.° CE, uma vez que o mandatário está sujeito às regras relativas aos contratos públicos em relação aos contratos que celebra em nome do dono da obra.

    63.      A leitura que a República Francesa faz deste acórdão não é convincente. Com efeito, como atrás foi explicado, o mandatário não se limita a celebrar contratos por conta do dono da obra, mas efectua igualmente para este numerosas prestações de serviços remuneradas. As críticas da Comissão visam exclusivamente esta relação contratual em que o mandatário é na realidade um prestador de serviços. Ora, o acórdão Ordine degli Architetti e o. apenas diz respeito ao mandato em sentido estrito, ou seja, a hipótese em que o mandatário se limita a agir por conta da pessoa que ele representa. Além disso, este acórdão não exclui em nenhum momento a qualificação como prestação de serviços para um contrato de mandato. Uma vez que o mandatário actua igualmente na qualidade de prestador de serviços, ele está, enquanto tal, sujeito ao artigo 49.° CE.

    64.      O facto de se reservar a determinadas pessoas colectivas de direito público o direito de celebrar contratos de mandato de representação do dono da obra, em aplicação do artigo 4.° da Lei n.° 85‑704, constitui um entrave à livre circulação de prestações de serviços. Ainda que a disposição controvertida não faça expressamente referência à nacionalidade dos prestadores autorizados, é, de facto, praticamente impossível a uma empresa de outro Estado‑Membro obter o estatuto jurídico de pessoa colectiva de direito público francês  (44) .

    65.      Bem mais do que isso, mesmo que fosse possível a uma empresa estrangeira pertencer a uma das categorias de pessoas colectivas referidas no artigo 4.° da lei em causa, exigir a essa empresa que mude de estatuto jurídico para poder efectuar as prestações de serviços em causa seria contrário ao princípio da livre prestação de serviços. Como sublinhou o advogado‑geral C. O. Lenz no n.° 22 das suas conclusões, no processo Comissão/Itália  (45) , «[a] liberdade de empresa, que o artigo 59.° pretende tutelar, implica que as empresas se possam abster desse procedimento».

    66.      Em definitivo, o artigo 4.° da Lei n.° 85‑704 constitui um entrave à livre prestação de serviços, na medida em que acaba por reservar a prestadores de serviços de nacionalidade francesa os contratos relativos aos serviços indicados no artigo 3.° da referida lei.

    67.      Uma vez demonstrada a não conformidade da Lei n.° 85‑704 com o artigo 49.° CE, há que interrogar‑se sobre a eventual aplicação do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, que prevê que «[a]s disposições do presente capítulo não são aplicáveis às actividades que, num Estado‑Membro, estejam ligadas, mesmo ocasionalmente, ao exercício da autoridade pública». A Comissão admite a aplicação desta excepção e a seguir afasta‑a. Depois de ter recordado que esta excepção deve ser interpretada em sentido estrito referindo‑se «àquelas actividades […] que, por si mesmas, implicam uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública»  (46) , a Comissão afirma que as missões confiadas ao mandatário têm uma natureza essencialmente técnica que não corresponde a esta definição.

    68.      Quanto às actividades relativamente às quais o mandatário representa o dono da obra, tais como a assinatura dos contratos de direcção da obra e de empreitada e os pagamentos aos empreiteiros e aos prestadores de serviços, a Comissão concluiu igualmente pela inaplicabilidade do artigo 45.° CE. A assinatura dos contratos está dependente do acordo do dono da obra, pelo que não se pode, segundo a Comissão, considerar que o mandatário beneficia realmente de uma delegação da autoridade pública. Os pagamentos aos empreiteiros e aos prestadores de serviços também não correspondem ao exercício da autoridade pública pelo mandatário, uma vez que o financiamento é assegurado pelo dono da obra.

    69.      Como foi atrás demonstrado, o mandatário não participa no exercício da autoridade pública, quer relativamente às missões de assistência quer às missões de representação que lhe são confiadas. Consequentemente, a excepção prevista no artigo 45.° CE não lhe é aplicável  (47) .

    70.      A excepção prevista no artigo 46.° CE também não tem aplicação, uma vez que nenhuma justificação relativa à ordem pública, à segurança pública ou à saúde pública foi apresentada pelo Estado demandado.

    IV – Conclusão

    71.      Tendo em conta o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem em aplicação da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, mais particularmente dos seus artigos 8.° e 9.°, e do artigo 49.° CE, ao reservar, no artigo 4.° da Lei n.° 85‑704, de 12 de Julho de 1985, relativa à propriedade de obra pública e às suas relações com a direcção privada da obra, conforme alterada pela Lei n.° 91‑662, de 13 de Julho de 1991, e pela Lei n.° 96‑987, de 14 de Julho de 1996, a missão de representação do dono da obra por delegação a uma lista restrita de pessoas colectivas de direito francês.


    1
    Língua original: português.


    2
    Respectivamente, JORF de 13 de Julho de 1985, p. 7914, de 19 de Julho de 1991, p. 9524, e de 15 de Novembro de 1996, p. 16656, a seguir «Lei n.° 85‑704».


    3
    JO L 209, p. 1.


    4
    JORF n.° 141, de 19 de Junho de 2004.


    5
    Essa incompatibilidade estava prevista apenas relativamente aos mandatários referidos no artigo 4.°, segundo travessão, da lei, na sua versão anterior.


    6
    Acórdão de 10 de Novembro de 1998, BFI Holding (C‑360/96, Colect., p. I‑6821, n.° 41).


    7
    Acórdão de 5 de Outubro de 2000, Comissão/França (C‑16/98, Colect., p. I‑8315, n.° 44). O acórdão tinha por objecto a Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 199, p. 84).


    8
    Oitavo considerando da Directiva 92/50.


    9
    Artigo 1.° da Lei n.° 85‑704: «[…] são considerados donos da obra 1) o Estado e os seus estabelecimentos públicos; 2) as colectividades territoriais e respectivos estabelecimentos públicos, os estabelecimentos públicos de ordenamento urbano criados em aplicação do artigo L. 321‑1 do Código do Urbanismo e respectivos agrupamentos, bem como os sindicatos mistos referidos no artigo L. 166‑1 do Código das Autarquias Locais; 3) os organismos privados mencionados no artigo L. 64 do Código da Segurança Social e respectivas uniões ou federações; 4) os organismos privados de habitação de renda económica, mencionados no artigo L. 411‑2 do Código da Construção e da Habitação, bem como as sociedades de economia mista, no que respeita aos alojamentos para arrendamento subsidiados pelo Estado e construídos por estes organismos e sociedades».


    10
    Era o que resultava do artigo 3.°, n.° 7, do Código dos Contratos Públicos, adoptado pelo Decreto n.° 2001‑210, de 7 de Março de 2001, que institui o Código dos Contratos Públicos (JORF de 8 de Março de 2001, p. 3700). V., a este propósito, Richer, L., Le contrat de mandat au risque du droit administratif , CJEG 1999, p. 127. Observe‑se que esta disposição foi anulada por um acórdão do Conseil d’État (França) de 8 de Março de 2003. O Código dos Contratos Públicos adoptado pelo Decreto n.° 2004‑15, de 7 de Janeiro de 2004 (JORF de 8 de Janeiro de 2004, p. 703), tem em conta esta anulação: os contratos de mandato passaram a estar abrangidos por ele.


    11
    Artigo 4.°, último parágrafo, da Lei n.° 85‑704.


    12
    Acórdão de 12 de Julho de 2001 (C‑399/98, Colect., p. I‑5409).


    13
    Processo n.° 233372, Union nationale des services publics, industriels et commerciaux, e outros.


    14
    V., a este respeito, acórdão de 5 de Dezembro de 1989, Comissão/Itália (3/88, Colect., p. 4035).


    15
    Observemos que os diferentes tipos de contrato de delegação de serviço público existentes em direito francês podem ser equiparados, em direito comunitário, a concessões. O termo «concessões» é mais lato em direito comunitário do que em direito francês.


    16
    Artigo 3.° da Directiva 93/37 (JO L 199, p. 54); directiva alterada em último lugar pela Directiva 2001/78/CE da Comissão, de 13 de Setembro de 2001, que altera o anexo IV da Directiva 93/36/CEE do Conselho, os anexos IV, V e VI da Directiva 93/37/CEE do Conselho e os anexos III e IV da Directiva 92/50/CEE do Conselho, com a última redacção que lhes foi dada pela Directiva 97/52/CE, bem como os anexos XII a XV, XVII e XVIII da Directiva 93/38/CEE do Conselho, com a última redacção que lhe foi dada pela Directiva 98/4/CE (directiva relativa à utilização dos formulários‑tipo aquando da publicação dos anúncios de concursos públicos) (JO L 285, p. 1).


    17
    Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, Colect., p. I‑10745, n.° 48), e despacho de 30 de Maio de 2002, Buchhändler‑Vereinigung (C‑358/00, Colect., p. I‑4685, n. os  27 e 28).


    18
    JO L 134, p. 114. Com efeito, no artigo 17.° desta directiva prevê‑se que: «a presente directiva não é aplicável às concessões de serviços».


    19
    O artigo 1.°, alínea d), da Directiva 93/37 define as concessões de obras públicas como «um contrato que apresenta as mesmas características que as referidas na alínea a) [ou seja, os contratos públicos de empreitada], com excepção de que a contrapartida das obras consiste quer unicamente no direito de exploração da obra quer nesse direito acompanhado do pagamento de um preço».


    20
    JO 2000, C 121, p. 2.


    21
    Acórdão já referido. O advogado‑geral A. La Pergola tinha feito uma análise diferente da situação: «Em conclusão, em meu entender, no presente processo, a ARA não tem natureza de terceiro relativamente aos dois municípios, isto é, não se distingue substancialmente deles. Estamos perante uma forma de delegação interorgânica que não sai da esfera administrativa dos municípios, os quais, ao atribuir à ARA as actividades em questão, não tiveram, de modo algum, a intenção de privatizar as funções que antes assumiam no sector. Em definitivo, entendo que a relação entre os municípios e a ARA não pode ser considerada como um contrato na acepção da directiva» (n.° 38 das conclusões).


    22
    Conclusões apresentadas em 18 de Maio de 2000 no processo Telaustria e Telefonadress, já referido, n.° 30.


    23
    Acórdão Telaustria e Telefonadress, já referido, n.° 58.


    24
    Acórdão de 26 de Abril de 1994, Comissão/Itália (C‑272/91, Colect., p. I‑1409, n.° 24).


    25
    JO 1977, L 13, p. 1; EE 17 F1 p. 29; modificada pela Directiva 88/295/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1988, que altera a Directiva 77/62 e revoga certas disposições da Directiva 80/767/CEE (JO L 127, p. 1).


    26
    Por exemplo, a definição das condições administrativas e técnicas a que devem obedecer o estudo e a execução da obra, ou a gestão dos contratos de direcção da obra ou de empreitada.


    27
    Refira‑se que o mandatário não pode, pelo contrário, opor‑se a uma decisão tomada pelo dono da obra.


    28
    Sobre a inexistência de autonomia de um comissário autorizado relativamente ao Office de contrôle des assurances, acórdão de 13 de Julho de 1993, Thijssen (C‑42/92, Colect., p. I‑4047, n. os  20 a 22). V., igualmente, acórdãos de 5 de Dezembro de 1989 e de 26 de Abril de 1994, Comissão/Itália, já referidos.


    29
    Acórdão Ordine degli Architetti e o., já referido, n.° 103.


    30
    Na audiência, a República Francesa tinha acrescentado que a Directiva 2004/18 reproduzia no seu artigo 11.° esta teoria do mandato, aplicando‑a às centrais de compras.


    31
    Artigo 4.°, último parágrafo, da Lei n.° 85‑704.


    32
    Obviamente, a conclusão seria diferente se o proprietário do terreno, que requer uma licença de construção, não estivesse sujeito às obrigações da directiva relativamente aos contratos que celebra com os empreiteiros, porque, nesse caso, a aplicação da directiva estaria totalmente excluída apesar de as construções a edificar serem «obras públicas» na acepção da directiva.


    33
    V., em particular, o vigésimo considerando da directiva.


    34
    JO L 185, p. 5; EE 17 F3 p. 9.


    35
    Acórdão de 22 de Junho de 1993, Comissão/Dinamarca (C‑243/89, Colect., p. I‑3353, n.° 33). V., igualmente, n.° 18 das conclusões do advogado‑geral G. Tesauro nesse processo: «A este propósito, basta sublinhar, de facto, que, no âmbito de um processo de adjudicação de empreitada, precisamente por se tratar de um processo de concurso, deverá necessariamente ser garantida a igualdade de todos os participantes nesse mesmo concurso: de outra forma não se trataria de um processo de empreitada, quando muito de uma negociação [...] privada. Em suma, a igualdade de tratamento está na base de qualquer regime de processo de adjudicação de empreitada, na medida em que constitui a sua própria essência».


    36
    Além disso, esta questão não é irrelevante do ponto de vista da conformidade da Lei n.° 85‑704, conforme modificada pelo Despacho n.° 2004‑566, com a Directiva 92/50.


    37
    Artigo 3.°, primeiro travessão, da Lei n.° 85‑704.


    38
    Artigo 3.°, sexto travessão, da Lei n.° 85‑704.


    39
    Acórdão de 14 de Novembro de 2002, Felix Swoboda (C‑411/00, Colect., p. I‑10567).


    40
    Observamos, a este respeito, que, em aplicação do artigo 2.°, n.° 2, do Código dos Contratos Públicos francês, conforme adoptado pelo Decreto n.° 2004‑15, «os contratos públicos celebrados por mandato de uma das entidades públicas referidas no artigo 1.° do presente artigo» estão sujeitos às disposições do referido código.


    41
    Acórdão de 9 de Julho de 1987, CEI e o. (27/86 a 29/86, Colect., p. 3347, n.° 15), e despacho de 3 de Dezembro de 2001, Vestergaard (C‑59/00, Colect., p. I‑9505, n. os  19 a 21).


    42
    Acórdãos de 9 de Setembro de 1999, RI.SAN. (C‑108/98, Colect., p. I‑5219, n.° 20), e Telaustria e Telefonadress, já referido, n.° 60. V., igualmente, Cassia, P., Contrats publics et principe communautaire d’égalité de traitement , RTDEur. 2002, p. 413.


    43
    Artigo 7.° da Directiva 92/50.


    44
    Acórdãos de 5 de Dezembro de 1989, Comissão/Itália, já referido, e de 26 de Abril de 1994, Comissão/Itália, já referido. Em matéria de livre circulação de mercadorias, o Tribunal de Justiça segue o mesmo raciocínio: acórdão de 20 de Março de 1990, Du Pont de Nemours Italiana (C‑21/88, Colect., p. I‑889). V., igualmente, a este propósito, o estudo de Noguellou, R., «La délégation de maîtrise d’ouvrage publique face au droit communautaire: un conflit latent», em Problèmes actuels de droit communautaire , LGDJ, 1998.


    45
    Acórdão de 3 de Junho de 1992 (C‑360/89, Colect., p. I‑3401).


    46
    Acórdão de 5 de Dezembro de 1989, Comissão/Itália, já referido.


    47
    V., a este respeito, a jurisprudência referida na nota 27.

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