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Document 61994CC0333

    Conclusões do advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer apresentadas em 27 de Junho de 1996.
    Tetra Pak International SA contra Comissão das Comunidades Europeias.
    Recurso de acórdão do Tribunal de Primeira Instância - Posição dominante - Definição dos mercados de produtos - Aplicação do artigo 86. do Tratado a práticas instituídas por uma empresa dominante num mercado distinto do mercado dominado - Vendas ligadas - Preços predatórios - Coima.
    Processo C-333/94 P.

    Colectânea de Jurisprudência 1996 I-05951

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1996:256

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

    DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER

    apresentadas em 27 de Junho de 1996 ( *1 )

    1. 

    O presente processo tem origem no recurso interposto pela Tetra Pak International SA (a seguir «Tetra Pak») do acórdão do Tribunal de Primeira Instância (a seguir «TPI») de 6 de Outubro de 1994, Tetra Pak//Comissão ( 1 ) (a seguir «acórdão recorrido»). Este acórdão negou provimento ao recurso de anulação interposto pela Tetra Pak contra a Decisão 92/163/CEE ( 2 ) (a seguir «decisão impugnada»), pela qual a Comissão considerou que a Tetra Pak ocupava uma posição dominante nos mercados das máquinas e embalagens de cartão assépticas destinadas ao acondicionamento de líquidos alimentares na Comunidade Económica Europeia (a seguir «Comunidade»), e que tinha explorado de forma abusiva essa posição, na acepção do artigo 86.° do Tratado CEE, pelo menos desde 1976 e até 1991, tanto nestes mercados assépticos como nos mercados das máquinas e embalagens não assépticas ( 3 ). A Comissão aplicou a esta empresa uma coima de 75 milhões de ecus e ordenou-lhe que pusesse imediatamente termo às infracções verificadas.

    I — Matéria de facto e tramitação processual

    2.

    Os factos na origem do presente litígio foram estabelecidos pelo TPI nos n. os 1 a 15 do acórdão recorrido, a partir das verificações feitas pela Comissão na decisão impugnada, sem que tenham sido substancialmente contestadas pela Tetra Pak. Passo a expor esses factos, embora adoptando uma sistemática diferente da utilizada no acórdão recorrido.

    3.

    O presente litígio surgiu no sector do acondicionamento e embalagem de produtos alimentares líquidos e semilíquidos (leite e produtos lácteos líquidos, sumos de frutas, vinho, águas minerais, molhos, produtos à base de tomate, alimentos para bebé, etc). Utilizam-se diversos materiais para a embalagem e acondicionamento deste tipo de produtos (garrafas de plástico, garrafas de vidro, etc), mas nos últimos anos têm-se utilizado cada vez mais as embalagens de cartão para a comercialização de alguns destes produtos. Os factos em causa ocorreram precisamente no mercado das embalagens de cartão para acondicionamento de produtos alimentares líquidos e semilíquidos.

    4.

    As embalagens de cartão são sobretudo utilizadas para a embalagem de produtos lácteos, e, cm menor escala, para o acondicionamento de outros produtos alimentares. Em 1983, cerca de 90% das embalagens de cartão destinaram-se à embalagem de leite e de produtos lácteos líquidos. Em 1987, essa percentagem era de cerca de 79%, sendo 72% para acondicionamento de leite. Cerca de 16% deste tipo de embalagens destinavam-se ao acondicionamento de sumos de frutas. Os outros produtos (vinho, águas minerais, produtos à base de tomate, sopas, molhos e alimentos para bebé) representavam apenas 5% da utilização das embalagens de cartão.

    5.

    No que respeita ao leite, que representa o segmento principal do mercado das embalagens de cartão, deve frisar-se que é vendido, sobretudo, sob a forma pasteurizada (leite fresco), ou após tratamento a temperatura ultra-clevada em condições assépticas (leite UHT), tratamento que permite um período de conservação de vários meses em meio não refrigerado. O leite «esterilizado» representa apenas uma percentagem relativamente marginal do mercado comunitário.

    6.

    A existência destes procedimentos permite distinguir, dentro do mercado das embalagens de cartão, dois sectores com características diferentes. Por um lado, o sector asséptico, composto pelas embalagens c pelas máquinas de enchimento utilizadas para o acondicionamento de alimentos que podem conservar-se vários meses num meio não refrigerado. Por outro lado, o sector não asséptico, que compreende as embalagens e as máquinas utilizadas para o acondicionamento de produtos de consumo rápido.

    7.

    Um operador económico de primeira linha no sector das embalagens de cartão é a Tetra Pak, sociedade com sede social na Suíça, que coordena a política de um grupo de empresas de origem sueca que adquiriu dimensão mundial ( 4 ). O grupo Tetra Pak é especializado em equipamentos utilizados para acondicionamento cm embalagens de cartão de produtos alimentares líquidos c semilíquidos, principalmente leite, e opera tanto no sector da embalagem asséptica como no da embalagem não asséptica. As suas actividades consistem, essencialmente, na produção de embalagens de cartão e no fabrico de máquinas de enchimento utilizando tecnologia própria do grupo. Além da Tetra Pak, existem outros produtores neste mercado, que variam entre o sector asséptico c não asséptico.

    8.

    No que respeita ao sector dos sistemas de acondicionamento asséptico, a estrutura da oferta é quase monopolística, uma vez que a Tetra Pak controlava entre 90% e 95% deste sector na data de adopção da decisão impugnada. Em 1985, a Tetra Pak ocupava cerca de 89% do mercado das embalagens de cartão e 92% do mercado das máquinas assépticas no território comunitário. O seu único verdadeiro concorrente no sector da embalagem asséptica era a empresa PKL, que na prática detinha as restantes quotas de mercado, ou seja, 5% a 10%.

    9.

    No sector asséptico, a Tetra Pak produz o sistema designado «Tetra Brik», destinado essencialmente à embalagem de leite UHT. Segundo elementos fornecidos pela recorrente, este produto foi lançado no mercado na Alemanha em 1968, e, a partir de 1970, nos restantes países europeus. Segundo esta técnica, as embalagens são fornecidas ao utilizador sob a forma de rolo, que é tornado asséptico na própria máquina de enchimento, através de um banho de peróxido de hidrogénio, envolvendo em seguida o líquido à medida que este vai correndo num meio asséptico. No mesmo sector, o único concorrente da Tetra Pak, a empresa PKL, controlada pela empresa suíça SIG (Société industrielle générale), produz igualmente embalagens de cartão assépticas de formato «Brik», os «Combibloc». Estes últimos, ao contrário do sistema de enchimento em contínuo da Tetra Pak, já estão pré-formados no momento do enchimento. Por razões técnicas e porque, na prática, os fabricantes de máquinas assépticas fornecem também as embalagens de cartão a utilizar nas suas próprias máquinas, a detenção de uma técnica de enchimento asséptico constitui a chave de acesso tanto ao mercado das máquinas como ao mercado das embalagens de cartão assépticas.

    10.

    A estrutura da oferta no sector não asséptico é mais aberta, embora de natureza oligopolística. Quando a Comissão adoptou a decisão impugnada, a Tetra Pak ocupava entre 50% e 55% do sector na Comunidade. Em 1985, detinha 48% do mercado das embalagens de cartão e 52% do mercado das máquinas não assépticas no território dos doze Estados-Membros. Por seu lado, o grupo norueguês Elopak detinha, em 1985, cerca de 27% do mercado das máquinas e das embalagens não assépticas, seguindo-se--lhe a PKL, que ocupava 11% desse mercado. A Elopak actuava apenas como distribuidora no mercado das máquinas assépticas, antes de adquirir a divisão «máquinas de enchimento» da Ex-Cell-O, em 1987. Os restantes 12% do mercado das embalagens de cartão não assépticas dividiam-se entre três empresas, a Schouw Packing (Dinamarca, cerca de 7%, actualmente detida a 50% pela Elopak), a Mono-Emballage/Scalpack (França/Países Baixos, cerca de 2,5%) e a Van Mierlo (Bélgica, cerca de 0,5%). Estas empresas, cujo mercado se mantém concentrado num ou mais países, fabricavam as suas próprias embalagens de cartão, normalmente ao abrigo de uma licença (Ex-Cell-O adquirida pela Elopak em 1987, Nimco, Sealright, etc). No que diz respeito às máquinas, actuavam apenas como distribuidores. No mercado comunitário das máquinas não assépticas, os 13% do mercado não ocupados pela Tetra Pak, pela Elopak e pela PKL repartiam-se entre uma dezena de pequenos produtores, sendo os principais a Nimco (Estados Unidos, cerca de 4%), a Cherry Burrel (Estados Unidos, cerca de 2,5%) e a Shikoku (Japão, cerca de 1%).

    A Elopak é portanto, no sector não asséptico, o principal concorrente da Tetra Pak, mas as suas actividades não se estendem, por enquanto, ao sector asséptico. Na decisão impugnada calculou-se que a relação entre os volumes de negócios da Tetra Pak e da Elopak era em 1987 de 7,5 para 1. A Elopak opera em Itália através de uma filial, a Elopak Italia (Milão), que importa as embalagens de cartão de outras filiais do grupo.

    11.

    A embalagem não asséptica, cm especial do leite fresco pasteurizado, não necessita de um grau de esterilização elevado, e, por conseguinte, carece de equipamento menos sofisticado que a embalagem asséptica. No mercado das embalagens de cartão não assépticas, a Tetra Pak utilizava inicialmente, e utiliza ainda, embalagens de cartão de formato Brik, mas actualmente o seu principal produto neste mercado é uma embalagem de cartão de formato «Gable Top» com o topo erguido em forma de prisma, a «Tetra Rex». Esta embalagem faz concorrência directa à embalagem «Pure-Pak» produzida pela Elopak.

    12.

    A Tetra Pak fabrica as suas próprias máquinas de enchimento não asséptico. Além disso, tal como a Elopak e a PKL, vende ocasionalmente máquinas produzidas por uma dezena de pequenos produtores, como a Nimco, a Cherry Burrel e a Shikoku.

    13.

    A Tetra Pak desenvolveu na Comunidade uma estratégia comercial específica quanto às patentes, às condições contratuais de venda e de locação c à distribuição dos seus produtos. Em primeiro lugar, este grupo de empresas seguiu uma política de patentes particularmente ampla. Com efeito, a Tetra Pak patenteou a tecnologia de base desenvolvida em matéria de máquinas, embalagens de cartão e processos técnicos, bem como as modificações posteriormente efectuadas nestes produtos e certas particularidades técnicas, como o modo de dobragem do cartão. As últimas patentes relativas às embalagens de cartão Tetra Brik assépticas, desenvolvidas nos anos sessenta, caducam em princípios do século XXI (n.° 22 da decisão impugnada). Segunda as indicações concordantes de ambas as partes, a Tetra Pak não concedeu nenhuma licença de fabrico das suas embalagens de cartão na Comunidade.

    14.

    Em segundo lugar, a distribuição das máquinas c das embalagens de cartão Tetra Pak č integralmente realizada por empresas do grupo Tetra Pak, não existindo nenhum distribuidor independente.

    15.

    Durante o período de referência, estavam cm vigor vários contratos-tipo de venda e dc locação de máquinas, bem como de fornecimento de embalagens de cartão, celebrados entre a Tetra Pak e os seus clientes nos diferentes Estados-Membros. O teor das cláusulas de tais contratos, que tiveram influência na concorrência, foi resumido no n.° 12 do acórdão recorrido, retomando os termos da decisão impugnada, do seguinte modo:

    «2.1. As condições de venda do material Tetra Pak (anexo 2.1)

    Existem contratos-tipo de venda nos cinco países seguintes: Grécia, Irlanda, Itália, Espanha e Reino Unido. Relativamente a cada cláusula contratual examinada, indica-se entre parênteses quais os ou o país em causa.

    2.1.1. A configuração do material

    A Tetra Pak reserva-se, em Itália, um direito de controlo absoluto sobre a configuração do material vendido, proibindo ao comprador:

    i)

    acrescentar aparelhos acessórios à máquina;

    ii)

    modificar a máquina, acrescentar-lhe ou retirar-lhe elementos;

    iii)

    deslocar a máquina.

    2.1.2. O funcionamento e a manutenção do material

    Cinco cláusulas contratuais relativas ao funcionamento e à manutenção do material visam assegurar à Tetra Pak a exclusividade e o direito de controlo na matéria:

    iv)

    exclusividade a nível de manutenção e das reparações (todos os países com excepção da Espanha);

    vi)

    xclusividade em termos de fornecimento das peças sobresselentes (todos os países com excepção da Espanha);

    vi)

    o direito de efectuar gratuitamente prestações de assistência, de formação, de manutenção e de actualização técnica não solicitadas pelo cliente (Itália);

    vii)

    tarifa degressiva (até menos 40% de uma taxa mensal de base) de uma parte das despesas de assistência, de manutenção e de actualização tecnica, em função do nùmero de cartões utilizados em todas as máquinas Tetra Pak do mesmo tipo (Itália);

    viii)

    obrigação de informar a Tetra Pak de qualquer aperfeiçoamento ou modificação técnica introduzida no material e de lhe reservar a propriedade (Itália).

    2.1.3. Os cartões

    Quatro cláusulas contratuais relativas aos cartões visam igualmente assegurar à Tetra Pak a exclusividade e o direito de controlo desta sobre este produto:

    ix)

    obrigação de utilizar unicamente cartões Tetra Pak nas máquinas (todos os países);

    x)

    obrigação de abastecimento exclusivo em cartões junto da Tetra Pak ou junto de um fornecedor por ela designado (todos os países);

    xi)

    obrigação de informar a Tetra Pak de qualquer aperfeiçoamento ou modificação técnica introduzida nos cartões e de lhe reservar a propriedade (Itália);

    xii)

    o direito de controlo sobre o texto a inscrever nos cartões (Itália).

    2.1.4. Controlos

    Duas cláusulas têm mais especificamente por objecto o controlo do respeito por parte do comprador das obrigações contratuais:

    xiii)

    obrigação do comprador de apresentar um relatório mensal (Itália);

    xiv)

    direito de inspecção — sem pré-aviso — reservado à Tetra Pak (Itália).

    2.1.5. A transferência de propriedade do material ou a cessão da utilização

    Duas cláusulas contratuais limitam o direito de revenda ou de cessão:

    xv)

    obrigação de obter o acordo da Tetra Pak para a revenda ou a cessão da utilização do material (Itália), para a revenda condicional (Espanha) e direitos de reaquisição a um preço fixo estabelecido previamente reservado à Tetra Pak (todos os países). O não respeito desta cláusula pode dar origem a uma penalidade específica (Grécia, Irlanda e Reino Unido);

    xvi)

    obrigação do terceiro comprador assumir as obrigações do primeiro comprador (Itália e Espanha).

    2.1.6. A garantia

    xvii)

    A garantia relativa ao material vendido encontra-se sujeita à observância de todas as cláusulas contratuais (Itália) ou, pelo menos, à utilização exclusiva de cartões Tetra Pak (outros países).

    2.2. As condições de locação do material Tetra Pak (anexo 2.2)

    Existem contratos-tipo de locação em todos os países da Comunidade, com excepção da Grécia e da Espanha.

    Mutatis mutandis, dos contratos de locação consta a maioria das cláusulas incluídas nos contratos de venda. Outras condições são específicas à locação, mas vão sempre no mesmo sentido que é o de reforço máximo dos laços entre a Tetra Pak e o seu cliente.

    2.2.1. A configuração do material

    Estão previstas as cláusulas i), ii) e iii) [Itália para a cláusula i); todos os países para a cláusula ii); França, Irlanda, Itália, Portugal e Reino Unido para a cláusula iii)].

    xviii)

    Uma cláusula suplementar obriga, para além disso, o locatário a usar exclusivamente caixas, sobreembalagens, e/ou contentores de transporte para os cartões Tetra Pak (Alemanha, Bélgica, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) ou de se abastecer preferencialmente, em igualdade de condições, junto da Tetra Pak (Dinamarca e França).

    2.2.2. O funcionamento e a manutenção do material

    Estão previstas as cláusulas iv) e v) (todos os países) relativas à exclusividade.

    Do mesmo modo, encontramos igualmente a cláusula viii) que reserva à Tetra Pak a propriedade dos aperfeiçoamentos introduzidos pelo utilizador (Alemanha, Bélgica, Itália, Luxemburgo c Países Baixos) ou, pelo menos, obrigando o locatário a conceder uma licença de exploração à Tetra Pak (Dinamarca, França, Irlanda, Portugal e Reino Unido).

    2.2.3. Os cartões

    Encontramos as mesmas cláusulas ix) (todos os países) e x) (Itália) relativas à exclusividade de abastecimento, concedendo a cláusula xi) à Tetra Pak a propriedade dos aperfeiçoamentos (Dinamarca e Itália) ou, pelo menos, uma licença de exploração a seu favor (França, Irlanda, Portugal e Reino Unido) c a cláusula xii) que lhe dão um direito de controlo sobre o texto ou os nomes de marca que o cliente pretende incluir nos cartões (Alemanha, Espanha, Grécia, Itália, Países Baixos, Portugal c Reino Unido).

    2.2.4. Os controlos

    Como em relação à venda, o locatário deve apresentar um relatório mensal [cláusula xiii) — todos os países] sob pena de se proceder a uma facturação fixa (Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos) e permitir a inspecção do local em que o material se encontra instalado [cláusula xiv) — todos os países] e isto sem pré-aviso (todos os países, salvo a Dinamarca, Alemanha, Irlanda, Portugal e Reino Unido).

    xix)

    Uma outra cláusula permite o exame — a todo o momento (Dinamarca e França) — das contas da empresa locatária (todos os países) e (consoante os países) das suas facturas, correspondência ou qualquer outro documento necessário à verificação do número de cartões utilizados.

    2.2.5. A transferência do contrato de locação, a sublocação, a cessão de utilização ou a utilização por conta de terceiros

    No caso da venda, qualquer transferência ulterior da propriedade só pode realizar-se em condições muito restritivas.

    xx)

    As disposições dos contratos de locação excluem do mesmo modo a cessão do contrato de locação, a sublocação (todos os países) ou mesmo o simples trabalho por encomenda por conta de terceiros (Itália).

    2.2.6. A garantia

    Os textos são aqui menos precisos do que nos contratos de venda. Estabelecem uma ligação entre a garantia e o respeito das ‘instruções’ dadas pela Tetra Pak a propósito da ‘manutenção’ e da ‘boa utilização’ da máquina (todos os países). Os termos ‘instruções’, ‘manutenção’ e ‘boa utilização’ são, todavia, suficientemente amplos para que seja necessário interpretá-los como cobrindo, pelo menos, a utilização exclusiva de peças sobresselentes, de serviços de reparação e de manutenção e de materiais de embalagem Tetra Pak. Esta interpretação encontra-se, de resto, confirmada pelas respostas escrita e oral da Tetra Pak à comunicação das acusações.

    2.2.7. A fixação do aluguer e as condições de pagamento

    O aluguer inclui os seguintes elementos (todos os países):

    a)

    xxi)

    um aluguer ‘inicial’, a pagar nomomento da colocação à disposição da máquina, cujo montante não é necessariamente inferior ao preço de venda das mesmas máquinas e corresponde, de facto, à quase totalidade de todos os alugueres presentes e futuros (mais de 98% em certos casos);

    b)

    um aluguer anual, a pagar antecipadamente por trimestre;

    c)

    xxii)

    uma taxa mensal de produção cujo montante é degressivo em função do número de cartões utilizados em todas as máquinas Tetra Pak do mesmo tipo. Esta taxa substitui a tarifa degressiva — de valor equivalente — de uma parte das despesas de manutenção previstas em caso de venda [ver cláusula (vii)]. Em certos países (Alemanha, França e Portugal), é prevista uma penalidade específica em caso de não pagamento nos prazos fixados dessa tarifa.

    2.2.8. A duração do contrato de locação

    A duração e as modalidades de cessação do contrato de locação variam consoante os Estados-Membros.

    xxiii)

    A duração mínima do contrato de locação vai de três anos (Dinamarca, Irlanda, Portugal e Reino Unido) a nove anos (Itália).

    2.2.9. A cláusula penal

    xxiv)

    Independentemente das indemnizações normais, a Tetra Pak reserva-se o direito de impor uma penalidade ao locatário que infrinja uma das suas obrigações contratuais, sendo o montante dessa penalidade fixado, dentro de um limite máximo, discricionariamente pela Tetra Pak em função da gravidade do caso (Itália).

    2.3. As condições de fornecimento dos cartões (anexo 2.3)

    Existem contratos-tipo de fornecimento na Grécia, na Irlanda, em Itália, em Espanha e no Reino Unido. São obrigatórios desde que o cliente proceda não à locação mas à aquisição de uma máquina.

    2.3.1. A exclusividade de abastecimento

    xxv)

    O comprador compromete-se a abastecer-se exclusivamente junto da Tetra Pak relativamente a todos os materiais de embalagem que serão utilizados numa ou em determinadas máquinas Tetra Pak (todos os países) e cm qualquer outra máquina Tetra Pak a adquirir posteriormente (Itália).

    2.3.2. A duração do contrato

    xxvi)

    O contrato é assinado por ura primeiro período de nove anos, renovável por um novo período de cinco anos (Itália), ou pelo período durante o qual o adquirente conserva a posse da máquina (Grécia, Irlanda, Espanha e Reino Unido).

    2.3.3. A fixação dos preços

    xxvii)

    Os cartões serão entregues ao preço em vigor no momento da encomenda. Não se encontra previsto qualquer sistema de perequação ou de indexação (todos os países).

    2.3.4. O contendo

    Encontramos também aqui o direito de controlo [cláusula xii)] da Tetra Pak sobre o conteúdo ou os nomes de marca que o cliente pretende mencionar nos cartões.»

    16.

    A estratégia comercial da Tetra Pak foi posta cm questão perante a Comissão com base na denúncia apresentada em 27 de Setembro de 1983 pela Elopak Italia contra a Tetra Pak Italiana e empresas suas associadas cm Itália. Em 16 de Dezembro de 1988, a Comissão decidiu dar início ao procedimento contra a Tetra Pak, que se comprometeu a renunciar ao seu sistema de vendas ligadas exclusivas e a alterar os seus contratos-tipo, por carta dirigida à Comissão em 1 de Fevereiro de 1991, acompanhada de novos contratos-tipo. Esses compromissos foram aceites pela Comissão.

    17.

    O procedimento concluiu com a adopção pela Comissão da decisão impugnada, cujo artigo 1.° dispunha: «Tirando partido da sua posição dominante nos mercados — denominados ‘assépticos’ — das máquinas e dos cartões destinados ao acondicionamento de líquidos alimentares, a Tetra Pak infringiu, desde pelo menos 1976, o disposto no artigo 86.° do Tratado CEE, tanto nestes mercados ‘assépticos’ como nos mercados vizinhos e conexos do equipamento e dos cartões ‘não assépticos’, através de uma série de diferentes práticas que visavam a eliminação da concorrência e/ou a maximização, em detrimento dos utilizadores, dos benefícios que poderiam ser retirados das posições adquiridas.»

    A decisão impugnada resume os elementos essenciais destas infracções, aplica à Tetra Pak uma coima de 75 milhões de ecus e ordena a este grupo de empresas que ponha imediatamente termo às infracções, especificando as medidas que deve tomar para esse efeito.

    18.

    Em 18 de Novembro de 1991, a Tetra Pak interpôs no TPI um recurso de anulação da decisão impugnada, ao qual foi negado provimento na totalidade pelo acórdão Tetra Pak/Comissão. Deste acórdão foi interposto o presente recurso para o Tribunal de Justiça, em 20 de Dezembro de 1994.

    II — Fundamentos invocados pela Tetra Pak no recurso

    19.

    O recurso interposto pela Tetra Pak pede a anulação do acórdão do TPI com os seguintes fundamentos:

    A definição do mercado relevante dos produtos é contraditória e assenta numa base jurídica errada.

    O TPI errou ao considerar o comportamento da Tetra Pak, num mercado que não é por si dominado, um abuso proibido pelo artigo 86.° do Tratado CE, embora tal comportamento não tenha repercussões no mercado dominado pela Tetra Pak.

    A rejeição do argumento da Tetra Pak sobre a venda ligada das embalagens de cartão e das máquinas de embalagem é ilógica e contrária à alínea d) do artigo 86.°

    O TPI errou ao considerar que a Tetra Pak tinha vendido a preços eliminatórios as embalagens Tetra Rex em Itália e as máquinas de enchimento não asséptico no Reino Unido, sem ter demonstrado a possibilidade razoável de recuperação dos prejuízos.

    O TPI rejeitou incorrectamente as circunstâncias atenuantes invocadas pela Tetra Pak relativamente à coima, especialmente o carácter inovador da decisão impugnada em alguns aspectos importantes.

    A — O primeiro fundamento relativo à delimitação do mercado relevante dos produtos

    20.

    Com este fundamento, a Tetra Pak contesta a delimitação do mercado relevante feita pelo TPI no acórdão recorrido, que confirma, basicamente, o raciocínio da Comissão na decisão impugnada. Concretamente, a Tetra Pak baseia o seu fundamento em dois argumentos distintos. Por um lado, considera que o raciocínio do TPI nesta matéria é contraditório, e, por outro lado, considera que assenta numa base jurídica errada.

    1. Raciocínio contraditório do TPI

    21.

    A Tetra Pak considera que o TPI incorreu num erro de direito ao desenvolver um raciocínio contraditório nos n. os 64 c 73 do acórdão, no que respeita à delimitação do mercado dos produtos em causa. Em sua opinião, ou existe um mercado geral de embalagem dos produtos alimentares líquidos, caso em que o TPI deveria ter afastado a distinção feita pela Comissão entre mercados assépticos e mercados não assépticos, ou estes mercados são considerados mercados separados, não devendo então o TPI ter aceitado a inclusão de produtos distintos do leite no mercado em causa sem examinar a situação do mercado nesse sector.

    22.

    Sou de opinião de que este fundamento deve ser rejeitado, pois não existe qualquer contradição no raciocínio seguido nos n. os 64 a 73 do acórdão recorrido.

    23.

    A Comissão tinha identificado na decisão impugnada quatro mercados diferentes, a saber: embalagens de cartão assépticas, máquinas de enchimento asséptico, embalagens de cartão não assépticas c máquinas de enchimento não asséptico.

    24.

    Para verificar esta delimitação dos quatro mercados relevantes, o TPI utiliza o critério da permutabilidade suficiente dos produtos cm função das suas características objectivas, bem como das condições de concorrência, da estrutura da procura e da oferta no mercado, estabelecido pelo Tribunal de Justiça no acórdão Michelin/Comissão ( 5 ).

    O ponto de partida da análise do TPI é o mercado geral dos sistemas de embalagem para produtos alimentares líquidos. O TPI conclui que este mercado geral se divide em vários submercados em função dos sistemas de embalagem e não do tipo de produto embalado. Considera seguidamente que as máquinas e as embalagens de cartão assépticas e não assépticas se caracterizam por uma estrutura da oferta e da procura comparável, porque apresentam as mesmas características de produção e porque respondem a necessidades económicas idênticas. O TPI aplica depois a estes mercados o critério da permutabilidade suficiente, e considera que a Comissão teve razão em determinar, após examinar o acondicionamento do leite, destino principal das embalagens de cartão tanto assépticas como não assépticas, que se tratava de quatro mercados relevantes independentes, embora conexos.

    2. Utilização de uma base jurídica errada

    25.

    A Tetra Pak alega que o TPI utilizou uma base jurídica incorrecta para a determinação do mercado relevante dos produtos, pelas três razões seguintes:

    Porque interpretou incorrectamente o critério da permutabilidade suficiente, estabelecido no acórdão Michelin//Comissão, relativamente aos produtos distintos do leite.

    Porque considerou que a proporção entre os diferentes produtos na procura pelos consumidores era um elemento para determinar se tais produtos faziam parte do mercado relevante.

    Porque considerou exclusivamente a permutabilidade a curto prazo.

    26.

    No que respeita à aplicação do critério da permutabilidade suficiente, a Tetra Pak alega que o TPI se afastou da jurisprudência do Tribunal de Justiça ao considerar que as máquinas e as embalagens de cartão destinadas ao acondicionamento de produtos distintos do leite faziam parte dos mercados relevantes. Em sua opinião, não existe permutabilidade suficiente entre os sistemas assépticos e não assépticos de embalagem dos produtos distintos do leite, e, além disso, a escassa importância destes em comparação com a embalagem do leite é um elemento irrelevante para a determinação do mercado dos produtos em causa.

    27.

    A permutabilidade suficiente, como critério para determinar o mercado dos produtos em causa, foi adoptada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Michelin/Comissão, indicando que «... para efeitos de analisar a posição, eventualmente dominante, de uma empresa num mercado determinado, as possibilidades de concorrência devem ser apreciadas no contexto de um mercado que abranja a totalidade dos produtos que, em função das suas características, sejam particularmente aptos a satisfazer necessidades constantes e sejam pouco permutáveis com outros produtos. No entanto, deve observar-se que a determinação do mercado em causa serve para avaliar se a empresa em questão tem a possibilidade de impedir a manutenção de uma concorrência efectiva e de se comportar, em medida significativa, de modo independente dos seus concorrentes, clientes e consumidores. Por conseguinte, o respectivo exame não pode limitar-se apenas às características objectivas dos produtos em causa, mas devem também tomar-se em consideração as condições de concorrência e a estrutura da oferta e da procura no mercado» ( 6 ).

    28.

    No n.° 65 do acórdão recorrido, o TPI considera suficiente a demonstração da posição dominante da Tetra Pak na embalagem de produtos lácteos, porque estes produtos absorvem a maior parte dos sistemas de acondicionamento em embalagens de cartão, c considera que não é relevante a existência de equipamentos de substituição no sector do acondicionamento de produtos distintos do leite. A Tetra Pak contesta este raciocínio do TPI, assinalando que a importância quantitativa do sector da embalagem de produtos distintos do leite em comparação com o da embalagem de produtos lácteos é completamente irrelevante para a determinação do mercado dos produtos cm causa, que deve ser feita através da aplicação do critério da permutabilidade suficiente. Em sua opinião, o TPI considerou erradamente, nos n. os 74 a 77 do acórdão recorrido, que não existe essa permutabilidade entre os sistemas de embalagem asséptica e não asséptica no sector dos sumos de fruta, que representa a parte principal dos líquidos distintos do leite, ao ter em conta apenas a percentagem de ambos os produtos procurada pelos consumidores e não a sua capacidade de satisfazer necessidades idênticas. Consequentemente, a Tetra Pak entende que o TPI errou ao incluir nos mercados relevantes a embalagem de produtos diferentes do leite.

    29.

    Este argumento da Tetra Pak não pode merecer acolhimento, c considero que o TPI aplica correctamente o critério da permutabilidade suficiente no acórdão recorrido. Este critério, utilizado para a determinação do mercado dos produtos em causa, traduz-se numa análise destinada a verificar se os produtos cm questão são substituíveis ou suficientemente permutáveis cm função das suas características objectivas e das condições do mercado (concorrência, estrutura da oferta c estrutura da procura). Quando esta permutabilidade não exista ou seja muito limitada, os produtos pertencem a mercados separados.

    30.

    Em qualquer caso, a determinação do mercado dos produtos cm causa não é um exercício abstracto, mas um instrumento que ajuda a determinar se uma empresa ocupa uma posição dominante. Assim, a aplicação do critério da permutabilidade suficiente exige uma apreciação das condições de concorrência, da procura e da oferta no mercado em questão ( 7 ). Por isso, é perfeitamente válido o raciocínio seguido pelo TPI no acórdão recorrido, em que considera relevante, para efeitos de determinação do mercado, a percentagem de embalagens de cartão destinada à embalagem de leite e a destinada ao acondicionamento de outros produtos. Este dado faz parte da estrutura da procura das máquinas e embalagens de cartão assépticas e não assépticas e, por conseguinte, pode ser tido em conta para a aplicação do critério da permutabilidade, do mesmo modo que as características intrínsecas dos produtos em questão.

    Quando um produto, como é o caso das máquinas e das embalagens de cartão assépticas e não assépticas, é susceptível de várias utilizações (embalagem de leite e embalagem de outros produtos distintos do leite), a jurisprudência comunitária não contém qualquer regra que imponha a determinação de mercados diferentes em função do uso do produto. No n.° 29 do acórdão Hoffman-La Roche/Comissão ( 8 ), o Tribunal de Justiça interrogou-se sobre a possibilidade de existência de dois mercados das vitaminas distintos, em função da sua utilização para fins bionutritivos ou tecnológicos, mas acabou por considerar que tais vitaminas constituíam um único mercado independentemente do seu uso, embora houvesse produtos concorrentes das vitaminas utilizadas para fins tecnológicos. Por outro lado, o acórdão AKZO/Comissão ( 9 ) (a seguir «acórdão AKZO») confirmou que os peróxidos orgânicos formavam um único mercado relevante, embora pudessem ser utilizados no fabrico de plásticos e como aditivos para farinha. Em suma, um produto susceptível de várias utilizações constituirá um único mercado relevante ou vários consoante as circunstâncias que se verifiquem em cada caso, e o TPI demonstrou sobejamente, no n.° 64 do acórdão recorrido, que as máquinas e as embalagens de cartão assépticas e não assépticas constituem mercados relevantes, independentemente de se destinarem à embalagem de produtos lácteos ou de outros produtos alimentares líquidos.

    31.

    A Tetra Pak considera também que o TPI comete um erro de direito ao entender, no n.° 71 do acórdão recorrido, que a parte marginal do mercado ocupada pelas embalagens assépticas que utilizam materiais distintos do cartão permite considerar que não existe permutabilidade suficiente com as embalagens assépticas de cartão, Esta crítica deve ser rejeitada, uma vez que, como se acaba de indicar, a parte do mercado ocupada por um produto em relação a outro constitui um elemento que pode ser tido em conta para a aplicação do critério da permutabilidade suficiente. Com efeito, se, num período de tempo razoavelmente longo, se observar um paralelismo entre o aumento ou diminuição da procura de um produto e da de outro, essa circunstância pode constituir um indício de que ambos são suficientemente permutáveis. O acórdão Istituto Chemioterapico Italiano e Commercial Solvents//Comissão (a seguir «acórdão Commercial Solvents/Comissão») ( 10 ), justifica esta conclusão, ao afirmar que a existência de potenciais processos alternativos ou de práticas em pequena escala é irrelevante para o efeito de determinar se a matéria-prima (nitropropano ou aminobutanol) necessária para a produção de etambutol e de fármacos especiais baseados nesse produto constitui o mercado relevante.

    32.

    Por fim, a Tetra Pak contesta o acórdão recorrido por ter tido em conta apenas a possibilidade de substituição a curto prazo para determinar se havia permutabilidade suficiente entre os mercados da embalagem asséptica c não asséptica. Este argumento da Tetra Pak deve ser rejeitado, já que o TPI justificou sobejamente, nos n. os 66 a 70 do acórdão impugnado, a impossibilidade de substituição entre os sistemas de embalagem asséptica e não asséptica, tendo a Tetra Pak admitido que a inversão desta situação a longo prazo exige uma grande e dispendiosa campanha de publicidade e promoção dos tipos de embalagem para influenciar os consumidores, dada a pouca repercussão do preço da embalagem no preço final do produto alimentar.

    33.

    Tendo em conta as considerações anteriores, entendo que o TPI aplicou correctamente o critério da permutabilidade suficiente no acórdão recorrido, devendo o fundamento de anulação da Tetra Pak ser rejeitado.

    B — O segundo fundamento respeitante à relação entre o mercado dominado e o abuso invocado

    34.

    A recorrente entende que o TPI considerou erradamente que a Tetra Pak tinha infringido o artigo 86.° do Tratado CE com as suas práticas comerciais nos mercados não assépticos, uma vez que nesses mercados a referida empresa não tinha uma posição dominante. Em sua opinião, o artigo 86.° exige que o abuso se verifique ou produza os seus efeitos no mercado dominado, ou seja, a posição dominante c o abuso devem ocorrer no mesmo mercado dos produtos cm causa.

    35.

    Este fundamento de anulação tem uma importância considerável, porque exige que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a relação que deve existir entre a posição dominante e o abuso, para efeitos de aplicação da proibição contida no artigo 86.° É a primeira vez que esta questão se levanta, com esta clareza c amplitude, perante o Tribunal de Justiça, e a sua resolução tem uma importância crucial para a delimitação do âmbito de aplicação do artigo 86.°

    36.

    Antes de analisar, do ponto de vista jurídico, a justeza da solução adoptada pelo TPI no acórdão recorrido, parece-me conveniente proceder a uma reflexão geral sobre o nexo entre a posição dominante c o abuso, ou, por outras palavras, entre o mercado dominado c o mercado afectado pelo abuso, no contexto da aplicação do artigo 86.°

    37.

    O artigo 86.° proíbe, «na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de urna ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste». Esta regra exige pois que se demonstre, além da afectação do comércio intracomunitário, a posição dominante da empresa em questão e o abuso de tal posição. No que respeita à posição dominante, o artigo 86.° limita-se a estabelecer os requisitos da sua extensão geográfica (incidência no mercado comum ou numa parte substancial deste), tendo a jurisprudência do Tribunal de Justiça desenvolvido a noção de mercado dos produtos em causa, de modo a delimitar o espaço comercial em que devem ser analisadas as condições de concorrência e o poder económico de tal empresa ( 11 ).

    38.

    O artigo 86.° também não dá qualquer indicação sobre a relação entre a posição dominante e a sua exploração abusiva, pelo que, em princípio, deixa em aberto todas as opções possíveis quanto à localização do abuso no mercado relevante ou noutro. Tendo em conta a jurisprudência comunitária, podem identificar-se as seguintes situações de relação entre a posição dominante e o abuso:

    a)

    A posição dominante e o abuso verificam-se no mesmo mercado.

    b)

    O abuso verifica-se no mercado dominado, mas os seus efeitos fazem-se sentir noutro mercado em que a empresa não tem posição dominante.

    c)

    O abuso verifica-se num mercado onde a empresa não tem posição dominante com o objectivo de reforçar a sua posição no mercado dominado,

    d)

    O abuso verifica-se num mercado distinto, mas conexo e ligado ao mercado dominado pela empresa.

    e)

    A posição dominante e o abuso verificam-se em mercados diferentes e não ligados.

    A aplicação do artigo 86.° é possível nas três primeiras situações, relativamente às quais já há jurisprudência do Tribunal de Justiça, mas não seria viável no último caso. A quarta situação apresenta-se pela primeira vez, com o presente litígio, à jurisdição comunitária, tendo-a resolvido o TPI, no acórdão recorrido, aplicando o artigo 86.°, tal como a Comissão já tinha feito na decisão impugnada.

    39.

    A hipótese a), de localização do abuso no mercado dominado, é o caso paradigmático de aplicação do artigo 86.° A jurisprudência do Tribunal é inequívoca e admite sempre, como a Comissão e a Tetra Pak reconhecem, a aplicação do artigo 86.° nestes casos ( 12 ).

    40.

    A situação oposta ocorre quando uma empresa ocupa uma posição dominante num mercado relevante e implementa práticas comerciais abusivas num mercado diferente, que não está relacionado nem ligado com o mercado dominado [situação c)]. No n.° 18 da tréplica, a Comissão sugere ao Tribunal de Justiça que não se pronuncie sobre a eventual aplicação do artigo 86.° a este tipo de casos, em que não existe qualquer nexo entre, por um lado, a posição dominante e o mercado dominado, e, por outro, entre o mercado não dominado e os comportamentos comerciais nesse mercado. Em seu entender, o caso em apreço não se enquadra nesta situação c, por esse motivo, não houve suficiente discussão do assunto pelas partes.

    41.

    Em minha opinião, esta pretensão da Comissão é inaceitável. Parece-me útil determinar se é possível aplicar o artigo 86.° às situações de inexistência de relação entre a posição dominante c o abuso, por se verificarem ambos cm mercados diferentes c não ligados. Relativamente a esta situação, há apenas, na jurisprudência do Tribunal de Justiça, duas opiniões explícitas — e além disso, contrárias — de advogados-gerais.

    O advogado-geral VerLorcn van Themaat, nas conclusões apresentadas no processo Michelin/Comissão, afirmou que a exploração abusiva de uma posição dominante pode verificar-se, nos termos do artigo 86.°, num mercado relevante cm que empresa cm questão não ocupe uma posição dominante ( 13 ).

    O Tribunal de Justiça adoptou uma concepção objectiva da exploração abusiva, pela qual a Comissão não está obrigada a demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre a posição dominante e as práticas comerciais que configuram o abuso ( 14 ). O advogado-geral C. O. Lenz, no processo AKZO, considerou que «tal não significa, contudo, que a presença de uma posição daquele tipo e o respectivo abuso possam estar de tal modo separados que se verifiquem cm mercados relevantes diferentes. A renúncia completa à unidade entre mercado dominado c relevante viria romper a conexão, de qualquer modo já fraca, aqui ainda existente entre poder de mercado c abuso» ( 15 ).

    42.

    Pessoalmente, creio que não é admissível uma separação absoluta entre a posição dominante e o abuso, a ponto de se poderem verificar em mercados totalmente diferentes e separados. De facto, essa solução impediria uma empresa em posição dominante num mercado de competir em igualdade de circunstâncias com as outras empresas noutros mercados, porque as práticas comerciais para penetrar nesses outros mercados constituiriam, na maior parte dos casos, um abuso da sua posição dominante. Acresce que a posição dominante num mercado não coloca necessariamente a empresa que a detém em condições melhores, para agir noutros mercados, do que aquelas de que possam dispor outras empresas. Assim, uma empresa de grandes dimensões que detenha quotas significativas em vários mercados, sem ser dominante em nenhum deles, terá mais capacidade para penetrar num novo mercado, através de uma estratégia comercial agressiva, do que uma empresa com menor potencial económico com uma posição dominante num mercado. Não é portanto lógico que esta última se veja obrigada a suportar a especial responsabilidade que lhe impõe o artigo 86.° quando pretende participar em mercados totalmente separados do mercado dominado. A solução contrária não contribuiria para a manutenção de uma concorrência não falseada no mercado interno, objectivo estabelecido pela alínea g) do artigo 3.° do Tratado CE, que deve servir de base à interpretação do artigo 86.°

    43.

    Entre estes dois extremos situam-se as outras três situações. As situações b) e c) foram já objecto de alguns acórdãos que confirmam a aplicação do artigo 86.°

    44.

    Na hipótese b), o abuso verifica-se no mercado dominado, mas os seus efeitos fazem-se sentir noutro mercado, em que a empresa não tem posição dominante. No acórdão Commercial Solvents/Comissão considerou-se contrário à proibição do artigo 86.° o comportamento da empresa Commercial Solvents, que se recusou a fornecer à Zoja a matéria-prima (aminobutanol) necessária para o fabrico de um medicamento, o etambutol, utilizado contra a tuberculose. A Commercial Solvents detinha uma posição dominante no mercado das matérias-primas necessárias para o fabrico do fármaco em questão, e a recusa de fornecimento constituía um abuso da sua posição dominante no mercado dominado, mas cujos efeitos se estendiam ao mercado dos medicamentos antituberculosos, onde a Commercial Solvents queria penetrar.

    No processo CBEM ( 16 ) considerou-se que constituía abuso de posição dominante a recusa da empresa CLT, proprietária da cadeia de televisão RTL, cuja publicidade era explorada em exclusivo pela sua filial IPB, de prestar os serviços necessários a empresas de «telemarketing» para que desenvolvessem a sua actividade através da cadeia de televisão RTL. A CLT e a IPB dominavam o mercado da publicidade televisiva em francês dirigida ao público belga e o seu desejo de penetrar no mercado conexo do «telemarketing» levou a um comportamento anticoncorrencial no mercado dominado — a saber, à recusa de difundir anúncios de venda através de televisão que não utilizassem o número de telefone da IPB — cujos efeitos se faziam sentir na actividade auxiliar do «telemarketing», em que a CLT c a IPB não tinham posição dominante.

    Nestes dois processos, empresas com uma posição dominante num determinado mercado implementam práticas comerciais abusivas no mercado dominado para se reservarem, sem qualquer necessidade objectiva, uma actividade auxiliar ou derivada num mercado próximo, mas distinto, em que não detêm posição dominante. Os efeitos do abuso neste mercado não dominado são tidos em conta para determinar a eventual aplicação do artigo 86.° ( 17 ).

    45.

    Na hipótese c), que é o inverso da b), o abuso é cometido num mercado onde a empresa não tem posição dominante, para reforçar a sua posição no mercado dominado.

    O acórdão AKZO diz respeito a um caso subsumível, com alguns matizes, nesta hipótese. De facto, nesse processo estavam cm causa, basicamente, os preços predatórios praticados pela AKZO na venda de peróxidos orgânicos utilizados como aditivos para farinha, com o objectivo de enfraquecer a posição da empresa ECS no sector e de lhe impedir assim a entrada no mercado dos peróxidos orgânicos destinados ao fabrico de plásticos, dominado pela AKZO. O Tribunal de Justiça considerou que o mercado de referência era o dos peróxidos orgânicos no seu todo, embora, de forma algo confusa ( 18 ), tenha distinguido dois sectores, o dos peróxidos destinados ao fabrico de plásticos e o dos peróxidos utilizados como aditivos para farinha. O abuso da AKZO — preços anormalmente baixos — verificou-se neste último segmento do mercado relevante, mas com o objectivo de produzir efeitos no sector dos peróxidos utilizados na produção de plásticos, que era a esfera comercial preferida da AKZO ( 19 ).

    No acórdão BPB Industries e British Gypsum/Comissão ( 20 ), confirmado em recurso (a seguir «acórdão British Gypsum») ( 21 ), o TPI admitiu que o artigo 86.° era aplicável a um benefício que empresa em questão, que ocupava uma posição dominante no mercado das placas de estuque, concedia num mercado distinto, o mercado do estuque, apenas aos clientes «fiéis» que se abasteciam cm placas de estuque exclusivamente nesta empresa. A empresa dava preferência, no fornecimento de estuque, aos clientes que compravam as suas placas de estuque, com o objectivo de impedir ou dificultar a importação de placas de estuque de outros Estados-Membros. A prática comercial seguida no mercado do estuque destinava-se portanto a reforçar a posição dominante da empresa no mercado das placas de estuque.

    Com esta jurisprudência alarga-se o âmbito de aplicação do artigo 86.°, para abranger qualquer comportamento comercial abusivo que tenha incidência no mercado dominado, independentemente de se verificar noutros mercados ( 22 ). Nestas situações, o nexo entre a posição dominante e o abuso é mais fraco, embora continue a existir, uma vez que, pelo menos, os efeitos do abuso se produzem no mercado dominado.

    46.

    A hipótese d) — abuso cometido num mercado distinto, mas conexo e ligado ao mercado dominado — constitui uma evolução relativamente às hipóteses b) e c) na linha da flexibilização da relação entre abuso e posição dominante. Não existia na jurisprudência comunitária nenhum caso que se enquadrasse nesta hipótese, sendo portanto o acórdão recorrido uma importante inovação da jurisprudência para a aplicação do artigo 86.° Passarei assim a expor o raciocínio seguido pelo TPI no acórdão recorrido, para depois analisar a sua exactidão à luz dos argumentos invocados pela recorrente como fundamento de anulação.

    47.

    No n.° 122 do acórdão recorrido, o TPI conclui:

    «... as práticas aplicadas pela Tetra Pak nos mercados não assépticos são susceptíveis de ficar abrangidas pelo artigo 86.° do Tratado, sem que seja necessário provar a existência de uma posição dominante nestes mercados isoladamente considerados, na medida em que a proeminência desta empresa nos mercados não assépticos, combinada com os laços estreitos de conexão entre estes mercados e os mercados assépticos, conferia à Tetra Pak uma independência de comportamento relativamente aos outros operadores económicos presentes nos mercados não assépticos, capaz de justificar a sua responsabilidade particular, nos termos do artigo 86.°, na manutenção de uma concorrência efectiva e não falseada nestes mercados».

    48.

    O TPI chega a esta conclusão através de um raciocínio que começa com a afirmação da posição dominante da Tetra Pak nos mercados das máquinas e embalagens de cartão assépticas, uma vez que dispõe de uma quota de mercado de cerca de 90%, tem apenas como concorrente a PKL, com os restantes 10% do mercado, e a entrada de novos concorrentes está limitada pela existência de numerosas patentes e de importantes barreiras tecnológicas.

    49.

    O TPI analisa depois a verificação dos requisitos de aplicação do artigo 86.° relativamente à actuação da Tetra Pak nos mercados não assépticos. Quanto a esta questão, o TPI aceita o raciocínio seguido pela Comissão na decisão impugnada e não considera necessário determinar se a Tetra Pak ocupava ou não uma posição dominante nos mercados não assépticos, para o efeito de aplicar o artigo 86.° À luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 23 ), era relativamente fácil demonstrar a existência desta posição dominante, como foi reconhecido pelo TPI ( 24 ) e pela Comissão ( 25 ). Com efeito, a Tetra Pak detinha em 1985 cerca de 48% do mercado das embalagens de cartão e 52% do mercado das máquinas não assépticas, quota esta que em 1987 atingiu cerca de 55%, e que excedia em 10% a 15% a soma das quotas dos seus principais concorrentes.

    50.

    O TPI considera, no n.° 113 do acórdão recorrido, que o artigo 86.° não contém qualquer indicação explícita que imponha a localização do abuso no mercado relevante dos produtos. Através de uma interpretação da jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça, o TPI conclui que:

    «O campo de aplicação material da responsabilidade particular que pesa sobre uma empresa cm posição dominante deve, pois, ser apreciado tendo cm conta as circunstâncias específicas de cada caso, que traduzem uma situação de concorrência enfraquecida...» (n.° 115).

    «Verifica-se, portanto, que as alegações da recorrente, segundo as quais o juiz comunitário teria excluído qualquer possibilidade de aplicação do artigo 86.° a um acto cometido por uma empresa em posição dominante num mercado distinto do mercado dominado, não se provam» (n.° 116).

    51.

    No caso em apreço, o TPI considerou que as práticas comerciais da Tetra Pak nos mercados não assépticos constituíam uma violação da responsabilidade particular que impendia sobre esta empresa por força da proibição do artigo 86.°, pela sua situação de proeminência nos mercados não assépticos e pela estreita conexão existente entre estes e os mercados assépticos, em que a Tetra Pak ocupava uma posição dominante.

    52.

    No n.° 115 do acórdão recorrido, o TPI recorre à jurisprudência estabelecida pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos Commercial Solvents/Comissão, CBEM, AKZO e British Gypsum como base para afirmar que o artigo 86.° se pode aplicar a um acto cometido por urna empresa em posição dominante num mercado distinto do mercado dominado. Estes acordaos enquadram-se nas hipóteses b) e c), que acima formulei, c só de modo limitado poderão ser invocados como precedentes para resolver um litígio como o presente ( 26 ). Com efeito, cm todos estes acórdãos existia um nexo entre a posição dominante e o abuso quanto ao mercado relevante, uma vez que ou o abuso se verificava no mercado dominado, produzindo efeitos noutro mercado, ou se verificava num mercado distinto, mas com o objectivo de reforçar a posição da empresa no mercado dominado. No caso em apreço, a Tetra Pak domina os mercados da embalagem asséptica e comete abusos nos mercados do acondicionamento não asséptico, pelo que a posição dominante e o abuso se verificam em mercados relevantes distintos. Trata-se assim de um litígio diferente dos até agora analisados pela jurisprudência comunitária, que se enquadraria na hipótese d), pelas conexões entre os mercados assépticos e os mercados não assépticos, e não na hipótese e) — posição dominante e abuso existentes em mercados diferentes e não ligados —, pelo que não se pode afastar a aplicação do artigo 86.°

    Os acórdãos referidos pelo TPI apenas servem de apoio à solução adoptada no acórdão recorrido na medida em que reflectem uma tendência jurisprudencial pela qual o Tribunal de Justiça tem vindo progressivamente a flexibilizar a relação entre posição dominante e abuso, embora sem a eliminar completamente, já que se mantém um certo nexo entre o mercado dominado e o mercado onde se verifica a exploração abusiva, pelo qual o abuso e os seus efeitos incidem em ambos os mercados.

    53.

    Chegados a este ponto, é necessário procurar saber se a aplicação da proibição do artigo 86.° aos abusos cometidos pela Tetra Pak nos mercados não assépticos, que o acórdão recorrido aceitou, é admissível à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o artigo 86.°

    54.

    Pessoalmente, parece-me que a solução adoptada pelo TPI no acórdão recorrido constitui uma evolução jurisprudencial coerente e aceitável, e que é lógico à luz da concepção objectiva de abuso estabelecida pelo Tribunal de Justiça ( 27 ). Entendo que a estreita conexão entre dois mercados relevantes constitui um nexo suficiente para manter a ligação exigida pelo artigo 86.°, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, entre a posição dominante e o abuso.

    Essa ligação não existe se os dois mercados relevantes não forem conexos. Nestes casos, como já se indicou, não seria aplicável o artigo 86.°, porque isso provocaria efeitos contrários à manutenção da livre concorrência no mercado interno. No entanto, quando se trate de dois mercados estreitamente conexos ou ligados, a proibição do artigo 86.° pode ser aplicável aos abusos cometidos no mercado não dominado pela empresa em posição dominante no outro mercado. Esta possibilidade viria de encontro à jurisprudência do Tribunal de Justiça que flexibilizou a regra da unidade do mercado dominado e do mercado afectado pelo abuso, para permitir a aplicação do artigo 86.° a situações em que o abuso cometido no mercado dominado se faz sentir noutro mercado, e aos casos em que o abuso se verifica num mercado não dominado, com o objectivo de reforçar a posição dominante da empresa noutro mercado.

    55.

    Sem dúvida, a aceitação do critério da conexão estreita entre dois mercados constitui a situação extrema de flexibilização da regra da unidade do mercado dominado e do mercado afectado pelo abuso. Este critério não se afasta demasiado do critério dos efeitos do abuso que o Tribunal de Justiça teve em conta nos acórdãos enquadráveis nas hipóteses b) e c), atrás examinadas, já que, quanto maior for a ligação entre os mercados, com mais intensidade se farão sentir num deles os efeitos de um abuso cometido no outro.

    56.

    A aplicação do artigo 86.° a estas situações de abusos cometidos num mercado conexo por uma empresa dominante noutro mercado deve ser delimitada com precisão, para evitar que a Comissão utilize esta possibilidade para alargar indevidamente o âmbito de aplicação da proibição do abuso de posição dominante. Com efeito, este resultado poderia alcançar-se com uma delimitação muito restritiva do mercado relevante, que permitisse determinar com facilidade a posição dominante da empresa, e, em seguida, considerar estreitamente ligados ao mercado relevante outros mercados adjacentes, para que a empresa cm questão tivesse que suportar, na sua actuação nestes mercados, a especial responsabilidade que lhe é imposta pelo artigo 86.°

    57.

    Em princípio, não é possível definir com total precisão o conceito de mercados estreitamente ligados ou conexos. Trata-se de uma questão que deve ser resolvida caso a caso pelas autoridades competentes para a aplicação do direito comunitário da concorrência. Ora, para essa apreciação, devem tomar-se cm conta, entre outros, os seguintes factores: a estrutura da procura e da oferta nos mercados, as características dos produtos, o recurso da empresa dominante ao seu poder no mercado dominado para penetrar no mercado conexo, a quota de mercado da empresa dominante no mercado não dominado e a amplitude do controlo do mercado dominado pela empresa cm questão. Uma apreciação deste tipo não é contrária, como sugere a Tetra Pak na petição, ao princípio da segurança jurídica. Além disso, a ligação entre mercado dominado e mercado afectado pelo abuso deve ser estreita, pelo que se impõe uma interpretação estrita desta nova hipótese de aplicação do artigo 86.°, não parecendo previsível a existência de muitos casos que nela se enquadrem ( 28 ).

    58.

    Analisarei em seguida se, no acórdão recorrido, o TPI se ateve às premissas que atrás defini para a aplicação do artigo 86.° a situações de posição dominante e abuso cm mercados distintos, mas estreitamente ligados.

    59.

    Nos n. os 120 e 121 do acórdão recorrido, o TPI demonstra a existência de uma estreita conexão entre os mercados assépticos e não assépticos, baseando-se numa série de elementos de facto, que não podem ser questionados num recurso deste tipo e que são os seguintes:

    As máquinas e as embalagens de cartão, tanto assépticas como não assépticas, são utilizadas para o acondicionamento dos mesmos produtos líquidos destinados à alimentação humana, principalmente os produtos lácteos e os sumos de fruta.

    Uma grande parte dos clientes da Tetra Pak operava tanto no sector asséptico como no sector não asséptico. A Tetra Pak precisou que em 1987 cerca de 35% dos seus clientes compravam simultaneamente sistemas assépticos e sistemas não assépticos.

    Quanto aos produtores, dois deles — a Tetra Pak e a PKL — estavam já presentes nos quatro mercados, e o terceiro, a Elopak, que estava bem implantada no sector não asséptico, tentava desde há muito aceder aos mercados assépticos.

    A Tetra Pak dominava quase totalmente o mercado asséptico, uma vez que detinha uma quota de mercado de cerca de 90%. Esta sólida posição da Tetra Pak no sector asséptico fazia dela, para as empresas que produziam simultaneamente líquidos alimentares frescos e de longa conservação, um fornecedor privilegiado de sistemas não assépticos.

    O avanço tecnológico da Tetra Pak e o seu quase monopólio no sector asséptico permitiam-lhe concentrar os seus esforços, em matéria de concorrência, nos mercados vizinhos não assépticos, onde já estava bem implantada, sem receio de reacções no sector asséptico.

    60.

    Tendo em conta esta série de elementos de facto, considero que o TPI demonstrou sobejamente a estreita conexão entre os mercados assépticos e os mercados não assépticos. Com efeito, foram analisadas as características da oferta e da procura, a posição da Tetra Pak no mercado dominado e no mercado conexo, bem como a estratégia de penetração da empresa dominante no mercado não dominado. Todas as conclusões dessa análise demonstravam a conexão entre os mercados assépticos e os mercados não assépticos, e permitiam concluir que, nestes últimos, a Tetra Pak gozava também de independência de comportamento face aos demais operadores económicos.

    61.

    A recorrente considera que esta solução não é defensável, uma vez que o Tribunal de Justiça já a afastou em situações semelhantes com que foi confrontado, a saber, as suscitadas nos processos Hoffman-La Roche//Comissão e Michelin/Comissão. A análise que a recorrente faz dos acórdãos proferidos nestes dois processos deve ser rejeitada.

    No processo Hoffman-La Roche/Comissão, o Tribunal de Justiça aceitou a existência de oito mercados relevantes constituídos por oito grupos diferentes de vitaminas. A Hoffman-La Roche estava em posição dominante em todos estes mercados, excepto no da vitamina B 3, onde a sua quota de mercado era mais reduzida. A empresa foi condenada pelas suas práticas comerciais abusivas nos sete mercados dominados e não pelas cometidas no mercado da vitamina B 3. Neste caso, a Comissão não invocou a estreita conexão entre este mercado e os outros sete mercados de vitaminas e, além disso, o Tribunal de Justiça declarou que a Hoffman-La Roche não beneficiava de vantagens no mercado da vitamina B 3 pelo facto de fornecer as outras sete vitaminas, pois os seus concorrentes podiam fornecer aos compradores deste produto uma vasta gama de outros produtos ( 29 ). No caso em apreço, como foi referido pela Comissão na contestação, a vantagem da Tetra Pak nos mercados não assépticos, proveniente do seu quase monopólio nos mercados assépticos, não é neutralizada pela possibilidade de os seus concorrentes nos mercados não assépticos oferecerem aos clientes outro tipo de produtos.

    No que diz respeito ao acórdão Michelin//Comissão, o TPI afastou correctamente, no n.° 116 do acórdão recorrido, a sua pertinência para a resolução do presente litígio. No acórdão Michelin/Comissão, não se considerou contrária ao artigo 86.° uma bonificação adicional baseada nos objectivos de venda no mercado dos pneus para automóveis, que a Michelin concedia nos Países Baixos, porque não constituía uma prestação associada ao sistema de bonificações aplicado por esta empresa no mercado dos pneus para camiões, dominado pela Michelin, e que foi considerado incompatível com a proibição do artigo 86.° Entre o mercado dos pneus para automóveis e o mercado dos pneus para camiões não havia uma conexão estreita, devido às significativas diferenças quanto à estrutura da oferta e da procura em ambos os mercados, que o Tribunal de Justiça destacou para a determinação do mercado relevante ( 30 ). Este processo não se refere portanto a uma situação semelhante à que se apresenta no acórdão recorrido.

    62.

    Tendo em conta as considerações anteriores, considero que este fundamento de anulação deve ser rejeitado.

    C — O terceiro fundamento relativo às vendas ligadas das embalagens de cartão e das máquinas de enchimento

    63.

    Este fundamento questiona a aplicação pelo TPI da alínea d) do artigo 86.° no acórdão recorrido, por não ter em conta que o sistema de vendas ligadas da Tetra Pak obedecia à relação natural entre as embalagens e as máquinas de enchimento, e era conforme aos usos comerciais no sector.

    64.

    O TPI considerou nos n. os 131 a 141 do acórdão recorrido que a Tetra Pak incluiu nos seus contratos cláusulas-tipo que obrigavam a utilizar unicamente embalagens de cartão Tetra Pak nas máquinas vendidas por esta empresa [cláusula ix)] e a comprar embalagens de cartão exclusivamente à Tetra Pak ou a um fornecedor por si indicado [cláusulas x) e xxv)], com o objectivo de transformar as embalagens e as máquinas de enchimento em mercados totalmente indissociáveis.

    As outras vinte e quatro cláusulas contratuais [cláusulas i) a viii), xi) a xxiv), xxvi) e xxvii)] faziam parte de uma estratégia global que tinha como objectivo, uma vez realizada a operação da venda ou aluguer das máquinas, tornar o cliente completamente dependente da Tetra Pak durante todo o período de vida das mesmas, excluindo assim qualquer possibilidade de concorrência tanto no que se refere às embalagens de cartão como no que diz respeito aos produtos conexos.

    65.

    O TPI considerou que estas cláusulas de venda ligada tinham caracter abusivo, porque reforçavam a posição dominante da Tetra Pak, ao acentuarem a dependência económica dos seus clientes.

    66.

    No presente recurso, a Tetra Pak alega que as cláusulas contratuais que ligam a venda das embalagens à das máquinas de enchimento são lícitas à luz da letra da alínea d) do artigo 86.°, porque existe uma relação natural entre ambos os produtos e porque esta venda ligada é conforme aos usos comerciais no sector.

    67.

    Estes argumentos da recorrente devem ser rejeitados.

    68.

    A alínea d) do artigo 86.° dispõe que as práticas abusivas proibidas por este preceito podem consistir em «subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos».

    69.

    Assim, constituem práticas abusivas contrárias ao artigo 86.° os sistemas de vendas ligadas de produtos que, pela sua própria natureza, são dissociáveis e podem ser comercializados separadamente, bem como as vendas ligadas praticadas num sector onde a sua utilização não é habitual. O acórdão recorrido considerou correctamente que as embalagens de cartão e as máquinas de enchimento não são, pela sua própria natureza, produtos indissociáveis, e que os usos comerciais no sector não impunham o recurso ao sistema de vendas ligadas. Com efeito, nos mercados não assépticos existiam empresas, como a Elopak, que durante muito tempo tinham apenas fabricado embalagens de cartão que eram utilizadas em máquinas de acondicionamento produzidas por outras empresas. Acresce que outros pequenos produtores de embalagens não assépticas utilizavam máquinas de enchimento provenientes de empresas norte-americanas ou japonesas. Em qualquer caso, a inexistência da alegada relação natural entre embalagens e máquinas de enchimento fica irrefutavelmente demonstrada pelo facto de a Tetra Pak se ter comprometido, na sequência da decisão impugnada, a abdicar do seu sistema de vendas ligadas e a comunicar as especificações técnicas a que as embalagens devem obedecer para poderem ser utilizadas nas suas máquinas de enchimento.

    70.

    Por fim, considero inaceitável a interpretação da alínea d) do artigo 86.° defendida pela Tetra Pak no seu recurso, pela qual se infere a contrario desta disposição que uma empresa cm posição dominante num mercado não comete um abuso se instituir um sistema de vendas ligadas de produtos indissociáveis por natureza ou se este tipo de prática for habitual no sector. Neste sentido, é acertada, como refere a Comissão na contestação, a seguinte afirmação que o TPI faz no n.° 137 do acórdão recorrido:

    «... Acresce que, e em qualquer hipótese, mesmo supondo que esse uso se provava, tal não bastaria para justificar o recurso ao sistema de vendas ligadas por uma empresa cm posição dominante. Um uso, mesmo aceitável em situação normal num mercado concorrencial, não pode ser admitido no caso de um mercado cm que a concorrência já está reduzida...»

    Assim, um sistema de vendas ligadas de produtos indissociáveis por natureza ou habitual nos usos comerciais do sector constituirá, em princípio, um abuso, salvo justificação objectiva. O Tribunal de Justiça declarou que, para uma empresa que ocupa uma posição dominante no mercado, o facto de vincular directa ou indirectamente os seus clientes através de uma obrigação de fornecimento exclusivo constitui um abuso na medida em que priva o cliente da possibilidade de escolher as suas fontes de abastecimento e limita o acesso dos outros produtores ao mercado ( 31 ). Em suma, só em situações excepcionais podem as vendas ligadas realizadas por uma empresa cm posição dominante ser justificadas pela natureza dos produtos ou pelos usos comerciais.

    71.

    As considerações precedentes conduzem à rejeição deste fundamento de anulação.

    D — O quarto fundamento relativo aos preços eliminatórios das embalagens de cartão Tetra Rex em Itália e das máquinas de embalagem não asséptica no Reino Unido

    72.

    Com este fundamento, a Tetra Pak pede a anulação da parte do acórdão recorrido na qual se determina que a venda a preços eliminatórios das embalagens de cartão Tetra Rex em Itália e das máquinas de embalagem não asséptica no Reino Unido constitui um abuso de posição dominante. A recorrente considera que estes preços não podem ser considerados eliminatórios à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, porque a Tetra Pak não tinha qualquer possibilidade razoável de recuperar os prejuízos resultantes da sua aplicação, uma vez que tinham sido praticados no sector não asséptico, em que a empresa não tem posição dominante.

    73.

    A aplicação do artigo 86.° às práticas de preços eliminatórios ou predatórios foi delimitada pelo Tribunal de Justiça no acórdão AKZO. Partindo do conceito objectivo de exploração abusiva, o Tribunal declarou no acórdão AKZO que o artigo 86.° «proíbe que uma empresa em posição dominante elimine um concorrente e reforce desse modo a sua posição, recorrendo a outros meios que não os que resultam de uma concorrência de méritos» ( 32 ). Nesta perspectiva, o Tribunal considera que a concorrência baseada nos preços nem sempre é legítima, e identifica em seguida duas situações de preços eliminatórios, contrárias ao artigo 86.°

    74.

    Em primeiro lugar, considera abusivos, por natureza, «... preços inferiores à média dos custos variáveis (quer dizer, dos custos que variam em função das quantidades produzidas) de que uma empresa dominante se serve para tentar eliminar um concorrente...» ( 33 ). Quando uma empresa dominante vende os seus produtos a preços inferiores à média dos custos variáveis existe uma presunção de intenção eliminatória, porque esta empresa «... não tem, efectivamente, nenhum outro interesse em praticar tais preços, que não seja o de eliminar os seus concorrentes para poder, a seguir, aumentar os preços utilizando a situação de monopólio, uma vez que cada venda implica para ela uma perda, ou seja, a totalidade dos custos fixos (quer dizer, dos que permanecem constantes, qualquer que seja a quantidade produzida) e uma parte, pelo menos, dos custos variáveis atribuíveis à unidade produzida» ( 34 ).

    75.

    Em segundo lugar, o Tribunal entende que são também abusivos os «... preços inferiores à média dos custos totais, incluindo os custos fixos e os variáveis, mas superiores à média dos custos variáveis... quando são fixados no quadro de um plano que tem como finalidade eliminar um concorrente» ( 35 ). Esta prática abusiva exige, portanto, a existência de vendas a preços inferiores à média dos custos totais, bem como um plano de eliminação da empresa concorrente.

    76.

    Em nenhuma destas situações de preços eliminatórios ou predatórios, identificadas no acórdão AKZO, exige o Tribunal de Justiça a prova de que a empresa dominante tenha a possibilidade razoável de recuperar posteriormente os prejuízos deliberadamente sofridos. O argumento da recorrente, segundo o qual o n.° 71 do acórdão AKZO estabelece a possibilidade de recuperação dos prejuízos como condição para a existência de preços eliminatórios, deve ser rejeitado. O Tribunal limita-se naquele número a explicar a razão por que se presume a intenção eliminatória da venda a preços inferiores à média dos custos variáveis.

    77.

    Em apoio dos seus argumentos, a recorrente faz referência à jurisprudência da Supreme Court dos Estados Unidos, e, em especial, ao acórdão Brooke Group/Brown & Williamson Tobacco ( 36 ) , na qual se afirma que as vendas a preços inferiores aos custos só podem ter caracter eliminatório quando a empresa dominante possa esperar razoavelmente recuperar posteriormente os prejuízos sofridos de modo deliberado. A Supreme Court considera portanto que existem preços predatórios se as vendas se realizam a preços inferiores aos custos e se a empresa cm questão tiver expectativas de recuperação dos prejuízos sofridos. Este segundo requisito carece de prova específica, porque a possibilidade de recuperação dos prejuízos é o objectivo final da estratégia dos preços predatórios e, não sendo tal recuperação viável, resultaria numa prática vantajosa para os consumidores.

    78.

    Não me parece conveniente que o Tribunal de Justiça estabeleça a expectativa de recuperação dos prejuízos como um novo requisito para a determinação da existência dos preços eliminatórios, incompatíveis com o artigo 86.° Entre as razões que me levam a esta posição destaco as seguintes:

    As vendas com prejuízo para eliminar um concorrente seriam uma prática suicida se fossem utilizadas por uma empresa dominante sem possibilidade de recuperação dos prejuízos sofridos.

    O potencial económico da empresa dominante e o enfraquecimento da concorrência existente no mercado dominado ou conexo asseguram, em princípio, a recuperação dos prejuízos.

    A prova da expectativa de recuperação dos prejuízos é difícil de definir e exige complexas análises do mercado, como resulta claramente da própria jurisprudência da Supreme Court.

    A recuperação dos prejuízos é o resultado procurado pela empresa dominante, mas os preços predatorios constituem em si uma prática anticoncorrencial, independentemente de alcançarem ou não o seu objectivo.

    79.

    No acórdão recorrido, o TPI aplicou correctamente os critérios estabelecidos pelo acórdão AKZO, entendendo que a venda das embalagens Tetra Rex a preços inferiores ao seu custo variável, entre 1976 e 1981, era contrária ao artigo 86.°, porque pretendia, pela sua própria natureza, eliminar a Elopak e reforçar a posição preponderante da Tetra Pak nos mercados não assépticos. Por outro lado, a venda de embalagens Tetra Rex em 1982 foi feita a preços inferiores ao seu custo total, e a existência de vários indícios, expostos no n.° 151 do acórdão recorrido, confirmou a existência de um plano da Tetra Pak para eliminar a Elopak do mercado italiano, pelo que, correctamente, tal prática foi considerada abusiva e contrária ao artigo 86.° Esta mesma análise deve aplicar-se ao raciocínio, substancialmente coincidente, feito pelo TPI para demonstrar o carácter eliminatório dos preços das máquinas de enchimento não asséptico no Reino Unido, de 1981 a 1984.

    80.

    A recorrente entende que estas práticas de preços eliminatórios não violam o artigo 86.°, porque ocorreram nos mercados não assépticos, onde a Tetra Pak não tinha uma posição dominante. Este argumento deve ser rejeitado, uma vez que, como já referi antes, o quase monopólio dos mercados assépticos e a estreita conexão entre estes e os mercados não assépticos tornavam os abusos cometidos pela Tetra Pak nos mercados não assépticos em práticas contrárias ao artigo 86.°

    81.

    Por todas estas razões, considero que este fundamento deve ser rejeitado.

    E — O quinto fundamento relativo ao montante da coima

    82.

    Através deste fundamento, a recorrente pede a anulação da coima, ou, pelo menos, uma redução substancial do seu montante, porque, na sua opinião, o TPI rejeitou erradamente as circunstâncias atenuantes invocadas pela Tetra Pak, e, em particular, o carácter inovador da decisão impugnada em alguns aspectos importantes. Concretamente, a recorrente considera que o TPI, tal como a Comissão, não teve em conta para a determinação do montante da coima a inexistência de precedentes relativamente às vendas ligadas, aos preços eliminatórios e à possibilidade de uma empresa dominante num mercado poder cometer abusos num mercado conexo, mas não dominado.

    83.

    Este argumento não pode merecer acolhimento. Com efeito, o TPI tomou em consideração, no acórdão recorrido, o carácter inovador, segundo a Tetra Pak, da decisão impugnada, uma vez que referiu este argumento, como alegação da Tetra Pak, no n.° 228 do acórdão, nos termos seguintes:

    «Em quinto lugar, a Comissão não teve em conta o carácter inédito tanto do seu modo de delimitação do mercado dos produtos como da sua teoria do ‘mercado vizinho’, através da qual justificou a aplicação do artigo 86.° do Tratado no sector não asséptico.»

    84.

    Este argumento foi rejeitado no n.° 239 do acórdão recorrido, no qual o TPI declarou que «... mesmo se, sob certos aspectos, a determinação dos mercados dos produtos cm causa e do domínio de aplicação do artigo 86.° podia apresentar alguma complexidade, tal facto não podia, no caso em apreço, levar à redução do montante da coima, tendo em conta o carácter manifesto e a particular gravidade das restrições à concorrência resultantes dos abusos em causa. As alegações da recorrente, expostas no n.° 228, supra, relativas ao caracter alegadamente inédito de certas apreciações jurídicas constantes da decisão, não merecem portanto acolhimento».

    85.

    Em minha opinião, são correctas estas considerações do TPI quanto à determinação do montante da coima, rejeitando como circunstância atenuante o carácter inédito da decisão impugnada. Já existiam decisões da Comissão c jurisprudência do Tribunal de Justiça relativas às vendas ligadas c à prática de preços eliminatórios. A aplicação do artigo 86.° aos abusos cometidos por uma empresa dominante num mercado conexo onde esta detém uma posição preponderante, mas não dominante, é, sem dúvida, uma importante inovação. No entanto, esta evolução da aplicação do artigo 86.° segue a linha da anterior jurisprudência do Tribunal de Justiça, que flexibilizou a regra da unidade do mercado dominado e do mercado afectado pelo abuso. Acresce que, e em qualquer caso, a Comissão poderia ter penalizado os abusos da Tetra Pak nos mercados não assépticos demonstrando que neles detinha uma posição dominante.

    86.

    No restante, o acórdão recorrido aplica correctamente os critérios estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça para a determinação do montante das coimas, concluindo que a coima de 75 milhões de ecus aplicada pela Comissão à Tetra Pak — a mais elevada que alguma vez se aplicou a uma só empresa — era adequada à gravidade, à duração, e aos efeitos das práticas anticoncorrenciais da Tetra Pak.

    87.

    Pelas razões que antecedem, proponho que este fundamento seja rejeitado.

    Despesas

    88.

    Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, aplicável, segundo o artigo 118.°, aos recursos das decisões do Tribunal de Primeira Instância, a parte vencida é condenada nas despesas. Assim, se, como proponho, os fundamentos da recorrente forem rejeitados, deve esta ser condenada nas despesas.

    Conclusão

    89.

    Em conformidade com as considerações que antecedem, proponho que o Tribunal de Justiça:

    «1)

    Negue provimento ao recurso.

    2)

    Condene a recorrente nas despesas.»


    ( *1 ) Língua original: espanhol.

    ( 1 ) T-83/91, Colect, p. II-755.

    ( 2 ) Decisão da Comissão, de 24 de Julho de 1991, relativa a um processo de aplicação do artigo 86.° do Tratado CEE (IV/31.043 —Tetra Pak II, JO 1992, L 72, p. 1).

    ( 3 ) Esta decisão faz parte de uma série de três decisões relativas à Tetra Pak. A primeira é a Decisão 88/501/CEE, de 26 de Julho dc 1988, relativa a um processo de aplicação dos artigos 85.° e 86.° do Tratado CEE [IV/31.043 —Tetra Pak I (licença BTG), JO L 272, p. 27], em que a Comissão considerou que, ao adquirir, através da compra do grupo Liquipak, a exclusividade da licença de patente de um novo procedimento, denominado «tratamento a temperatura ultra-elcvada» (a seguir «UHT»), de acondicionamento asséptico do leite, a Tetra Pak tinha infringido o artigo 86.° do Tratado CEE desde a data de aquisição até à data cm que se pôs efectivamente fim a essa exclusividade. Esta decisão foi objecto de recurso ao qual o Tribunal de Primeira Instância negou provimento pelo acórdão de 10 de Julho de 1990, Tetra Pak Rausing/Comissão (T-51/89, Colect., p. II-309). A segunda é a Decisão 91/535/CEE, de 19 de Julho de 1991, que declara a compatibilidade com o mercado comum de uma operação de concentração (processo n.° IV/M068 — Tetra Pak/Alfa-Laval, JO L 290, p. 35), pela qual a Comissão, baseando-se no n.° 2 do artigo 8.° do Regulamento (CEE) n.° 4064/89 do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, relativo ao controlo das operações de concentração de empresas (versão rectificada publicada no JO 1990, L 257, p. 13), considerou compatível com o mercado comum a aquisição da Alpha-Laval ÁB pela Tetra Pak.

    ( 4 ) O volume de negócios consolidado do grupo Tetra Pak clcvava-se, cm 1987, a 2400 milhões de ecus, c a 3600 milhões de ecus cm 1990. Cerca de 90% deste volume de negócios foi obtido no mercado das embalagens de cartão c os restantes 10% nos mercados das máquinas de embalagem c actividades conexas. A parte da Comunidade neste volume de negócios era de 50%. Na Comunidade, a Itália é um dos países, ou mesmo o país, cm que a Tetra Pak está mais fortemente implantada. O volume de negócios consolidado das sete empresas italianas do grupo ascendia, cm 1987, a 204 milhões de ecus.

    ( 5 ) Acórdão de 9 de Novembro de 1983 (322/81, Recueil, p. 3461, п.° 37).

    ( 6 ) Acórdão Michelin/Comissão, já referido na noia 5, n.° 37.

    ( 7 ) V. Bellamy, C. c Child, G.: Derecho de la competencia en el mercado común, Civitas, Madrid, 1992, pp. 508 e segs.; Korah, V.: An Introductory Guide to EC Competition Law and Practice, Sweet & Maxwell, Londres, 1994, pp. 69 e segs.

    ( 8 ) Acórdão de 13 de Fevereiro de 1979 (85/76, Recueil, p. 461).

    ( 9 ) Acórdão de 3 de Julho de 1991 (C-62/86, Colel., p. I-3359, n.° 45).

    ( 10 ) Acórdão de 6 de Março de 1974 (6/73 e 7/73, Colect., p. 119, n.°15).

    ( 11 ) Para uma análise do conceito de mercado dos produtos em causa e seus problemas, v. Bolzé, C: «Abus de position dominante», Répertoire Dalloz de droit communautaire, 1992.

    ( 12 ) Acórdãos de 21 de Fevereiro de 1973, Europemballlage c Continental Can Company/Comissão (6/72, Colect , p. 109, a seguir «acórdão Continental Can»), de 14 de Fevereiro de 1978, United Brands/Comissão (27/76, Colect., p. 77), c de 2 de Março de 1991, Hilti/Comissāo (C-53/92 P, Colect., p. I-667).

    ( 13 ) Conclusões do advogado-geral VerLorcn van Themaat no processo relativamente ao qual foi proferido o acórdão Michelin/Comissão, já referido na nota 5, p. 3529 c segs.

    ( 14 ) Acórdão Hoffman-La Rochc/Comissāo, já referido na nota 8, n.°91.

    ( 15 ) Conclusões do advogado-geral C. O. Lenz no processo relativamente ao qual foi proferido o acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.° 42.

    ( 16 ) Acórdão de 3 de Outubro de 1985 (311/84, Recueil, p. 3261).

    ( 17 ) V. acórdão Commercial Solvcnts/Comissão, já referido na nota 10, n.° 22.

    ( 18 ) Acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.°s 40 a 45.

    ( 19 ) V. comentários de Subiotto, R.: «The Special Responsibility of Dominant Undertakings Not to Impair Genuine Undistortcd Competition», World Competition 1995, pp. 11 e 12.

    ( 20 ) Acórdão de 1 de Abril de 1993 (T-65/89, Colect., p. II-389).

    ( 21 ) Acórdão de 6 de Abril de 1995 (C-310/93 P, Colect., p. I-865).

    ( 22 ) V., neste sentido, Sanfilippo, L.: «Abuse of Freedom of Conduct: Neighbouring Markets and Application of Article 86.°», European Business Law Review-, Março de 1995, p. 73.

    ( 23 ) Uma quota dc mercado dc 50% constitui por si só, salvo circunstâncias excepcionais, prova da existência de uma posição dominante, conforme declarou o Tribunal de Justiça no acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.° 60.

    ( 24 ) N.° 119 do acórdão recorrido.

    ( 25 ) N.° 99 da decisão impugnada.

    ( 26 ) O advogado-gcral P. Léger, nas conclusões apresentadas no processo British Gypsum, interroga-sc sobre sc pode ser tido cm conta um abuso cometido num mercado distinto daquele cm que a posição dominante foi identificada. A partir dos acórdãos Commercial Solvents/Comissão, AKZO c CBEM considera que o Tribunal de Justiça responde afirmativamente a esta questão quando naja um elemento dc conexão entre os dois mercados. O advogado-gcral P. Léger considera o acórdão Tetra Pak, ora recorrido, como outra hipótese neste sentido. V. , cm especial, as conclusões do advogado-geral P. Léger no processo relativamente ao qual foi proferido o acórdão British Gypsum, já referido na nota 21, n.os 82 a 85.

    ( 27 ) V., entre outros, os acórdãos Continental Can, já referido na nota 12, n.° 27, e Hoffman-La Roche/Comissão, já referido na nota 8, n.° 91.

    ( 28 ) V., neste sentido, Levy, N.: «Tetra Pak II: Stretching the Limits of Article 86?», European Competition Law Review, 1995, n.° 2, p. 109.

    ( 29 ) Acórdão Hoffman-La Roche/Comissão, já referido na nota 8, n.° 46.

    ( 30 ) Acórdão Michelin/Comissão, ¡á referido na nota 5, n°.s 39 a 44.

    ( 31 ) Acórdãos Hoffman-La Rochc/Comissão, já referido na nota 8, n.°s 89 c 90, c AKZO, já referido na nota 9, n.° 149.

    ( 32 ) Acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.° 70.

    ( 33 ) Acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.° 71.

    ( 34 ) Acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.° 71.

    ( 35 ) Acórdão AKZO, já referido na nota 9, n.° 72.

    ( 36 ) Acórdão de 21 de Junho de 1993, Brooke Group/Brown Sc Williamson Tobacco (n.° 92-466).

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