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Document 62001CJ0187

    Acórdão do Tribunal de 11 de Fevereiro de 2003.
    Processos penais contra Hüseyin Gözütok (C-187/01) e Klaus Brügge (C-385/01).
    Pedidos de decisão prejudicial: Oberlandesgericht Köln - Alemanha e Rechtbank van eerste aanleg te Veurne - Bélgica.
    Convenção de aplicação do acordo de Schengen - Princípio ne bis in idem - Âmbito de aplicação - Decisões pelas quais o Ministério Público arquiva definitivamente processos penais, sem a intervenção de um órgão jurisdicional, depois de o arguido ter satisfeito determinadas condições.
    Processos apensos C-187/01 e C-385/01.

    Colectânea de Jurisprudência 2003 I-01345

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2003:87

    62001J0187

    Acórdão do Tribunal de 11 de Fevereiro de 2003. - Processos penais contra Hüseyin Gözütok (C-187/01) e Klaus Brügge (C-385/01). - Pedidos de decisão prejudicial: Oberlandesgericht Köln - Alemanha e Rechtbank van eerste aanleg te Veurne - Bélgica. - Convenção de aplicação do acordo de Schengen - Princípio ne bis in idem - Âmbito de aplicação - Decisões pelas quais o Ministério Público arquiva definitivamente processos penais, sem a intervenção de um órgão jurisdicional, depois de o arguido ter satisfeito determinadas condições. - Processos apensos C-187/01 e C-385/01.

    Colectânea da Jurisprudência 2003 página I-01345


    Sumário
    Partes
    Fundamentação jurídica do acórdão
    Decisão sobre as despesas
    Parte decisória

    Palavras-chave


    1. União Europeia - Cooperação policial e judiciária em matéria penal - Protocolo que integra o acervo de Schengen - Convenção de aplicação do acordo de Schengen - Princípio ne bis in idem - Âmbito de aplicação - Decisão do Ministério Público que arquiva procedimentos contra um arguido mediante o cumprimento por este de certas obrigações - Inclusão

    (Convenção de aplicação do acordo de Schengen, artigos 54.° , 55.° e 58.° )

    2. União Europeia - Cooperação policial e judiciária em matéria penal - Protocolo que integra o acervo de Schengen - Convenção de aplicação do acordo de Schengen - Princípio ne bis in idem - Aplicação vista uma decisão do Ministério Público que arquiva procedimentos contra um arguido mediante o cumprimento por este de certas obrigações - Alcance limitado à acção penal, não afectando o direito de acção cível da vítima

    (Convenção de aplicação do acordo de Schengen, artigo 54.° )

    Sumário


    1. O princípio ne bis in idem, previsto no artigo 54.° da convenção de aplicação do acordo de Schengen, que tem por objectivo evitar que uma pessoa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, seja, pelos mesmos factos, submetida a uma acção penal no território de vários Estados-Membros, aplica-se igualmente a procedimentos de extinção da acção penal pelos quais o Ministério Público de um Estado-Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o procedimento criminal instaurado nesse Estado, depois de o arguido ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago determinada soma em dinheiro fixada pelo Ministério Público.

    Com efeito, por um lado, no termo de tal processo o arguido deve ser considerado «definitivamente julgado», na acepção do referido artigo 54.° e, uma vez executadas pelo arguido as obrigações a seu cargo, a sanção que esse procedimento implica deve ser considerada «aplicada» na acepção desta mesma disposição.

    Por outro lado, os efeitos desse processo devem, na falta de uma indicação expressa contrária no artigo 54.° da CAAS, ser considerados suficientes para permitirem a aplicação do princípio ne bis in idem nele consagrado, mesmo que nenhum órgão jurisdicional intervenha no âmbito deste processo e de a decisão tomada no seu termo não ter a forma de sentença.

    Além disso, nenhuma disposição do título VI do Tratado da União Europeia, relativo à cooperação policial e judiciária em matéria penal, nem o acordo de Schengen ou a própria convenção de aplicação deste subordinam a aplicação do artigo 54.° à harmonização ou, pelo menos, à aproximação das legislações penais dos Estados-Membros no domínio dos procedimentos de extinção da acção penal.

    Por último, o princípio ne bis in idem implica necessariamente, independentemente das modalidades de aplicação da sanção, que exista uma confiança mútua dos Estados-Membros nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados-Membros, ainda que a aplicação do seu direito nacional leve a uma solução diferente.

    ( cf. n.os 27-33, disp. )

    2. O princípio ne bis in idem, como está enunciado no artigo 54.° da convenção de aplicação do acordo de Schengen, tem como único efeito evitar que uma pessoa definitivamente julgada num Estado-Membro seja objecto de novos procedimentos criminais pelos mesmos factos noutro Estado-Membro. O referido princípio, quando se aplica vista uma decisão que arquiva definitivamente os procedimentos criminais num Estado-Membro, adoptada sem a intervenção de um órgão jurisdicional e não tendo a forma de uma sentença, não impede a vítima ou qualquer outra pessoa lesada pelo comportamento do arguido de intentar ou de prosseguir uma acção cível destinada a pedir a reparação do prejuízo que sofreu.

    ( cf. n.° 47 )

    Partes


    Nos processos apensos C-187/01 e C-385/01,

    que têm por objecto pedidos dirigidos ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 35.° UE, respectivamente pelo Oberlandesgericht Köln (Alemanha) e pelo Rechtbank van eerste aanleg te Veurne (Bélgica), destinados a obter, nos processos penais pendentes nestes órgãos jurisdicionais contra

    Hüseyin Gözütok (C-187/01)

    e

    Klaus Brügge (C-385/01),

    uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 54.° da convenção de aplicação do acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em 19 de Junho de 1990 em Schengen (Luxemburgo),

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

    composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J.-P. Puissochet, M. Wathelet, R. Schintgen (relator) e C. W. A. Timmermans, presidentes de secção, C. Gulmann, A. La Pergola, P. Jann, V. Skouris, F. Macken, N. Colneric, S. von Bahr e J. N. Cunha Rodrigues, juízes,

    advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

    secretário: H. A. Rühl, administrador principal,

    vistas as observações escritas apresentadas:

    - em representação de H. Gözütok, por N. Hack, Rechtsanwalt (C-187/01),

    - em representação do Governo alemão, por W.-D. Plessing, na qualidade de agente (C-187/01 e C-385/01),

    - em representação do Governo belga, por A. Snoecx, na qualidade de agente (C-385/01),

    - em representação do Governo francês, por R. Abraham, G. de Bergues e C. Isidoro, na qualidade de agentes (C-187/01),

    - em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster, na qualidade de agente (C-187/01 e C-385/01),

    - em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por W. Bogensberger e C. Ladenburger (C-187/01), bem como por W. Bogensberger e R. Troosters (C-385/01), na qualidade de agentes,

    visto o relatório para audiência,

    ouvidas as alegações de H. Gözütok, representado por N. Hack, do Governo alemão, representado por A. Dittrich, na qualidade de agente, do Governo belga, representado por A. Snoecx, bem como por J. Devadder e W. Detavernier, na qualidade de agentes, do Governo francês, representado por R. Abraham, do Governo italiano, representado por G. Aiello, avvocato dello Stato, do Governo neerlandês, representado por C. Wissels, na qualidade de agente, e da Comissão, representada por W. Bogensberger e R. Troosters, na audiência de 9 de Julho de 2002,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 19 de Setembro de 2002,

    profere o presente

    Acórdão

    Fundamentação jurídica do acórdão


    1 Por despachos de 30 de Março e 4 de Maio de 2001, que deram entrada no Tribunal de Justiça respectivamente em 30 de Abril e 8 de Outubro seguintes, o Oberlandesgericht Köln (C-187/01) e o Rechtbank van eerste aanleg te Veurne (C-385/01) submeteram, nos termos do artigo 35.° UE, cada um uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 54.° da convenção de aplicação do acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19, a seguir «CAAS»), assinada em 19 de Junho de 1990 em Schengen.

    2 Estas questões foram suscitadas no âmbito de dois processos penais instaurados, por um lado, na Alemanha contra H. Gözütok e, por outro, na Bélgica contra K. Brügge, por infracções cometidas por estes últimos respectivamente nos Países Baixos e na Bélgica, bem como de processos instaurados noutro Estado-Membro contra os dois arguidos pelos mesmos factos que foram definitivamente arquivados depois de estes terem pago uma soma em dinheiro fixada pelo Ministério Público no âmbito de um procedimento de extinção da acção penal.

    Enquadramento jurídico

    3 Nos termos do artigo 1.° do protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia pelo Tratado de Amsterdão (a seguir «protocolo»), que autorizou treze Estados-Membros, entre os quais o Reino da Bélgica, a República Federal da Alemanha e o Reino dos Países Baixos, a instituírem entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação do acervo de Schengen, como definido no anexo do referido protocolo.

    4 Fazem parte do acervo de Schengen definido desta forma, designadamente, o acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de Junho de 1985 (JO 2000, L 239, p. 13, a seguir «acordo de Schengen»), bem como a CAAS.

    5 O acordo de Schengen e a CAAS destinam-se «obter a supressão dos controlos nas fronteiras comuns no que diz respeito à circulação das pessoas [...]» (segundo parágrafo do preâmbulo da CAAS), sendo entendido que «a união cada vez mais estreita entre os povos dos Estados-Membros das Comunidades Europeias deve encontrar a sua expressão na livre passagem das fronteiras internas por todos os nacionais dos Estados-Membros [...]» (primeiro parágrafo do preâmbulo do acordo de Schengen). Em conformidade com a primeiro parágrafo do preâmbulo do protocolo, o acervo de Schengen destina-se «a reforçar a integração europeia e, em especial, a possibilitar que a União Europeia se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça». Nos termos do artigo 2.° , primeiro parágrafo, quarto travessão, UE, a manutenção e o desenvolvimento deste espaço, no âmbito do qual é assegurada a livre circulação de pessoas, constitui um dos objectivos da União Europeia.

    6 Ao abrigo do artigo 2.° , n.° 1, primeiro parágrafo, do protocolo, a partir da data de entrada em vigor do Tratado de Amsterdão, o acervo de Schengen será imediatamente aplicável aos treze Estados-Membros a que se refere o artigo 1.° do referido protocolo.

    7 Em aplicação do artigo 2.° , n.° 1, segundo parágrafo, segundo período, do protocolo, o Conselho adoptou, em 20 Maio de 1999, a Decisão 1999/436/CE, que determina, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen (JO L 176, p. 17). Resulta do artigo 2.° desta decisão, em conjugação com o anexo A desta, que o Conselho designou os artigos 34.° UE e 31.° UE, que fazem parte do título VI do Tratado da União Europeia, intitulado «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal», como bases jurídicas dos artigos 54.° a 58.° da CAAS.

    8 Os artigos 54.° a 58.° da CAAS integram o capítulo 3, intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem», do título III, ele mesmo intitulado «Polícia e segurança». Prevêem designadamente:

    «Artigo 54.°

    Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.

    Artigo 55.°

    1. Uma parte contratante pode, no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, declarar que não está vinculada pelo artigo 54.° num ou mais dos seguintes casos:

    a) Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido, no todo, ou em parte, no seu território; neste último caso, esta excepção não é, todavia, aplicável se estes factos ocorreram em parte no território da parte contratante em que a sentença foi proferida;

    b) Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam crime contra a segurança do Estado ou de outros interesses igualmente essenciais desta parte contratante;

    c) Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham sido praticados por um funcionário desta parte contratante em violação dos deveres do seu cargo.

    2. Uma parte contratante, que tenha feito uma declaração relativa à excepção referida na alínea b) do n.° 1, especificará as categorias de crimes às quais esta excepção pode ser aplicada.

    3. Uma parte contratante pode, a qualquer momento, retirar essa declaração relativa a uma ou mais das excepções referidas no n.° 1.

    4. As excepções que foram objecto de uma declaração nos termos do n.° 1 não são aplicáveis quando a parte contratante em causa tenha, pelos mesmos factos, solicitado o procedimento judicial a outra parte contratante ou concedido a extradição da pessoa em causa.

    [...]

    Artigo 58.°

    O disposto nos artigos anteriores não prejudica a aplicação das disposições nacionais mais amplas relativas ao efeito ne bis in idem associado às decisões judiciais proferidas no estrangeiro.»

    Os processos principais e as questões prejudiciais

    O processo C-187/01

    9 H. Gözütok é um cidadão turco residente há algum tempo nos Países Baixos. Aqui explora, na cidade de Heerlen, sob a designação «Coffee- and Teahouse Schorpioen», um comércio de restauração rápida.

    10 No âmbito de buscas efectuadas neste estabelecimento em 12 de Janeiro e 11 de Fevereiro de 1996, a polícia neerlandesa descobriu e apreendeu respectivamente 1 kg de haxixe, 1,5 kg de marijuana, 41 cigarros de haxixe, bem como 56 g de haxixe, 200 g de marijuana e 10 cigarros de haxixe.

    11 Resulta dos autos que os procedimentos criminais que tiveram início nos Países Baixos contra H. Gözütok no âmbito das apreensões de 12 de Janeiro e 11 de Fevereiro de 1996 foram arquivados depois de este último ter aceite as transacções propostas pelo Ministério Público no âmbito de um processo de extinção da acção penal e ter pago as somas de, respectivamente, 3 000 NLG e 750 NLG exigidas por este neste contexto.

    12 A este respeito, o artigo 74.° , n.° 1, do Wetboek van Strafrecht (código penal neerlandês) dispõe:

    «Antes do início da audiência, o Ministério Público pode fixar uma ou várias condições para evitar os procedimentos criminais em relação a infracções, com excepção das que a lei pune com uma pena de prisão de mais de seis anos, e a contravenções. O direito de acção penal extingue-se quando o arguido satisfaz estas condições.»

    13 De entre estas condições pode constar o pagamento ao Estado de uma soma em dinheiro, cujo montante se situa entre 5 NLG e o máximo da multa que pode ser aplicada ao facto punível.

    14 Um banco alemão chamou a atenção das autoridades alemãs sobre a pessoa de H. Gözütok assinalando-lhes, em 31 de Janeiro de 1996, importantes movimentos na conta bancária deste.

    15 Depois de se ter informado junto das autoridades neerlandesas sobre o comportamento de H. Gözütok, a polícia alemã prendeu-o na Alemanha em 15 de Março de 1996 e, em 1 de Julho de 1996, a Staatsanwaltschaft Aachen (Ministério Público de Aachen) (Alemanha) acusou H. Gözütok de pelo menos em duas ocasiões, entre 12 de Janeiro e 11 de Fevereiro de 1996, ter praticado tráfico de estupefacientes nos Países Baixos, em quantidades significativas pelo menos numa das vezes.

    16 Em 13 de Janeiro de 1997, o Amtsgericht Aachen (Alemanha) condenou H. Gözütok a uma pena privativa da liberdade com a duração total de um ano e cinco meses, condicionalmente suspensa.

    17 H. Gözütok e o Ministério Público recorreram desta sentença. Por decisão de 27 de Agosto de 1997, o Landgericht Aachen (Alemanha) extinguiu o procedimento criminal intentado contra H. Gözütok porque, nos termos do artigo 54.° da CAAS, o arquivamento definitivo do procedimento criminal pelas autoridades neerlandesas vinculava as autoridades alemãs. Segundo o referido órgão jurisdicional, o arquivamento do procedimento criminal verificou-se na sequência de uma transacção proposta pelo Ministério Público («transactie»), procedimento jurídico neerlandês que é equiparável a uma condenação definitiva («rechtskräftige Verurteilung») na acepção da versão alemã do artigo 54.° da CAAS, ainda que tal transacção não implique a participação de um juiz e não tenha a forma de um julgamento.

    18 O Ministério Público interpôs recurso deste despacho do Landgericht Aachen para o Oberlandesgericht Köln, o qual, considerando que para a solução do litígio era necessária uma interpretação do artigo 54.° da CAAS, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «Verifica-se em relação à República Federal da Alemanha a extinção da acção penal nos termos do artigo 54.° da CAAS se, em conformidade com a legislação dos Países Baixos, o procedimento criminal relativo aos mesmos factos estiver extinto a nível nacional? Em particular, verifica-se a extinção do procedimento criminal quando uma decisão do Ministério Público que ordene a suspensão do processo após o pagamento prévio de determinados encargos (transactie, em neerlandês), obste à sequência do procedimento num tribunal neerlandês apesar de, nos termos da legislação de outros Estados contratantes, a referida decisão necessitar para esse efeito de homologação judicial?»

    O processo C-385/01

    19 K. Brügge, cidadão alemão residente em Rheinbach (Alemanha), foi objecto de um inquérito pelo Ministério Público belga por, em Oostduinkerke (Bélgica), em 9 de Outubro de 1997, ter, em violação dos artigos 392.° , 398.° , n.° 1, e 399.° , n.° 1, do código penal belga, causado ofensas corporais voluntárias a B. Leliaert de que resultou uma doença ou uma incapacidade para o trabalho.

    20 No Rechtbank van eerste aanleg te Veurne, decidindo em matéria penal, perante o qual K. Brügge foi citado para comparecer, B. Leliaert constitui-se parte civil e pediu a reparação do prejuízo moral sofrido avaliado em 20 000 BEF, acrescidos de juros a partir de 9 de Outubro de 1997.

    21 No âmbito do inquérito que tinha instaurado contra K. Brügge relativamente aos factos que deram origem ao processo no Rechtbank van eerste aanleg te Veurne, o Staatsanwaltschaft Bonn (Ministério Público de Bona) (Alemanha) propôs-lhe, por carta de 22 de Julho de 1998, um acordo amigável através do pagamento de um soma de 1 000 DEM. Como a 13 de Agosto seguinte K. Brügge pagou o montante proposto, o Ministério Público arquivou o procedimento criminal.

    22 Resulta dos autos que este acordo amigável foi celebrado com fundamento no § 153a, em conjugação com o § 153, n.° 1, segundo período, da Strafprozessordnung (código de processo penal alemão), ao abrigo dos quais o Ministério Público pode, em certas condições, arquivar os processos penais, sem a homologação do órgão jurisdicional competente, designadamente depois de o arguido ter pago uma determinada soma em dinheiro a uma instituição de interesse geral ou ao Tesouro público.

    23 Entendendo que a solução do litígio que lhe tinha sido submetido depende da interpretação do artigo 54.° da CAAS, o Rechtbank van eerste aanleg te Veurne decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «A aplicação do artigo 54.° [da CAAS] permite que o Ministério Público belga accione em juízo num tribunal penal belga um nacional alemão e este o julgue pelos mesmos factos relativamente aos quais o Ministério Público alemão lhe proporcionou, mediante um acordo amigável, o termo do processo mediante o pagamento de uma quantia, que foi paga pelo cidadão alemão?»

    24 Por razões de conexão, o Tribunal de Justiça, ouvido o advogado-geral, ordenou a apensação dos dois processos para efeitos do acórdão, nos termos do artigo 43.° do seu Regulamento de Processo.

    Quanto às questões prejudiciais

    25 Com as suas questões, que importa examinar em conjunto, os órgãos jurisdicionais de reenvio perguntam, no essencial, se o princípio ne bis in idem, previsto no artigo 54.° da CAAS, se aplica igualmente a procedimentos de extinção da acção penal, como os que estão em causa nos processos principais.

    26 Resulta do próprio conteúdo do artigo 54.° da CAAS que ninguém pode ser submetido a uma acção penal num Estado-Membro pelos mesmos factos pelos quais já foi «definitivamente julgado» noutro Estado-Membro.

    27 Ora, um procedimento de extinção da acção penal, como os que estão em causa nos processos principais, é um procedimento pelo qual o Ministério Público, competente para este fim pela ordem jurídica nacional pertinente, decide arquivar o procedimento criminal contra um arguido depois de este ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago determinada soma em dinheiro fixada pelo referido Ministério Público.

    28 Assim, há que declarar, em primeiro lugar, que, no âmbito deste procedimento, é extinta a acção penal por uma decisão de uma autoridade chamada a participar na administração da justiça penal na ordem jurídica nacional em causa.

    29 Em segundo lugar, importa referir que um processo deste tipo, cujos efeitos tais como previstos pela lei nacional aplicável estão subordinados ao compromisso do arguido de executar determinadas obrigações definidas pelo Ministério Público, pune o comportamento ilícito imputado ao arguido.

    30 Nestas condições, há que concluir que, quando, na sequência de um processo como os que estão em causa nos processos principais, a acção penal fica definitivamente extinta, a pessoa em causa deve ser considerada «definitivamente julgada», na acepção do artigo 54.° da CAAS, em relação aos factos de que é acusada. Além disso, uma vez executadas as obrigações a cargo do arguido, a sanção que o procedimento de extinção da acção penal implica deve ser considerada «aplicada», na acepção desta mesma disposição.

    31 O facto de nenhum órgão jurisdicional ter intervindo no âmbito deste processo e de a decisão tomada em relação a este não ter a forma de sentença não é susceptível de infirmar esta interpretação, na medida em que estes elementos processuais e formais não têm qualquer incidência sobre os efeitos deste processo, descritos nos n.os 28 e 29 do presente acórdão, que, na falta de uma indicação expressa contrária no artigo 54.° da CAAS, devem ser considerados suficientes para permitirem a aplicação do princípio ne bis in idem previsto nesta disposição.

    32 Por outro lado, há que referir que nenhuma disposição do título VI do Tratado da União Europeia, relativo à cooperação policial e judiciária em matéria penal, cujos artigos 34.° e 31.° constituem as bases jurídicas dos artigos 54.° a 58.° da CAAS, nem o acordo de Schengen ou a própria CAAS subordinam a aplicação do artigo 54.° da CAAS à harmonização ou, pelo menos, à aproximação das legislações penais dos Estados-Membros no domínio dos procedimentos de extinção da acção penal.

    33 Nestas condições, o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.° da CAAS, independentemente de ser aplicado a procedimentos de extinção da acção penal que prevejam ou não a intervenção de um órgão jurisdicional ou a existência de sentenças, implica necessariamente que exista uma confiança mútua dos Estados-Membros nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados-Membros, ainda que a aplicação do seu direito nacional leve a uma solução diferente.

    34 Pelas mesmas razões, a aplicação por um Estado-Membro do princípio ne bis in idem, como enunciado no artigo 54.° da CAAS, a procedimentos de extinção da acção penal que tiveram lugar noutro Estado-Membro sem a intervenção de um órgão jurisdicional não pode estar subordinada à condição de a ordem jurídica do primeiro Estado também não exigir tal intervenção jurisdicional.

    35 Além do mais, esta interpretação do artigo 54.° da CAAS impõe-se porque é a única que faz prevalecer o objecto e a finalidade desta disposição sobre aspectos processuais ou puramente formais, que variam segundo os Estados-Membros em causa, e que garante uma aplicação útil do referido princípio.

    36 A este respeito, por um lado, há que referir, como resulta do artigo 2.° , primeiro parágrafo, quarto travessão, UE, que, com o Tratado de Amsterdão, a União Europeia atribui a si mesma como objectivo a manutenção e o desenvolvimento desta enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que seja assegurada a livre circulação de pessoas.

    37 Além disso, como resulta do primeiro parágrafo do preâmbulo do protocolo, a aplicação no âmbito da União Europeia do acervo de Schengen, de que faz parte o artigo 54.° da CAAS, destina-se a reforçar a integração europeia e, em especial, a possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça que esta tem por objectivo manter e desenvolver.

    38 Ora, o artigo 54.° da CAAS, que tem por objectivo evitar que uma pessoa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, seja, pelos mesmos factos, submetida a uma acção penal no território de vários Estados-Membros, apenas pode contribuir com utilidade para a realização completa deste objectivo se for igualmente aplicável a decisões que extingam definitivamente os procedimentos criminais num Estado-Membro, ainda que sejam adoptadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e que não tenham a forma de uma sentença.

    39 Por outro lado, as ordens jurídicas nacionais que prevêem o recurso a procedimentos de extinção da acção penal, como os que estão em causa nos processos principais, só o fazem em determinadas circunstâncias ou em relação a determinadas infracções limitativamente enumeradas ou determinadas que, regra geral, não são das mais graves e apenas são passíveis de sanções que não ultrapassam um determinado grau de severidade.

    40 Nestas condições, a limitação da aplicação do artigo 54.° da CAAS unicamente às decisões que extinguissem a acção penal tomadas por um órgão jurisdicional ou que tivessem a forma de sentença teria como resultado que apenas beneficiariam do princípio ne bis in idem previsto nesta disposição e, portanto, da livre circulação que esta tem por objectivo facilitar, os arguidos que fossem condenados por infracções às quais, em função da sua gravidade ou das sanções de que são passíveis, não é possível o recurso à modalidade de resolução simplificada de certos processos penais constituída por um procedimento de extinção da acção penal, como os que estão em causa nos processos principais.

    41 Os Governos alemão, belga e francês objectam, contudo, que não só a redacção do artigo 54.° da CAAS, mas também a economia desta disposição e, designadamente, as suas relações com os artigos 55.° e 58.° desta convenção, bem como a vontade das partes contratantes desta e certos outros textos internacionais com um objecto equivalente, opõem-se a que o referido artigo 54.° seja interpretado no sentido de que é aplicável a procedimentos de extinção da acção penal em que não há intervenção de qualquer órgão jurisdicional. O Governo belga acrescenta que, para efeitos de aplicação desta disposição, uma decisão tomada no âmbito de um processo, como o que está em causa no processo Brügge, apenas pode ser equiparada a um julgamento definitivo se, previamente, os direitos da vítima tivessem sido devidamente acautelados.

    42 Quanto, em primeiro lugar, à redacção do artigo 54.° da CAAS, importa recordar, como resulta dos n.os 26 a 38 do presente acórdão, que, tendo em conta o objecto e a finalidade desta disposição, a utilização da expressão «definitivamente julgada» não se opõe a que seja interpretada no sentido que é também susceptível de se aplicar a procedimentos de extinção da acção penal, como os que estão em causa nos processos principais, que não prevêem a intervenção de qualquer órgão jurisdicional.

    43 Em segundo lugar, longe de exigir que o artigo 54.° da CAAS seja unicamente aplicável a sentenças ou procedimentos de extinção da acção penal que prevejam a intervenção de um órgão jurisdicional, os artigos 55.° e 58.° da CAAS são compatíveis com a interpretação desta disposição como resulta dos n.os 26 a 38 do presente acórdão.

    44 Com efeito, por um lado, o artigo 55.° da CAAS, na medida em que permite aos Estados-Membros derrogar à aplicação do princípio ne bis in idem em relação a determinados factos enumerados limitativamente e constantes de decisões estrangeiras, deve, logicamente, aplicar-se aos mesmos actos e procedimentos pelos quais uma pessoa pode ser «definitivamente julgada», na acepção do artigo 54.° da CAAS. Esta conclusão impõe-se tanto mais que os artigos 54.° e 55.° da CAAS utilizam, na maior parte das versões linguísticas, o mesmo termo para designar estes actos e procedimentos.

    45 Por outro lado, a aplicação do artigo 54.° da CAAS a procedimentos de extinção da acção penal como os que estão causa nos processos principais não é susceptível de retirar o efeito útil do artigo 58.° da CAAS. Com efeito, segundo a sua redacção, esta disposição permite aos Estados-Membros aplicar disposições nacionais mais amplas do que as previstas não só no artigo 54.° da CAAS, mas também em todas as disposições desta convenção relativas à aplicação do princípio ne bis in idem. Além disso, permite-lhes não só aplicar este a decisões judiciais diferentes das incluídas no âmbito de aplicação do referido artigo 54.° , mas também lhes reconhece, de maneira mais geral, o direito de aplicar disposições nacionais que atribuam a este princípio um âmbito mais vasto ou sujeitem a sua aplicação a condições menos restritivas, sem qualquer relação coma a natureza das decisões estrangeiras em causa.

    46 Quanto, em terceiro lugar, à vontade das partes contratantes, como resulta de certos trabalhos parlamentares nacionais relativos à ratificação da CAAS ou da convenção entre os Estados-Membros das Comunidades Europeias relativa à aplicação do princípio ne bis in idem, de 25 de Maio de 1987, que contém, no seu artigo 1.° , uma disposição no essencial idêntica à do artigo 54.° da CAAS, basta referir que estes trabalhos são anteriores à integração do acervo de Schengen no âmbito da União Europeia pelo Tratado de Amsterdão.

    47 Em último lugar, quanto à alegação do Governo belga segundo a qual a aplicação do artigo 54.° da CAAS a transacções penais poderia violar os direitos da vítima de uma infracção, há que referir que o princípio ne bis in idem, como está enunciado nesta disposição, tem como único efeito evitar que uma pessoa definitivamente julgada num Estado-Membro seja objecto de novos procedimentos criminais pelos mesmos factos noutro Estado-Membro. O referido princípio não impede a vítima ou qualquer outra pessoa lesada pelo comportamento do arguido de intentar ou de prosseguir uma acção cível destinada a pedir a reparação do prejuízo que sofreu.

    48 Face às considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o princípio ne bis in idem, previsto no artigo 54.° da CAAS, se aplica igualmente a procedimentos de extinção da acção pública, como os que estão em causa nos processos principais, pelos quais o Ministério Público de um Estado-Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o procedimento criminal instaurado nesse Estado, depois de o arguido ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago determinada soma em dinheiro fixada pelo Ministério Público.

    Decisão sobre as despesas


    Quanto às despesas

    49 As despesas efectuadas pelos Governos alemão, belga, francês, italiano e neerlandês, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante os órgãos jurisdicionais nacionais, compete a estes decidirem quanto às despesas.

    Parte decisória


    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

    pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Oberlandesgericht Köln e pelo Rechtbank van eerste aanleg te Veurne, respectivamente por despachos de 30 de Março e de 4 de Maio de 2001, declara:

    O princípio ne bis in idem, previsto no artigo 54.° da convenção de aplicação do acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em 19 de Junho de 1990 em Schengen, aplica-se igualmente a procedimentos de extinção da acção penal, como os que estão em causa nos processos principais, pelos quais o Ministério Público de um Estado-Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o procedimento criminal instaurado nesse Estado, depois de o arguido ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago determinada soma em dinheiro fixada pelo Ministério Público.

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