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Document 61989CJ0061

    Acórdão do Tribunal (Primeira Secção) de 3 de Outubro de 1990.
    Processo-crime contra Marc Gaston Bouchoucha.
    Pedido de decisão prejudicial: Cour d'appel d'Aix-en-Provence - França.
    Liberdade de estabelecimento: exercício de profissões paramédicas (osteopatia).
    Processo C-61/89.

    Colectânea de Jurisprudência 1990 I-03551

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1990:343

    RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

    apresentado no processo C-61/89 ( *1 )

    I — Factos e tramitação do processo

    A — Enquadramento legal nacional

    O artigo L 372 do code de la santé publique define como exercendo ilegalmente a medicina

    «1)

    quem participe habitualmente ou por direcção continuada, mesmo em presença de um médico, na elaboração de um diagnóstico ou no tratamento de doenças ou de lesões cirúrgicas... por actos pessoais, consultas orais ou escritas... ou pratique um dos actos do foro profissional previstos numa nomenclatura fixada por decreto do ministro da Saúde Pública... sem ser titular de um diploma, certificado ou outro título mencionado no artigo L 356-2 e exigido para o exercício da profissão de médico, ou sem beneficiar das disposições especiais referidas nos artigos L 356, L 357, L 357-1, L 359 e L 360».

    É pacífico que nenhuma das disposições especiais referidas nos artigos do código acima mencionados se aplica a M. Bouchoucha.

    Os «actos do foro profissional previstos numa nomenclatura» foram estabelecidos por decreto do ministro da Saúde Pública de 6 de Janeiro de 1962 (JORF de 1.2.1962, p. 1111), que indica nomeadamente no seu artigo 2.o:

    «Só podem ser praticados por licenciados em medicina, em conformidade com o disposto no artigo L 372 (lx) do code de la santé publique, os seguintes actos médicos:

    1)

    qualquer mobilização forçada das articulações e qualquer redução de luxações, bem como todas as manipulações vertebrais e, de forma geral, todos os tratamentos ditos “de osteopatia”...»

    B — Quadro legislativo comunitário

    Em 16 de Junho de 1975, o Conselho adoptou duas directivas com base do artigo 57.o do Tratado: a Directiva 75/362/CEE, que tem por objectivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico (JO L 167, p. 1; EE 06 Fl p. 186), e a Directiva 75/363/CEE, que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de médico (JO L 167, p. 14; EE 06 Fl p. 197). É líquido que nenhuma destas directivas diz respeito expressamente ao caso dos osteopatas.

    C — O litígio no processo principal

    Por citação de 24 de Novembro de 1987, levada a efeito por requerimento do Ministério Público, Marc Bouchoucha compareceu perante o tribunal correctionnel de Nice sob a acusação de ter exercido ilegalmente a medicina nesta cidade desde o mês de Abril de 1981, praticando a osteopatia sem ser médico, em infracção do disposto no artigo L 372 do code de la santé publique e do artigo 2.o do decreto de 6 de Janeiro de 1962, já referido.

    Por sentença de 29 de Abril de 1988, o tribunal correctionnel de Nice declarou Bouchoucha autor deste crime, condenou-o a urna pena de 5000 FF de multa, que todavia foi objecto de suspensão, e excluiu expressamente a menção desta condenação do «B2» (boletim n.o 2) do seu registo criminal. Admitindo o Syndicat national des médecins ostéothérapeutes français (a seguir «SNMOF»), o Syndicat national des médecins spécialisés en rééducation et réadaptation fonctionnelle (a seguir «SNMSRRF») e o conseil départemental de l'ordre des médecins des Alpes-Maritimes (a seguir «Conselho da Ordem») como assistentes, o tribunal condenou igualmente o réu a pagar a cada um deles um franco simbólico a título de perdas e danos.

    Os assistentes já referidos, à excepção do Conselho da Ordem, e o Ministério Público interpuseram recurso dessa decisão.

    Nestas condições, a cour d'appel de Aix-en-Provence, entendendo que a sorte do processo instaurado contra o réu estava directamente ligada à interpretação a dar às disposições já referidas do Tratado, suspendeu a instância em 23 de Janeiro de 1989 e solicitou ao Tribunal de Justiça uma resposta quanto à questão de saber

    «se a proibição, feita a um nacional francês, titular de um diploma oficial de massagista-fisioterapeuta e possuidor de um diploma de osteopatia passado em 1 de Outubro de 1979 pela Escola Europeia de Osteopatia de Maidstone (Grã-Bretanha), de exercer a osteopatia em França, pelo facto de não ser titular de um diploma de licenciatura em medicina, exigido para esse efeito pelo decreto ministerial de 6 de Janeiro de 1962, é compatível com as disposições do Tratado de Roma, nomeadamente os seus artigos 52.o e seguintes, relativos à liberdade de estabelecimento».

    O acórdão da cour d'appel de Aix-en-Pro-vence foi registado na Secretaria do Tribunal em 1 de Março de 1989.

    Em conformidade com o artigo 20.o do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, foram apresentadas observações escritas por Marc Bouchoucha, representado pelos advogados Bureau e Deniniolle, do foro de Paris, pelo SNMOF e pelo SNMSRRF (assistentes), representados por Marie-Monique Picard, advogada no foro de Lyon, pela República Francesa, representada por Edwige Belliard, sous-directeur du droit économique no Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistida por Sylvie Grassi, na qualidade de agentes, pela República Italiana, representada por Oscar Fiumara, avvocato dello Stato, e pela Comissão das Comunidades Europeias, representada por E. Lasnet, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agente.

    O Tribunal, com base do relatório do juiz relator, ouvido o advogado-geral, decidiu, em 15 de Novembro de 1989, iniciar a fase oral do processo sem instrução prévia, deferindo o processo à Primeira Secção.

    II — Observações escritas apresentadas ao Tribunal

    Marc Bouchoucha explica em primeiro lugar que, além do seu diploma oficial de massa-gista-fisioterapeuta, é titular do diploma de osteopatia emitido pela «Escola Europeia de Osteopatia» de Maidstone e do diploma e título de «Doctor of Naturopathy» do London College of Applied Science e assegura a docência universitária na Universidade de Medicina de Paris-Nord-Bobigny, docência que é reservada a titulares de uma licenciatura em medicina.

    Explica em seguida que em França não existe qualquer formação específica nem diploma especial em osteopatia no quadro dos estudos preparatórios da licenciatura em medicina, quando, paradoxalmente, o decreto ministerial de 6 de Janeiro de 1962, já referido, reserva apenas aos médicos todos os tratamentos ditos «de osteopatia». Em sua opinião, a própria natureza da actividade dos osteopatas constitui igualmente objecto de uma «disputa essencial», pois está longe de ser seguro que este acto deva ser qualificado de acto médico clássico. Por esta razão, é de notar, entre outras coisas, que, no plano fiscal, a actividade dos osteopatas não é considerada uma actividade de médico. Com efeito, por força de uma circular de 27 de Março de 1986, publicada no Bulletin officiel de L direction générale des impôts de 3 de Dezembro de 1986, «os osteopatas são sujeitos passivos de imposto sobre o valor acrescentado, desde que não constem na lista dos práticos e auxiliares de medicina enumerados no livro 4 do code de la santé», ao passo que ordinariamente as profissões médicas e paramédicas estão isentas do PVA, a fim de não serem agravadas as despesas de saúde dos cidadãos.

    Para Bouchoucha, a aplicabilidade do direito comunitário resulta do facto de ele ser titular de um diploma inglês e de, desejoso de se estabelecer no Estado de que é nacional como território de acolhimento da sua actividade, estar impedido e proibido de a exercer, ao passo que o exercício dessa actividade seria livre e legal nos outros Estados-membros, designadamente no Reino Unido. Infelizmente, a Comissão não propôs nada em matéria de directivas que regulem as actividades profissionais pertencentes às «medicinas alternativas». Ao reconhecer que, na ausência de tais disposições, os Es-tados-membros conservam uma certa margem de apreciação no respeitante à fiscalização, proibição ou autorização do exercício de certas actividades profissionais e que a regra do tratamento nacional, tal como foi consagrada pelo Tribunal no acórdão de 21 de Junho de 1974, Reyners (2/74, Recueil, p. 631), não pode ser posta em causa, Bouchoucha entende que, devido à omissão do Conselho e da Comissão, essa regra é insuficiente por si mesma para assegurar a plenitude e a eficácia do direito de estabelecimento. O controlo comunitário não se reduz apenas à detecção de discriminações, mas tem por objectivo igualmente o respeito do princípio da proporcionalidade [ver as alegações da Comissão no processo Comissão/Bélgica (acórdão de 12 de Fevereiro de 1987, 221/85, Colect., p. 719)]. Segundo Bouchoucha, o decreto de 6 de Janeiro de 1962, já referido, não satisfaz este critério.

    Por último, Bouchoucha considera que o acórdão de 7 de Fevereiro de 1979, Knoors (115/78, Recueil, p. 399), basta para afastar a objecção de que o presente processo se inscreve num quadro puramente interno do Estado-membro em causa e refere-se às conclusões proferidas pelo advogado-geral Warner no processo Auer (acórdão de 7 de Fevereiro de 1979, 136/78, Recueil, p. 437, 452 e seguintes) no que toca à interpretação dos n. os 2 e 3 do artigo 57.o do Tratado.

    Por conseguinte, Bouchoucha propõe ao Tribunal que responda como se segue à questão prejudicial:

    «O artigo 52.o do Tratado deve ser interpretado no sentido de que a proibição feita a um nacional francês, titular de um diploma de osteopatia legalmente obtido no Reino Unido, de exercer em França a osteopatia pelo facto de não ser titular do diploma de licenciatura em medicina é uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento se for provado que os licenciados em medicina não recebem qualquer formação em osteopatia para a obtenção dos seus diplomas de licenciatura em medicina.

    A inexistência de directivas adoptadas em aplicação do disposto no n.o 3 do artigo 57.o, tendentes a coordenar o exercício da profissão de osteopata na Comunidade, não autoriza um Estado-membro a proibir o exercício dessa profissão no seu território nacional a osteopatas devidamente diplomados segundo a legislação em vigor noutro Estado-membro.»

    O SNMOFe o SNMSRRF expõem, a título preliminar, a legislação em causa relativa aos médicos, por um lado, e aos massagis-tas-fisioterapeutas, por outro, as consequências que julgam daí decorrer, a jurisprudência francesa e a posição do ministro da Saúde Pública. Lembram em seguida que, com base no disposto no n.o 3 do artigo 57.o do Tratado, o Conselho adoptou duas medidas em 16 de Junho de 1975, a Directiva 75/362 (JO L 167, p. 1; EE 06 F1 p. 186), que tem por objectivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados ou outros títulos de médico, e a Directiva 75/363 (JO L 167, p. 14; EE 06 F1 p. 197), que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de médico. A República Francesa, por decreto interministerial de 16 de Fevereiro de 1977 (JORF de 13.3.1977, p. 1409), admitiu então a equivalência entre os diplomas franceses de licenciatura em medicina e os diplomas estrangeiros emitidos pelas escolas ou universidades europeias. No que toca ao Reino Unido, país no qual M. Bouchoucha obteve o seu diploma de osteopata, só o «certificate of completion of specialist training» (certificado de formação especializada emitido pela autoridade competente habilitada para esse efeito) é assim reconhecido. A Escola Europeia de Osteopatia de Maidstone não é referida no decreto acima referido e os diplomas que confere não são reconhecidos como diplomas equivalentes, nos termos da directiva.

    O SNMOF e o SNMSRRF entendem que as disposições do Tratado em matéria de liberdade de estabelecimento não impedem a aplicação da lei interna de um Estado-membro, sem prejuízo de uma eventual harmonização das legislações e do reconhecimento da equivalência. Sendo M. Bouchoucha nacional francês, está sujeito, no território francês, ao direito interno francês. O artigo 52.o do Tratado não autoriza de forma nenhuma os nacionais de um Estado-membro a exercer uma profissão noutro Estado-membro sem respeitar as suas normas de ordem pública. A fortiori, não permite ao cidadão de um Estado-membro infringir, no seu país e no exercício da sua profissão, as leis penais deste país. Pelo facto de o diploma de M. Bouchoucha não ser referido pela Directiva 75/362 como equivalente ao diploma francês de licenciatura em medicina, entendem que a lei interna se aplica a este último. Por fim, pensam que o argumento relativo ao Acto Único Europeu, desenvolvido no âmbito do processo nacional, não tem pertinência, visto que o n.o 2 do artigo 16.o desse acto substituiu a segunda frase do n.o 2 do artigo 57.o do Tratado por disposições que requerem a unanimidade no seio do Conselho «para directivas cuja execução num Estado-membro, pelo menos, implique uma modificação dos princípios legislativos em vigor do regime das profissões no que respeita à formação e às condições de acesso de pessoas singulares», como sucederia, em França, no caso em apreciação.

    A República Francesa alega que, em matéria de medicina, a ordem jurídica comunitária assenta, hoje, num princípio de livre estabelecimento, implementado não pela harmonização geral dos estudos de medicina, mas pelo reconhecimento mútuo dos diplomas caso a caso, no âmbito de directivas. Salienta que a Directiva 75/362 se aplica, nos termos do seu artigo 1.o, «às actividades de médico» e que o artigo 1.o da Directiva 75/363 subordina o acesso às actividades de médico e o exercício destas à posse de um diploma, certificado ou outro título de médico referido no artigo 3.o da Directiva 75/362, dando a garantia de que o interessado adquiriu conhecimentos adequados. Se bem que os Estados-membros tenham assim estabelecido o quadro do conteúdo da formação médica, não estabeleceram, em contrapartida, uma definição comunitária precisa das «actividades de médico».

    A definição destas actividades consta, em França, do artigo L 372 do code de la santé publique, ao passo que o artigo 2.o do decreto ministerial de 6 de Janeiro de 1962 qualifica a osteopatia e as manipulações vertebrais de actividades reservadas aos médicos. Uma pessoa que não seja titular de um diploma francês de licenciatura em medicina, mas simplesmente de um diploma emitido noutro Estado-membro, que não conste

    das listas de equivalências estabelecidas pela Directiva 75/362, não pode exercer actividades consideradas médicas à face do direito interno francês. Em sua opinião, essa interpretação é confirmada pelo acórdão de 7 de Fevereiro de 1979, Knoors (115/78, Recueil, p. 399), que demonstra que os próprios nacionais de um Estado-membro não podem beneficiar das disposições do artigo 52.o do Tratado senão quando a formação profissional que adquiriram noutro Estado-membro é «reconhecida pelo direito comunitário».

    A República Francesa sublinha, além disso, a natureza médica dos tratamentos osteopáticos e os eventuais perigos ligados à utilização destas terapias. Por fim, manifesta dúvidas quanto ao valor do diploma obtido por M. Bouchoucha na Escola Europeia de Osteopatia de Maidstone, visto que, na Grã-Bretanha, o ensino e as possibilidades de se instalar como «terapeuta» são livres e não codificados, o que faz com que qualquer indivíduo possa legalmente criar uma escola, ensinar e emitir diplomas que não têm qualquer valor universitário, mas cujos titulares são «licenciados», nomeadamente em osteopatia. Ao nível dos conhecimentos, estes osteopatas não têm, todavia, nada em comum com os médicos especialistas em osteopatia.

    A República Italiana entende que a questão posta equivale, no fundo, às apresentadas pelos órgãos jurisdicionais italianos nos processos apensos C-54/88 (Nino), C-91/88 (Prandini e Goti) e C-14/89 (Pierini), a propósito das actividades de pranoterapeuta e de bioterapeuta exercidas em Itália por nacionais italianos que não possuem título que lhes permita exercer a profissão médica. Lembrando o acórdão de 20 de Abril de 1988, Bekaert (204/87, Colect., p. 2029), o Governo italiano sustenta não existir qualquer questão de direito comunitário para resolver, pois não se divisa qualquer elemento que saia do quadro puramente nacional.

    A título complementar, alega que o artigo 52.o do Tratado, conjugado com o artigo 57.o, não obriga um Estado-membro a regulamentar o exercício de toda a actividade de carácter profissional. Em aplicação da disposição geral do artigo 7o do Tratado, os Estados-membros são obrigados a eliminar qualquer disposição discriminatória para assegurar a igualdade de tratamento (salvo as excepções indicadas nos artigos 55.o e 56.o) e a implementar as directivas adoptadas no quadro comunitário. Na ausência de tais directivas, todavia, um Estado-membro não é obrigado a regulamentar uma certa actividade (mesmo que uma regulamentação especial exista noutros Estados-membros). Por conseguinte, os Estados-membros continuam a poder livremente prever sanções contra quem exerça essa actividade, desde que não haja qualquer discriminação em razão da nacionalidade, como foi o caso em França no que toca aos osteopatas.

    A Comissão salienta, a título preliminar, que a questão apresentada parece pôr directamente em causa a compatibilidade de uma regulamentação nacional com o direito comunitário. Ora, a competência do Tribunal no âmbito do artigo 177.o do Tratado não consiste em pronunciar-se quanto à compatibilidade das disposições de urna lei nacional com o Tratado, mas em fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação relevantes do direito comunitário que possam permitir-lhe emitir um juízo quanto a essa compatibilidade (acórdão de 30 de Novembro de 1983, Van Bennekom, 227/82, Recueil, p. 3883). Em sua opinião, a questão incide, por conseguinte, sobre o ponto de saber se o princípio do direito de estabelecimento veda a um Es-tado-membro a possibilidade de reservar o exercício de uma actividade profissional, tal como a osteopatia, exclusivamente aos titulares de um diploma de licenciatura em medicina e de prever sanções penais para esse efeito, inclusive no caso de titulares de diplomas de osteopatia emitidos noutros Estados-membros.

    A Comissão, constatando a ausência de uma regulamentação comunitária na matéria (como aliás em matéria de acupunctura, homeopatia e quiroterapia), entende que o sector em questão cabe no âmbito do direito de cada Estado-membro. Este último pode então livremente reservar a actividade em questão aos médicos e mesmo submetê-la a uma proibição sob pena de sanções. No caso vertente, essa proibição não reveste um carácter discriminatório, na medida em que se aplica tanto aos nacionais como aos estrangeiros. Ademais, se bem que titular de um diploma de osteopata emitido por outro Estado-membro, M. Bouchoucha é um cidadão francês.

    G. Slynn

    Juiz relator


    ( *1 ) Língua do processo: francês.

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    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    3 de Outubro de 1990 ( *1 )

    No processo C-61/89,

    que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pela cour d'appel de Aix-en-Provence e destinado a obter, no processo-crime instaurado perante esse órgão jurisdiconal contra

    Marc Gaston Bouchoucha

    uma decisão a título prejudicial relativa à interpretação dos artigos 52.o e seguintes do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia,

    O TRIBUNAL (Primeira Secção),

    constituído por Sir Gordon Slynn, presidente de secção, e pelos Srs. R. Joliét e G. C. Rodríguez Iglesias, juízes,

    advogado-geral: M. Darmon

    secretario: D. Louterman, administradora principal

    vistas as observações escritas apresentadas:

    em representação de Marc Bouchoucha, pelos advogados Bureau e Deniniolle, do foro de Paris,

    em representação do SNMOF e do SNMSRRF (assistentes), por Marie-Monique Picard, advogada no foro de Lyon,

    em representação da República Francesa, por Edwige Belliard, sous-directeur du droit économique no Ministério dos Negocios Estrangeiros, assistida por Sylvie Grassi, secretária dos Negocios Estrangeiros, na qualidade de agentes,

    em representação da República Italiana, por Oscar Fiumara, avvocato dello Stato, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. Lasnet, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

    visto o relatório para audiência,

    ouvidas as observações orais de M. Bouchoucha, do SNMOF e do SNMSRRF, do Governo francês, representado por G. de Bergues, na qualidade de agente, do Governo italiano e da Comissão, na audiência de 6 de Fevereiro de 1990,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 6 de Março de 1990,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    Por acórdão de 23 de Janeiro de 1989, que deu entrada na Secretaria do Tribunal em 1 de Março de 1989, a cour d'appel de Aix-en-Provence apresentou, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, uma questão prejudicial relativa à interpretação dos artigos 52.o e seguintes do Tratado CEE, com vista a apreciar a compatibilidade com o direito comunitário de uma lei francesa que proíbe o exercício ilegal da profissão de médico.

    2

    Esta questão foi levantada no âmbito de um processo-crime instaurado contra Marc Gaston Bouchoucha. Este último, de nacionalidade francesa, é titular de um diploma oficial francês de massagista-fisioterapeuta e de um diploma em osteopatia que lhe foi passado em 1 de Outubro de 1979 pela Escola Europeia de Osteopatia de Maidstone, na Grã-Bretanha (a seguir «EEO»). Possui igualmente o diploma e o título de «Doctor of Naturopathy» do London College of Applied Science. Nao possui, no entanto, qualquer diploma, certificado ou outro título que lhe permita, nos termos do artigo L 356-2 do code de la santé publique francês, exercer a profissão de médico.

    3

    Após citação efectuada em 24 de Novembro de 1987 a requerimento do Ministério Público, M. Bouchoucha respondeu no tribunal correccional de Nice sob a acusação de ter exercido ilegalmente a medicina em Nice, desde o mês de Abril de 1981, praticando a osteopatia sem ser titular de um diploma de médico. Nos termos do um decreto do ministro da Saúde de 6 de Janeiro de 1962 (JORF de 1.2.1962, p. 1111), são considerados actos do foro profissional, para o exercício dos quais é requerida uma habilitação como médico, «qualquer mobilização forçada das articulações e qualquer redução de luxações, bem como todas as manipulações vertebrais e, de forma geral, todos os tratamentos ditos “de osteopatia”».

    4

    Por sentença de 29 de Abril de 1988, o tribunal correccional declarou Bouchoucha autor do delito de exercício ilegal da medicina, inflingindo-lhe uma pena de multa, que foi suspensa, condenando-o a pagar um franco simbólico por perdas e danos a cada um dos três assistentes, o Syndicat national des médecins ostéothérapeutes français (a seguir «SNMOF»), o Syndicat national des médecins spécialisés en rééducation et réadaptation fonctionnelle (a seguir «SNMSRRF») e o Conseil départemental de l'ordre des médecins des Alpes-Maritimes (a seguir «Conselho da Ordem»). Dois assistentes — a saber, o SNMOF e o SNMSRRF — eo Ministerio Público apelaram dessa sentença para a cour d'appel de Aix-en-Provence.

    5

    Os dois assistentes apelantes e o Ministerio Público solicitaram a confirmação da culpabilidade do réu. Os assistentes apelantes reclamaram, além disso, o pagamento de uma soma em reparação do seu prejuízo, bem como a publicação do acórdão em dois jornais locais. M. Bouchoucha sustentou, pelo contrário, que o seu diploma de osteopatia passado pela EEO o autorizava a exercer essa actividade na Grã-Bretanha e que interditar-lhe o exercício em França em virtude de não ser licenciado em medicina era contrário às disposições dos artigos 52.o e seguintes do Tratado CEE sobre a liberdade de estabelecimento.

    6

    Por isso, a cour d'appel de Aix-en-Provence suspendeu a instância e perguntou ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial,

    «se a proibição, feita a um nacional francês, titular de um diploma oficial de mas-sagista-fisioterapeuta e possuidor de um diploma de osteopatia passado em 1 de Outubro de 1979 pela Escola Europeia de Osteopatia de Maidstone (Grã-Bretanha), de exercer a osteopatia em França, pelo facto de não ser titular de um diploma de licenciatura em medicina, exigido para esse efeito pelo decreto ministerial de 6 de Janeiro de 1962, é compatível com as disposições do Tratado de Roma, nomeadamente os seus artigos 52.o e seguintes, relativos à liberdade de estabelecimento».

    7

    Para mais ampla exposição dos factos do processo principal, das disposições comunitárias e nacionais em causa, da tramitação do processo e das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

    8

    Convém notar, a título preliminar, que tanto a Directiva 75/362/CEE do Conselho, de 16 de Junho de 1975, que tem por objectivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efectivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços (JO L 167, p. 1; EE 06 Fl p. 186), como a Directiva 75/363/CEE do Conselho, igualmente de 16 de Junho de 1975, que tem por objectivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades de médico (JO L 167, p. 14; EE 06 Fl p. 197), contêm apenas disposições relativas à profissão de «médico». Não existe, aliás, qualquer disposição comunitária que regulamente o exercício das profissões paramédicas, como a osteopatia, nomeadamente. Convém salientar, além disso, que as directivas acima mencionadas não contêm também uma definição comunitária das actividades que devem ser consideradas médicas.

    9

    M. Bouchoucha sustenta que a aplicabilidade do direito comunitário resulta do facto de, não obstante o diploma que lhe foi passado noutro Estado-membro, ser impedido de exercer a actividade referida por esse diploma no Estado de que é nacional. Alega, por um lado, que o acórdão de 7 de Fevereiro de 1979, Knoors (115/78, Recueil, p. 399), basta para afastar a objecção segundo a qual o presente processo se inscreve no quadro puramente interno do Estado-membro em causa e, por outro lado, que as disposições do decreto francês de 6 de Janeiro de 1962, que inserem os tratamentos ditos «de osteopatia» entre os actos profissionais para os quais é requerida uma habilitação como médico, infringem o princípio comunitário da proporcionalidade.

    10

    O Governo francês sustenta, pelo contrário, que em matéria de medicina a implementação do princípio da liberdade de estabelecimento assenta no reconhecimento mútuo dos diplomas, caso a caso, no âmbito das directivas previstas para esse efeito. No entanto, entende que, na ausência de uma definição comunitária precisa de «actividades de médico», o Estado-membro continua a poder livremente reservar para os médicos a osteopatia e as manipulações vertebrais. O acórdão de 7 de Fevereiro de 1979 (115/78, já referido) só será de tomar em consideração quando a formação profissional adquirida pelo interessado noutro Estado-membro tiver sido «reconhecida pelo direito comunitário».

    11

    Há que recordar em primeiro lugar que, diferentemente da situação referida nos processos-crime contra Eleanora Nino e outros (acórdão de hoje, processos apensos C-54/88, C-91/88 e C-14/89, Colect. 1990, p. I-3537, I-3543), M. Bouchoucha, nacional francês que exerce em França, é titular de um diploma profissional obtido noutro Estado-membro. Daí resulta que o caso em apreço no processo principal não se limite ao quadro puramente nacional e que seja necessário examinar se as disposições do Tratado CEE em matéria de liberdade de estabelecimento são aplicáveis.

    12

    Convém notar em segundo lugar que, na medida em que não existe uma definição comunitária de actividades médicas, a definição dos actos reservados à profissão médica cabe, em princípio, na competência dos Estados-membros. Daí resulta que, na ausência de uma regulamentação comunitária da actividade de osteopatia a título profissional, cada Estado-membro pode livremente regulamentar o exercício dessa actividade no seu território, sem discriminação entre os seus próprios nacionais e os dos outros Estados-membros.

    13

    Resulta do acórdão de 7 de Fevereiro de 1979 (115/78, já referido) que o alcance do artigo 52.o do Tratado CEE não pode ser interpretado de forma a excluir do benefício do direito comunitário os nacionais de um determinado Estado-membro quando estes, pelo facto de terem residido regularmente no território de outro Estado-membro e aí terem adquirido uma qualificação profissional reconhecida pelas disposições do direito comunitário, se encontrem, face ao seu Estado-membro de origem, numa situação equiparável à de qualquer outro sujeito que beneficie dos direitos e das liberdades garantidos pelo Tratado (n.o 24).

    14

    Importa declarar, no entanto, que, por um lado, como justamente salientaram o Governo francês, o SNMOF e o SNMSRRF, o diploma da EEO de que M. Bouchoucha é titular não beneficia actualmente de qualquer reconhecimento mútuo a nível comunitário. Este diploma não pode, por conseguinte, ser considerado como uma qualificação profissional reconhecida pelas disposições do direito comunitário. Por outro lado, segundo os termos do acórdão já referido de 7 de Fevereiro de 1979, não pode ignorar-se o interesse legítimo que pode ter um Estado-membro em impedir que, beneficiando de facilidades criadas por força do Tratado, alguns dos seus nacionais tentem subtrair-se à sua legislação nacional em matéria de formação profissional (n.o 25).

    15

    Seria esse o caso, nomeadamente, se o facto de um nacional de um Estado-membro ter obtido noutro Estado-membro um diploma cujos alcance e valor não são reconhecidos por qualquer disposição regulamentar comunitária pudesse obrigar o Estado-membro de origem desse nacional a permitir-lhe exercer no seu território as actividades referidas por esse diploma, quando o acesso a essas actividades é aí reservado aos titulares de qualificação superior beneficiando do reconhecimento mútuo ao nível comunitário e quando essa reserva se não afigure arbitrária.

    16

    Resulta das considerações que precedem que há que responder à questão prejudicial apresentada pela cour d'appel de Aix-en-Provence que, na ausencia de harmonização ao nível comunitario quanto às actividades que cabem exclusivamente no exercício de funções médicas, o artigo 52.o do Tratado CEE não obsta a que um Estado-membro reserve uma actividade paramédica, como a osteopatia, nomeadamente, apenas para os titulares de um diploma de licenciatura em medicina.

    Quanto às despesas

    17

    As despesas efectuadas pelos governos francês e italiano, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, em relação às partes na causa principal, o carácter de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

     

    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL (Primeira Secção),

    pronunciando-se quanto à questão que lhe foi apresentada pela cour d'appel de Aix-en-Provence, por acórdão de 23 de Janeiro de 1989, declara:

     

    Na ausência de harmonização ao nível comunitário quanto às actividades que cabem exclusivamente no exercício de funções médicas, o artigo 52.o do Tratado CEE não obsta a que um Estado-membro reserve uma actividade paramédica, como a osteopatia, nomeadamente, apenas para os titulares de um diploma de licenciatura em medicina.

     

    Slynn

    Joliét

    Rodríguez Iglesias

    Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 3 de Outubro de 1990.

    O secretário

    J.-G. Giraud

    O presidente da Primeira Secção

    G. Slynn


    ( *1 ) Língua do processo: francês.

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