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Document 61990CJ0196

Acórdão do Tribunal (Sexta Secção) de 4 de Outubro de 1991.
Fonds voor Arbeidsongevallen contra Madeleine De Paep.
Pedido de decisão prejudicial: Hof van Cassatie - Bélgica.
Trabalhador que exerce a sua actividade a bordo de um navio de pesca que arvora pavilhão britânico e que é renumerado por uma empresa belga - Acidente de trabalho ocorrido a bordo de um navio - Determinação da legislação aplicável à relação de trabalho e em matéria de segurança social.
Processo C-196/90.

Colectânea de Jurisprudência 1991 I-04815

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1991:381

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-196/90 ( *1 )

Matéria de facto e enquadramento jurídico

1.

O Fonds voor Arbeidsongevallen, recorrente em cassação (a seguir «Fonds»), é um organismo público que, por força do artigo 58.°, n.° 1, da lei belga de 10 de Abril de 1971 sobre acidentes de trabalho (Moniteur belge, 1971, p. 5201), com a redacção em vigor à época dos factos, tem como atribuições: «1.° garantir a reparação dos danos resultantes dos acidentes de trabalho sofridos pelos marítimos, de acordo com as disposições da presente lei».

2.

A recorrida em cassação é Madeleine De Paep, esposa de Germain Ackx e mãe de Piet Ackx, ambos falecidos na sequência do naufràgio do navio de pesca «Hosanna», no qual trabalhavam.

3.

O litígio entre as partes tem por objecto a concessão de uma renda vitalícia que Madeleine De Paep reclama ao Fonds como indemnização pelo falecimento do seu filho.

4.

Os factos que estão na origem deste litígio podem ser resumidos como segue. O navio «Hosanna» pertencia à personenvennootschap met beperkte aansprakelijkheid (SPRL) ( *2 ) De Pax, com sede em Knokke-Heist (Bélgica), da qual Madeleine De Paep era gerente. Após ter encalhado em 20 de Julho de 1979, o navio sofreu importantes danos e foi declarado inapto para a navegação marítima. Segundo a legislação belga, a proibição de navegação que incidia sobre o navio só podia cessar após a reparação, devidamente aprovada, do mesmo.

5.

Em 29 de Janeiro de 1980, o navio foi vendido a uma sociedade inglesa, Minerva Fisheries Ltd, que o matriculou como navio britânico. Metade das acções desta sociedade inglesa pertenciam em conjunto a um certo O'Connors e a sua esposa e a outra metade a Germain Ackx e a sua esposa Madeleine De Paep.

6.

Para a sua ùltima saída, o navio, sem ter sido previamente reparado, foi apressadamente segurado pela quantia de 82000 UKL. Na noite de 15 para 16 de Fevereiro de 1980 o navio naufragou no mar em circunstancias extraordinariamente suspeitas; Germain Ackx, capitão do navio, e Piet Ackx, membro da sua tripulação, foram dados como desaparecidos. Os óbitos foram oficialmente declarados por decisão de 15 de Setembro de 1981 do rechtbank van eerste aanleg te Brugge. No momento em que o acidente ocorreu, Piet Ackx era ainda remunerado pela sociedade De Pax.

7.

O artigo 13.°, n.° 2, alínea b) do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na redacção em vigor à época dos factos [ver a versão codificada do Regulamento n.° 1408/71, publicada no JO C 138, de 9 de Junho de 1980, p. 1; a disposição em causa coincide, no essencial, com o artigo 13.°, n. 0 2, alínea c) da versão actual do regulamento] estava assim redigida:

«2.

Sem prejuízo do disposto nos artigos 14.° a 17.°:

a)

...

b)

o trabalhador que exerça a sua actividade profissional a bordo de um navio com pavilhão de um Estado-membro está sujeito à legislação deste Estado.»

8.

No entanto, o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, sempre na redacção em vigor à época dos factos (trata-se, no essencial, do artigo 14.°-B, n.° 4, da versão actual) estabelecia uma excepção à norma precedente, dispondo o seguinte:

«A regra enunciada no n.° 2, alínea b), do artigo 13.°, é aplicada tendo em conta as seguintes excepções e particularidades:

...

c)

O trabalhador que exerça uma actividade a bordo de um navio com pavilhão de um Estado-membro e seja remunerado, em virtude desta actividade, por uma empresa ou pessoa que tenha a sede ou o domicílio no território de outro Estado-membro, está sujeito à legislação deste último Estado, desde que aí resida; a empresa ou a pessoa que pagar a remuneração será considerada como entidade patronal para efeitos da aplicação da referida legislação.»

9.

O Fonds recusou efectuar o pagamento reclamado por Madeleine De Paep. Em consequência, esta propôs uma acção no arbeidsrechtbank te Brugge (Bélgica). Por decisão de 28 de Dezembro de 1982, este tribunal deu provimento ao pedido de Madeleine De Paep.

10.

O Fonds interpôs recurso desta decisão para o arbeidshof te Gent, afdeling Brugge. Este órgão jurisdicional, partindo da ideia de que, no momento do acidente, Piet Ackx tinha a sua residência na Bélgica e de que, embora trabalhasse a bordo de um navio de pesca britânico, era remunerado por tal trabalho por uma empresa com sede na Bélgica, considerou estarem preenchidas as condições previstas no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71 e, em consequência, declarou aplicável a legislação belga sobre acidentes de trabalho. Concedeu, portanto, a Madeleine De Paep uma renda equivalente a 20 % da remuneração anual de Piet Ackx.

11.

O Fonds interpôs recurso de cassação contra o acórdão do arbeidshof te Gent.

12.

A Hof van Cassatie van België confrontou-se com dois problemas. Em primeiro lugar, constatou que, por força do artigo 89.°, n.° 2, da lei belga de 5 de Junho de 1928, que regulamenta o contrato de trabalho marítimo (Moniteur belge de 26.7.1928), este cessa, qualquer que seja a sua natureza, designadamente, pela não navegabilidade oficialmente declarada do navio. Baseando-se no facto de o navio «Hosanna» ter sido declarado inapto para a navegação marítima, a Hof van Cassatie concluiu que, de acordo com a legislação belga, Piet Ackx não era titular de um contrato de trabalho no momento do addente. Interrogou-se, no entanto, sobre a questão de saber se, para aplicação dos artigos 13.°, ri.° 2, alínea b), e 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, a relação de trabalho entre um marítimo e a empresa que o remunera deve ser apreciada face à legislação do país em que tal empresa tem a sua sede social.

13.

Em segundo lugar, a Hof van cassatie verificou que, por força do artigo 76.°, n.° 1, da lei belga de 10 de Abril de 1971 sobre os acidentes de trabalho, já citada, se consideram «marítimos»: «4.° a tripulação dos navios de pesca belgas». Partindo da consideração de que, no momento do acidente, o navio em causa arvorava pavilhão britânico, concluiu que a lei belga sobre os acidentes de trabalho não podia ser aplicada. Interrogou-se, porém, sobre a questão de saber em que medida se devia aplicar o Regulamento n.° 1408/71, já que o interessado era remunerado por uma empresa com sede na Bélgica.

14.

Considerando, pois, que o litígio comporta problemas de interpretação dos artigos 48.° e 51.° do Tratado CEE e das disposições do Regulamento n.° 1408/71, a Hof van Cassatie van België, por acórdão de 18 de Junho de 1990, decidiu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, suspender a instância até que o Tribunal se pronuncie a título prejudicial sobre as seguintes questões:

«Supondo que uma pessoa, residente na Bélgica, que exerce uma actividade a bordo de um navio que arvora pavilhão inglês e que recebe a sua remuneração de uma empresa com sede na Bélgica, é vítima de um acidente de trabalho a bordo desse navio:

1)

Os artigos 13.°, n.° 2, alínea b) [actualmente alínea e)] e 14.°, n.° 2, alínea c) (actualmente artigo 14.°-B) do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 devem ser interpretados no sentido de que a relação de trabalho existente entre o interessado e a empresa que o remunera deve ser apreciada segundo a lei do Estado em que a empresa tem a sua sede?

2)

As disposições de direito comunitário relativas à livre circulação e à igualdade de tratamento dos trabalhadores nos Esta-dos-membros, em especial os artigos 48.° e 51.° do Tratado CEE e os artigos 3.°, n.° 1, 13.°, n.° 2, alínea b) [actualmente alínea c)], e 14.°, n.° 2, alínea c) (actualmente artigo 14.°-B), devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a que a lei reguladora do contrato do trabalho do Estado mencionado e a lei reguladora da indemnização por acidentes de trabalho desse mesmo Estado tenham por efeito que o interessado, na sua relação com a empresa que remunera o seu trabalho e na relação, tal como os seus sucessores, com o segurador dos acidentes de trabalho, não possa invocar as referidas leis, porque o navio não arvorava o pavilhão do Estado em que aquela empresa tem a sua sede?»

Tramitação processual

15.

O acórdão da Hof van Cassatie van België foi registado na Secretaria do Tribunal em 28 de Junho de 1990.

16.

Em conformidade com o artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, foram apresentadas alegações escritas em 16 de Outubro de 1990 pela Comissão das Comunidades Europeias.

17.

Com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução e atribuiu o processo à Sexta Secção. A Comissão foi convidada a responder por escrito a uma pergunta.

Alegações escritas

Quanto à primeira questão

18.

A Comissão observa que o Regulamento n.° 1408/71 se aplica aos trabalhadores na acepção do artigo 1.°, alínea a), e aos «ramos de segurança social» designados no artigo 4.°, mas não indica nenhuma regra que permita determinar qual o direito civil nacional que rege a relação contratual entre a entidade patronal e o empregado. Essa é uma questão de direito internacional privado. A este respeito a Comissão menciona o artigo 6.° da Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (JO L 266; EE 01 F3 p. 266), embora esta convenção ainda não tenha entrado em vigor.

19.

Pouco importa, no entanto, que o contrato de trabalho celebrado entre a sociedade De Pax e Piet. Ackx se tenha regido pelo direito belga ou pelo direito inglês. De qualquer modo, a legislação aplicável não pode prejudicar os direitos de que um trabalhador beneficia por força do regulamento. A este respeito, o Fonds não pode invocar o artigo 89.°, n.° 2, da lei belga que regulamenta o contrato de trabalho marítimo, para considerar que Piet Ackx não era titular de um contrato de trabalho.

Quanto à segunda questão

20.

Segundo a Comissão, o que determina a qualidade de trabalhador na acepção do Regulamento n.° 1408/71 — e, portanto, a aplicabilidade desse regulamento — é a inscrição da pessoa em causa num regime de segurança social, nas condições indicadas no artigo 1.°, alínea a). Para se saber se é esse o caso, devemos reportar-mo-nos à legislação a que o interessado está sujeito por força das disposições do título II do regulamento. No caso vertente, face ao artigo 14.° B, n.° 4, a legislação belga seria a aplicável, já que, embora no momento do acidente o navio de pesca arvorasse pavilhão britânico, é certo que Piet Ackx tinha a sua residência na Bélgica e que a empresa que lhe pagava a sua remuneração estava também estabelecida na Bélgica.

21.

A Comissão observa em seguida que, segundo jurisprudência constante do Tribunal, a legislação nacional aplicável de acordo com o título II do regulamento não pode estabelecer condições territoriais que a tornem inaplicável. A Comissão refere-se, a este respeito, aos acórdãos de 15 de Dezembro de 1976, Mouthaan (39/76, Recueil, p. 1901), de 23 de Setembro de 1982, Koks (275/81, Recueil, p. 3013), e Kuijpers (276/81, Recueil, p. 3027), de 10 de Julho de 1986, Luijten (60/85, Colect., p. 2365) e de 3 de Maio de 1990, Kits van Heijningen (C-2/89, Colect., p. I-1755).

22.

Em especial, a interpretação que o Tribunal, no seu acórdão de 3 de Maio de 1990, Kits van Heijningen, já citado, fez do artigo 13.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, no que respeita à condição de residência imposta pela lei neerlandesa, deve, na opinião da Comissão, ser também adoptada para o artigo 14.°-B, n.° 4, do mesmo regulamento, no que respeita à condição de nacionalidade do navio imposta pela legislação belga.

23.

Resulta da jurisprudência acima citada que as normas de conflito do título II do Regulamento n.° 1408/71 não determinam apenas por exclusão a legislação nacional aplicável, mas têm ainda primazia sobre as normas territoriais nacionais se estas acarretarem a não aplicabilidade da legislação em causa, com a consequência de o interessado não ficar, por este facto, abrangido por nenhum regime de segurança social.

24.

A Comissão propõe que o Tribunal responda às duas questões prejudiciais do seguinte modo:

«As disposições do título II do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, e nomeadamente os artigos 13.°, n.° 2, alínea e), e 14.°-B, n.° 4, têm por efeito tornar inoponível às pessoas visadas por tais disposições, ou aos seus sucessores, uma disposição da legislação nacional aplicável por força da qual a inscrição num regime de segurança social prevista por essa legislação fica directa ou indirectamente subordinada à condição de o interessado exercer actividades a bordo de um navio que arvore pavilhão do referido Estado-membro.»

Resposta à pergunta formulada pelo Tribunal de Justiça

25.

O Tribunal solicitou à Comissão que precisasse quais as disposições do Regulamento n.° 1408/71 que obstam à aplicação do artigo 89.°, n.° 2, da lei belga de 5 de Junho de 1928 e que expusesse as considerações que a levam a tal interpretação.

26.

Em resposta a esta questão, a Comissão observou que o artigo 89.°, n.° 2, da lei belga de 5 de Junho de 1928 não deve ser aplicado no caso vertente, e isto tanto do ponto de vista do direito nacional e do direito internacional privado como do ponto de vista do direito comunitário.

27.

Em direito nacional, a aplicação desta disposição seria desprovida de significado, no caso vertente, por duas razões. Em primeiro lugar, segundo o artigo 17.° da lei de 1928, esta não é aplicável ao contrato de trabalho marítimo «celebrado, mesmo na Bélgica, por um marítimo belga para trabalhar num navio estrangeiro». A Comissão lembra que, no momento do acidente, Piet Ackx navegava a bordo de um navio britânico.

28.

Em segundo lugar, mesmo que a lei de 1928 fosse aplicável na data do acidente, ela não poderia excluir a aplicação da lei belga sobre os acidentes de trabalho, pois que, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, desta última lei, «a nulidade do contrato de trabalho não é oponível à aplicação da presente lei». A Comissão acrescenta, a este respeito, que mesmo que no momento do acidente não existisse, por força da lei belga de 1928, um contrato de trabalho marítimo, estavam no entanto reunidos todos os elementos requeridos pelo direito comum belga (trabalho, remuneração e nexo de subordinação) para se concluir pela existência de uma relação de trabalho entre Piet Ackx e a sociedade De Pax.

29.

A Comissão considera que se, segundo as normas do direito internacional privado aplicáveis pelo juiz nacional, a relação de trabalho entre Piet Ackx e a sociedade De Pax for regida pelo direito inglês, a lei belga de 1928 tornar-se-á, por esse facto, inaplicável; se, pelo contràrio, for o direito belga que se deve aplicar a tal relação, a lei de 1928 não pode ser aplicada, de acordo com o que atrás foi esclarecido.

30.

Finalmente, a Comissão é de opinião que, no plano do direito comunitário, a questão relativa à compatibilidade do artigo 89.°, n.° 2, da lei de 1928 com o artigo 14.° B, n.° 4 (da versão actual), do Regulamento n.° 1408/71 se colocaria se, contrariamente às considerações precedentes, se devesse concluir que a existência de um contrato de trabalho válido, segundo a lei de 1928, era a condição de aplicação ao caso vertente da lei belga sobre os acidentes de trabalho.

31.

A este respeito, a Comissão expõe que a disposição nacional que determina que um contrato de trabalho marítimo cesse pelo facto da não navegabilidade de um navio não constitui, em si, um critério territorial que acarrete inaplicabilidade do direito belga da segurança social. A exigência da existência de um certo contrato de trabalho é, preferencialmente, uma condição de inscrição no regime de segurança social belga.

32.

Poder-se-ia no entanto sustentar que, por força do artigo 89.°, n.° 2, da lei de 1928, não teria havido um «acidente de trabalho» num caso como aquele que é objecto do litígio no processo principal; esta tese teria por consequência a não aplicação da legislação belga sobre os acidentes de trabalho ao caso de Piet Ackx. Noutros termos, uma pessoa incluída no âmbito de aplicação pessoal do Regulamento n.° 1408/71 não estaria segurada contra um risco abrangido pelo seu âmbito de aplicação material. Ora, este resultado seria incompatível com o artigo 14.°, n.° 4 (da versão actual) do regulamento.

C. N. Kakouris

Juiz-relator


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

( *2 ) NB: Sociedade de pessoas de responsabilidade limitada.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

4 de Outubro de 1991 ( *1 )

No processo C-196/90,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pela Hof van Cassatie van België, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Fonds voor Arbeidsongevallen

e

Madeleine De Paep,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 48.° e 51.° do Tratado CEE, bem como dos artigos 3.°, n.° 1, 13.°, n.° 2, alínea b) e 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 Fl p. 98), na versão em vigor em Fevereiro de 1980 (seguidamente codificada e publicada no JO C 138, p. 1),

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

composto por: G. F. Mancini, presidente de secção, T. F. O'Higgins, C. N. Kakouris, F. A. Schockweiler e P. J. G. Kapteyn, juízes,

advogado-geral: G. Tesauro

secretário: H. A. Rühi, administrador principal

vistas as alegações escritas apresentadas, em representação da Comissão, por B. J. Drijber, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Comissão na audiência de 4 de Junho de 1991,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiencia de 9 de Julho de 1991,

profere o presente

Acórdão

1

Por acórdão de 18 de Junho de 1990, que deu entrada no Tribunal em 28 de Junho seguinte, a Hof van Cassatie van België submeteu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, duas questões prejudiciais sobre a interpretação dos artigos 48.° e 51.° do Tratado CEE, bem como dos artigos 3.°, n.° 1, 13.°, n.° 2, alínea b), e 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 Fl p. 98), na versão em vigor em Fevereiro de 1980 (seguidamente codificada e publicada no JO C 138, p. 1).

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe o Fonds voor Arbeidsongevallen, organismo público que tem por atribuição reparar os danos resultantes dos acidentes de trabalho, recorrente em cassação (a seguir «Fonds»), a Madeleine De Paep, recorrida em cassação, a propósito da recusa do Fonds em conceder a Madeleine De Paep uma renda vitalícia como reparação do dano resultante da morte de seu filho, Piet Ackx.

3

Resulta dos autos que, no momento do acidente, Piet Ackx trabalhava com Germain Ackx, esposo de Madeleine De Paep, a bordo do navio «Hosanna». Este navio pertencia à sociedade De Pax, com sede em Knokke-Heist (Bélgica), da qual Madeleine De Paep era gerente. Após ter encalhado em 20 de Julho de 1979, o navio sofreu importantes danos e foi declarado inapto para a navegação marítima. Segundo a legislação belga, a proibição de navegação que incidia sobre o navio só podia cessar após a reparação, devidamente aprovada, do mesmo. No entanto, não lhe foi feita qualquer reparação.

4

Em 29 de Janeiro de 1980, o navio foi vendido a uma sociedade britânica, Minerva Fisheries Ltd, que o fez matricular no Reino Unido. Madeleine De Paep e seu esposo, Germain Ackx, detinham metade das acções desta sociedade.

5

Na noite de 15 para 16 de Fevereiro de 1980, o navio naufragou no mar. Germain Ackx, seu capitão, e Piet Ackx, membro da sua tripulação, foram dados como desaparecidos. Os óbitos foram oficialmente declarados por decisão de 15 de Setembro de 1981 do rechtbank van eerste aanleg te Brugge. No momento do acidente, Piet Ackx era ainda remunerado pela sociedade De Pax.

6

Tendo o Fonds recusado o pagamento da renda vitalicia reclamada por Madeleine de Paep como indemnização pelo dano resultante da morte de seu filho, esta intentou uma acção no arbeidsrechtbank te Brugge. Por decisão de 28 de Dezembro de 1982, este tribunal deu provimento ao pedido de Madeleine De Paep.

7

O Fonds recorreu para o arbeidshof te Gent. Por acórdão de 9 de Junho de 1988, o arbeidshof decidiu que, de acordo com as normas de conflito estabelecidas pelo Regulamento n.° 1408/71, a legislação belga sobre os acidentes de trabalho devia ser aplicada ao caso que lhe era submetido e, portanto, concedeu a Madeleine De Paep uma renda equivalente a 20 % da remuneração anual de seu filho.

8

Tendo o Fonds interposto um recurso contra o acórdão do arbeidshof te Gent para a Hof van Cassatie van België, este tribunal confrontou-se com dois problemas. Em primeiro lugar, verificou que, por força do artigo 89.°, n.° 2, da lei belga de 5 de Junho de 1928, que regulamenta o contrato de trabalho marítimo (Moniteur belge de 26.7.1928), tal contrato cessa, qualquer que seja a sua natureza, designadamente, devido à não navegabilidade oficialmente declarada do navio. Baseando-se no facto de o navio «Hosanna» ter sido declarado inapto para a navegação marítima, a Hof van Cassatie concluiu que, de acordo com a legislação belga, Piet Ackx não era titular de um contrato de trabalho no momento do acidente. No entanto, o tribunal colocou a si próprio a questão de saber se, para a aplicação dos artigos 13.°, n.° 2, alínea b), e 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, a validade de um contrato de trabalho ou a existência de uma relação de trabalho entre um marítimo e a empresa que o remunera deve ser apreciada face à legislação do país em que tal empresa tem a sua sede social.

9

Em segundo lugar, a Hofvan cassatie realçou que, por força do artigo 58.°, n.° 1, ponto 1, da lei belga de 10 de Abril de 1971 sobre os acidentes de trabalho (Moniteur belge, 1971, p. 5201), com a redacção em vigor no momento do acidente, o Fonds tem por atribuição garantir a reparação dos danos resultantes dos acidentes de trabalho sofridos pelos marítimos, mas que, segundo o artigo 76.°, n.° 1, da mesma lei, são considerados «marítimos»: «4.°a tripulação dos navios de pesca belgas». Partindo da consideração de que, no momento do acidente, o navio em causa arvorava pavilhão britânico, concluiu que a lei belga sobre os acidentes de trabalho não podia ser aplicada. O tribunal, no entanto, interrogou-se sobre a questão de saber em que medida se devia aplicar o Regulamento n.° 1408/71, já que o interessado era remunerado por uma empresa com sede na Bélgica.

10

Foi neste contexto que a Hof van Cassatie van België submeteu ao Tribunal as seguintes questões:

«Supondo que uma pessoa, residente na Bélgica, que exerce uma actividade a bordo de um navio que arvora pavilhão inglês e que recebe a sua remuneração de uma empresa com sede na Bélgica, é vítima de um acidente de trabalho a bordo desse navio:

1)

Os artigos 13.°, n.° 2, alínea b) [actualmente alínea e)] e 14.°, n.° 2, alínea c) (actualmente artigo 14.° B) do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 devem ser interpretados no sentido de que a relação de trabalho existente entre o interessado e a empresa que o remunera deve ser apreciada segundo a lei do Estado em que a empresa tem a sua sede social?

2)

As disposições de direito comunitário relativas à livre circulação e à igualdade de tratamento dos trabalhadores nos Estados-membros, em especial os artigos 48.° e 51.° do Tratado CEE e os artigos 3.°, n.° 1, 13.°, n.° 2, alínea b) [actualmente alínea e)], e 14.°, n.° 2, alínea c) (actualmente artigo 14.°-B), devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a que a lei reguladora do contrato do trabalho do Estado mencionado e a lei reguladora da indemnização por acidentes de trabalho desse mesmo Estado tenham por efeito que o interessado, na sua relação com a empresa que remunera o seu trabalho e na relação, tal como os seus sucessores, com o segurador dos acidentes de trabalho, não possa invocar as referidas leis, porque o navio não arvorava o pavilhão do Estado em que aquela empresa tem a sua sede?»

11

Para mais ampla exposição dos factos do litígio principal, da tramitação processual e das alegações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

Quanto à primeira questão

12

A este respeito basta notar que resulta do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71, que este se aplica às legislações dos Estados-membros relativas aos diferentes ramos de segurança social. É pois unicamente a estas legislações que se referem as normas de conflito estabelecidas no título II do regulamento, do qual fazem parte os artigos 13.° e 14.°

13

Por consequência, deve responder-se à primeira questão que o Regulamento n.° 1408/71 não contém normas de conflito respeitantes à legislação aplicável à relação de trabalho existente entre o trabalhador e a entidade patronal.

Quanto à segunda questão

14

Deve observar-se, em primeiro lugar, que o caso considerado pelo órgão jurisdicional nacional é o de um trabalhador que exerce a sua actividade a bordo de um navio que arvora pavilhão de um Estado-membro e que é remunerado, por essa actividade, por uma empresa com sede num outro Estado-membro, em cujo território o trabalhador tem a sua residência.

15

Ora, por força do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, com a redacção em vigor à época dos factos do litígio do processo principal, já referido, a legislação nacional de segurança social aplicável em tal caso é a legislação do Estado-membro no qual a empresa tem a sua sede.

16

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a legislação aplicável por força de tal disposição é, no caso concreto, a lei belga de 10 de Abril de 1971 sobre os acidentes de trabalho, já citada. Ora, o artigo 76.°, n.° 1, ponto 4, desta lei subordina a admissão ao regime de segurança social nela estabelecido à condição de o navio a bordo do qual o trabalhador exerce a sua actividade arvorar pavilhão belga. Esta condição tem assim por efeito excluir da aplicação desta lei um trabalhador que exerce a sua actividade a bordo de um navio que arvora pavilhão de um Estado-membro que não a Bélgica, mesmo que a empresa que o remunera tenha sede na Bélgica e que ele próprio resida na Bélgica.

17

A segunda questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional deve portanto ser entendida no sentido de se destinar a saber se o disposto no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, com a redacção em vigor em Fevereiro de 1980, deve ser interpretado no sentido de que tem por efeito tornar inoponíveis às pessoas aí visadas, ou aos seus sucessores: a) uma disposição da legislação aplicável de um Estado-membro, por força da qual a inscrição no regime de segurança social aplicável está subordinada à condição de o navio a bordo do qual o trabalhador exerce a sua actividade arvorar pavilhão desse Estado-membro; e ainda b) qualquer disposição da legislação desse Estado-membro que preveja a nulidade de um contrato de trabalho, na medida em que impeça a norma de conflito contida nessa disposição de produzir a plenitude dos seus efeitos.

18

A este respeito deve observar-se que, segundo a jurisprudência do Tribunal, as disposições do título II do Regulamento n.° 1408/71, do qual faz parte o artigo 14.°, constituem um sistema completo e uniforme de normas de conflito (ver, nomeadamente, acórdão de 10 de Julho de 1986, Luijten, 60/85, Colect., p. 2365), e que tais disposições têm não só por finalidade evitar a aplicação simultânea de várias legislações nacionais e as complicações que daí podem resultar, mas também impedir que as pessoas abrangidas pelo Regulamento n.° 1408/71 sejam privadas de protecção em matéria de segurança social, por falta de legislação aplicável. Em especial, as condições estabelecidas por um Estado-membro quanto à inscrição de uma pessoa num regime de segurança social não podem ter por efeito excluir da aplicação da legislação em causa as pessoas a quem, por força do Regulamento n.° 1408/71, esta legislação'é aplicável (acórdão de 3 de Maio de 1990, Kits van Heijningen, n.os 12 e 20, C-2/89, Colect., p. I-1755).

19

Em consequência, o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71 seria privado de qualquer efeito útil se a condição de inscrição relativa ao pavilhão do navio, imposta pela legislação do Estado-membro em cujo território a empresa que remunera o trabalhador tem sede, fosse oponível às pessoas visadas no artigo 14.°, n.° 2, alínea c).

20

Esta interpretação é igualmente válida para as disposições da legislação nacional relativas à nulidade de um contrato de trabalho. As mesmas não podem ter por efeito obstar à aplicação das normas de conflito estabelecidas no Regulamento n.° 1408/71.

21

Face às considerações que precedem, deve responder-se à segunda questão no sentido de que o disposto no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, com a redacção em vigor em Fevereiro de 1980, deve ser interpretado no sentido de que tem por efeito tornar inoponíveis às pessoas aí visadas, ou aos seus sucessores: a) uma disposição da legislação aplicável de um Estado-membro, por força da qual a inscrição no regime de segurança social aplicável está subordinada à condição de o navio a bordo do qual o trabalhador exerce a sua actividade arvorar pavilhão desse Estado-membro; e ainda b) qualquer disposição da legislação desse Estado-membro que preveja a nulidade de um contrato de trabalho, na medida em que impeça a norma de conflito contida nessa disposição de produzir a plenitude dos seus efeitos.

Quanto às despesas

22

As despesas efectuadas pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentou alegações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pela Hof van cassatie van België, por acórdão de 18 de Junho de 1990, declara:

 

1)

O Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, não contém normas de conflito respeitantes à legislação aplicável à relação de trabalho existente entre o trabalhador e a entidade patronal.

 

2)

O disposto no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71, com a redacção em vigor em Fevereiro de 1980, deve ser interpretado no sentido de que tem por efeito tornar inoponíveis às pessoas aí visadas, ou aos seus sucessores: a) uma disposição da legislação aplicável de um Estado-membro, por força da qual a inscrição no regime de segurança social aplicável está subordinada à condição de o navio a bordo do qual o trabalhador exerce a sua actividade arvorar pavilhão desse Estado-membro; e ainda b) qualquer disposição da legislação desse Estado-membro que preveja a nulidade de um contrato de trabalho, na medida em que impeça a norma de conflito contida nessa disposição de produzir a plenitude dos seus efeitos.

 

Mancini

O'Higgins

Kakouris

Schockweiler

Kapteyn

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 4 de Outubro de 1991.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Sexta Secção

G. F. Mancini


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

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