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Document 61995CC0011

Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 30 de Abril de 1996.
Comissão das Comunidades Europeias contra Reino da Bélgica.
Directiva 89/552/CEE - Transmissão de programas por cabo.
Processo C-11/95.

Colectânea de Jurisprudência 1996 I-04115

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1996:178

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

CARL OTTO LENZ

apresentadas em 30 de Abril de 1996 ( *1 )

A — Introdução

1.

O presente processo, bem como o processo C-222/94, no qual hoje apresentei igualmente conclusões, dão pela primeira vez ao Tribunal de Justiça ocasião de se pronunciar sobre problemas essenciais da Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de Outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares c administrativas dos Estados-Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva ( 1 ) (a seguir «directiva»).

Disposições de direito comunitário aplicáveis

2.

Resulta de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que as emissões de televisão — incluindo as mensagens publicitárias — devem ser consideradas prestações de serviços na acepção dos artigos 59.° e 60.° do Tratado CE ( 2 ). Está-se também no domínio da liberdade de prestação de serviços protegida por estas disposições do Tratado quando um operador de uma rede de cabos num Estado-Membro difunde programas de televisão emitidos de outros Estados-Membros ( 3 ).

3.

A directiva tem como principal objectivo eliminar os entraves à livre circulação de serviços no domínio da televisão ( 4 ). A este propósito, pode ler-se nos seus considerandos:

[9]

«considerando que as disposições legislativas, regulamentares c administrativas dos Estados-Membros aplicáveis ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva e de distribuição por cabo apresentam disparidades que são de natureza a entravar a livre circulação de emissões na Comunidade e a falsear o jogo da concorrência no interior do mercado comum;

[10]

considerando que todas essas barreiras à livre difusão no interior da Comunidade devem ser suprimidas por força do Tratado;

[11]

considerando que essa supressão deve ser acompanhada de uma coordenação das legislações aplicáveis; que essa coordenação deve ter como objectivo facilitar o exercício das actividades profissionais em causa e, de uma forma mais geral, a livre circulação das informações e das ideias no interior da Comunidade;

[12]

considerando que, por consequência, é necessário e suficiente que todas as emissões respeitem a legislação do Estado-Membro de onde provêm» ( 5 ).

Segundo os motivos apresentados pelo Conselho, a directiva prevê «disposições mínimas necessárias para garantir a livre difusão de emissões». Os Estados-Membros conservam as suas competências no que respeita à organização e ao financiamento das emissões, bem como ao conteúdo dos programas ( 6 ). Os considerandos prosseguem nos seguintes termos:

[14]

«considerando que é necessário, no âmbito do mercado comum, que todas as emissões provenientes da Comunidade e destinadas a ser captadas no seu interior e, nomeadamente, as emissões destinadas a um outro Estado-Membro respeitem a legislação do Estado-Membro de origem aplicável às emissões destinadas ao público desse Estado-Membro, bem como as disposições da presente directiva;

[15]

considerando que a obrigação do Estado-Membro de origem de se assegurar de que as emissões são conformes com a legislação nacional, tal como coordenada pela presente directiva, é suficiente, no que diz respeito ao direito comunitário, para garantir a livre circulação das emissões, sem que seja necessário um segundo controlo pelos mesmos motivos nos Estados-Membros receptores; que, no entanto, o Estado-Membro receptor pode, a título excepcional e em condições específicas, suspender provisoriamente a retransmissão de emissões televisivas» ( 7 ).

4.

O artigo 1.° da directiva, que constitui o seu capítulo I, comporta diferentes definições. A noção de «radiodifusão televisiva» na acepção da directiva é definida nessa disposições. Por radiodifusão televisiva entende-se «a transmissão primária, com ou sem fio, terrestre ou por satélite, codificada ou não, de programas televisivos destinados ao público».

5.

O capítulo II da directiva («Disposições gerais») comporta os artigos 2.° e 3.° As passagens que nos interessam no presente processo têm a seguinte redacção:

«Artigo 2.°

1.   Cada Estado-Membro velará por que todas as emissões de radiodifusão televisiva transmitidas:

por organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição, ou

por organismos de radiodifusão televisiva que utilizem uma frequência ou uma capacidade de satélite concedidas por esse Estado-Membro ou uma ligação ascendente com um satélite situada nesse Estado-Membro, embora não sob a jurisdição de nenhum Estado-Membro,

respeitem a legislação aplicável às emissões destinadas ao público nesse Estado-Membro.

2.   Os Estados-Membros assegurarão a liberdade de recepção c não colocarão entraves à retransmissão nos seus territórios de programas de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados-Membros por razões que caiam dentro dos domínios coordenados pela presente directiva. Os Estados-Membros podem suspender provisoriamente a retransmissão de um programa televisivo caso se encontrem reunidas as seguintes condições:

a)

Um programa televisivo proveniente de outro Estado-Membro infrinja manifesta, séria e gravemente o artigo 22.°;

b)

O organismo de radiodifusão televisiva tenha infringido a mesma disposição pelo menos duas vezes no decurso dos doze meses precedentes;

c)

O Estado-Membro cm causa tenha notificado por escrito o organismo de radiodifusão televisiva e a Comissão das alegadas violações c da sua intenção de restringir a retransmissão no caso de tal violação voltar a verificar-se;

d)

As consultas com o Estado de transmissão e a Comissão não tenham conduzido a um acerto amigável no prazo de 15 dias a contar da notificação prevista na alínea c), persistindo a alegada violação.

A Comissão velará pela compatibilidade da suspensão com o direito comunitário. A Comissão pode solicitar ao Estado-Membro em causa que cesse urgentemente quaisquer suspensões contrárias ao direito comunitário. Esta disposição não afecta a aplicação de qualquer procedimento, medida ou sanção às violações em causa no Estado-Membro sob cuja jurisdição se encontre o organismo de radiodifusão televisiva implicado.

3.   ...

Artigo 3.°

1.   Os Estados-Membros têm a faculdade, no que respeita aos organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição, de prever normas mais rigorosas ou mais pormenorizadas nos domínios abrangidos pela presente directiva.

2.   Os Estados-Membros assegurarão, através dos meios apropriados e no âmbito das respectivas legislações, a observância das disposições da presente directiva por parte dos organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição.»

6.

O capítulo III («Promoção da distribuição e da produção de programas televisivos») comporta, nos artigos 4.° a 9.°, disposições que devem assegurar que «as produções europeias sejam maioritárias nos programas televisivos dos Estados-Membros» ( 8 ). Além disso, o surgimento de «novas fontes de produção televisiva» ( 9 ) será encorajado na Comunidade, reservando uma parte dos programas televisivos ou dos meios orçamentais dos organismos de radiodifusão televisiva a produtores independentes.

7.

O artigo 4.° da directiva dispõe, assim, que «sempre que tal se revele exequível e através dos meios adequados», os Estados-Membros velarão por que os organismos de radiodifusão televisiva reservem a obras comunitárias ( 10 ) uma percentagem maioritária do seu tempo de antena, excluindo o tempo consagrado aos noticiários, a manifestação desportivas, jogos, publicidade ou serviços de teletexto (n.° 1). Sempre que não for possível atingir esta percentagem, o valor a considerar não deve ser inferior à percentagem média registada em 1988 ou 1990 no Estado-Membro em causa (n.° 2).

O artigo 5.° dispõe que «sempre que tal se revele exequível e através de meios adequados», os Estados-Membros velarão por que os organismos de radiodifusão televisiva reservem pelo menos 10% do seu tempo de antena ou pelo menos 10% do seu orçamento de programação a obras europeias provenientes de produtores independentes dos organismos de radiodifusão televisiva.

8.

O capítulo IV (artigos 10.° a 21.°) da directiva comporta disposições relativas à publicidade televisiva e ao patrocínio. O artigo 14.° proíbe a publicidade de medicamentos c de tratamentos médicos que apenas mediante receita médica estejam disponíveis no Estado-Mcmbro sob cuja jurisdição se encontre o organismo de radiodifusão televisiva. O artigo 15.° sujeita a publicidade televisiva de bebidas alcoólicas a certas condições.

9.

O capítulo V (artigo 22.°) da directiva é consagrado à protecção dos menores. Nos termos deste artigo, os Estados-Membros tomarão as medidas apropriadas para assegurar que as emissões dos organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição não incluam programas «susceptíveis de prejudicar gravemente o desenvolvimento físico, mental ou moral dos menores, nomeadamente programas que incluam cenas de pornografia ou de violência gratuita».

10.

O capítulo VI (artigo 23.°) da directiva trata do direito de resposta. O capítulo VII (artigos 24.° a 27.°) contém as disposições finais. Nos termos do artigo 25.°, n.° 1, da directiva, os Estados-Membros deviam adoptar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à directiva o mais tardar em 3 de Outubro de 1991. Segundo o artigo 25.°, n.° 2, os Estados-Membros deviam comunicar à Comissão as disposições essenciais de direito interno adoptadas neste domínio.

Legislação belga

11.

Na Bélgica, são as comunidades que são, em grande parte, competentes no domínio da televisão. Por esta razão, farei cm seguida uma exposição das legislações da Comunidade Francesa, da Comunidade Flamenga, da Região bilíngue Bruxelas-Capital c da Comunidade Germanofona.

Legislação da Comunidade Francesa

12.

Na Comunidade Francesa, as disposições que nos interessam constam do decreto da Comunidade Francófona sobre o audiovisual, de 17 de Julho de 1987 ( 11 ) (a seguir «decreto de 17 de Julho de 1987»), na versão resultante do decreto da Comunidade Francofona de 19 de Julho de 1991 ( 12 ).

13.

Os artigos 20.° e seguintes do decreto de 17 de Julho de 1987 dizem respeito à transmissão dos programas de rádio e de televisão por cabo.

14.

O artigo 22.°, n.° 1, diz respeito aos programas das estações de televisão belgas. Nos termos do artigo 22.°, n.° 2, do decreto, o «distribuidor» — ou seja, o operador de uma rede de cabos — pode, mediante autorização escrita e prévia do Executivo (o Executivo da Comunidade Francesa), transmitir programas de televisão de outras estações autorizadas pelo Estado em que tenham a sua sede social e que respondam às condições fixadas pelo Executivo no acto de autorização. Esta autorização pode ser revogada.

Os distribuidores de programas por cabo são, consequentemente, tributários da autorização prévia do Executivo quando pretendem transmitir na rede programas de estações estrangeiras — e, por conseguinte, também emissões provenientes de outros Estados-Membros. Esta autorização só é concedida se o organismo de radiodifusão tiver, em cada ocasião, celebrado um contrato de direito privado com o Executivo. O regulamento do Executivo da Comunidade Francesa de 22 de Novembro de 1988 define o quadro destes contratos ( 13 ). Nestes, os organismos de radiodifusão devem, nomeadamente, comprometer-se a consagrar uma parte do seu orçamento à aquisição ou à produção de programas europeus.

15.

O artigo 26.° do decreto determina a medida em que a publicidade pode ser inserida nos programas televisivos. Nos termos do artigo 26.°, n.° 2, os organismos de radiodifusão que respondam às condições fixadas pelo Executivo nos termos do artigo 22.°, n.° 2, podem difundir publicidade comercial especialmente destinada aos telespectadores da Comunidade Francesa, mediante autorização expressa e prévia do Executivo. Em conformidade com o n.° 3, o Executivo determina as condições em que os programas televisivos podem comportar publicidade. Estas condições impõem, nomeadamente, ao organismo de radiodifusão em questão a participação na promoção de produções culturais audiovisuais da Comunidade Francofona e dos Estados da União Europeia e de manter e desenvolver o pluralismo audiovisual e da imprensa escrita na Comunidade Francesa.

O artigo 26.° ter, n.° 1, do decreto, prevê que os organismos de radiodifusão referidos no artigo 26.°, n.° 2, podem difundir programas denominados de «tclevenda» ( 14 ) mediante autorização expressa e prévia do Executivo. As explicações fornecidas pelas partes na presente acção devem levar à conclusão de que esta disposição é aplicável às emissões de venda especialmente destinadas aos telespectadores da Comunidade Francesa.

16.

Nos termos do artigo 22.°, n.° 2 bis, do decreto, o operador de uma rede de cabos pode difundir programas de televisão dos organismos de radiodifusão que disponham da autorização referida no artigo 26.°, n.° 2, e que respondam às condições fixadas pelo Executivo ao abrigo do artigo 26.°, n.° 3 ( 15 ).

Legislação da Comunidade Flamenga

17.

Numa primeira fase, esta matéria era regulada — nas questões que interessam para o presente processo — pelo decreto da Comunidade Flamenga de 28 de Janeiro de 1987, relativo à transmissão de programas sonoros e de televisão nas redes de radiodistribuição e relativo à aprovação das sociedades de televisão não públicas ( 16 ) (a seguir «decreto de 28 de Janeiro de 1987»). Nos termos do artigo 3.° deste decreto, os programas de organismos de radiodifusão estabelecidos noutros Estados-Membros só podiam ser transmitidos nas redes por cabo flamengas se fossem difundidos na língua ou numa das línguas do país de origem e se o Executivo flamengo — no caso de se tratar de organismos de radiodifusão não públicos de outros Estados-Membros — desse uma autorização prévia, que podia ser sujeita a condições.

18.

No acórdão que proferiu em 16 de Dezembro de 1992 ( 17 ), o Tribunal de Justiça declarou que esta regulamentação violava, entre outros, os artigos 59.° e 60.° do Tratado.

19.

Em 4 de Maio de 1994, a Comunidade Flamenga adoptou o decreto relativo ss redes de rádio c tcledistribuição e à autorização requerida para a criação e a exploração dessas redes c relativo à promoção da difusão c à produção de programas de televisão ( 18 ) (a seguir «decreto de 4 de Maio de 1994»). Este revogou um certo número de disposições do decreto de 28 de Janeiro de 1987 (entre as quais o seu artigo 3.°) c submeteu as questões que nos interessam a uma nova regulamentação.

20.

O artigo 3.° do decreto de 4 de Maio de 1994 dispõe que ninguém pode criar nem explorar urna rede de radiodistribuição ou de teledistribuição sem autorização do Governo flamengo, nas condições fixadas no decreto. Esta autorização indica, nomeadamente, os programas que podem ser transmitidos. As eventuais alterações relativamente à transmissão de um novo programa devem ser submetidas à aprovação («goedkeuring») do Governo flamengo. Este decide se as condições fixadas no decreto se encontram preenchidas. A decisão que aprova ou rejeita a alteração deve ser notificada ao distribuidor no prazo de quatro meses. O distribuidor fica autorizado a proceder à alteração projectada a partir do momento em que é aprovada pelo Governo ou no termo do prazo de quatro meses (artigo 5.°, n.° 2, do decreto).

21.

Nos termos do artigo 10.°, n.° 2, do decreto, os programas dos organismos de radiodifusão autorizados por outro Estado-Membro da União Europeia podem ser transmitidos na rede por cabo desde que o organismo de radiodifusão televisiva em causa seja submetido, nesse Estado-Membro, à fiscalização a que estão sujeitos os organismos de radiodifusão que se dirigem ao público desse Estado-Membro e que essa fiscalização tenha efectivamente por objecto o respeito da regulamentação europeia. Por outro lado, esta disposição exige que o organismo de radiodifusão em questão e os programas por ele difundidos não ponham em causa a ordem pública, os bons costumes e a segurança pública na Comunidade Flamenga.

Legislação da Região bilíngue Bruxelas--Capital

22.

Nos termos do artigo 127.°, n.° 2, da Constituição belga, os decretos emitidos pela Comunidade Francesa e pela Comunidade Flamenga cobrem igualmente os distribuidores de programas por cabo que tenham a sua sede na Região bilíngue Bruxelas-Capital, na medida em que seja de considerar que pertencem a uma ou outra comunidade em razão das suas actividades ( 19 ).

23.

Os outros distribuidores de programas por cabo estabelecidos neste território estão hoje sujeitos à lei promulgada em 30 de Março de 1995, relativa às redes de radiodistribuição e de teledistribuição e ao exercício das actividades de radiodifusão televisiva na Região bilíngue Bruxelas-Capital ( 20 ).

Legislação da Comunidade Germanófona

24.

Na Comunidade Germanofona, a matéria começou por ser regulada pelo decreto real de 24 de Dezembro de 1966, relativo às redes de distribuição de emissões de radiodifusão às habitações de terceiros ( 21 ). O artigo 21.° deste decreto proibia, nomeadamente, aos distribuidores a transmissão de emissões de publicidade ( 22 ).

25.

Este decreto tinha sido adoptado com base no artigo 13.° de uma lei de 26 de Janeiro de 1960 ( 23 ). Esta disposição foi revogada pelo artigo 30.° da lei de 13 de Julho de 1987 ( 24 ). Assim, a Comunidade Germanofona não dispõe actualmente de uma regulamentação susceptível de proibir a transmissão de emissões televisivas ( 25 ).

Tramitação do processo

26.

Em 3 de Novembro de 1992, a Comissão enviou ao Reino da Bélgica uma carta em que, nos termos do artigo 169.° do Tratado CE, o convidava a apresentar as suas observações sobre as acusações que lhe dirigia. Nessa carta, acusava o Reino da Bélgica de que o artigo 2.°, n.° 2, da directiva não tinha sido correctamente transposto nas três comunidades linguísticas nem na Região Bruxelas-Capital. No que respeita à Comunidade Francesa, a Comissão acusava-o, além disso, de violação dos artigos 13.°, 14.°, 15.° e 23.° da directiva. Quanto à Comunidade Flamenga, de violação dos artigos 4.°, 5.°, 22.° c 23.° da directiva. Finalmente, afirmou que os capítulos III e IV da directiva não tinham sido correctamente transpostos nem na Comunidade Germanofona nem na Região bilíngue Bruxelas-Capital.

27.

Em 5 de Abril de 1993, a Comissão recebeu cm resposta uma carta que expunha o ponto de vista da Comunidade Flamenga. Por outro lado, recebeu, em 21 de Abril de 1993, uma carta com a posição da Comunidade Francesa.

28.

Em 10 de Janeiro de 1994, a Comissão enviou um parecer fundamentado ao Reino da Bélgica. A Comissão acusava o seu destinatário de não a ter informado, de modo preciso, sobre as medidas tomadas ou a tomar para assegurar a transposição completa da directiva. Além disso, não tinha transposto correctamente o artigo 2.°, n.° 2, da directiva. Em relação à Comunidade Francesa, invocava ainda a violação dos artigos 14.° c 15.° da directiva. Quanto à Comunidade Flamenga, invocava a violação dos artigos 4.°, 5.° c 22.° da directiva. Finalmente, afirmou que as disposições da directiva não tinham sido correctamente transpostas na Região Bruxelas-Capital relativamente aos organismos que não pertencem à Comunidade Flamenga nem à Comunidade Francófona. Em seu entender, o Reino da Bélgica não cumpriu, portanto, as obrigações que lhe incumbem por força da directiva e do artigo 5.° do Tratado, convidando-o a pôr termo a este incumprimento no prazo de dois meses.

29.

A Comissão recebeu, por carta de 4 de Fevereiro de 1994, o projecto de um novo decreto da Comunidade Flamenga. Por carta de 9 de Junho de 1994, o Reino da Bélgica enviou à Comissão a cópia do decreto de 4 de Maio de 1994, entretanto publicado.

A resposta da Comunidade Francofona foi dada numa carta de 11 de Abril de 1994. Finalmente, a Comissão recebeu uma carta de um ministro belga, de 7 de Abril de 1994, que respondia às acusações relativas à Região Bruxelas-Capital.

30.

Em 16 de Janeiro de 1995, a Comissão intentou no Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 169.° do Tratado, uma acção destinada a obter a declaração de que o Reino da Bélgica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da directiva, designadamente dos seus artigos 2.°, 14.° e 15.°,

ao manter, relativamente à Comunidade Francesa, na Região de língua francesa, um sistema de autorização prévia para transmissão por cabo de emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados-Membros;

ao manter, relativamente à Comunidade Francófona, na Região de língua francesa, um sistema de autorização expressa e prévia que impõe condições para transmissão por cabo de emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados-Membros que incluam publicidade ou programas de televenda particularmente destinados aos telespectadores da Comunidade Francesa;

ao manter, relativamente à Comunidade Flamenga, na Região de língua neerlandesa, um sistema de autorização prévia para transmissão por cabo de emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados-Membros;

ao não adoptar, no que respeita à Região bilíngue Bruxelas-Capital, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento ao disposto no artigo 2.°, n.° 2, da Directiva 89/552/CEE;

ao não adoptar, relativamente à Comunidade Germanofona, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias ao cumprimento do disposto no artigo 2.°, n.° 2, da Directiva 89/552/CEE;

ao não adoptar, no que respeita à Comunidade Francófona, as disposições legislativas, regulamentares c administrativas necessárias ao cumprimento integral do disposto nos artigos 14.° e 15.° da Directiva 89/552/CEE.

Além disso, a Comissão pediu que o Reino da Bélgica fosse condenado nas despesas.

31.

O demandado conclui pedindo que a acção seja julgada improcedente tanto no que respeita à Comunidade Francófona como à Comunidade Germanofona e à Região Bruxelas-Capital. Concluiu pedindo que fosse julgada inadmissível na parte relativa à Comunidade Flamenga ou, subsidiariamente, que fosse julgada improcedente.

Β — Parecer

32.

Começarei por apreciar se a acusação feita pela Comissão ao Reino da Bélgica de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 2.°, n.° 2, da directiva, é procedente. Deve cfcctuar-sc uma análise separada em relação às três comunidades linguísticas e à Região bilíngue Bruxelas-Capital. Concluirei pela análise da acusação de ter violado os artigos 14.° c 15.° da directiva no que respeita à Comunidade Francesa.

I — Violação do artigo 2, °, n. ° 2, da directiva

1. Comunidade Francófona

a) Artigo 22.°, n.° 2, do decreto de 17 de Julho de 1987

33.

A Comissão considera que, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, da directiva, é, em princípio, unicamente ao Estado-Membro de onde provém a emissão («o Estado-Membro de origem» ( 26 )) que compete controlar se o organismo de radiodifusão cm questão cumpriu a regulamentação desse Estado-Membro e as disposições da directiva. O artigo 2.°, n.° 2, da directiva obriga os Estados-Membros a assegurar a liberdade de recepção das emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados-Membros e a não colocar entraves à sua retransmissão por razões que caiam dentro dos domínios coordenados pela presente directiva — à parte a excepção enunciada no artigo 2.°, n.° 2, segunda frase. Por conseguinte, considera incompatível com esta disposição que um Estado-Membro («o Estado-Membro de recepção» ( 27 )) sujeite a distribuição por cabo de emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados-Membros a autorização prévia, como faz o artigo 22.°, n.° 2, do decreto de 17 de Julho de 1987.

34.

O Reino da Bélgica não contesta que a regulamentação da Comunidade Francesa exige uma autorização dessa natureza. Sustenta, porém, que a disposição em questão está em conformidade com a regulamentação comunitária. Para tanto, tece um certo número de considerações que importa analisar.

35.

O demandado defende que não pode ser aceite que haja violação das disposições da directiva já que esta não se aplica à transmissão de televisão por cabo. Em todo o caso, uma vez que não se trata de uma emissão primária por cabo ( 28 ). Baseia-se, em especial, na definição do conceito de «radiodifusão televisiva» constante do artigo 1.°, alínea a), da directiva, o qual deve ser entendido como «a transmissão primária de programas televisivos» ( 29 ). O entendimento da Comissão tão-pouco é confortado pelo termo «retransmissão» utilizado no artigo 2.°, n.° 2. A directiva não define este termo. Se realmente também se tivesse pretendido abranger a retransmissão por cabo, ter-se-ia utilizado um outro termo. Efectivamente, a Directiva 93/83/CEE do Conselho, de 27 de Setembro de 1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo ( 30 ) utiliza também a expressão «retransmissão por cabo». Se assim não fosse, a directiva ora em causa afastar-se-ia da linguagem internacionalmente utilizada ( 31 ).

Além disso, deve considerar-se que a teledistribuição não estava ainda muito divulgada no momento em que a directiva foi adoptada. Por conseguinte, não se pode conceber que o legislador europeu tenha pretendido legislar neste domínio.

36.

Estes argumentos não me convencem. Em meu entender, não restam dúvidas de que a directiva regula igualmente a retransmissão por cabo de programas provenientes de outros Estados-Membros. A opinião contrária não pode lançar mão da definição do termo «radiodifusão televisiva», quanto mais não seja porque o artigo 2.°, n.° 2, da directiva não o utiliza enquanto tal, preferindo-lhe «retransmissão». A Directiva 93/83 tão-pouco permite concluir que o termo «retransmissão» não abrange as actividades dos distribuidores por cabo. Pelo contrário, este diploma parece confortar o entendimento da Comissão. A expressão «retransmissão por cabo» é aí definida como a «retransmissão» de programas «por cabo ou microondas» ( 32 ). Isto confirma a minha convicção de que, no espírito do legislador europeu, a noção de «retransmissão» é suficientemente ampla para englobar igualmente a comunicação através das redes por cabo.

37.

Da própria directiva resulta além disso claramente que deve aplicar-se à retransmissão de emissões por cabo. Neste sentido, a Comissão apoia-se, e com razão, nos considerandos nono e dècimo da sua fundamentação ( 33 ). Neles se faz referencia, além do mais, às barreiras à livre prestação de serviços que podem resultar das disparidades entre as disposições nacionais sobre o «exercício de actividades de radiodifusão televisiva e de distribuição por cabo». «Todas essas barreiras» à livre difusão no interior da Comunidade devem, no entender do Conselho, ser suprimidas ( 34 ).

De certo interesse me parece, neste contexto, também o Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, assinado em 2 de Maio de 1992 c aprovado, em nome da Comunidade, por decisão do Conselho e da Comissão de 13 de Dezembro de 1993 ( 35 ). Para efeitos deste acordo, foi feito um aditamento ao artigo 15.° da directiva nos termos do qual «os Estados da EFTA podem obrigar as empresas de televisão por cabo que operem nos seus territórios a provocar interferências no sinal ou a perturbar de outro modo a recepção dos spots publicitários de bebidas alcoólicas». Esta «excepção», todavia, «não deverá ter como consequência a restrição da retransmissão de partes de programas televisivos que não os spots publicitários de bebidas alcoólicas» ( 36 ). Também isto apoia o entendimento da Comissão de que a directiva sc aplica à transmissão dc televisão por cabo.

38.

De resto, a Comissão refere, com razão, que na convenção do Conselho Europeu de 5 de Maio de 1989 sobre a televisão sem fronteiras ( 37 ) é também utilizado o termo «retransmission». Esta convenção, nos termos do seu artigo 3.°, é também aplicável a programas difundidos por cabo c foi celebrada poucos meses antes da directiva. Isto demonstra que na data cm questão — ao contrário do afirmado pelo demandado — se tinha pensado regulamentar o sector da televisão por cabo. A circunstância invocada pelo Reino da Bélgica de que não teria ainda sido ratificada a referida convenção não tem por conseguinte qualquer pertinência.

39.

O entendimento do demandado de que a directiva não abrange o sector da televisão por cabo não pode por isso ser aceite. Não colhe também a afirmação do demandado de que o regime legal vigente na Comunidade Francesa se aplica apenas aos operadores de rede de distribuição por cabo estabelecidos no seu território, pelo que não haveria restrição à livre prestação de serviços. Efectivamente, há que ter em conta que, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o princípio da liberdade de prestação de serviços é igualmente válido para a difusão de programas de televisão de outros Estados-Membros ( 38 ). Ora, do nono considerando da fundamentação da directiva resulta que esta teve exactamente por objectivo a harmonização das regulamentações nacionais atentatórias desta liberdade.

40.

O demandado sustenta ainda que a necessidade de autorização serve, na prática, acima de tudo, para se estabelecer a que jurisdição fica sujeito o organismo de radiodifusão, para efeitos do n.° 1 do artigo 2° da directiva. Sustenta, a este propósito, que a aplicação do n.° 1 do artigo 2.° poderia conduzir a dificuldades e ter como consequência que dois Estados-Membros pretendessem ter competência relativamente a um mesmo organismo de radiodifusão televisiva.

41.

Este argumento não releva. É verdade que a aplicação do n.° 1 do artigo 2° da directiva tem suscitado dificuldades ( 39 ) e que, por isso, um Estado-Membro tem interesse legítimo em esforçar-se por saber de que Estado-Membro depende um determinado organismo de radiodifusão televisiva. É todavia evidente que qualquer legislação que faz depender a difusão de programas de outros Estados-Membros de uma autorização, vai longe de mais e por isso não é justificada por aquele interesse. A Comissão salientou justamente que o demandado devia ter feito a prova de que a autorização era necessária para o Estado-Membro obter as informações necessárias e que não existia qualquer outra alternativa menos restritiva para atingir o mesmo objectivo. Esta demonstração não foi feita.

42.

O demandado centra a sua defesa noutro argumento mais fundamental. O Reino da Bélgica entende que o n.° 1 do artigo 2° da directiva prima sobre o n.° 2 da mesma disposição. Assim sendo, todas as emissões de televisão deviam estar sujeitas à legislação do Estado-Membro de origem e — nos termos do artigo 3.° da directiva — às disposições da directiva. Apenas estas emissões poderiam beneficiar das vantagens do n.° 2 do artigo 2.°, isto é, só preenchida esta condição ficariam os restantes Estados-Membros obrigados a garantir a liberdade da sua recepção e a não limitarem a sua difusão. O demandado conclui daí que o Estado de recepção tem o direito de verificar se a legislação do Estado de origem e as disposições da directiva foram respeitadas.

O demandado sustenta que a actuação da Comunidade Francesa visa em especial a execução dos artigos 4.° e 5.° da directiva. Na audiência no Tribunal de Justiça sustentou ainda que o artigo 4.° da directiva parece ser aplicável a todos os Estados-Membros e por isso não cabe apenas ao Estado-Membro de origem velar pelo seu cumprimento.

43.

Diga-se de imediato que, a meu ver, este entendimento não pode ser aceite. Tal entendimento levaria a um segundo controlo das emissões de televisão pelo Estado de recepção, controlo que a directiva visa precisamente evitar. Λ seguir-se o entendimento do demandado, a liberalização pretendida pela directiva no domínio da televisão seria amplamente frustrada.

44.

O ponto de vista sustentado pelo demandado é contrário quer ao teor, quer ao sentido c fim da directiva. Nos termos do n.° 1 do seu artigo 2.°, o Estado de origem deve velar para que o organismo de radiodifusão televisiva que está sujeito à sua jurisdição ou que por qualquer outro fundamento dele depende se submeta ao direito aplicável, no mesmo Estado-Mcmbro, às emissões destinadas ao público cm geral. Nos termos do n.° 2 do artigo 3.° da directiva, o Estado-Mcmbro de origem deve além disso velar para que os organismos de radiodifusão televisiva sujeitos à sua jurisdição cumpram as disposições da directiva. Estas obrigações incidem sobre o Estado-Membro de origem. Os Estados-Membros de recepção são objecto do n.° 2 do artigo 2.° A estes incumbe garantir a liberdade de recepção e têm o dever de não impedir a difusão dessas retransmissões — salvo num caso ali previsto — por razões que relevam dos domínios coordenados pela directiva.

45.

Isto corresponde perfeitamente à ideia que resulta em especial do décimo quinto considerando da directiva. Ali se refere que a obrigação do Estado-Membro de origem de se assegurar de que as emissões são conformes com a legislação nacional tal como coordenada pela presente directiva basta, no que diz respeito ao direito comunitário, para garantir a livre circulação das emissões de televisão, «sem que seja necessário um segundo controlo pelos mesmos motivos nos Estados-Membros receptores». Daqui resulta claramente que não pode ser permitido a cada Estado-Mcmbro de recepção proceder a um segundo controlo. O que a seguir se afirma no mesmo considerando sublinha ainda este entendimento na medida cm que ali se refere que o Estado-Mcmbro de recepção pode «no entanto... a título excepcional c cm condições específicas», suspender «provisoriamente» a retransmissão de um programa.

46.

Apenas no segundo período do n.° 2 do artigo 2.° da directiva se prevê a possibilidade de o Estado-Mcmbro de recepção intervir. Todavia, este poder de intervenção é estritamente limitado. Apenas existirá no caso de as emissões de outro Estado-Membro violarem o artigo 22.° Trata-se portanto do caso de emissões susceptíveis de prejudicarem gravemente o desenvolvimento físico, mental ou moral dos menores. Todavia, o Estado de recepção apenas poderá intervir no caso de violações claras, sérias e graves. A sua intervenção depende por isso de o organismo emissor em causa ter incorrido em várias violações deste tipo e terem sido infrutíferas consultas com o Estado-Membro de origem e a Comissão. A única conclusão a retirar desta regulamentação em pormenor é que o Estado-Membro de recepção não pode tomar medidas unilaterais contra emissões de outro Estado-Membro fora das condições acima referidas. Desta regulamentação deve ainda retirar-se a conclusão de que o Estado-Membro de recepção não pode tomar medidas unilaterais contra emissões de outros Estados-Membros no caso de reais ou pretensas violações de outras disposições da directiva. Esta conclusão está totalmente em sintonia com as referidas afirmações constantes do décimo quinto considerando da directiva. O entendimento do demandado de que o segundo período do n.° 2 do artigo 2.° não exclui que o Estado de recepção tenha o direito de controlar o cumprimento de outras disposições da directiva não é por isso aceitável.

47.

Este regime tem claramente por base a consideração de que cada Estado-Membro deve confiar em que o Estado-Membro competente cumpra a respectiva obrigação de controlo decorrente do n.° 1 do artigo 2.° e do n.° 2 do artigo 3.° da directiva relativamente aos organismos de radiodifusão televisiva sob sua jurisdição. De resto, isto mesmo resulta já da referida disposição, uma vez que a quinta frase do n.° 2 do artigo 2.° diz expressamente que a possibilidade de o Estado de recepção intervir contra emissões de outros Estados-Membros, sob condições estreitamente limitadas, para protecção dos menores não impede que o Estado de origem possa agir contra as violações em causa.

48.

Parece-me por isso claro que, segundo o espírito da directiva, apenas o Estado-Membro de origem tem competência para vigiar o cumprimento da sua própria legislação e da directiva. O Estado-Membro de recepção apenas pode intervir contra a retransmissão de emissões de outros Estados-Membros nos casos precisamente descritos no segundo período do n.° 2 do artigo 2° da directiva.

49.

Das considerações do demandado resulta claramente que a disposição em causa da Comunidade Francesa visa em especial garantir o cumprimento dos artigos 4° e 5.° da directiva. Ao contrário daquele entendimento penso, todavia, que não se pode concluir, precisamente neste domínio, pela existência do direito de o Estado de recepção submeter a um segundo controlo emissões de outros Estados-Membros. Tanto o artigo 4.° como o artigo 5.° fazem depender claramente as obrigações que provêm de condições relacionadas com a especificidade de cada Estado-Membro. Efectivamente é este que está na melhor situação para avaliar o que, «sempre que tal se revele exequível e através dos meios adequados» pode e deve ser feito para cumprir estas obrigações. Não é admissível que um outro Estado substitua a sua própria apreciação à avaliação feita pelo Estado de origem, ao submeter as suas emissões a um (segundo) controlo.

50.

Isto não significa que não se possa eventualmente avaliar do cumprimento pelo Estado de origem das suas obrigações. Se um Estado-Membro entender que outro Estado-Membro não cumpriu as obrigações que sobre ele impendem por força da directiva poderá utilizar o meio processual previsto no artigo 170.° do Tratado para o caso de violações do Tratado ou dirigir-se à Comissão para que esta intervenha contra o Estado-Mcmbro em causa nos termos do artigo 169.° do mesmo Tratado.

51.

O demandado também não pode invocar que aqueles processos não lhe oferecem protecção adequada uma vez que, em matéria de emissões de televisão, por sua própria natureza, se trata de actuações eminentemente transitórias e os danos que delas possam resultar não podem ser reparados. A este propósito há desde já que referir que o Tribunal de Justiça — como a Comissão justamente referiu — pode, no processo previsto no artigo 186.° do Tratado, tomar medidas provisórias. Todavia, deve acima de tudo ter-se cm conta a avaliação prevista no segundo período do n.° 2 do artigo 2.° da directiva. Se um Estado-Membro de recepção, mesmo num domínio tão importante c sensível como a protecção dos menores, apenas pode actuar unilateralmente mediante determinadas condições, não se compreende porque lhe assistiria esse direito quando está em causa o regime de quotas constante dos artigos 4.° e 5.°

52.

Apenas pela preocupação de ser exaustivo refira-se que a necessidade de autorização também não se justifica por disposições como o n.° 1 do artigo 3.° e o artigo 19.°, segundo as quais os Estados-Membros, relativamente aos organismos de radiodifusão televisiva sujeitos à sua jurisdição, podem estabelecer um regime mais exigente. No caso em apreço trata-se efectivamente de emissões de organismos de radiodifusão televisiva de outros Estados-Membros que não estão sujeitos à jurisdição do Estado de recepção.

53.

Em consequência, pode concluir-se que um segundo controlo das emissões de outro Estado-Membro através do Estado-Membro de recepção, como prevê a legislação da Comunidade Francesa em causa, não é fundamentalmente compatível com a directiva. Deve, além disso, recordar-se que os Estados-Membros apenas são obrigados a não causar entraves à retransmissão daquelas emissões por razões que caiam nos domínios coordenados por esta directiva. Esta não procede a qualquer harmonização integral da actividade de televisão. No seu décimo sétimo considerando afirma-se expressamente que esta, «ao limitar-se a uma regulamentação que visa especificamente a radiodifusão televisiva», não prejudica os actos comunitários de harmonização cm vigor ou futuros «que tenham nomeadamente por objecto fazer respeitar os imperativos rclativos à defesa dos consumidores, à lealdade das transacções comerciais e à concorrência». Se a exigência de autorização tiver como base fundamentos que caem em domínios não coordenados pela directiva, não haverá violação do direito comunitário. O demandado apresentou neste contexto vários argumentos que agora deverão ser examinados.

54.

E talvez agora o momento adequado de entrar resumidamente no argumento que tem por base o artigo 10.° da Convenção Europeia de 4 de Novembro de 1950, para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais ( 40 ). Nos termos do segundo período do n.° 1 do artigo 10.° desta convenção, o direito à liberdade de expressão nele consagrado não exclui que os Estados submetam as empresas de radiodifusão a um regime de autorização. Como a Comissão justamente referiu, o facto de um sistema que imponha aos organismos de radiodifusão televisiva uma autorização dos respectivos Estados ser compatível com a Convenção Europeia, nada altera quanto ao facto de que a referida autorização obrigatória possa ser incompatível com o direito comunitário.

55.

O Reino da Bélgica sustenta que a exigência de autorização em causa permitiria avaliar se as emissões respeitam os direitos de autor e os direitos com eles conexos. Para o efeito, invoca a já referida Directiva 93/83 e em especial o seu artigo 8.°, n.° 1, do seguinte teor:

«Os Estados-Membros garantirão que a retransmissão por cabo de emissões provenientes de outros Estados-Membros se processe, no seu território, no respeito pelo direito de autor e direitos conexos aplicáveis e com base em contratos individuais ou acordos colectivos entre os titulares de direitos de autores, os titulares de direitos conexos e os distribuidores por cabo.»

56.

Nos considerandos da directiva, o Conselho refere que no domínio dos direitos de autor e direitos conexos não existe, a certeza jurídica necessária no que respeita à retransmissão por cabo de emissões além fronteiras. A retransmissão de tais emissões por cabo constitui uma actividade abrangida pela protecção dos direitos de autor e direitos conexos. O operador de uma rede de distribuição por cabo necessita por isso, para o exercício da sua actividade, da autorização do conjunto dos titulares do direito. Todavia, no estado actual das legislações, não é seguro que, ao fazer o correspondente acordo, tenha obtido todos os direitos necessários ( 41 ). O «enquadramento legal da criação de um espaço audiovisual único» através da directiva necessita por isso «de ser completado no que se refere ao direito de autor» ( 42 ).

Nos termos da directiva, o operador de distribuição por cabo deve obter as necessárias autorizações mediante contratos. Para assegurar que o bom funcionamento dos contratos não seja posto em causa pela intervenção de terceiros titulares direitos sobre obras incluídas no programa ( 43 ), a directiva prevê no n.° 1 do seu artigo 9.° que os Estados-Membros garantirão que os direitos de autor e direitos conexos aplicáveis apenas possam ser exercidos «através de entidades de gestão».

57.

Do que antecede resulta que o operador de uma rede de distribuição por cabo deverá fazer com que, na retransmissão de emissões de outros Estados-Mcmbros, não se verifiquem violações dos direitos de autor ou de direitos com eles conexos. Para o efeito, deverão fazer contratos com as entidades de gestão que exercem os direitos daqueles titulares. Os Estados-Mcmbros deverão garantir a realização daquela protecção. Deve considerar-se que os Estados-Mcmbros cumprirão suficientemente esta obrigação se submeterem os exploradores de rede de distribuição por cabo às competentes obrigações jurídicas c velarem pelo seu cumprimento. Não se vê, ao contrário, por que razão, para se atingir um tal objectivo, se deva associar a retransmissão a uma autorização que apenas será concedida se o organismo de radiodifusão televisiva estrangeiro tiver concluído um acordo com o Executivo da Comunidade Francesa. O demandado nada adiantou de que possa concluir-se que a exigência de autorização prévia para protecção dos direitos de autor seja necessária, não existindo meio menos restritivo para obter o mesmo resultado.

58.

Para justificar a disposição em litígio, o Reino da Bélgica invoca, além disso, o artigo 128.° do Tratado. Afirma que a directiva deve ser interpretada à luz desta disposição, acrescentada pelo Tratado da União Europeia ao Tratado CEE e que constitui o único artigo do título IX («A cultura») na parte no capítulo terceiro deste Tratado. Aquele artigo 128.° prevê, além do mais, que a Comunidade contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Mcmbros (n.° 1). Nos termos do seu n.° 4, a Comunidade «terá cm conta os aspectos culturais na sua acção ao abrigo de outras disposições do presente Tratado».

59.

O demandado parece entender que esta disposição permite aos Estados-Mcmbros sujeitar a novo controlo emissões de outros Estados-Membros. Não compreendo todavia como pode ter chegado a esta interpretação. Já própria directiva prosseguia também — cm especial através do regime constante dos seus artigos 4.° c 5.° — fins culturais. Na medida cm que, ao reivindicar o direito do Estado-Mcmbro de recepção de verificar se o Estado-Mcmbro de origem cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da directiva, o demandado visa dar satisfação a esses artigos, trata-se assim de um domínio coordenado pela directiva. Nos termos do claro c várias vezes citado teor do n.° 2 do artigo 2.° da directiva, o Estado-Mcmbro de recepção não pode, todavia, colocar entraves à retransmissão de emissões de outros Estados-Membros por razões que caibam no domínio coordenado pela directiva. Deve, além disso, ter-se em conta que o facto, não contestado, de as questões de natureza cultural serem em primeiro lugar do domínio dos Estados-Membros em nada impede a Comunidade de tomar medidas obrigatórias para os Estados-Membros em matéria de execução das liberdades fundamentais, mesmo quando — como no domínio da televisão — devam ser ponderadas considerações de natureza cultural. Efectivamente, o n.° 5 do artigo 128.° dispõe expressamente que, para contribuir para a realização dos objectivos a que se refere o presente artigo, além de recomendações, o Conselho apenas pode adoptar acções de incentivo, «com exclusão de qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros». Todavia, nem mesmo o demandado pretende que daqui resulte a não existência de base jurídica para a directiva. Assim, o entendimento que sustenta não pode encontrar apoio no referido artigo 128.°

60.

O demandado apoia-se, além disso, no agora previsto princípio da subsidiariedade constante do n.° 2 do artigo 3.°-B do Tratado, sem no entanto esclarecer como poderá este princípio servir de base àquele entendimento. A meu ver, basta ter em conta que os objectivos prosseguidos pela directiva apenas poderão ser atingidos através da coordenação das legislações nacionais. Impunha-se, por isso, uma regulamentação da parte do legislador comunitário. Ao invés, o entendimento do demandado de que os Estados-Membros deveriam poder submeter a um segundo controlo emissões de outros Estados-Membros seria contrário à criação de um «espaço audiovisual único» pretendido pela directiva ( 44 ). Isto confirma, a meu ver, que os Estados-Membros também não podem retirar aquele poder do princípio da subsidiariedade.

Além disso, o princípio da subsidiariedade apenas é aplicável, nos termos do n.° 1 do artigo 3.°-B do Tratado, em domínios não da competência exclusiva da Comunidade. Todavia, a liberdade de prestação de serviços protegida pelos artigos 59.° e seguintes do Tratado, cuja execução a directiva pretende servir, releva — tal como as restantes matérias enumeradas no artigo 7.°-A do Tratado, da competência exclusiva da Comunidade.

61.

Finalmente, há que abordar a afirmação do demandado de que a regulamentação em litígio não constitui qualquer entrave à livre prestação de serviços. Os organismos de radiodifusão televisiva dos Estados-Membros concluiriam livremente os necessários acordos com o Executivo, que, além disso, apenas têm por objectivo a execução dos artigos 4.° e 5.° da directiva. Todavia, neste caso dificilmente se pode falar de uma liberdade contratual dos organismos de radiodifusão interessados. A verdade é que a realização de tais acordos é uma condição prévia para a introdução dos programas em causa numa rede de distribuição por cabo na Comunidade Francesa. A questão da existência, por parte do Executivo, de um poder discricionário na conclusão de tais acordos não releva em meu entender. Na contestação, o demandado sustentou que, até ao momento da entrada no Tribunal de Justiça da presente acção, só um organismo de radiodifusão televisiva de um outro Estado-Mcmbro se não propunha realizar um tal acordo ( 45 ).

62.

Mais importante é todavia a afirmação pelo demandado de que a conclusão destes acordos é um meio especialmente adequado para fomentar o desenvolvimento da produção europeia de programas de televisão. Tais acordos contribuem para levar à prática o disposto nos artigos 4.° e 5.° da directiva. É efectivamente verdade que a conclusão de tais acordos, cm cujos termos os organismos de televisão se obrigam a consagrar uma parte do seu orçamento à aquisição ou produção de programas europeus, prosseguem o objectivo da directiva de promover a promoção de programas de televisão na Comunidade. Todavia, isto cm nada altera ao facto de que o demandado se arroga tarefas c competências que, nos termos da directiva, devem ser reservadas ao Estado-Mcmbro de origem. Este pode ter uma concepção diferente da do Estado de recepção sobre o âmbito das obrigações que lhe são atribuídas pelos artigos 4.° e 5.° da directiva: velar, «sempre que tal se revele exequível e através de meios adequados», pela promoção de obras europeias. Não pode admitir-se que o Estado-Mcmbro de recepção, ao submetê-las a um segundo controlo, imponha os seus próprios critérios a emissões de outros Estados-Mcmbros. Se efectivamente o Estado-Mcmbro de origem não respeitar as obrigações que decorrem da directiva, pode ser chamado a prestar contas pelos outros Estados-Membros c, se necessário, perante o Tribunal de Justiça. O recurso à acção directa apenas é permitido pela directiva no já analisado artigo 2.°, n.° 2, segunda frase, em condições que aqui se não referem. Assim, a regulamentação cm vigor na Comunidade Francesa constitui efectivamente um entrave à livre prestação de serviços.

63.

O demandado sustenta, todavia, que a regulamentação em causa se justifica por considerações de política cultural c por isso não pode violar os artigos 59.° c seguintes do Tratado. Parece, em especial, entender que a legislação em causa da Comunidade Francesa visa proteger o pluralismo nos meios de comunicação. Como demonstra a referência ao pluralismo na imprensa e nas emissões de publicidade, este argumento assenta fundamentalmente nas disposições constantes dos artigos 26.° c 26.°-B do decreto de 17 de Julho de 1987, que posteriormente analisarei. Uma vez que o demandado claramente entende que também o disposto no n.° 2 do artigo 22.° daquele decreto pode encontrar justificação neste argumento, impõe-se proceder desde já à sua apreciação.

64.

Decorre da jurisprudência que a manutenção e salvaguarda do pluralismo no sector da televisão ou nos meios de comunicação em geral constitui um objectivo de carácter geral, que pode justificar restrições à livre prestação de serviços prevista nos artigos 59.° e seguintes do Tratado ( 46 ). E efectivamente verdade que um Estado-Membro apenas pode apoiar-se em considerações de interesse geral quando não exista harmonização a nível comunitário das legislações nacionais aplicáveis a determinada matéria ( 47 ). Todavia, o demandado parte do princípio de que esta matéria não foi exaustivamente regulamentada na directiva. A Comissão apoia-se, para sustentar entendimento contrário, na regulamentação constante dos artigos 10.° e seguintes da directiva. Todavia, trata-se de disposições de carácter técnico que só muito indirectamente têm a ver com o pluralismo nos meios de comunicação.

65.

O demandado não demonstrou todavia o porquê da necessidade e proporcionalidade da regulamentação em causa da Comunidade Francesa para a protecção do pluralismo no domínio da televisão e dos meios de comunicação em geral. Também em matéria de proporcionalidade não são dadas quaisquer explicações mais pormenorizadas. Ao contrário, o demandado limitou-se a formular opiniões de carácter geral destituídas de qualquer apoio concreto. Ora, isto não pode ser considerado suficiente.

66.

Há, assim, que concluir que o disposto no n.° 2 do artigo 22.° do decreto de 17 de Julho de 1987, em cujos termos a retransmissão por cabo de emissões de televisão de outros Estados-Membros deve ser submetida a uma autorização prévia, viola o n.° 2 do artigo 2.° da directiva.

b) N.° 2 do artigo 26.° e n.° 1 do artigo 26.°-B do decreto de 17 de Julho de 1987

67.

A Comissão sustenta que o disposto no artigo 26.°, n.° 2, do decreto de 17 de Julho de 1987, nos termos do qual a retransmissão por cabo de emissões de televisão de outros Estados-Membros que contenham mensagens publicitárias dirigidas em especial aos espectadores da Comunidade Francesa estão sujeitas a autorização prévia, viola o n.° 2 do artigo 2.° da directiva. Apoia este entendimento nas mesmas considerações que teceu a propósito do n.° 2 do artigo 22.° do mesmo decreto. A Comissão entende que as disposições agora em análise são mesmo mais restritivas que as do n.° 2 do artigo 22.°, uma vez que este impõe uma autorização prévia, ao passo que o n.° 2 do artigo 26.° exige mesmo uma autorização prévia expressa.

Isto é igualmente válido quanto à regulamentação das emissões de vendas constante do n.° 1 do artigo 26.°-B do decreto.

68.

O Reino da Bélgica sustenta que a regulamentação em causa se justifica uma vez que constitui um obstáculo ao desvio à legislação nacional. A necessidade de uma autorização prévia permite às autoridades competentes averiguarem se se trata efectivamente de um organismo emissor de televisão a que seja aplicável a directiva.

69.

Segundo o demandado, os organismos de televisão abrangidos pela disposição cm causa são, ou organismos estrangeiros que procuram fugir à aplicação das disposições da Comunidade Francesa, ou organismos de televisão estrangeiros que todavia devem ser considerados sujeitos à jurisdição da Comunidade Francesa nos termos do n.° 1 do artigo 2.° da directiva.

70.

Quanto, cm primeiro lugar, à afirmação do demandado de que a disposição cm litígio é necessária para possibilitar ao Estado-Membro obter informações úteis sobre os diversos organismos de radiodifusão televisiva, podemos limitar-nos a remeter para as considerações que fizemos a propósito do n.° 2 do artigo 22.° do decretode 17 de Julho de 1987 ( 48 ). O demandado não demonstrou que para obter as informações que considera úteis é necessário sujeitar a retransmissão das emissões em causa a uma autorização prévia expressa.

71.

No fundo, ambas as partes estão de acordo em que a directiva não retirou aos Estados-Mcmbros o direito de, cm determinadas condições, lutarem contra o desvio à sua legislação nacional. Partilho deste entendimento, que é conforme à jurisprudência do Tribunal de Justiça cm matéria de livre prestação de serviços. Já cm 1974, o Tribunal de Justiça decidiu, no acórdão Van Binsbergen, que não se pode igualmente negar a um Estado-Mcmbro o direito de estabelecer disposições «visando impedir que a liberdade garantida pelo artigo 59.° seja utilizada por um prestador cuja actividade fosse parcial ou globalmente dirigida ao seu território, com o objectivo de se subtrair às normas profissionais que lhe seriam normalmente aplicáveis se residisse no território desse Estado» ( 49 ). O Tribunal de Justiça confirmou esta jurisprudência, recentemente, no acórdão proferido no processo TV10 ( 50 ).

72.

Este último acórdão é da maior importância para o caso cm apreço. Ali se trata de um organismo de televisão com sede no Luxemburgo mas com emissão de programas fundamentalmente destinados ao mercado neerlandês. No entendimento do tribunal neerlandês que submeteu a questão ao Tribunal de Justiça, o estabelecimento no Luxemburgo foi escolhido para possibilitar a este organismo de televisão a fuga à aplicação da legislação neerlandesa. No seu entender, foi feito uso abusivo da liberdade de prestação de serviços protegida pelo artigo 59.° do Tratado para contornar a legislação do Estado-Membro de recepção.

73.

Todavia, a Comissão contrapôs, com razão, que a legislação aqui em causa não poderia justificar-se pela afirmação da sua necessidade para evitar o desvio à legislação do Estado-Membro de recepção. Efectivamente, tal suporia que todos os organismos de televisão de outros Estados-Membros que emitam programas de publicidade comercial ou de televenda e que fundamentalmente visem espectadores da Comunidade Francesa pretendem contornar a legislação do Estado-Membro de recepção. Todavia, assim não é. A acusação de desvio apenas será fundada se cada organismo de televisão agir abusivamente. No acórdão TV10 considerou-se justificada a possibilidade de o Estado-Membro de recepção se opor, com este fundamento, a emissões do estrangeiro quando organismos que se instalaram noutro Estado-Membro, através da utilização das liberdades garantidas no Tratado, possam frustrar-se «abusivamente» à aplicação da legislação do Estado-Membro de recepção ( 51 ).

74.

Não se pode admitir que todos os organismos de televisão com emissões de publicidade ou de televenda especialmente destinadas a telespectadores da Comunidade Francesa actuem, só por isso, abusivamente. No já referido acórdão proferido em processo de incumprimento de Estado movido pela Comissão contra o Reino da Bélgica quanto à legislação da Comunidade Flamenga no domínio da televisão, o Tribunal de Justiça, remetendo para o acórdão Van Binsbergen, reafirmou que o Estado-Membro de recepção pode tomar medidas para impedir o uso abusivo do artigo 59.° do Tratado por um organismo de televisão cuja actividade «se dirige total ou parcialmente para o seu território». Acrescentou todavia: «tal não significa, porém, que um Estado-Membro possa impedir a seu bel-prazer e de forma genérica que determinados serviços possam ser fornecidos por operadores estabelecidos noutros Estados-Membros, o que significaria suprimir a livre prestação de serviços» ( 52 ).

Em meu entender, esta jurisprudência pode também ser aplicada ao domínio da directiva. Neste sentido milita, além do mais, a circunstância desta directiva se aplicar também a emissões daquela natureza. No já citado décimo quarto considerando da directiva diz-se que todas as emissões provenientes da Comunidade e «destinadas a ser captadas no seu interior e, nomeadamente, as emissões destinadas a um outro Estado-Membro» ( 53 ), devem respeitar a legislação do Estado-Membro de origem. Um Estado-Membro não pode, portanto, presumir que todas as emissões de organismos de televisão estrangeiros destinadas em especial ao público desse Estado-Membro constitui um abuso de direito só por essa razão. Todavia, é exactamente isso o que faz a legislação da Comunidade Francesa agora em análise.

75.

Deve, finalmente, observar-sc que a possibilidade de intervenção do Estado-Membro de recepção reconhecida pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos Van Binsbcrgen c TV10 constitui uma excepção a uma das liberdades constitutivas do mercado interno. Como tal, deve ser necessariamente interpretada de forma restritiva. O Estado-Membro em causa deve por isso — como a Comissão exigiu a justo título — demonstrar, cm cada caso, que efectivamente se verificou um abuso, no sentido acima referido. Por isso, as disposições legislativas aqui em causa não se justificam dado que submetem, em geral, a uma autorização prévia expressa as retransmissões de emissões de publicidade que se destinem cm especial a espectadores na Comunidade Francesa. Não podem, por isso, justificar-se com o combate a tais abusos.

76.

As normas cm questão também não podem encontrar apoio no artigo 3.° da directiva. Efectivamente, o Tribunal de Justiça decidiu, no caso TV10, que o Estado-Mcmbro de recepção, cm caso de abuso, poderia tratar um organismo de televisão estabelecido noutro Estado-Membro como um organismo de emissão no seu território ( 54 ).Todavia, isto supõe que se trate efectivamente de um abuso, o que apenas se pode averiguar caso a caso.

77.

Pelas razões invocadas não pode também o Reino da Bélgica considerar as disposições cm litígio compatíveis com o artigo 4.° da directiva ( 55 ).

78.

O demandado invoca, subsidiariamente, as considerações feitas relativamente ao n.° 2 do artigo 22.° do decreto de 17 de Julho de 1987. Esta argumentação foi já analisada c rejeitada ao tratar da referida disposição.

79.

Deve por isso declarar-se que a regulamentação constante dos n.° 2 do artigo 26.° e do n.° 1 do artigo 26.°-B do decreto de 17 de Julho de 1987, nos termos da qual a retransmissão por cabo de emissões de televisão de outros Estados-Membros destinadas cm especial a espectadores na Comunidade Francesa c que contenham publicidade comercial ou emissões de televenda são sujeitas a uma autorização prévia expressa, violam o n.° 2 do artigo 2° da directiva.

2. Comunidade Flamenga

a) Admissibilidade da acção

80.

O Reino da Bélgica sustenta que a acção da Comissão é inadmissível no que se refere às disposições da legislação da Comunidade Flamenga. Invoca, a propósito, três argumentos. Em primeiro lugar, a Comissão não lhe deu a possibilidade de ser ouvido, contra o disposto no artigo 169.° do Tratado, antes de ter proposto a acção. Em segundo lugar, a Comissão não teve em conta a legislação aplicável na altura em que enviou o seu parecer fundamentado. Finalmente, o parecer fundamentado e a acção proposta não assentam nos mesmos fundamentos.

81.

Quanto ao primeiro fundamento, deve notar-se que a Comissão, na carta de 3 de Novembro de 1992, lhe deu a possibilidade de se pronunciar antes de ser apresentada a petição no Tribunal de Justiça. E ainda evidente que esta carta e as acusações nela contidas não têm por objecto o decreto de 4 de Maio de 1994. Isto naturalmente porque aquele ainda não tinha sido publicado quando a Comissão a enviou. O argumento do demandado equivale finalmente a dizer que a Comissão devia ter dado início a um novo processo após a publicação do referido decreto. Uma vez que desta forma se afirma não ter havido um processo prévio legalmente previsto, parece-nos indicado examinar este argumento juntamente com o terceiro.

82.

O demandado invoca a jurisprudência firmada do Tribunal de Justiça de que as acções por incumprimento de Estado não podem basear-se em fundamentos diversos dos constantes do parecer fundamentado ( 56 ). Tendo a acção por objecto a legislação decorrente do decreto de 4 de Maio de 1994, que não foi objecto do parecer fundamentado, é, face à referida jurisprudência, inadmissível.

83.

A Comissão contrapõe que o Tribunal de Justiça admite excepções ao referido princípio no caso de as disposições legislativas nacionais em causa terem mudado no decurso do processo. No acórdão referido, em conexão com a declaração de que o parecer fundamentado e a acção devem ter por base as mesmas acusações, o Tribunal de Justiça declara:

«Esta exigência não pode, contudo, ir ao ponto de impor, em qualquer hipótese, uma coincidência perfeita entre as disposições nacionais mencionadas no parecer fundamentado e as referidas na petição. Quando se verifica uma alteração legislativa entre estas duas fases do processo, basta com efeito que o sistema aplicado pela legislação impugnada no decurso do procedimento administrativo tenha, no seu conjunto, sido mantido pelas novas medidas adoptadas pelo Estado-Membro posteriormente ao parecer funda mentado c impugnadas no âmbito da acção» ( 57 ).

O Tribunal de Justiça afirmou que, no caso cm apreço, no decurso do processo as acusações da Comissão consistiam na aplicação temporária de taxas de imposto diferentes. Segundo o Tribunal de Justiça apurou, aquelas diferenças foram mantidas, senão agravadas, por legislação publicada no decurso do processo ( 58 ).

84.

No caso em apreço, deve ter-se cm conta que uma das acusações formuladas pela Comissão no parecer fundamentado é que o decreto de 28 de Janeiro de 1987 sujeitava a retransmissão dc emissões dc organismos de televisão de outros Estados-Mcmbros através da rede de distribuição por cabo flamenga a uma autorização prévia, que podia ser sujeita a condições. Além disso, a Comissão refere que esta disposição foi considerada contrária aos artigos 59.° c 60.° do Tratado pelo Tribunal de Justiça. Na petição inicial, refere que o demandado mantinha em vigor uma legislação cm cujos termos a retransmissão por cabo de emissões de televisão de outros Estados-Membros devia ser previamente autorizada.

85.

É verdade que o decreto de 4 de Maio de 1994 trouxe importantes alterações à legislação anterior. Por tal razão, compreende-sc que o demandado suscite a excepção de inadmissibilidade. A Comissão teve em conta estas alterações ao não incluir na petição inicial algumas das acusações que formulou no seu parecer fundamentado. O demandado invoca ainda, não sem alguma razão, que, após a publicação deste decreto, se passou ainda algum tempo antes de a Comissão propor a acção no Tribunal.

86.

Considero no entanto que melhores razões existem para que se considere a acção admissível. Efectivamente, partilho o entendimento da Comissão de que o decreto de 4 de Maio de 1994 não trouxe uma alteração fundamental ou essencial no que se refere às acusações constantes da petição inicial. Efectivamente, tal como antes, a retransmissão de emissões de televisão de outros Estados-Membros pela rede de distribuição flamenga continua sujeita a autorização prévia.

87.

O demandado contrapõe que o decreto de 4 de Maio de 1994 substituiu a exigência de autorização pela de simples comunicação. Estas considerações não me convenceram. Do decreto resulta, sem mais, que um operador de uma rede de distribuição por cabo necessita, para o exercício da sua actividade, de autorização prévia do Governo flamengo. Dado que esta autorização, nos termos do artigo 3.° do decreto é concedida preenchidas as condições previstas no mesmo, supõe uma decisão sobre se os programas em causa de outro Estado-Membro satisfazem as exigências constantes do artigo 10.° do mesmo diploma legislativo ( 59 ). O mesmo é válido — embora a legislação nacional seja menos explícita sobre este ponto — em relação a programas que o operador de uma rede de distribuição por cabo queira nela introduzir posteriormente. Efectivamente, as alterações correspondentes exigem a autorização do Governo flamengo. Se se tratasse efectivamente de uma mera obrigação de comunicação, não se compreenderia que o operador de uma rede de cabos não pudesse transmitir imediatamente um novo programa. O facto de apenas o poder fazer após autorização do governo prova que se trata de uma autorização constitutiva de um direito.

Também a possibilidade de o operador poder transmitir o programa decorridos quatro meses após a comunicação não altera este entendimento. E, antes de mais, significativo que o operador não possa transmitir os programas antes do decurso deste prazo. Seguidamente, é claro que esta disposição só será aplicável se o governo não recusar a autorização antes do decurso daquele prazo. Esta possibilidade é expressamente referida no decreto ( 60 ). Que não se trata de mera possibilidade teórica resulta da afirmação do recorrido na contestação de que aquela autorização foi já recusada uma vez.

88.

O entendimento que afirmo corresponde aos objectivos da já referida jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de exigências a que deve obedecer o processo gracioso instaurado nos termos do artigo 169.° do Tratado. Sobres esta matéria o Tribunal de Justiça afirmou, em recente despacho, o seguinte:

«A fase pré-contenciosa tem por objectivo dar ao Estado-Membro em causa a possibilidade de dar cumprimento às obrigações decorrentes do direito comunitário ou apresentar utilmente os seus argumentos de defesa a respeito das acusações formuladas pela Comissão...

A regularidade da fase pré-contenciosa constitui uma garantia essencial consagrada pelo Tratado, não apenas para a protecção dos direitos do Estado-Membro em causa, mas igualmente para assegurar que a eventual fase contenciosa tenha por objecto um litígio claramente definido» ( 61 ).

89.

Em meu entender, é claro que no caso em apreço não pode existir qualquer dúvida quanto ao objecto do processo. A Comissão continua a acusar a Comunidade Flamenga de fazer depender de uma autorização prévia a transmissão de programas de organismos de televisão estrangeiros pela sua rede de distribuição por cabo. A circunstância de as disposições em causa constarem actualmente do decreto de 4 de Maio de 1994 é, para o efeito, irrelevante.

A admissibilidade da acção não prejudica também os direitos do demandado. Efectivamente, este não poderia ter dúvidas sérias sobre as acusações que a Comissão contra ele formulou. Do mesmo modo não podia escapar-lhe que o decreto de 4 de Maio de 1994 não era suficiente para fazer cessar a violação de que a Comissão o acusa. Além disso, a Comissão havia já referido no seu parecer fundamentado que o projecto do novo decreto apresentado cm 5 de Julho de 1991 não poderia ser considerado suficiente. Finalmente, também não se vê que da actuação da Comissão possa ter resultado uma restrição das possibilidades de o demandado se defender das acusações por ela formuladas.

90.

Sc se entendesse que a acção ora cm apreço era inadmissível, tornar-sc-ia, além disso, desnecessariamente mais difícil a missão da Comissão, com o resultado de ser concedido um prazo suplementar ao Estado-Membro que não cumpriu atempadamente as suas obrigações. Há, a este propósito, que referir que o decreto de 4 de Maio de 1994 só foi, indiscutivelmente, publicado após o termo do prazo concedido no parecer fundamentado da Comissão.

91.

Quanto, finalmente, ao argumento de que a Comissão não teve em conta a legislação em vigor quando elaborou o seu parecer fundamentado, deve dizer-se que o invocado pelo demandado apenas foi publicado em 4 de Maio de 1994. Devendo a Comissão orientar-se em função da legislação efectivamente em vigor, não tinha que proceder à análise de um eventual projecto de um novo decreto. Além disso, é, de qualquer modo, certo que o demandado apenas enviou uma cópia do projecto de novo decreto com uma carta de 4 de Fevereiro de 1994 — portanto após ter recebido o parecer fundamentado de 10 de Janeiro do mesmo ano.

92.

Atentas estas considerações, concluo que a excepção de inadmissibilidade da acção suscitada deve ser considerada improcedente.

b) Fundamentação da acção

93.

A Comissão invoca a ilegalidade das disposições da Comunidade Flamenga, por violação do n.° 2 do artigo 2.° da directiva, uma vez que submetem a uma autorização prévia a retransmissão de programas de organismos de televisão de outros Estados-Mcmbros através da sua rede de cabos. A referida autorização depende, nos termos do n.° 2 do artigo 10.° do decreto, de o organismo de televisão no Estado-Mcmbro de origem garantir o cumprimento do disposto na directiva pelo organismo de televisão e de a ordem pública, os bons costumes e a segurança pública não serem postos em causa na Comunidade Flamenga. Todavia nenhuma destas condições são admissíveis nos termos da directiva.

94.

Antes de mais o demandado sustenta que as disposições em causa não sujeitam a retransmissão de programas de outros Estados-Membros a autorização do Governo flamengo mas simplesmente impõem uma obrigação de comunicação. Este argumento já foi por mim apreciado e contestado aquando da análise da admissibilidade da acção. As disposições em causa continuam a submeter a retransmissão a uma autorização prévia do Governo flamengo.

95.

No que se refere às condições impostas pelo n.°2 do artigo 10.° do decreto de 4 de Maio de 1994, o demandado sustenta a sua legalidade.

96.

A exigência de que o organismo de televisão interessado obtenha uma autorização emitida pelo Estado de origem é razoável e não viola de modo algum a directiva. O demandado invoca, a este propósito, a aplicação analógica da segunda directiva sobre os bancos ( 62 ).

97.

Este argumento não procede. A directiva prescreve que os Estados-Membros devem velar para que os organismos de televisão sob sua jurisdição cumpram a legislação nacional do Estado-Membro de origem e as disposições da directiva. Devem cumprir esta obrigação «através dos meios apropriados», como se diz no n.° 2 do artigo 3.° O Estado-Membro de origem não é por isso obrigado (embora possa fazê-lo) a subordinar a actividade do organismo de televisão em causa a uma autorização. Pode não o fazer se a observância das disposições do direito nacional e da directiva puder ser garantida por outro meio. Isto resulta também do décimo terceiro considerando da directiva, em que se refere que não é regulamentada a questão das competências de que dispõem os Estados-Membros e as suas autoridades. Resulta claramente do contexto que se trata do Estado-Membro de origem e não do Estado-Membro de recepção. Assim, a exigência pelo n.° 2 do artigo 10.° do decreto de 4 de Maio de 1994 de uma autorização do Estado-Membro de origem não pode considerar-se compatível com a directiva. A regulamentação estabelecida pelo legislador comunitário para o sector bancário não tem qualquer importância no domínio em apreço.

O argumento do demandado, claramente invocado a título subsidiário, de que o conceito de «aprovação» não deve ser entendido restritivamente, parece-me, atento o teor da disposição, não convincente. Do mesmo modo improcedente é o de que não pode haver violação das disposições da directiva uma vez que a regulamentação não era clara neste ponto. Ainda que, contra o meu entendimento, assim acontecesse, isto nada alteraria quanto à existência de violação. Efectivamente, para tanto basta que o Estado-Membro cm questão não tenha objectivamente cumprido as suas obrigações; não está em causa a existência de culpa.

98.

O demandado pretende justificar a exigência constante do n.° 2 do artigo 10.°, do decreto de 4 de Maio de 1994, de que o organismo de televisão esteja submetido a um efectivo controlo no Estado-Membro de origem, com a argumentação de que apenas emissões de organismos que respeitem as disposições da directiva podem invocar as vantagens nesta previstas. Trata-se, portanto, de saber se o Estado-Mcmbro de recepção tem o direito de submeter emissões de outros Estados-Mcmbros a um segundo controlo e verificar se o Estado-Mcmbro de origem cumpriu as obrigações que para ele decorrem da directiva. Esta questão foi já analisada no contexto da regulamentação da Comunidade Francesa. Como ali demonstrei, deve ser resolvida pela negativa ( 63 ).

99.

Quanto à condição de os programas de emissões estrangeiras apenas poderem ser transmitidos através da rede de cabos de distribuição na Flandres se não puserem cm perigo a ordem pública, os bons costumes c a segurança pública na Comunidade Flamenga, o demandado argumenta que a directiva não coordenou, de forma alguma, as legislações dos Estados-Mcmbros neste domínio. Por tal razão, um controlo pelo Estado-Membro de recepção quanto ao cumprimento daquelas exigências não viola o n.° 2 do artigo 2.° da directiva.

100.

Concede-se ao demandado que, na realidade, as referidas matérias não foram expressamente ou pelo menos não totalmente reguladas na directiva. Assim, por exemplo, o seu artigo 12.° estabelece condições rigorosas a que devem obedecer as emissões de publicidade. Efectivamente, estas não podem ofender o respeito da dignidade humana nem as convicções religiosas ou políticas. Para as restantes emissões não existe, ao invés, qualquer disposição expressa, excepção feita do segundo parágrafo, do artigo 22.°, segundo o qual as emissões de televisão não podem conter qualquer incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade ( 64 ). Poder-se-ia por isso pensar que a directiva quis deixar ao Estado-Membro de recepção a possibilidade de intervir contra emissões de organismos de televisão estrangeiros quando o considerasse necessário para a protecção da ordem pública, dos bons costumes ou da segurança pública. Poderia militar neste sentido o facto de a directiva — como já referi — não conter uma regulamentação exaustiva e definitiva do sector da televisão.

101.

Uma tal interpretação conduziria, no entanto, a reduzir fundamentalmente a liberalização pretendida pela directiva. Como o próprio demandado afirmou na contestação a este propósito, esta directiva assenta no «princípio fundamental da confiança mútua» dos Estados-Membros. Também do já várias vezes referido décimo quinto considerando resulta que, no espírito do legislador, seria suficiente o controlo pelo Estado-Membro de origem, podendo o Estado-Membro receptor agir contra a retransmissão de programas de outros Estados-Membros apenas a título excepcional e em condições específicas.

O regime de protecção de menores previsto na segunda frase do artigo 22.° e no n.° 2 do artigo 2.° da directiva demonstra que, em especial, esta abrange também matérias que caem no âmbito da ordem pública, dos bons costumes ou da segurança pública. Quando o legislador comunitário, nas questões por ele regulamentadas, subordinou a actuação unilateral do Estado-Membro de recepção a condições restritas e noutros domínios não lhe concedeu quaisquer poderes, há que concluir que o controlo do Estado-Membro de origem é suficiente para a protecção destes bens jurídicos. Trata-se da aplicação do princípio, já referido, da confiança mútua, que parece ter resultado neste domínio ( 65 ).

102.

Os interesses dignos de protecção do Estado de recepção não são por esta forma inconsideradamente prejudicados. Além do poder de intervenção previsto no n.° 2 do artigo 2° da directiva, o Estado-Membro de recepção tem a possibilidade de demandar no Tribunal de Justiça um Estado-Membro de origem que haja faltado ao cumprimento das suas obrigações. A possibilidade de utilizar o processo de medidas provisórias permite-lhe remediar rapidamente as situações que o exijam.

103.

É ainda de ter em conta que, nos casos em que programas de outros Estados-Membros possam ser directamente recebidos no Estado-Membro de recepção, este, de qualquer modo, pouco mais pode fazer, contra violações da directiva pelo Estado-Membro de origem, que dirigir-se ao Tribunal de Justiça.

104.

Em meu entender, o Tribunal de Justiça não tem, além disso, que decidir se um Estado-Membro não tem em caso algum — por mais flagrante que seja — o direito de intervir para proteger a segurança pública ou os bons costumes contra a transmissão de emissões de outros Estados-Membros. Em todo o caso, não é possível, com a invocação da protecção destes bens jurídicos, justificar-se um sistema que submete de modo geral a autorização prévia a transmissão de emissões de outros Estados-Membros através de uma rede de distribuição por cabo, como se prevê nas disposições legais ora em causa da Comunidade Flamenga. Uma tal regulamentação vai muito além do que seria necessário para proteger aqueles bens jurídicos.

105.

Apenas com a preocupação de ser exaustivo, recordo que o demandado invocou também a Directiva 93/83/CEE no contexto das disposições da Comunidade Flamenga. Λ este propósito posso remeter para as considerações que fiz cm relação aos argumentos que tinham por base esta directiva, ao analisar a legislação da Comunidade Francesa ( 66 )

106.

Há, assim, que concluir que a regulamentação contida no decreto de 4 de Maio de 1994 e cm cujos termos a retransmissão por rede de cabo de emissões de outros Estados-Mcmbros está sujeita a uma autorização prévia viola o n.° 2 do artigo 2.° da directiva.

3. Brttxelas-Capital

107.

Também relativamente à Região Bruxelas-Capital a Comissão formula, contra o Reino da Bélgica, acusação de ter violado o n.° 2 do artigo 2° da directiva ao não o ter transposto para o direito interno.

108.

Relativamente a esta acusação, o demandado apenas referiu, na contestação, que foi promulgada, em 30 de Março de 1995, uma lei de transposição da directiva para o direito interno.

109.

A isto contrapôs a Comissão, na réplica, que tal lei foi publicada tardiamente. Além disso, a mesma lei segue de perto o disposto no decreto da Comunidade Flamenga de 4 de Maio de 1994 e, nestes termos, merece as mesmas considerações. Reserva-se, por isso, o direito de propor uma acção por incumprimento de Estado nos termos do artigo 169.° do Tratado.

110.

Na tréplica, o demandado referiu que não se verifica qualquer violação da directiva. Sustentou, por um lado, que nos termos do n.° 2 do artigo 127.° da Constituição belga, os decretos da Comunidade Francesa c da Comunidade Flamenga são igualmente aplicáveis na Região Bruxelas-Capital, por forma que esta não tinha, por si, que fazer a transposição da directiva. Além disso, quando a Comissão deu ao demandado a oportunidade de se pronunciar, não existia na Região Bruxelas-Capital qualquer legislação que restringisse a retransmissão de emissões do estrangeiro. Finalmente, a acção da Comissão é inadmissível com base na nova lei, por não ter sido objecto da tramitação processual pré-contenciosa.

111.

Atento o disposto no n.° 2, do artigo 42.° do Regulamento de Processo, tenho sérias dúvidas de que o argumento agora invocado na tréplica possa ser considerado admissível. Todavia, dado que aquele argumento me parece infundado, este aspecto não me parece decisivo.

112.

O fundamento invocado pelo demandado, de inadmissibilidade da acção, é vão, uma vez que a Comissão menciona, efectivamente, a nova lei nas suas declarações mas não a constitui objecto do processo. Do mesmo modo não é convincente o argumento baseado no n.° 2 do artigo 127.° da Constituição belga. Os decretos da Comunidade Francesa e da Comunidade Flamenga são válidos apenas para as pessoas que devem ser consideradas pertencentes a cada uma destas Comunidades. Não são, por isso, aplicáveis a pessoas que não tenham esta qualidade. A publicação da lei promulgada em 30 de Março de 1995, que nos termos do seu artigo 3.° apenas é aplicável a pessoas que não possam ser consideradas nem pertencentes à Comunidade Francesa nem à Comunidade Flamenga, confirma expressamente que existe neste ponto uma lacuna.

113.

Quanto ao último fundamento do demandado devo dizer que me parece que ele adopta uma posição contraditória. Ao passo que, por um lado, diz que na Região Bruxelas-Capital não havia, na altura, quaisquer normas aplicáveis e, sendo assim, quaisquer disposições de que pudesse resultar uma restrição ao direito de livre retransmissão de emissões estrangeiras resultante da directiva, afirma, por outro, que são aplicáveis as disposições da Comunidade Francesa e Flamenga. De tudo isto apenas se pode retirar a conclusão de que, ou a transposição da directiva para a Região Bruxelas-Capital ocorreu tardiamente, isto é, através da lei de 30 de Março de 1995, ou então que — no caso de não existirem quaisquer disposições restritivas — se verificava uma situação legislativa objectivamente obscura e confusa cuja clarificação o legislador devia fazer ( 67 ).

114.

Por tais razões, entendo que a acusação formulada pela Comissão procede.

4. A Comunidade Germanófona

115.

Também relativamente à Comunidade Germanofona a Comissão acusa o demandado de violação do n.° 2 do artigo 2° da directiva por esta não ter sido transposta para o direito interno.

116.

O demandado afirma cm sua defesa que na Comunidade Germanofona não existe qualquer legislação com base na qual pudesse ser restringido o direito de livre retransmissão de emissões do estrangeiro. O decreto real de 24 de Dezembro de 1966, que inicialmente regulava esta matéria, caducou quando o artigo 13.° da lei de 26 de Janeiro de 1960, em que assentava, foi revogado pelo artigo 30.° da lei de 13 de Julho de 1987 ( 68 ).

117.

Esta informação, dada pelo demandado no decurso do processo no Tribunal de Justiça, não foi contestada pelo agente da Comissão na audiência. Sustentou todavia que, atenta esta situação legislativa que nada tinha de clara, teria sido necessário que o legislador agisse para tornar claro que o direito de livre retransmissão era efectivamente garantido. Nada mais posso que aderir a esta afirmação. Atentas as circunstâncias referidas, para cumprimento das obrigações resultantes da directiva impunha-se a clarificação da legislação. A insegurança daí resultante restringe efectivamente o pleno efeito do direito que a directiva pretende garantir.

118.

Também por isso a acusação da Comissão nesta matéria é fundamentada.

II — Violação dos artigos 14.° e 15.° da directiva

119.

A Comissão acusa o demandado de não ter transposto integralmente os artigos 14.° c 15.° da directiva, no que se refere à Comunidade Francesa. Ao passo que o artigo 14.° proíbe a publicidade pela televisão de medicamentos c tratamentos médicos que apenas possam obter-se mediante receita médica no Estado-Mcmbro de origem, a disposição cm causa do direito nacional proíbe simplesmente a publicidade de medicamentos. As exigências impostas pelo artigo 15.° à publicidade de bebidas alcoólicas apenas foram impostas a um organismo de televisão c não aos outros. Alem disso, as disposições em causa abrangiam apenas bebidas alcoólicas com um teor cm álcool de mais de 10%, ao passo que o artigo 15.° da directiva é aplicável a todas as bebidas alcoólicas.

120.

Como a Comissão justamente declarou, o demandado não contesta as acusações formuladas, na sua materialidade. Especialmente digno de nota é que o Reino da Bélgica se limita a reproduzir as considerações da Comunidade Francesa em que esta considera que a transposição do artigo 14.° da directiva compete ao Estado Federal.

121.

Também neste ponto a acção da Comissão tem fundamento.

C — Conclusão

122.

Proponho que o Tribunal de Justiça julgue a acção da Comissão totalmente procedente e condene o Reino da Bélgica nas despesas do processo.


( *1 ) Língua original: alemão.

( 1 ) JO L 298, p. 23.

( 2 ) Assim, acórdão de 30 de Abril de 1974, Sacchi (155/73, Colect., p. 223, n.° 6).

( 3 ) Acórdão de 26 de Abril de 1988, Bond van Adverteerders c o. (352/85, Colect., p. 2085, n.os 14 a 17).

( 4 ) Comparar o acórdão de 9 de Fevereiro de 1995, Leclerc-Siplec (C-412/93, Colect., p. I-179, n.° 28). V. igualmente o acórdão do Tribunal de Justiça da AECL de 16 de Junho de 1995, Forbrukerombudet/Mattel Scandinavia A/S e Lego Norge A/S (processos apensos E-8/94 e E-9/94, n.° 22).

( 5 ) Nono a décimo segundo considerandos da directiva. Para maior clareza, acrescentei entre parênteses os respectivos números.

( 6 ) Décimo terceiro considerando da directiva.

( 7 ) Décimo quarto c décimo quinto considerandos da directiva.

( 8 ) Vigésimo considerando da directiva.

( 9 ) V. vigésimo quarto considerando da directiva.

( 10 ) Esta noção é definida no artigo 6.° da directiva.

( 11 ) Moniteur belge de 22 de Agosto de 1987, p. 12505.

( 12 ) Decreto que altera a lei de 6 de Fevereiro de 1987, relativa às redes de radiodistribuição e de tclcdistribuição c à publicidade comercial na rádio c na televisão, decreto de 12 de Dezembro de 1977, que aprova o estatuto da Rádio-Televisão belga da Comunidade Francesa (RTBF) c decreto de 17 de Julho de 1987 sobre o audiovisual (Moniteur belge de 2 de Outubro de 1991, p. 21671).

( 13 ) Moniteur belge de 17 de Março de 1989, p. 4896; alterado pelo regulamento de 18 de Dezembro de 1991 (Moniteur belge de 26 de Fevereiro de 1992, p. 6532).

( 14 ) Trata-se de emissões em que são directamente feitas aos telespectadores propostas de venda, aquisição ou locação de objectos ou propostas de serviços remunerados.

( 15 ) A Comissão defendeu (implicitamente) que esta disposição deve igualmente aplicar-sc à difusão de programas de «tclevenda» na acepção do artigo 26.o ter do decreto. O demandado não contestou esta interpretação das disposições em questão.

( 16 ) Moniteur belge dc 19 de Março de 1987, p. 4196

( 17 ) Comissão/Bélgica (C-211/91, Colect., p. I-6757).

( 18 ) Moniteur belge dc 4 de Junho de 1994, p. 15434.

( 19 ) O demandado defendeu este entendimento na tréplica, não tendo sido contrariado pela Comissão na audiência.

( 20 ) O demandado apresentou o texto desta lei cm anexo à sua contestação.

( 21 ) Moniteur belge de 24 de Janeiro de 1967, p. 604.

( 22 ) Λ Comissão afirmou isto mesmo na réplica, não a tciulo o demandado desmentido.

( 23 ) Moniteur belge de 6 de Fevereiro de 1960, p. 726.

( 24 ) Moniteur belge de 12 de Agosto de 1987, p. 12071.

( 25 ) O demandado forneceu estas indicações na tréplica. A Comissão não as contestou.

( 26 ) Passarei a utilizar esta expressão, igualmente utilizada, por exemplo, no décimo quarto considerando da directiva. Nas conclusões apresentadas no processo C-222/94, analisei devidamente que Iistado-Mcmbro tem competência numa dada situação.

( 27 ) Por razões de facilidade, sigo também, neste ponto, a terminologia dos considerandos da directiva (v. o décimo quinto considerando).

( 28 ) No espírito do recorrido, verifica-se uma situação deste tipo quando um organismo de radiodifusão lança directamente os seus programas numa rede de teledistribuição.

( 29 ) V., supra, n.° 4.

( 30 ) JO L 248, p. 15.

( 31 ) O demandado afirma que, sendo assim, na versão francesa da directiva, cm vez do termo «retransmission» seria de esperar que se utilizasse o de «réémission».

( 32 ) Artigo 1.°, n.° 3, da referida directiva, referida na nota 30.

( 33 ) O seu teor ć reproduzido, supra, nota 3.

( 34 ) V. décimo considerando (sublinhado meu).

( 35 ) JO 1994, L.1, p. 1. O texto do acordo consta das pp. 3 c segs.

( 36 ) V. anexo X do acordo (supra, nota 35, p. 417).

( 37 ) A versão cm língua francesa c em língua inglesa deste acordo bem como uma tradução cm alemão estão publicadas no BGBl. II 1991, p. 639.

( 38 ) V, supra, n.° 2 c acórdão aí referido, Bond van Adverteerders e o.

( 39 ) V., a este respeito, as conclusões que apresentei no processo C-222/94.

( 40 ) UNTS, vol. 213, p. 221.

( 41 ) Oitavo a décimo c vigésimo sétimo considerandos da directiva.

( 42 ) Décimo segundo considerando da directiva.

( 43 ) Vigésimo oitavo considerando da directiva.

( 44 ) V. a apreciação do Conselho no décimo segundo considerando da Directiva 93/83/CEE.

( 45 ) É interessante notar que o demandado acrescentou que as emissões deste organismo foram igualmente retransmitidas por cabo. Pode ver-sc aqui um indício de que a regulamentação da Comunidade Francesa ora cm causa não tem a importância que o demandado lhe atribui.

( 46 ) V. o acórdão de 5 de Outubro de 1994, TV10 (C-23/93, Colect., p. I-4795, n.os 18 c 19).

( 47 ) V. acórdão de 18 de Março de 1980, Dcbauvc e o. (52/79, Recueil, p. 833, n.° 15).

( 48 ) V., supra, n.° 41.

( 49 ) Acórdão de 3 de Dezembro de 1974 (33/74, Colect., p. 548, n.° 13).

( 50 ) V. nota 46 (n.° 20).

( 51 ) V. nota 46(n.°21).

( 52 ) V. nota 17 (n.° 12).

( 53 ) Sublinhado meu.

( 54 ) V. nota 46 (n.° 21).

( 55 ) V, supra, n.° 65.

( 56 ) V., mais recentemente, o acórdão de 12 de Janeiro de 1994, Comissão/Itália (C-296/92, Colect, p. I-1, n.° 11).

( 57 ) Acórdão de 17 de Novembro de 1992, Comissão/Grécia (C-105/91, Colcct., p. I-5871, n.° 13).

( 58 ) V. nota 57 (n.° 14).

( 59 ) V., supra, n.° 20.

( 60 ) V. artigo 5.°, n.° 2, do decreto de 4 de Maio de 1994.

( 61 ) Despacho de 11 de Julho de 1995, Comissão/Reino de Espanha (C-266/94, Colect., p. I-1975, n. os 16 e 17).

( 62 ) Segunda Directiva 89/646/CEE do Conselho, de 15 de Dezembro de 1989, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao acesso às actividades das instituições de crédito c ao seu exercício c que altera a Directiva 77/780/CEE (JO L 386, p.l).

( 63 ) V., supra, n. os 42 e segs.

( 64 ) Esta disposição consta do capítulo V, com o título «Protecção dos menores». Deve no entanto considerar-se que é válida para todas as emissões.

( 65 ) As controvérsias c divergências que surgiram ao longo deste processo respeitaram aos artigos 4.° c 5.° da directiva, que dificilmente se podem incluir no domínio da ordem pública, da segurança publica ou dos bons costumes.

( 66 ) V., supra, n.os 55 e segs.

( 67 ) Parccc-me duvidoso que, no período cm causa, não existisse na Região Bruxelas-Capital qualquer legislação sobre o domínio cm causa, uma vez que a lei de 30 de Março de 1995, no seu artigo 42.°, dispõe que os artigos 2.° e 3.° da lei de 6 de Fevereiro de 1987, sobre redes de distribuição por cabo de emissões de rádio c de televisão e de publicidade comercial pela rádio c pela televisão (v. também, supra, nota 12) são revogados.

( 68 ) V., supra, n.° 24.

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