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Document 61990CC0362

    Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 26 de Fevereiro de 1992.
    Comissão das Comunidades Europeias contra República Italiana.
    Incumprimento de Estado - Contratos públicos de fornecimento - Admissibilidade.
    Processo C-362/90.

    Colectânea de Jurisprudência 1992 I-02353

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1992:95

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

    CARL OTTO LENZ

    apresentadas em 26 de Fevereiro de 1992 ( *1 )

    Senhor Presidente,

    Senhores Juízes,

    A — Introdução

    1.

    Na presente acção por incumprimento, a Comissão acusa a Unità Sanitaria locale XI — Génova 2 (USL) de ter violado a Directiva 77/62/CEE, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público ( 1 ). A USL publicou, em 10 de Outubro de 1988, um anúncio de concurso público para o fornecimento de vários produtos durante o ano de 1989, entre os quais carne de vaca no montante de 5800000000 LIT. O anúncio impunha uma condição mínima de admissão à participação no concurso que a Comissão considerou contrária ao direito comunitário: os concorrentes potenciais deviam fazer prova de que tinham fornecido, durante os três anos anteriores (1985 a 1987), produtos idênticos de montante equivalente, pelo menos, ao séxtuplo do valor de cada fornecimento pedido, devendo 50 % desse montante ser constituído por fornecimentos efectuados a administrações públicas.

    2.

    O Governo italiano contesta a acção, defendendo-se em vários planos. Na contestação, sugeriu à Comissão, em primeiro lugar, que desistisse da instância, dado que a cláusula em questão deixou de produzir efeitos após o termo do período de validade do concurso, em 31 de Dezembro de 1989, não tendo sido retomada nos anúncios de concurso posteriores. Na tramitação subsequente da fase escrita do processo, o Governo demandado suscitou formalmente uma questão prévia de inadmissibilidade, com o fundamento de que, à data em que o parecer fundamentado foi formulado, em Março de 1990, portanto forçosamente antes do termo do prazo aí fixado, a infracção já tinha cessado.

    3.

    O Governo italiano é, além disso, de opinião que não se pode acusar um Estado-membro pela violação de uma directiva cometida por um organismo público, quando a directiva tiver sido regularmente transposta para direito nacional, já que o Estado-membro, ao efectuar a transposição, cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 189.° do Tratado CEE. Por outro lado, as disposições nacionais de execução prevalecem sobre a directiva, com a consequência de só poder ser garantida protecção jurídica contra eventuais infracções no âmbito do direito interno.

    4.

    Quanto ao conteúdo do pedido formulado na acção, o Governo italiano alega que a cláusula impugnada não constituía um critério de exclusão ilegal, mas que era um mero elemento de apreciação das provas da capacidade técnica dos concorrentes potenciais, em conformidade com a exigida nos termos da directiva.

    5.

    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    declarar que, tendo a Unità Sanitaria locale XI — Génova 2 imposto que 50 % do montante minimo de fornecimentos efectuado durante os três últimos anos e exigido para a admissão à participação num concurso público de fornecimento fosse constituído por fornecimentos efectuados a administrações públicas, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público;

    condenar a República Italiana nas despesas da instância.

    6.

    O Governo italiano conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    negar provimento à acção;

    condenar a Comissão nas despesas.

    Na tréplica, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

    julgar a acção inadmissível.

    7.

    No que se refere à matéria de facto, ao enquadramento jurídico da causa, bem como aos argumentos das partes, remete-se para o relatório para audiência.

    B — Tomada de posição

    1. Quanto à admissibilidade

    8.

    Só na tréplica o Governo italiano requereu formalmente que a acção fosse julgada inadmissível, de tal modo que há que se interrogar sobre se tal pretensão foi apresentada tempestivamente e se, portanto, pode ser considerada regular.

    9.

    Por um lado, o Governo demandado já na contestação tinha apresentado todos os argumentos que, a seu ver, impõem que a acção seja julgada inadmissível. Por outro lado, também na contestação pediu que a acção fosse julgada improcedente. Esta pretensão abrange igualmente o pedido relativo à inadmissibilidade. A demandante teve oportunidade, na replica, de discutir os argumentos do demandado. Finalmente, a admissibilidade de uma acção é um pressuposto de que o Tribunal deve conhecer oficiosamente. Pelos fundamentos expostos, não há qualquer motivo para deixar de analisar eventuais questões prévias de inadmissibilidade devido ao atraso com que foram deduzidas.

    10.

    A admissibilidade do pedido poderia resultar, no presente processo, de — tal como a Comissão expôs na fase escrita do processo — o parecer fundamentado do processo preliminar só ter sido formulado em Março de 1990, ao passo que a violação alegada, constante do anúncio do concurso para 1989, já não podia existir no termo do prazo fixado no parecer fundamentado para pôr fim à violação do Tratado. Além disso, a cláusula litigiosa já não constava dos anúncios dos concursos para os anos de 1990 e 1991.

    11.

    Nos termos do artigo 169.°, segundo parágrafo, do Tratado CEE, a existência de uma violação do Tratado após o termo do prazo fixado no parecer fundamentado constitui um pressuposto processual. Segundo a jurisprudência que aponta neste sentido ( 2 ), não há qualquer interesse em que o Tribunal declare a existência de uma infracção ao Tratado quando tal infracção tiver cessado antes desse momento. Esta jurisprudência é uniforme quando declara que o processo preliminar tem por objectivo eliminar uma violação do Tratado antes do processo judicial. Portanto, deve em princípio negar-se o interesse declarativo de uma acção por incumprimento, quando a infracção ao Tratado já tiver sido eliminada no termo do prazo fixado no parecer fundamentado.

    12.

    A jurisprudência relativa à verificação positiva do interesse em agir no âmbito de uma acção por incumprimento ( 3 ) — em virtude da existência da eventual obrigação de indemnização de um Estado-membro relativamente a outros Estados-membros da Comunidade ou a particulares interessados — só se aplica quando a violação do Tratado alegada for eliminada após o termo do prazo fixado no parecer fundamentado. No caso de as infracções terem terminado antes desta data, não há, em princípio, qualquer razão para afirmar que continua a existir interesse em agir.

    13.

    Só podem admitir-se excepções a esta regra nos casos de infracções periódicas ( 4 ), quando o incumprimento, em razão do seu objectivo e da sua natureza jurídica, só ocorre de maneira limitada (como, por exemplo, no caso de restrições à importação ou à exportação de carácter sazonal para protecção dos operadores económicos nacionais) e a prossecução do processo preliminar à acção por incumprimento se torna assim mais difícil no plano puramente temporal, senão mesmo impossível.

    14.

    No presente processo, não há, em meu entender, qualquer motivo para verificar se é possível considerar tal excepção, ainda que a cláusula litigiosa do anúncio do concurso só tivesse tido validade durante um determinado período de tempo, antecipadamente fixado, porque este lapso de tempo foi calculado de tal maneira que era possível desencadear o processo por incumprimento sem quaisquer dificuldades de tempo: a publicação do anúncio do concurso ocorreu em 10 de Outubro de 1988 e os seus efeitos cessaram no fim do ano de 1989. Por conseguinte, a Comissão dispôs de cerca de quinze meses para instaurar o processo pré-contencioso contra as infracções.

    15.

    Tendo em conta que a Comissão só concedeu ao Estado-membro demandado quinze dias para responder às cartas que lhe enviou no âmbito do processo pré-contencioso (notificação de incumprimento de 10 de Setembro de 1989 e parecer fundamentado de 27 de Março de 1990), não se pode concluir que o tratamento deste caso exigiu prazos invulgarmente longos, em razão das investigações que era de facto necessário efectuar ou da complexidade do problema.

    16.

    Se era portanto objectivamente possível instaurar facilmente o processo preliminar à acção de incumprimento durante o período de quase quinze meses de validade do concurso, não se vislumbra qualqper razão para nos afastarmos da regra de que só há violação do Tratado se a infracção ainda existir no termo do prazo fixado no parecer fundamentado. Deve, por conseguinte, considerar-se que o pedido é inadmissível.

    17.

    Na audiência de 16 de Janeiro de 1992, a Comissão alegou que o parecer fundamentado de 17 de Março de 1990 era na verdade um segundo parecer, tendo o primeiro sido formulado em 17 de Agosto de 1989. Como o Governo demandado, segundo a Comissão, reagiu à notificação de incumprimento com um atraso considerável, ou seja, por carta de 30 de Junho de 1989 — que a Comissão recebeu em 6 de Julho de 1989 —, não tendo podido o seu conteúdo ser tomado em consideração na redacção do parecer fundamentado de 17 de Agosto de 1989, a Comissão considerou oportuno redigir um segundo parecer fundamentado, para ter em conta todas as objecções do Governo italiano, sendo, por conseguinte, o atraso do processo preliminar imputável ao Governo demandado.

    18.

    A primeira questão que se suscita na apreciação desta alegação é a de saber se os elementos de facto expostos pela primeira vez na audiência podem, de um modo geral, ser tomados em consideração.

    19.

    O artigo 42.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça dispõe:

    «1.

    As partes podem ainda, em apoio da sua argumentação, oferecer provas na réplica e na tréplica. Devem, porém, justificar o atraso no, oferecimento das provas.

    2.

    E proibido deduzir novos fundamentos no decurso da instância, a menos que tenham origem em elementos de direito e de facto que se tenham revelado durante o processo.

    ...

    A decisão sobre a admissibilidade do fundamento é reservada para o acórdão que ponha termo ao processo».

    20.

    O parecer fundamentado enviado ao Estado-membro demandado env, 17 de Agosto de 1989 não é seguramente um facto que só se tenha revelado durante o processo. Nos termos do artigo 169.° do Tratado CEE, a tramitação normal do processo pré-contencioso é antes um requisito de admissibilidade da acção por incumprimento, de que compete à Comissão fazer prova. A Comissão, desde o princípio, só se baseou no parecer fundamentado de 27 de Março de 1990. Só em resposta a uma pergunta do Tribunal sobre o objecto da acção, atendendo ao exposto no parecer fundamentado de 27 de Março de 1990 e na petição de 11 de Dezembro de 1990, é que a Comissão se viu obrigada a mencionar o parecer fundamentado anterior. A pergunta do Tribunal dificilmente poderá ser considerada um «elemento, de direito», na acepção do artigo 42.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, susceptível de justificar a dedução do fundamento.

    21.

    Sou por isso de opinião que a alegação respeitante ao parecer qualificado como primeiro parecer fundamentado deve ser globalmente julgada intempestiva e, portanto, inadmissível, de modo que nos atemos à inadmissibilidade já suscitada.

    22.

    Se se supuser, no entanto, como mero raciocínio hipotético, que os argumentos da Comissão constituem uma defesa pertinente, só dificilmente poderá compreender-se por que é que as objecções suscitadas pelo Governo italiano na sua carta de 30 de Junho de 1989, recebida pela Comissão em 6 de Julho de 1989, não puderam ser tomadas em consideração no parecer de 17 de Agosto de 1989, após um período de seis semanas de que a Comissão dispôs para tratar a questão, ao passo que ao Governo italiano só foram concedidos, em ambos os casos, quinze dias para responder à notificação de incumprimento e ao parecer fundamentado. Nestas circunstâncias, não consigo ver as razões por que deveria responsabilizar-se o Governo italiano pelo envio de um segundo parecer fundamentado em Março de 1990. Em minha opinião, o atraso no tratamento do processo em geral e o parecer fundamentado de 27 de Março de 1990 em especial, são unicamente da responsabilidade da Comissão, de tal modo que, em razão da cessação da alegada infracção antes do termo do prazo fixado no parecer fundamentado, já não existia qualquer interesse em agir.

    23.

    Como a acção deve ser julgada inadmissível, as reflexões que se seguem quanto ao mérito de causa só são apresentadas subsidiariamente.

    2. Mérito da causa

    a) Âmbito dos deveres de um Estado-membro quanto à transposição e à aplicação das directivas

    24.

    Contra a infracção que lhe é imputada, o Governo italiano argumenta que, depois da transposição normal de uma directiva para o direito interno, são as normas nacionais que prevalecem, tanto no que respeita aos preceitos de carácter substantivo, como no que toca às regras sobre a protecção jurídica.

    25.

    No âmbito do processo pré-contencioso, o Governo demandado, na resposta de 30 de Junho de 1989, defendeu-se alegando que a cláusula litigiosa era conforme à norma de execução da Directiva 77/62. Na posterior tramitação do processo nunca se pôs em causa a transposição correcta da directiva.

    26.

    As objecções do Governo italiano exigem uma discussão sobre o âmbito das obrigações de um Estado-membro quanto à transposição e à aplicação das directivas. O Governo demandado não tem com toda a certeza razão quando defende que um Estado-membro, ao transpor correctamente uma directiva para o direito interno, cumpriu integralmente as obrigações de execução do direito comunitário que lhe incumbem por força do artigo 189.°. A transposição formal é apenas um dos deveres do Estado-membro, nos termos do direito comunitário. Para além disso, tem a obrigação de, na sua ordem jurídica, realizar os objectivos da directiva, não só de maneira abstracta, mediante medidas legislativas, mas também de modo concreto. Este dever de assegurar a «eficácia prática» ( 5 ) de uma directiva incumbe à partida a todas as instâncias nacionais, e resulta, por um lado, directamente do artigo 189.°, e, por outro, do artigo 5.° do Tratado, que impõe aos Estados-membros que tomem todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do Tratado ou resultantes de actos das instituições da Comunidade.

    27.

    Tendo em conta estas obrigações dos Estadós-membros, há que responder à objecção do Governo italiano, segundo a qual só na réplica a Comissão suscitou a questão de o Governo italiano não só ter o dever de transpor a Directiva 77/62 para direito interno, mas também de assegurar a sua eficácia prática. Segundo o Governo italiano, tratava-se assim de uma acusação diferente da que fora feita no parecer fundamentado e na petição inicial, razão pela qual sugeria a rejeição do fundamento por extemporaneidade.

    28.

    Para a Comissão, o objecto do processo era, desde o início, a infracção concreta, tal como resultava do anúncio do concurso da USL — Gênova 2. Foi só em resposta à dedução de um fundamento de defesa pelo Governo italiano no processo perante o Tribunal, segundo o qual não lhe cabiam directamente quaisquer outras obrigações após ter procedido à transposição da directiva, que a Comissão chamou a atenção para os demais deveres que impendiam, a seu ver, sobre os Estados-membros.

    29.

    Nesta alegação, a Comissão limita-se a expor o entendimento jurídico previo que a levou a actuar contra a pretensa infracção. Não pode, por conseguinte, considerar-se que se está perante uma ampliação do objecto do litígio ou uma nova acusação.

    30.

    As directivas gozam, em princípio, do primado ( 6 ) do direito comunitário. Por isso, mesmo tendo sido correctamente transposta, a directiva é sempre decisiva em caso de dúvidas de interpretação do acto jurídico nacional. Quando se tiver procedido à transposição com atraso ou com erros, o próprio Tribunal, dentro dos limites que traçou ( 7 ), reconheceu ( 8 ) a aplicabilidade imediata das disposições das directivas.

    31.

    Se, por conseguinte — como foi sugerido no processo pré-contencioso —, uma discrepância entre um acto de transposição e uma directiva provocasse uma eventual violação do Tratado, a directiva seria então o único critério dos actos a adoptar. Em tal caso, a infracção ao direito comunitário — independentemente de saber se resulta do procedimento concreto de violação do Tratado — existiria tanto na transposição errada como na aplicação do direito contrária à directiva.

    32.

    Se, pelo contràrio, a transposição fosse correctamente efectuada, haveria, em todo o caso, que recorrer à directiva como critério de interpretação para decidir sobre a existência de uma infracção ao Tratado. Por conseguinte, importa sempre saber se as disposições da Directiva 77/62 foram correctamente aplicadas no concurso público em questão lançado pela USL.

    33.

    Uma questão completamente diferente — que não cabe aqui apreciar — é a das consequências jurídicas de uma simples infracção às disposições de execução de direito interno praticada por sujeitos jurídicos independentes. Se estiver em causa um acto de um organismo público, há que responder afirmativamente, tanto no que respeita à imputabilidade formal da medida ao Estado-membro ( 9 ), no âmbito da acção por incumprimento, como no que respeita à existência de uma obrigação concreta das autoridades e instituições dos Estados-membros de darem aplicação ao direito comunitário ( 10 ).

    34.

    Dado que na acção por incumprimento a actuação das instâncias públicas é em geral objecto de fiscalização, pois o Estado-membro também deve responder perante a Comunidade pelas instituições que são independentes no plano da organização, tal fiscalização aplica-se a fortiori no âmbito de aplicação das directivas relativas à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas ( 11 ).

    35.

    A Directiva 77/62 determina expressamente, no seu artigo 1.°, alínea b), que «são consideradas ‘entidades adjudicantes’, o Estado, as pessoas colectivas territoriais e as pessoas colectivas de direito público ou, nos Estados-membros que não conheçam esta noção, as entidades equivalentes, enumeradas no anexo I».

    36.

    A USL — Gênova 2, autora do anúncio do concurso, é um ente comunal cuja natureza de entidade adjudicante, na acepção da directiva, é incontroversa.

    37.

    No acórdão Beentjes ( 12 ), no qual se basearam ambas as partes no presente litígio, trata-se precisamente da questão de saber se o organismo aí em causa deve ser considerado um ente público, abrangido pelo âmbito de aplicação subjectivo da Directiva 71/305, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas. E correcta a afirmação do Governo italiano de que o processo 31/87 era um processo prejudicial, de modo que nada foi decidido quanto à responsabilidade do Estado-membro no âmbito de uma acção por incumprimento, mesmo se se alegou uma infracção às disposições de direito comunitário em matéria de concursos públicos. Todavia, tendo em conta a obrigação já referida dos Estados-membros perante a Comunidade em matéria de execução das directivas, deve partir-se, em princípio, da ideia de que os actos de um organismo público, na acepção da directiva, cabem no âmbito da responsabilidade comunitária dos Estados-membros. Esta conexão resulta da definição do âmbito de aplicação subjectivo da directiva relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas.

    38.

    Devem rejeitar-se, por conseguinte, as objecções do Governo demandado quanto à aplicabilidade da directiva como critério de avaliação de uma eventual violação do Tratado.

    b) Relação entre os meios de tutela jurisdicional na Comunidade e nos Estados-membros

    39.

    Finalmente, há que tomar posição sobre o argumento do Governo italiano, segundo o qual a protecção jurídica em razão de uma possível infracção às disposições comunitárias em matéria de concursos públicos se obtém junto dos órgãos jurisdicionais dos Estados-membros, assumindo ó sistema de recursos previsto pelo direito comunitário carácter subsidiário.

    40.

    Deve notar-se, a este respeito, que não há vias de recurso no direito interno dos Estados que permitam sancionar uma infracção ao Tratado. Na acção por incumprimento trata-se sempre da relação entre as obrigações de um Estado-membro e da Comunidade. Também não se pode estabelecer uma regra geral segundo a qual se colocaria em segundo plano a protecção jurídica prevista pelo direito comunitário. Quando muito, em caso de acções de indemnização, são concebíveis situações em que se pode admitir a subsidiariedade. Um acórdão proferido numa acção pör incumprimento também pode perfeitamente, para além da declaração abstracta de uma violação do Tratado, estender os seus efeitos a um processo de indemnização intentado por um lesado ( 13 ).

    41.

    Não há, por conseguinte, qualquer obstáculo a uma apreciação de mérito relativamente à questão de saber se a cláusula litigiosa é desconforme com o direito comunitário. A questão reduz-se a saber se a condição segundo a qual se deve provar que 50 % dos fornecimentos necessárias foram feitos a entidades públicas adjudicantes constitui uma condição de participação inadmissível.

    c) Sobre a violação da Directiva 77/62

    42.

    O artigo 14.° da Directiva 77/62 prevê:

    «Nos concursos limitados, o anúncio deverá incluir pelo menos:

    ...

    d)

    ... as informações e formalidades necessárias que permitam avaliar as condições mínimas de carácter económico e técnico que as entidades adjudicantes fixarem aos fornecedores para a sua selecção; essas informações e formalidades não podem ir além das referidas nos artigos 20.°, 22.° e 23.°».

    43.

    Segundo o artigo 23.° da directiva, que tem por objecto a prova da capacidade técnica do fornecedor, esta pode ser apresentada da maneira seguinte:

    «...

    a)

    lista dos principais fornecimentos efectuados durante os três últimos anos, os seus montantes, datas e destinatários públicos ou privados:

    se se tratar de fornecimentos a entidades públicas adjudicantes, os fornecimentos provam-se por certificados emitidos ou certificados conformes pela autoridade competente;

    se se tratar de fornecimentos a particulares, provam-se por declaração do comprador; na sua falta, é admitida simples declaração do fornecedor».

    44.

    A disposição contém uma enumeração dos meios de prova através dos quais se pode comprovar o volume das encomendas de uma empresa durante um determinado período de tempo, para daí tirar as consequências necessárias quanto à respectiva capacidade técnica. A formulação do artigo 14.° da directiva, conjugada com a do artigo 23.°, permite concluir que a enumeração dos meios de prova da capacidade técnica é exaustiva. Diferentemente se passam as coisas quanto à comprovação da capacidade financeira e econômica do fornecedor, que pode extrair-se da letra do artigo 22.°, mas que não desempenha qualquer papel no presente caso.

    45.

    No artigo 23.°, n.° 1, alínea a), da directiva, o que importa em primeiro lugar é o volume dos fornecimentos. A distinção entre entidades adjudicantes públicas e privadas apenas parece ter sido efectuada por estarem previstos diferentes meios de prova para os fornecimentos que lhes são feitos.

    46.

    Qualquer quantidade mínima de fornecimentos, antecipadamente fixada, feitos a entidades adjudicantes públicas ou privadas, constitui um critério suplementar e, portanto, um alargamento dos comprovativos previstos na directiva. Esta observação vale tanto para o volume mínimo de fornecimentos a uma categoria de entidades adjudicantes como para a comprovação de uma quantidade mínima absoluta de fornecimentos para comprovação da capacidade técnica, se bem que esta última seja admissível, em certas circunstâncias, no âmbito da comprovação da capacidade financeira e econômica do fornecedor, nos termos do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), o que, no entanto, não tem importância neste caso.

    47.

    Aquando da fixação de uma certa percentagem do volume dos fornecimentos a entidades adjudicantes públicas, não se trata — como afirma o Governo italiano — de uma questão de apreciação das provas, já que são imediatamente excluídos todos os concorrentes que não efectuem a quantidade mínima de fornecimentos a entidades adjudicantes públicas. A apreciação das provas só tem lugar numa fase ulterior, ou seja, quando os concorrentes autorizados comprovaram os fornecimentos, havendo depois também uma avaliação, no âmbito do processo de selecção, sobre quais as entidades adjudicantes a quem foram feitos os fornecimentos.

    48.

    Em conclusão, a cláusula litigiosa deve ser considerada um critério de exclusão que não está previsto na directiva.

    49. 

    Proponho a seguinte decisão:

    1)

    julgar a acção improcedente;

    2)

    condenar a Comissão nas despesas.


    ( *1 ) Língua original: alemão.

    ( 1 ) Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976 (JO L 13, p. 1; EE 17 Fl p. 29).

    ( 2 ) Acórdão de 15 de Janeiro de 1986, Comissão/Bélgica (52/84, Colect., p. 89); acórdão de 5 de Junho de 1986, Comissão/Itália, n.°' 6 c seguintes (103/84, Colect., p. 1759); v. também o ponto B.l. alínea a) das minhas conclusões neste processo; acórdão de 10 de Março de 1987, Comissäo/Italia, n.°' 7 c seguintes (199/85, Colect., p. 1039); acórdão de 24 de Março de 1988, Comissão//Grécia, n.°' 15 e 16 (240/86, Colect.. 1835); v. também o ponto 7 e seguintes das minhas conclusões neste processo.

    ( 3 ) Acórdão de 9 de Julho 1970, Comissão/França (26/69, Recueil, p. 565); v. também acórdão de 30 de Maio de 1991, Comissão/Alemanha (C-361/88, Colect., p. I-2567), acórdão de 30 de Maio de 1991, Comissão/Alemanha (C-59/89, Colect., p. I-2607), acórdão de 25 de Julho de 1991, Comissão/Países Baixos (C-353/89, Colect., p. I-4069) c acórdão de 5 de Junho de 1986, já referido (103/84).

    ( 4 ) Acórdão de 24 de Março de 1988, já referido (240/86); acórdío de 30 de Maio de 1991, Comissão/Grécia (C-110/89, Colect., p. I-2659).

    ( 5 ) Acórdão de 10 de Abril de 1984, von Colson e Kaman, n.° 15 (14/83, Recueil, p. 1891).

    ( 6 ) V. as conclusões do advogado-geral W. van Gerven apresentadas em 12 de Julho de 1990 no processo C-106/89, ponto 9 (Colect. 1990, p. I-4135, I-4144).

    ( 7 ) Quando se trata de disposições incondicionais e suficientemente precisas, v. os acórdãos de 5 de Abril de 1979, Ratti (148/78, Recueil, p. 1629) e de 19 de Janeiro de 1982, Decker (8/81, Recueil, p. 53).

    ( 8 ) Quanto aos efeitos jurídicos de uma directiva em direito interno, v. o acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Janeiro de 1992 sobre a proibição do trabalho nocturno para as mulheres — 1 BvR 1025/82 — 1 BvL 16/83 — 1 BvL 10/91.

    ( 9 ) V. as conclusões apresentadas em 13 de Março de 1991, no processo C-247/89, Comissão/Portugal (acórdão de 10 de Julho de 1991, Colcct., p. I-3659, I-3670), n.°' IO e seguintes, c em 6 de Fevereiro de 1992, no processo C-24/91, Comissīlo/Espanha (acórdão de 19 de Março de 1992, Colcct., p. I-1989, I-1995), n.os 9 c seguintes.

    ( 10 ) V. acórdão de 22 de Junho de 1989, Fratelli Costanzo (103/88, Colcct., p. 1839).

    ( 11 ) Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971 (JO L 185, p. 5; EE 17 Fl p. 9).

    ( 12 ) Acórdão de 20 de Setembro de 1988 (31/87, Colcct., p. 4635).

    ( 13 ) Quanto ao direito a indemnização de um particular perante um Estado-membro, em virtude da não transposição de uma directiva, v. acórdão de 19 de Novembro de 1991, proferido nos processos apensos C-6/90 e C-9/90, Francovich e Bonifaci (Colect., p. I-5357).

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