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Document 61988CJ0369

Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 21 de Março de 1991.
Processo-crime contra Jean-Marie Delattre.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal de grande instance de Nice - França.
Interpretação dos artigos 30.º e 36.º do Tratado CEE - Noções de "medicamento" e de "doença".
Processo C-369/88.

Colectânea de Jurisprudência 1991 I-01487

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1991:137

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-369/88 ( *1 )

I — Enquadramento jurídico e evolução do litígio

A — Enquadramento jurídico do litígio

a) A regulamentação francesa relativa à distribuição e à publicidade dos medicamentos

1. As normas relativas à distribuição dos medicamentos em França

O artigo L.511 do código da saúde pública define medicamento como «toda a substância ou composição apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas ou animais, bem como qualquer produto que possa ser administrado ao homem ou ao animal com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar as suas funções orgânicas». Os medicamentos devem, nomeadamente, ser distinguidos dos produtos cosméticos e de higiene corporal que são definidos pelo artigo L.658-1 do mesmo código como «toda a substância ou preparação diferente dos medicamentos destinada a ser posta em contacto com as diversas partes superficiais do corpo humano ou com os dentes e mucosas, tendo em vista limpá-las, perfumá-las ou protegê-las, a fim de as manter em bom estado, modificar o seu aspecto ou corrigir os seus odores».

Nos termos do artigo L.511, atrás referido, os produtos cosméticos só são considerados medicamentos se contiverem determinadas substâncias. O mesmo se passa, aliás, em relação aos produtos dietéticos.

O comércio dos medicamentos é regulamentado de modo estrito. Por um lado, nos termos do artigo L.601 do código da saúde pública, as especialidades farmacêuticas, quer dizer, «todo o medicamento preparado antecipadamente com denominação e acondicionamento especiais», só podem ser comercializadas depois de autorização de colocação no mercado concedida pelo ministro dos Assuntos Sociais.

Por outro lado, nos termos do artigo L.512 do mesmo código, a comercialização dos medicamentos e das especialidades farmacêuticas (bem como, aliás, a venda de outros produtos como as plantas medicinais descritas na farmacopeia) é reservada aos farmacêuticos que preencham as condições impostas pelo artigo L.514 e deve ter lugar nas farmácias cujo número é limitado pelos artigos L.570 a L.573. Nos termos do artigo L.514, a pessoa que desejar exercer a profissão de farmacêutico deve oferecer «todas as garantias de moralidade profissional», ser licenciada em farmácia, ser de nacionalidade francesa ou nacional de um dos Estados-membros da Comunidade Econômica Europeia e, ainda, estar inscrita na ordem dos farmacêuticos.

Os artigos L.570 e seguintes do código da saúde pública limitam o número das farmácias em função da população. As regras gerais figuram no artigo L.571 que prevê uma farmácia para 3000 habitantes nas cidades de 30000 habitantes ou mais, uma por 2500 habitantes nas cidades cuja população for compreendida entre 5000 e 30000 habitantes e uma por cada 2000 habitantes nas comunas com população inferior a 5000 habitantes.

O artigo L.572 prevê uma quota diferente relativamente aos departamentos do Alto Reno, do Baixo Reno e do Mosela, de uma farmácia por 5000 habitantes. Por último, são aplicadas regras especiais relativamente aos departamentos ultramarinos.

Todavia, podem ser concedidas derrogações a estas regras numéricas se as necessidades da população o exigirem, nos termos do artigo L.571.

O artigo L.596 do código da saúde pública prevê que qualquer estabelecimento de preparação, venda por grosso ou distribuição por grosso dos medicamentos e outros produtos que fazem parte do monopólio dos farmacêuticos «deve ser propriedade de um farmacêutico ou de uma sociedade na gestão ou na direcção-geral da qual participe um farmacêutico».

A violação do monopólio dos farmacêuticos é punida pelo artigo L.517 do código da saúde pública com uma multa de 3600 a 30000 FF e de prisão de seis dias a seis meses ou apenas uma destas penas, enquanto a violação dos artigos L.596 e L.601 do mesmo código é punida pelo artigo L.518 com uma multa de 360 a 15000 FF e prisão de seis a três meses ou uma só destas duas penas.

2. A regulamentação francesa relativa à publicidade dos medicamentos

É necessário aqui distinguir duas disposições.

O artigo L.551 do código da saúde pública institui um regime de autorização prévia da publicidade relativa aos medicamentos e às farmácias. Está sujeita ao mesmo regime «a publicidade ou a propaganda, sob qualquer forma, de produtos diferentes dos medicamentos regularmente autorizados nos termos do artigo L.601 do presente código, apresentados como favorecendo o diagnóstico, a prevenção e o tratamento das doenças, das afecções que relevam da patologia médica, da patologia cirúrgica e das irregularidades fisiológicas, o diagnóstico ou a modificação do estado físico ou fisiológico, a restauração, a correcção ou a modificação das funções orgânicas».

As condições de concessão da autorização prévia, fixadas por décret en Conseil d'Etat, figuram nos artigos R-5045 e seguintes do código da saúde pública.

Segundo as disposições em vigor na altura dos factos, que são objecto dos processos crime contra J. Delattre (e que foram actualizadas por um decreto de 23 de Setembro de 1987), a publicidade relativa aos medicamentos estava sujeita a uma autorização de publicidade concedida pelo ministro encarregado da saúde após parecer de uma comissão de controlo da publicidade, nas condições previstas pelos artigos R-5047 a R-5052 do código da saúde pública.

O regime era o mesmo, com algumas adaptações, relativamente aos produtos diferentes dos medicamentos mas apresentados como favorecendo o diagnóstico, a prevenção ou o tratamento das doenças, nos termos do artigo R-5052-1, na redacção então em vigor.

O artigo L.552 do código da saúde pública prevê que «a publicidade ou a propaganda, sob qualquer forma, relativa aos objectos, aparelhos e métodos... apresentados como favorecendo o diagnóstico, a prevenção ou tratamento das doenças, das afecções que relevem da patologia cirúrgica e das irregularidades fisiológicas, o diagnóstico ou a modificação do estado físico ou psicológico, a restauração, a correcção ou a modificação das funções orgânicas pode ser proibida pelo ministro encarregado da saúde quando se demonstre que os referidos objectos, aparelhos e métodos possuem as propriedades anunciadas».

Por força do mesmo texto, o ministro competente pode também submeter essa publicidade a condições especiais. As medidas adoptadas pelo ministro devem ser tomadas após parecer de uma comissão. As condições de aplicação do artigo L.552 do código da saúde pública são fixadas por décret en Conseil d'Etat e figuram nos artigos R-5055 a R-5055-4 do mesmo código.

b) A regulamentação comunitária relativa aos medicamentos e a diferentes produtos que podem estar relacionados com a saúde pública

1. Os medicamentos e a farmácia

A Directiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de Janeiro de 1965QO 1965, 22, p. 369; EE 13 FI p. 18), define medicamento como «toda a substancia ou composição apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas ou animais» ou «a substância ou composição que possa ser admirastrada ao homem ou ao animal com vista a estabelecer um diagnòstico mèdico ou a restaurar, corrigir ou modificar as funções orgânicas no homem ou no animal».

A especialidade farmacèutica é definida como «todo o medicamento preparado antecipadamente, introduzido no mercado com denominação e acondicionamento especiais» (artigo 1.° da directiva).

A Directiva 65/65 tem por objectivo essencial sujeitar as especialidades farmacêuticas a uma autorização de colocação de mercado. Nos termos do artigo 3.°, «nenhuma especialidade farmacêutica pode ser colocada no mercado de um Estado-membro sem que uma autorização tenha sido previamente concedida pela autoridade competente deste Estado-membro». As disposições da directiva fixam, nomeadamente, as condições de concessão e de recusa dessa autorização de colocação no mercado.

A Directiva 65/65 foi alterada várias vezes, essencialmente com o objectivo de favorecer a livre circulação dos produtos farmacêuticos. Nesse sentido a Directiva 75/319/CEE do Conselho, de 20 de Maio de 1975 (JO L 147, p. 13; EE 13 F4 p. 92), instituiu um sistema que permite facilitar a concessão de autorizações de colocação no mercado em vários Estados-membros, nomeadamente, graças à intervenção de um «Comité das Especialidades Farmacêuticas» criado pelo artigo 8.° Este dispositivo foi reforçado e modificado pela Directiva 83/570/CEE do Conselho, de 26 de Outubro de 1983 (JO L 332, p. 1; EE 13 F14 p. 205) e pela Directiva 87/21/CEE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1986 (JO 1987, L 15, p. 36). A Directiva 87/22/CEE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1986QO 1987, L 15, p. 38), é relativa aos medicamentos de alta tecnologia. Por último, a Decisão 75/320/CEE do Conselho, de 20 de Maio de 1975 (JO L 147, p. 23; EE 13 F4 p. 102), instituiu um «Comité Farmacêutico» encarregado de examinar as questões relativas à aplicação das directivas respeitantes às especialidades farmacêuticas e de dar o seu parecer à Comissão no âmbito da preparação das directivas relativas às especialidades farmacêuticas.

Relativamente ao exercício da profissão de farmacêutico, a Directiva 85/432/CEE do Conselho, de 16 de Setembro de 1985 (JO L 253, p. 34; EE 06 F3 p. 25), tem por objectivo definir as condições a que está sujeita a concessão dos diplomas, certificados e outros títulos relativos à farmácia e de permitir o acesso dos titulares desses diplomas a um número mínimo de actividades. A Directiva 85/433/CEE do Conselho, de 26 de Setembro de 1985 (JO L 253, p. 37; EE 06 F3 p. 37), destina-se ao reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos relativos à farmácia.

2. As normas comunitárias relativas a outros produtos que podem ter repercussão na saúde pública

A Directiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de Julho de 1976, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos produtos cosméticos ĢO L 262, p. 169; EE 15 Fl p. 206), define o produto cosmético como «toda a substância ou preparação destinada a ser posta em contacto com as diversas partes superficiais do corpo humano (epiderme, sistemas piloso e capilar, unhas, lábios e órgãos genitais externos) ou com os dentes e mucosas bucais, tendo em vista exclusiva ou principalmente limpá-las, perfumá-las ou protegê-las a fim de as manter em bom estado, modificar o seu aspecto ou corrigir os odores corporais».

O artigo 2.° da directiva prevê que os produtos cosméticos colocados no mercado da Comunidade «não devem ser susceptíveis de prejudicar a saúde humana quando são aplicados em condições normais de utilização» enquanto, por força do artigo 7°, os Estados-membros não podem restringir a colocação no mercado dos produtos cosméticos que obedeçam às prescrições da directiva.

Relativamente à distinção entre os medicamentos e os produtos cosméticos, o quinto considerando do preâmbulo da Directiva 76/768 refere que a delimitação do seu âmbito de aplicação em relação aos medicamentos «resulta nomeadamente da definição pormenorizada de produtos cosméticos, que se refere tanto às zonas de aplicação destes produtos como aos fins a que eles se destinam; que a presente directiva não é aplicável aos produtos que, se bem que abrangidos pela definição de produto cosmético, são exclusivamente destinados à prevenção das doenças».

As directivas relativas aos géneros alimentícios e aos aditivos alimentares

A Directiva 79/112/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1978QO 1979, L 33, p. 1; EE 13 F9 p. 162), tem por objecto a aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios destinados ao consumidor final. O artigo 2.°, n.° 1, alínea b), tem por objectivo proibir que sejam atribuídas propriedades medicinais aos géneros alimentícios. Prevê que a rotulagem e as modalidades pelas quais é efectuada não devem, «sem prejuízo das disposições aplicáveis aos géneros alimentícios destinados a uma alimentação especial, atribuir a um género alimentício propriedades de prevenção, tratamento e cura de doenças humanas, nem mencionar tais propriedades». No entanto, é prevista uma possibilidade de derrogação desta proibição relativamente às águas minerais naturais.

O artigo 15.° da directiva prevê que os Estados-membros não podem proibir o comércio dos géneros alimentícios que estejam conformes às regras por ela previstas.

A Directiva 77/94/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros repeitantes aos géneros alimentícios destinados a uma alimentação especial QO 1977, L 26, p. 55; EE 13 F7 p. 3) prevê regras especiais para esse tipo de géneros alimentícios.

A Directiva 89/107/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988QO 1989, L 40, p. 27), define como aditivo alimentar «qualquer substância não consumida habitualmente como alimento em si mesma e habitualmente não utilizada como ingrediente característico na alimentação, com ou sem valor nutritivo, e cuja adição intencional aos géneros alimentícios, com um objectivo tecnológico, na fase de fabrico, transformação, preparação, tratamento, acondicionamento, transporte ou armazenagem, tenha por efeito, ou possa legitimamente considerar-se como tendo por efeito, que ela própria ou os seus derivados se tornem directa ou indirectamente um componente desses géneros alimentícios» (artigo 1.°, n.° 2) e prevê as condições em que estes aditivos podem ser utilizados.

A Directiva 80/777/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1980 (JO L 229, p. 1; EE 13 Fil p. 47), relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à exportação e à comercialização de águas minerais naturais. Esta directiva que, nos termos do artigo 1.°, n.° 3, não é aplicável às águas que são medicamentos na acepção da Directiva 65/65 prevê, no artigo 9.°, que são proibidas nas embalagens ou etiquetas «quaisquer indicações que atribuam a uma água mineral propriedades de prevenção, de tratamento ou de cura de uma doença humana», podendo os Estados-membros, no entanto, nos termos do n.° 2, alínea c), do mesmo artigo, autorizar determinadas menções especiais como «estimula a digestão» ou «pode favorecer as funções hepático-biliares».

A Directiva 77/436/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1977 (JO L 172, p. 20; EE 13 F7 p. 58), visa a aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos extractos de café e aos extractos de chicória. Foi alterada pela Directiva 85/573/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1985QO L 372, p. 22; EE 13 F19 p. 49).

A Directiva 74/329/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1974 (JO L 189, p. 1; EE 13 F3 p. 240), visa a aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimenticios. Define esses agentes, dá urna lista dos que podem ser utilizados e estabelece as condições da sua utilização.

B — A evolução do litígio e as questões prejudiciais apresentadas pelo juiz de instrução do tribunal de grande instance de Nice (França)

a) A evolução do litígio

A SARL Svensson Tour Pol, sociedade de direito francês com sede em Nice e cujo gerente é Jean-Marie Delattre, importa e vende por correspondência, em França, produtos de origem belga que são qualificados na Bélgica ou como complementos alimentares ou como produtos cosméticos. Estes produtos são também distribuídos nos países do Benelux, na República Federal da Alemanha, no Reino Unido e em Espanha.

Por despacho de 9 de Abril de 1987, o ministro dos Assuntos Sociais e do Emprego, com fundamento no artigo L.552 do código da saúde pública, proibiu a essa sociedade fazer publicidade a quatro produtos por ela vendidos: o método de emagrecimento «Zéro 3», o emplastro «Pak-Heat», o «méthode d'enveloppement corporel boddy choc» e o «pansement magnétique taiki» com o fundamento que não tinha sido feita qualquer prova científica em apoio das propriedades atribuídas a esses produtos.

No entanto, o Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos tinha apresentado, em 18 de Novembro de 1986, perante o tribunal de grande instance de Nice uma queixa, com constituição de parte civil, por violação pela sociedade dos artigos L.512, L.596 e L.601 do código da saúde pública com o fundamento de que diversos produtos distribuídos pela sociedade tinham a natureza de medicamentos e só podiam ser comercializados nas condições previstas por estes textos, quer dizer, nomeadamente, depois de ter sido obtida uma autorização de colocação no mercado e respeitando o monopólio dos farmacêuticos.

A queixa visa, no total, onze produtos entre os quais quatro produtos para emagrecimento («SLIM 4», «Zéro 3» e «Thé Persimmon», «Kilomin», «Chlorella»), um produto apresentado como favorecendo a digestão, «Macérât huileux d'ail», dois produtos apresentados como estimulando a circulação do sangue e tendo virtudes «antifadiga» (erva para as pernas e gel antifadiga para as pernas), um produto contra os pruridos («M27»), um produto contra a fadiga («óleo de germes de trigo + vitamina E»), um produto para as articulações («Minéral 23») e um método para deixar de fumar («Turn Off», apresentando-se sob a forma de comprimidos de ervas com uma boquilha munida de um mecanismo regulável de filtragem do fumo).

Segundo a sociedade Svensson, oito destes produtos são qualificados na Bélgica como géneros alimentícios, dois («M27» e gel para as pernas) como produtos cosméticos, enquanto o produto «Turn off» é um aparelho antitabaco.

b)

Tendo J. Delattre invocado perante o juiz de instrução que a sujeição, alegada pelo Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos, desses diferentes produtos ao regime de medicamentos, que implicava, por um lado, a obtenção de uma autorização de colocação no mercado, e, por outro, a sua distribuição apenas pelas farmácias, é contrária ao direito comunitário e, nomeadamente, às normas sobre a livre circulação de mercadorias, o juiz de instrução do tribunal de Nice, a quem foi apresentada a queixa, submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

i)

O termo ‘doença’, tal como é utilizado nas directivas acima citadas, deve ser interpretado de forma uniforme segundo uma definição comunitária ou, bem pelo contrário, cada Estado-membro tem a liberdade de aplicar as directivas em causa dando a sua própria definição ao termo doença?

ii)

Se o termo ‘doença’ corresponde a uma definição comunitária, um produto ‘A’ qualificado como produto alimentar num Estado-membro e que refere na sua publicidade funções fisiológicas naturais (digestão, eliminação da bílis) pode ser qualificado de medicamento noutro Estado-membro quando uma directiva comunitária que harmoniza as regras aplicadas a um produto ‘B’ (as águas minerais naturais, Directiva 80/77) declara expressamente que essas mesmas funções fisiológicas naturais não devem ser consideradas doenças?

iii)

Se o termo ‘doença’ se refere a uma definição comunitária, a menção de sensações ou de estados tais como fome, pernas pesadas, fadiga e/ou prurido (‘uma sensação que se tem ao nível da epiderme e que leva as pessoas a coçarem-se’) pode ser considerada como referência a doenças?

iv)

Se, pelo contrario, cada Estado-membro tiver a liberdade de estabelecer a sua propria definição de doença, pode um Estado-membro livremente impedir a venda de um produto alimentar legalmente controlado e vendido noutro Estado -membro com o pretexto de o mesmo produto se destinar a uma ‘doença humana’ (segundo o direito dado a esta noção pelo Estado-membro), sem no entanto ter solicitado previamente o parecer dos comités criados para evitar que as disposições nacionais entrem em conflito entre si ou com o direito comunitário, nomeadamente o Comité das Especialidades Farmacêuticas (criado pela Directiva 75/319/CEE), o Comité Permanente dos Géneros Alimentícios (Decisão 69/414/CEE), o Comité para os Produtos Cosméticos (Directiva 76/768/CEE) e/ou o Comité para as Normas e Regulamentações Técnicas (directivas 83/189/CEE e 88/182/CEE)?

2.

i)

Tendo em conta o acórdão Van Bennekom e especialmente o seu n.° 19, pode um Estado-membro restringir a livre circulação e a comercialização de um produto alimentar extraído de uma planta de consumo corrente (alho), legalmente fabricado, controlado e vendido noutro Estado-membro, pela razão de a forma exterior do produto (pílula, cápsula gelatinosa, tablete) ser medicinal quando essa mesma forma exterior é autorizada pelo direito comunitário (Directiva 85/573) para outro produto igualmente extraído de uma planta de consumo corrente (chicória) ?

ii)

Se se responder afirmativamente à primeira questão, pode uma disposição nacional deste tipo ser justificada perante o direito comunitário (nomeadamente o artigo 36.°) e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se as referidas plantas forem apresentadas sob a forma de pílulas, cápsula gelatinosa ou de tablete unicamente por razões de higiene e de conservação, ao passo que o produto em causa a) não possui e não é apresentado como possuindo propriedades curativas ou preventivas das doenças humanas e é mesmo acondicionado numa caixa com a menção expressa ‘este produto não é um medicamento’, b) não contém um composto cujo grau de concentração elevado o pudesse tornar um medicamento e c) não apresenta qualquer risco sério (que possa ser cientificamente demonstrado) para a saúde pública?

3.

i)

O monopólio farmacêutico legal de venda de certos produtos ao público releva da ‘regulamentação comercial dos Estado-membros’?

ii)

Se a resposta a i) for afirmativa, a declaração constante da Directiva 85/432/CEE relativa ao ‘monopólio da distribuição dos medicamentos’ refere-se ao medicamento tal como a Directiva 65/65 o define ou refere-se ao medicamento tal como definido por cada Estado-membro?

iii)

Se a definição comunitária de medicamento se aplicar em ii), um ‘monopólio de distribuição de medicamentos’ pode ser considerado como medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação de um produto quando a aplicação desse monopólio impedir a livre comercialização do referido produto mesmo quando este a) for qualificado como produto alimentar no Estado-membro em que for fabricado, b) tiver sido objecto de controlo por parte da administração competente (Ministério belga da Saúde) desse mesmo Estado-membro, que certifica ser inofensivo para a saúde humana e c) for vendido livremente ao público (ou seja, sem receita médica) apenas pelos farmacêuticos do Estado de importação?

iv)

Se a resposta a iii) for afirmativa, esse monopólio legal para a venda livre (ou seja, sem receita médica) de certos produtos aos particulares deve necessariamente ser justificado nos termos do artigo 36.° do Tratado CEE e, nomeadamente, deve ser justificado por uma protecção contra um ‘perigo real para a saúde humana’? [Processo 216/84, Comissão/França (sucedâneos de leite), de 23 de Fevereiro de 1988, Colect., p. 793].

Ou, ao invés, o preâmbulo da citada Directiva 85/432 e o seu texto devem ser interpretados no sentido de permitirem aos Estados-membros legitimamente qualificar qualquer produto como medicamento e, assim, tomar medidas restritivas da concorrência para o referido produto, incluindo reservar apenas aos farmacêuticos a exclusividade da venda livre (ou seja, sem receita médica) do referido produto ao público?

4.

i)

As disposições da Directiva 74/329/CEE do Conselho relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitante aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimentícios, e particularmente as disposições do preâmbulo sobre a livre circulação dos produtos alimentares bem como as disposições do artigo 2.° devem ser interpretadas no sentido de proibirem aos Estados-membros a imposição de restrições (por exemplo, a obtenção de uma ‘autorização administrativa de colocação no mercado’) ao livre comércio (nele se incluindo a livre circulação) dos produtos (tal como, em particular, a goma de guar) especificamente referidos no anexo 1 da mesma directiva?

ii)

No caso de resposta negativa à primeira questão, alínea i), não deve o direito comunitario ser interpretado no sentido de exigir que, de qualquer forma, uma decisão da administração de um Estado-membro impondo restrições (por exemplo, a obtenção de uma ‘autorização administrativa de colocação no mercado’) ao livre comércio (nele se incluindo a livre circulação) de produtos especificamente referidos no anexo 1 da directiva citada seja fundamentada de forma geral ou justificada nos termos do artigo 36.° do Tratado de Roma e não constitua um meio arbitrário ou dissimulado de violação do direito comunitário?»

O despacho de reenvió foi registado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 19 de Dezembro de 1988

Nos termos do artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça, foram apresentadas observações escritas por J. Delattre, representado por André Moquet e Eric Morgan de Rivery, advogados no foro de Paris, pelo Governo francês, representado por Edwige Belliard, assistida por Sylvie Grassi, na qualidade de agentes, pelo Governo italiano, representado por Pier Giorgio Ferri, avvocato dello Stato, na qualidade de agente, pela Comissão das Comunidades Europeias, representada por Richard Wainwright, consultor jurídico da Comissão, e por Blanca Rodriguez Galindo, membro do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agentes.

Com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução prévia.

Por decisão de 4 de Julho de 1990, o Tribunal de Justiça decidiu atribuir o processo à Quinta Secção.

II — Resumo das observações escritas apresentadas perante o Tribunal de Justiça

A — As observações gerais de J. Delattre e da Comissão

a)

As observações gerais de J. Delattre incidem sobre a situação do litígio na causa principal relativamente ao direito comunitário e sobre a qualificação dos produtos em causa segundo esse direito.

Segundo o arguido no processo principal, o princípio da livre circulação das mercadorias é o «fulcro em volta do qual se articulam as quatro questões apresentadas». Está em causa, na sua opinião, a aplicação do artigo 30.° do Tratado CEE que proíbe as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente. Recorda que, nos sectores económicos em que foi realizada uma harmonização das legislações, os Estados-membros não podem adoptar medidas restritivas. Ora, tal harmonização, pelo menos parcialmente, teria sido realizada nos sectores dos produtos cosméticos e no dos géneros alimentícios.

Segundo o arguido no processo principal, quando não foi adoptada nenhuma medida de harmonização, os Estados-membros apenas podem adoptar três categorias de medidas. Pode tratar-se de medidas que são especialmente dirigidas contra as importações ou de medidas que, embora de aparência geral, desfavorecem, de facto, sobretudo as importações. Essas medidas devem ser justificadas nos termos do artigo 36.° do Tratado CEE. Quando se trate de medidas indistintamente aplicáveis aos produtos nacionais e aos produtos importados, a Directiva 70/50/CEÉ da Comissão, de 22 de Dezembro de 1969QO 1970 L 13, p. 29), exige que elas visem um objectivo legítimo e sejam proporcionadas a esse objectivo, regra que foi confirmada pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 20 de Fevereiro de 1979, Rewe-Zentrale, (120/78, Recueil, p. 649).

Nesta perspectiva, o arguido no processo principal considera que, embora o processo contra ele intentado pareça baseado em medidas indistintamente aplicáveis aos produtos nacionais e importados, é, na realidade, discriminatório, porque penaliza um método de comercialização — a venda ao grande público por correspondência — que é principalmente utilizada pelos importadores. Assinala que, há muito tempo, produtos semelhantes aos produtos Svensson são comercializados em França em lojas especializadas e que, aliás, citou, perante o juiz de instrução, dois exemplos de redes que têm numerosas lojas especializadas: a rede «La Vie Claire» e a rede «Vitamin System» que vendem produtos em todos aspectos comparáveis aos produtos Svensson sem terem sido objecto da atenção das autoridades. Assim, existiria uma discriminação, susceptível de impedir a venda no mercado francês de produtos importados, na medida em que os vendedores por correspondência bem como os grandes supermercados eram perseguidos criminalmente, ao passo que uma outra forma de venda não dava origem a qualquer crítica.

No que diz respeito à natureza dos produtos distribuídos pela sociedade Svensson, estes são, segundo o arguido no processo principal, qualificados, na Bélgica, ou de géneros alimentícios, ou de produtos de higiene corporal com excepção do produto «Turn off» que é um produto antitabaco. Essas qualificações foram confirmadas por um acórdão da cour d'appel de Gand de 13 de Outubro de 1987.

Relativamente aos produtos que são qualificados de produtos cosméticos, a sua livre circulação está assegurada de acordo com as disposições da Directiva 76/768 do Conselho atrás referida. Uma vez que os produtos em causa estão de acordo com as disposições da directiva, devem poder circular livremente. E, no caso concreto, o que se passa com dos os dois produtos «M27» e «gel para as pernas».

No respeitante aos géneros alimentícios, embora a harmonização das regras que são aplicáveis não esteja completa, diferentes textos comunitários, como a Directiva 79/112, atrás citada, a Directiva 80/777 sobre as águas minerais (atrás referida) ou a citada Directiva 77/436 relativa à chicória, permitem dar uma definição precisa aos mesmos e distingui-los dos medicamentos.

Resulta da comparação destes textos com a citada Directiva 65/65 relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às especialidades farmacêuticas, que uma mercadoria deve ser considerada um medicamento se apresentar possuir propriedades preventivas, de tratamento ou de cura de uma doença humana ou se for destinada a ser administrada ao homem com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções orgânicas.

Por último, o produto «Turn off», simples produto antitabaco, não é um medicamento na acepção do direito comunitário embora a lei francesa disponha de outra forma.

b) As observações gerais da Comissão

A Comissão, em primeiro lugar, assinala que a Directiva 65/65, atrás referida, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às especialidades farmacêuticas, tem por único objectivo submeter os medicamentos, tais como são definidos por esse diploma, a um regime de autorização de colocação no mercado. Esta directiva, tal como também as diferentes directivas que a alteraram, não se pronuncia sobre o sistema de distribuição de medicamentos a adoptar pelos Estados-membros e, em especial, não tem qualquer repercussão sobre o eventual monopólio que é concedido aos farmacêuticos para a distribuição dos medicamentos.

Por outro lado, compete às autoridades nacionais classificar os diferentes produtos segundo os elementos de definição dados pela directiva. O carácter de medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa às importações, do sistema francês de distribuição dos medicamentos, não parece evidente para a Comissão, na medida em que este sistema não é discriminatório. De qualquer modo, as regras obrigatórias de distribuição dos medicamentos podem justificar-se por imperativos de protecção da saúde pública.

B — As diferentes observações apresentadas quanto às questões prejudiciais

a) Quanto à primeira questão

1. Observações de J. Delattre

Segundo o arguido no processo principal, é necessário definir a noção de «doença» a fim de qualificar os produtos Svensson. Estes produtos só podem ser qualificados como medicamento se forem destinados ao tratamento ou à prevenção das doenças. Isto resulta dos diplomas legais, em especial da Directiva 76/768 relativa aos cosméticos, como da Directiva 79/112 relativa aos géneros alimentícios. Resulta, por outro lado, segundo J. Delattre, do acórdão de 30 de Novembro de 1983, Van Bennekom, (227/82, Recueil, p. 3883), que um produto que se destina a assegurar uma boa alimentação quotidiana não é um medicamento.

Para se definir a noção de doença é necessário partir da noção de causa da doença. A doença é, assim, «uma alteração orgânica ou funcional, que evolui desde a sua causa até às suas últimas consequências e que pode ser definida pela sua causa, quando esta é conhecida, ou por manifestações clínicas que diminuem ou enfraquecem a constituição física e a saúde, mas não é uma simples indisposição física efémera ou sensação ou estado como a digestão, a fome, as pernas pesadas, a fadiga e/ou os pruridos».

No respeitante à eventual obrigação de consultar diferentes comités instituídos a nível da Comunidade Europeia, o arguido no processo principal considera que é importante que os Estados-membros tenham uma definição uniforme da noção de medicamento, porque uma definição demasiado lata pode prejudicar o princípio da livre circulação.

Por este motivo, na sua opinião, as medidas adoptadas pela França equivalem, de facto, a uma proibição de importar produtos do tipo dos distribuídos pela sociedade Svensson, uma vez que esta deveria, para cumprir as normas francesas, solicitar uma autorização de colocação no mercado, ter em França um laboratório farmacêutico e distribuir os produtos em questão unicamente através da rede das farmácias.

Segundo o arguido no processo principal, existe a obrigação de os Estados-membros evitarem conflitos de qualificação solicitando o parecer dos diferentes comités criados a nível comunitário, como o Comité Permanente dos Géneros Alimentícios, o Comité para os Produtos Cosméticos e o Comité das Especialidades Farmacêuticas.

Embora esta obrigação não decorra da legislação, encontra um fundamento sólido nas outras fontes do direito comunitário, nomeadamente o artigo 5.° do Tratado CEE que impõe aos Estados que cooperem entre si e com a Comissão e o princípio da segurança jurídica.

2.

A Comissão considera que a primeira questão prejudicial deve ser reposta no contexto da definição de medicamento. Deste ponto de vista, a noção de «doença» não está definida nos textos comunitários, embora determinados actos a mencionem, como por exemplo, o artigo 1.°, n.° 1, alínea c) da Directiva 75/363/CEE do Conselho, de 16 de Junho de 1975, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às actividades do médico (JO L 167, p. 14; EE 06 Fl p. 197).

A Comissão considera que, nestas condições, embora um Estado-membro não esteja vinculado a uma definição legal de doença a nível comunitário, está limitado pela sua natureza científica-médica, o que conduz necessariamente a uma noção de doença equivalente, embora não uniforme, em todos os Estados-membros.

Há que aplicar caso a caso esta noção equivalente para se decidir quanto à qualificação dos produtos em causa no processo principal.

No que diz respeito aos diferentes comités comunitários, a que se refere o juiz a quo, estes não têm por função qualificar os diferentes produtos nas categorias a que podem pertencer. A função destes comités é puramente consultiva.

3.

Segundo o Governo fiancés, o Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos, que está na origem da queixa contra J. Delattre, considera que os produtos distribuídos pela sociedade Svensson são medicamentos «por apresentação» tal como são definidos no artigo 1.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Directiva 65/65, atrás referida.

O artigo 1.° desta directiva, bem como o artigo L.511 do código francês da saúde pública dão, de facto, duas definições de especialidade farmacêutica construídas segundo duas lógicas diferentes. O produto pode ser um medicamento por função, quando permite estabelecer um diagnóstico ou ter influência nas funções orgânicas. Mas um produto pode igualmente ser um medicamento pelo simples facto de ser apresentado como tendo propriedades curativas, permitindo esta definição lutar contra o charlatanismo.

O Governo francês considera que os diferentes produtos distribuídos pela sociedade Svensson são, consoante o caso, medicamentos por função ou, mais frequentemente, por apresentação. Considera, além disso, que a menção segundo a qual os diferentes produtos não são medicamentos, aposta na embalagem, não permite, por si só, que fiquem isentos da regulamentação relativa à distribuição dos medicamentos.

Por outro lado, apenas o facto desta menção existir demonstra que a apresentação destes produtos é susceptível de originar dúvidas no espírito do consumidor. O Governo francês considera, todavia, que não sendo a harmonização neste domínio completa, a apreciação do risco para a saúde pública pode ser diferente de um Estado-membro para o outro, o que tem por consequência que o produto pode ser qualificado de medicamento num país quando não o é noutro ou em vários outros.

4.

Segundo o Governo belga, a noção de medicamento ultrapassa a de tratamento de uma doença no sentido estrito.

Por um lado, não basta não indicar doenças específicas para que um produto perca a sua qualidade de medicamento, por outro, não é necessário que um produto possua realmente as propriedades que reivindica para estar sujeito às disposições aplicáveis aos medicamentos.

Basta, com efeito, que esse produto seja fabricado e destinado a ser utilizado por um consumidor medianamente informado devido às propriedades específicas que lhe são atribuídas e não com uma finalidade principalmente alimentar ou gustativa.

O facto de a Directiva 80/777 relativa às águas minerais permitir a menção de determinados efeitos sobre a saúde, não significa que essas menções sejam aceitáveis, de modo geral, em relação a outros produtos. Assim, um produto que é à partida um género alimentício mas que foi objecto de uma preparação específica e cuja apresentação exterior é semelhante à de um medicamento e que é colocado à venda para ser utilizado pelo consumidor não pelas suas propriedades alimentares mas especialmente em razão dos seus efeitos, reais ou supostos, sobre a saúde, deve ser sujeito às normas aplicáveis aos medicamentos.

5.

Segundo o Governo italiano, a noção de doença não é definida pela Directiva 65/65, e esta definição não é indispensável. Por um lado, a Directiva 65/65 faz referência a outros elementos que não a noção de doença para definir medicamento. Por outro lado, é necessário assinalar que, embora a Directiva 80/777 relativa às águas minerais admita a utilização de menções do tipo «estimula a digestão» ou «pode favorecer as funções hepático-biliares», estas menções são autorizadas por derrogação à proibição prevista do artigo 9.°, n.° 2, alínea a), dessa directiva, de atribuir a uma água mineral propriedades de prevenção, de tratamento ou de cura de uma doença humana.

Daqui resulta, que na falta de derrogação expressa, essas menções deveriam ser consideradas como atribuindo propriedades preventivas, de tratamento ou de cura de uma doença humana.

Em contrapartida, a Directiva 85/573 relativa aos extractos de chicória não parece pertinente para o Governo italiano, que assinala que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, extraída, nomeadamente, do acórdão Van Bennekom (227/82, atrás referido), pode ter-se em consideração, para dar a um produto a qualificação de medicamento, não apenas a sua apresentação, mas também outros critérios. Por último, julga evidente, quanto às cápsulas de alho, que, nesse caso, o produtor entendeu, através da sua apresentação, sugerir uma utilização desse produto para fins terapêuticos.

b) Quanto à segunda questão

1.

J. Delattre assinala que, na jurisprudência do Tribunal de Justiça, extraída, nomeadamente, do acórdão Van Bennekom, para a qualificação de um produto como medicamento, a sua forma exterior não é um indício exclusivo e determinante. Esta jurisprudência está de acordo com a realidade uma vez que os complementos alimentares naturais são tradicionalmente apresentados sob a forma de tabletes, pílulas ou cápsulas.

O arguido no processo principal observa também que, no processo Van Bennekom, estavam em causa produtos não controlados e que o Tribunal considerou que o impacte da forma externa do produto devia ser apreciado tendo em consideração os conhecimentos de um consumidor medianamente informado.

Por último, se o objectivo destas normas é evitar toda a confusão com os medicamentos, os produtos distribuídos pela sociedade Svensson não são apresentados como medicamentos, como, aliás, o decidiu a cour d'appel de Gând no acórdão atrás citado.

Relativamente à legitimidade de entraves às importações, o arguido no processo principal, depois de ter recordado os princípios emergentes do acórdão de 20 de Fevereiro de 1979, Rewe-Zentrale, considera que a proibição de comercializar os extractos de alho sob a forma de cápsulas é excessiva (e cita, a este respeito, o acórdão de 26 de Junho de 1980, processo penal contra Gilli, 788/79, Recueil, p. 2071), do mesmo modo que o seria a exigencia de fabrico do produto num laboratòrio farmacèutico e de uma autorização de colocação no mercado.

Quando um produto alimentar é destinado a pessoas sãs, resulta da jurisprudência do Tribunal que uma rotulagem adequada é suficiente para advertir os consumidores. Por outro lado, resulta também da jurisprudência do Tribunal que um Estado não pode invocar razões de saúde pública para se opor à importação de um produto desde que um produto semelhante já exista no território desse Estado. Por último, o Tribunal também decidiu, segundo o arguido no processo principal, que um Estado-membro não tem o direito de exigir que um produto importado cumpra totalmente as normas prescritas para o fabrico, no Estado-membro de importação, de produtos similares.

2.

Segundo a Comissão, a segunda questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional respeita à noção de medicamento por apresentação e encontram-se indicações a este respeito no acórdão Van Bennekom, atrás referido. Resulta deste acórdão que, embora a noção de «apresentação» deva ser interpretada de modo extensivo, a forma externa dada ao produto não é um indício exclusivo ou determinante, sob a pena de englobar na noção de medicamento produtos de alimentação apresentados tradicionalmente sob formas similares às dos produtos farmacêuticos. Assim acontece, por exemplo, no caso da chicória, produto alimentar apresentado sob a forma de tabletes, facto que a Directiva 77/436, relativa à aproximação das disposições legislativas dos Estados-membros respeitantes aos extractos de café e aos extractos de chicória, tem em consideração.

Mas a situação é diferente no que diz respeito ao alho, conhecido pelos seus efeitos terapêuticos. O alho sob a forma de pílulas não é destinado à alimentação mas a fins curativos e, sob essa forma, o consumidor espera dele esses efeitos. A simples menção, na embalagem, de que não se trata de um medicamento não é suficiente para retirar ao alho apresentado sob a forma de pílulas o carácter de medicamento, na acepção da primeira definição da Directiva 65/65.

3.

O Governo fiancés considera também que as cápsulas de alho distribuídas pela sociedade Svensson devem ser consideradas um medicamento por apresentação, que é igualmente a posição do Governo italiano.

c) Quanto à terceira questão

1.

Segundo o arguido no processo principal, na ausência de regulamentação quanto a este aspecto, o monopólio legal dos farmacêuticos para a venda de determinados produtos ao público releva da faculdade que o Tratado deixa aos Estados-membros de adoptarem regulamentações de comércio. Considera todavia que, tendo em consideração a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma regulamentação que imponha um determinado circuito de distribuição constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa. Essa restrição não pode ser considerada justificada quando é aplicada a produtos que não exigem, para a sua utilização, os conselhos de um farmacêutico, como aliás já foi referido pela Comissão numa resposta a uma questão escrita do Sr. Patterson (n.° 1795/87, JO C 244, p. 16, de 19. 9. 1988), a propósito dos edulcorantes de síntese, a venda dos quais é reservada, pela regulamentação francesa, aos farmacêuticos.

2.

Segundo a Comissão, a instituição de um monopolio para os farmacêuticos releva da competência dos Estados-membros, como aliás é expressamente reconhecido no segundo parágrafo do preâmbulo da Directiva 85/432, atrás referida.

O único objectivo da Directivo 65/65 é sujeitar os medicamentos a uma autorização de colocação no mercado, mas não exclui que outros produtos sejam sujeitos, por força de regulamentações estatais, a regras restritivas de distribuição. A única reserva é de que essas regras sejam compatíveis com os artigos 30.° e seguintes do Tratado CEE. A Comissão pergunta, no entanto, se, não havendo discriminação quanto à origem dos produtos, essa limitação de venda pode ser considerada contrária ao artigo 30.° A Comissão considera, de qualquer forma, que o facto de os produtos em questão serem vendidos livremente na Bélgica não impede que um outro Estado-membro adopte uma solução diferente por razões ligadas à protecção da saúde.

Compete, pois, ao Estado em causa proceder a um exame, caso a caso, desses produtos, para determinar se apresentam um risco real para a saúde pública.

Nesse exame, parece que é necessário ter em consideração o risco que apresenta para a saúde humana o facto de se tomar um produto que não tem efeito curativo real, mas que é apresentado como tal, em vez do remédio adequado.

3.

O Governo fiancés, que considera que a venda apenas por intermédio das farmácias não é, em si, uma desvantagem quanto à comercialização, uma vez que existem 22000 pontos de venda, assinala que, não sendo a harmonização completa no domínio dos medicamentos, a apreciação do risco que um produto apresenta para a saúde pública pode ser diferente de um Estado para outro. Daqui resulta que podem aplicar-se os artigos 30.° e seguintes do Tratado.

No entanto, o Governo francês alega que se pode considerar que não há entraves ao comércio intracomunitário uma vez que as medidas em causa parecem justificadas por exigências imperativas como a protecção da saúde pública, da lealdade das transacções comerciais e dos consumidores. Para a aplicação do artigo 36.°, é necessário salientar que as medidas em causa não são discriminatórias porque não impedem a importação dos produtos estrangeiros. O exame caso a caso dos produtos em questão não é uma medida desproporcionada, mesmo que possa conduzir a uma qualificação diferente da que é feita na Bélgica.

Assim, compete à sociedade Svensson escolher entre a distribuição dos seus produtos nas farmácias ou renunciar à apresentação ambígua dos medicamentos que adoptou.

4.

Segundo o Governo belga, a instituição do monopólio para os farmacêuticos releva da competência dos Estados-membros, como é referido no segundo considerando do preâmbulo da Directiva 85/432, atrás referida. Em suma, para que o medicamento possa ser comercializado num Estado-memrbro, é necessário que tenha obtido uma autorização de colocação no mercado e não basta, por conseguinte, que seja legalmente fabricado e comercializado num outro Estado-membro.

d) Quanto à quarta questão

1.

J. Delattre assinala que esta questão respeita apenas ao produto «Zéro 3» composto de goma de guar. A questão é a do alcance que a Directiva 74/329/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1974, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimentícios (JO L 189, p. 1). J. Delattre assinala, em primeiro lugar, que a goma de guar é uma substância reconhecida como inofensiva pela comunidade científica internacional. Em segundo lugar, a Directiva 74/329 não isenta os Estados-membros do cumprimento das disposições dos artigos 30.° e seguintes. Uma vez que a directiva não estabelece qualquer limitação à utilização da goma de guar e que esta é efectivamente utilizada em França no fabrico de iogurtes e de croissants, parece difícil invocar, com o fim de restringir a sua comercialização, o objectivo de protecção da saúde pública. Sublinha, ainda, que este produto é vendido livremente nas farmácias por outros fabricantes sem autorização de colocação no mercado.

As medidas contestadas não se baseiam, assim, em qualquer risco para a saúde pública e a decisão adoptada pelo Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos de considerar a goma de guar como um medicamento parece uma medida injustificada e não fundamentada, contrariamente às exigências dos artigos 30.° e seguintes e da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

2.

A Comissão assinala que a questão colocada é a do âmbito de aplicação da Directiva 74/329. Esta tem apenas por objectivo a harmonização das legislações dos Estados-membros para a utilização dos agentes emulsionantes, estabilizadores, espessantes ou gelificantes, quando estes são utilizados enquanto tais, quer dizer, nos géneros alimentícios.

Nesse caso, não é possível qualquer restrição à livre circulação desde que sejam utilizados nas condições previstas na directiva. O mesmo não acontece quando está em causa o consumo directo ou outras utilizações dos mesmos agentes. Nesse caso, a questão deve ser examinada nos termos dos artigos 30.° e 36.° do Tratado CEE.

3.

Segundo o Governo francês, o produto «Zéro 3» é apresentado como um medicamento e a sua utilização envolve riscos para a saúde pública.

F. Grévisse

Juiz-relator


( *1 ) Lingua do processo: francês.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

21 de Março de 1991 ( *1 )

No processo C-369/88,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo tribunal de grande instance de Nice (França) e destinado a obter, no processo penal movido perante esse órgão jurisdicional contra

Jean-Marie Delattre de Saint-Vaast (Bélgica),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação das disposições de direito comunitário relativas às noções de doença e de medicamento, dos artigos 30.° e 36.° do Tratado, a propósito do monopólio da venda de certos produtos conferido aos farmacêuticos e da Directiva 74/329/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1974, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimentícios (JO L 189, p. 1; EE 13 F3 p. 240),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por J. C. Moitinho de Almeida, presidente de secção, G. C. Rodríguez Iglesias, Sir Gordon Slynn, F. Grévisse e M. Zuleeg, juízes,

advogado-geral : G. Tesauro

secretario: H. A. Rühl, administrador principal

considerando as observações escritas apresentadas:

em nome de J. Delattre, por André Moquet e Eric Morgan de Rivery, advogados no foro de Paris,

em nome do Governo francês, por Edwige Belliard, directora adjunta na direcção dos assuntos jurídicos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistida por Sylvie Grassi, secretária dos Negócios Estrangeiros no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agentes,

em nome do Governo italiano, por Pier Giorgio Ferri, avvocato dello Stato, na qualidade de agente,

em nome da Comissão das Comunidades Europeias, por Richard Wainwright, consultor jurídico e por Blanca Rodriguez Galindo, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações de J. Delattre, do Governo francês, representado por Hélène Duchène, secretária dos Negócios Estrangeiros no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo italiano e da Comissão, representada por Hervé Lehman, funcionária francesa destacada no Serviço Jurídico, na qualidade de agente, na audiência de 24 de Outubro de 1990,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 16 de Janeiro de 1991,

profere o presente

Acórdão

1

Por despacho de 12 de Dezembro de 1988, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 do mesmo mês, o juiz de instrução do tribunal de grande instance de Nice colocou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, diversas questões prejudiciais sobre as noções de doença e de medicamento e a sua definição em direito comunitário, sobre a compatibilidade com o direito comunitário do monopólio conferido em França aos farmacêuticos para a distribuição de medicamentos e sobre a interpretação da Directiva 74/329/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1974, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimentícios (JO L 189, p. 1).

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de processos crimes instaurados contra Jean-Marie Delattre, gerente da sociedade Svensson Turn Pol (a seguir «sociedade Svensson»), por ter comercializado em França diferentes produtos em violação dos artigos L.512, L.596 e L.601 do código francês da saúde pública.

3

O primeiro destes três artigos reserva aos farmacêuticos a venda, nomeadamente, de medicamentos, o segundo impõe que qualquer estabelecimento de preparação, de venda por grosso ou de distribuição por grosso de medicamentos e dos outros produtos cuja venda é reservada aos farmacêuticos, seja propriedade de um farmacêutico ou de uma sociedade em cuja gestão ou em cuja direcção-geral participe um farmacêutico, por último, o terceiro exige que toda a especialidade farmacêutica seja objecto de uma autorização de colocação no mercado emitida pelo ministro dos Assuntos Sociais.

4

A sociedade Svensson exporta e vende por correspondência, em França, diferentes produtos fabricados na Bélgica onde são, segundo afirma, livremente comercializados como géneros alimentícios ou produtos cosméticos.

5

O seu gerente, J. Delattre, foi acusado, por queixa do Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos, com fundamento de que determinados produtos assim comercializados eram medicamentos, devendo, por conseguinte, ser objecto de uma autorização de colocação no consumo e só podiam ser legalmente vendidos ao público por intermédio de farmácias.

6

A queixa do Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos diz respeito a onze produtos dos quais quatro produtos para emagrecimento, «SLIM 4», «Zéro 3», «Kilomin» e «Chlorella», um produto destinado a facilitar a digestão, «Macérât huileux d'ail», dois destinados a activar a circulação sanguínea, «herbes pour les jambes» e «gel défatigant pour les jambes», um destinado a lutar contra os pruridos, «M27», um destinado a lutar contra a fadiga, «huile de germes de blé + vitamines E», um para as articulações, «Minéral 23», e um para deixar de fumar, «Turn off», composto de uma cigarreira regulável e de comprimidos de ervas.

7

Estes diferentes produtos são apresentados sob a forma de comprimidos, creme ou gel e têm todos, salvo o último, a menção «este produto não é um medicamento»

8

J. Delattre tendo alegado, perante o juiz a quem a queixa foi submetida, que os produtos em causa não podiam ser considerados medicamentos, nos termos do direito comunitário, devendo antes ser considerados, consoante o caso, géneros alimentícios, complementos alimentares ou produtos cosméticos, o juiz de instrução do tribunal de grande instance de Nice submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

i)

O termo ‘doença’, tal como é utilizado nas directivas acima citadas, deve ser interpretado de forma uniforme segundo uma definição comunitária ou, bem pelo contrário, cada Estado-membro tem a liberdade de aplicar as directivas em causa dando a sua própria definição ao termo doença?

ii)

Se o termo ‘doença’ corresponde a uma definição comunitária, um produto ‘A’ qualificado como produto alimentar num Estado-membro e que refere na sua publicidade funções fisiológicas naturais (digestão, eliminação da bílis) pode ser qualificado de medicamento noutro Estado-membro quando uma directiva comunitária que harmoniza as regras aplicadas a um produto ‘B’ (as águas minerais naturais, Directiva 80/77) declara expressamente que essas mesmas funções fisiológicas naturais não devem ser consideradas doenças?

iii)

Se o termo ‘doença’ se refere a uma definição comunitária, a menção de sensações ou de estados tais como fome, pernas pesadas, fadiga e/ou prurido (‘uma sensação que se tem ao nível da epiderme e que leva as pessoas a coçarem-se’) pode ser considerada como referencia a doenças?

iv)

Se, pelo contrario, cada Estado-membro tiver a liberdade de estabelecer a sua pròpria definição de doença, pode um Estado-membro livremente impedir a venda de um produto alimentar legalmente controlado e vendido noutro Estado-membro com o pretexto de o mesmo produto se destinar a uma ‘doença humana’ (segundo o direito dado a esta noção pelo Estado-membro) sem no entanto ter solicitado previamente o parecer dos comités criados para evitar que as disposições nacionais entrem em conflito entre si ou com o direito comunitário, nomeadamente o Comité das Especialidades Farmacêuticas (criado pela Directiva 75/319/CEE), o Comité Permanente dos Géneros Alimentícios (Decisão 69/414/CEE), o Comité para os Produtos Cosméticos (Directiva 76/768/CEE) e/ou o Comité para as Normas e Regulamentações Técnicas (directivas 83/189/CEE e 88/182/CEE)?

2.

i)

Tendo em conta o acórdão Van Bennekom e especialmente o seu n.° 19, pode um Estado-membro restringir a livre circulação e a comercialização de um produto alimentar extraído de uma planta de consumo corrente, (alho), legalmente fabricado, controlado e vendido noutro Estado-membro, pela razão de a forma exterior do produto (pílula, cápsula gelatinosa, tablete) ser medicinal quando essa mesma forma exterior é autorizada pelo direito comunitário (Directiva 85/573) para outro produto igualmente extraído de uma planta de consumo corrente (chicória) ?

ii)

Se se responder afirmativamente à primeira questão, pode uma disposição nacional deste tipo ser justificada perante o direito comunitário (nomeadamente o artigo 36.°) e a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se as referidas plantas forem apresentadas sob a forma de pílulas, cápsula gelatinosa ou de tablete unicamente por razões de higiene e de conservação, ao passo que o produto em causa a) não possui e não é apresentado como possuindo propriedades curativas ou preventivas das doenças humanas e é mesmo acondicionado numa caixa com a menção expressa ‘este produto não é um medicamento’, b) não contém um composto cujo grau de concentração elevado o pudesse tornar um medicamento e c) não apresenta qualquer risco sério (que possa ser cientificamente demonstrado) para a saúde pública?

3.

i)

O monopólio farmacêutico legal de venda de certos produtos ao público releva da ‘regulamentação comercial dos Estado-membros’?

ii)

Se a resposta a i) for afirmativa, a declaração constante da Directiva 85/432/CEE relativa ‘ao monopólio da distribuição dos medicamentos’ refere-se ao medicamento tal como a Directiva 65/65 o define ou refere-se ao medicamento tal como definido por cada Estado-membro?

iii)

Se a definição comunitária de medicamento se aplicar em ii), um ‘monopólio de distribuição de medicamentos’ pode ser considerado como medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação de um produto quando a aplicação desse monopólio impedir a livre comercialização do referido produto mesmo quando este a) for qualificado como produto alimentar no Estado-membro em que for fabricado, b) tiver sido objecto de controlo por parte da administração competente (Ministério belga da Saúde) desse mesmo Estado-membro, que certifica ser inofensivo para a saúde humana e c) for vendido livremente ao público (ou seja, sem receita médica) apenas pelos farmacêuticos do Estado de importação?

iv)

Se a resposta a iii) for afirmativa, esse monopólio legal para a venda livre (ou seja, sem receita médica) de certos produtos aos particulares deve necessariamente ser justificado nos termos do artigo 36.° do Tratado CEE, e nomeadamente deve ser justificado por uma protecção contra um ‘perigo real para a saúde humana’? [Processo 216/84, Comissão/França (sucedâneos de leite), de 23 de Fevereiro de 1988, Colect., p. 793].

Ou, ao invés, o preâmbulo da citada Directiva 85/432 e o seu texto devem ser interpretados no sentido de permitirem aos Estados-membros legitimamente qualificar qualquer produto como medicamento e, assim, tomar medidas restritivas da concorrência para o referido produto, incluindo reservar apenas aos farmacêuticos a exclusividade da venda livre (ou seja, sem receita médica) do referido produto ao público?

4.

i)

As disposições da Directiva 74/329/CEE do Conselho relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitante aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimentícios, e particularmente as disposições do preâmbulo sobre a livre circulação dos produtos alimentares bem como as disposições do artigo 2.° devem ser interpretadas no sentido de proibirem aos Estados-membros a imposição de restrições (por exemplo, a obtenção de uma ‘autorização administrativa de colocação no mercado’) ao livre comércio (nele se incluindo a livre circulação) dos produtos (tal como, em particular, a goma de guar) especificamente referidos no anexo 1 da mesma directiva?

ii)

No caso de resposta negativa à primeira questão, alínea i), não deve o direito comunitario ser interpretado no sentido de exigir que, de qualquer forma, uma decisão da administração de um Estado-membro impondo restrições (por exemplo, a obtenção de uma ‘autorização administrativa de colocação no mercado’) ao livre comercio (nele se incluindo a livre circulação) de produtos especificamente referidos no anexo 1 da directiva citada seja fundamentada de forma geral ou justificada nos termos do artigo 36.° do Tratado de Roma e não constitua um meio arbitrário ou dissimulado de violação do direito comunitário?»

9

Para mais ampla exposição dos factos, da tramitação processual, bem como das observações escritas apresentadas perante o Tribunal, remete-se para ao relatório para audiência. Estes elementos do processo apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

10

Em primeiro lugar, convém examinar conjuntamente as três primeiras questões colocadas pelo juiz nacional e depois, separadamente, a quarta questão prejudicial.

Quanto às três primeiras questões prejudiciais

11

Estas questões são respeitantes, ao mesmo tempo, ao carácter comunitário da noção de doença, à qualificação de determinados produtos relativamente à noção de doença, por último, ao monopólio dos farmacêuticos.

No respeitante ao carácter comunitário da noção de doença

12

A Directiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de Janeiro de 1965, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às especialidades farmacêuticas (JO 1965, 22, p. 369; EE 13 FI p. 18), alterada várias vezes, não dá qualquer definição de doença. Este termo só admite as definições mais comummente aceites com fundamento em conhecimentos científicos.

No respeitante à qualificação de determinados produtos como medicamentos

13

A mesma directiva define especialidade farmacêutica como «todo o medicamento preparado antecipadamente, introduzido no mercado com denominação e acondicionamento especiais».

14

Nos termos do artigo 1.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Directiva 65/65, atrás referida, medicamento é «toda a substância ou composição apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas ou animais», e, nos termos do segundo parágrafo, «a substância ou composição que possa ser administrada ao homem ou ao animal com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar as funções orgânicas no homem ou no animal é igualmente considerada como medicamento».

15

Assim, esta directiva dá duas definições de medicamento: uma definição de medicamento «por apresentação», uma definição de medicamento «por função». Um produto é um medicamento se for abrangido por uma ou por outra destas definições.

16

Convém acrescentar que estas duas definições não podem ser consideradas rigorosamente distintas. Como se refere no acórdão de 3 de Novembro de 1983, Van Bennekom, n.° 22 (227/82, Recueil, p. 3883), uma substância que possua «propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas ou animais», na acepção da primeira definição comunitária e que portanto não é «apresentada» como tal, é abrangida, em princípio, pelo âmbito de aplicação da segunda definição comunitária do medicamento.

17

Antes de examinar as questões colocadas pelo juiz nacional, parece útil esclarecer as dúvidas que possam existir quanto à possibilidade de qualificar um mesmo produto como medicamento e produto cosmético, na acepção da Directiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de Julho de 1976, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos produtos cosméticos (JO L 262, p. 169; EE 15 Fl p. 206).

18

O artigo l.°, n.° 1, desta directiva define o produto cosmético como «toda a substancia ou preparação destinada a ser posta em contacto com as diversas partes superficiais do corpo humano (epiderme, sistemas piloso e capilar, unhas, labios e órgãos genitais externos) ou com os dentes e mucosas bucais, tendo em vista exclusiva ou principalmente limpá-las, perfumá-las ou protegê-las, a fim de as manter em bom estado, modificar o seu aspecto ou corrigir os odores corporais».

19

Como o salienta o seu quinto considerando, que especifica que esta directiva «visa apenas os produtos cosméticos e não as especialidades farmacêuticas e os medicamentos», as regras impostas pela citada Directiva 76/768 dizem apenas respeito aos produtos cosméticos e não aos medicamentos.

20

Consequentemente, embora não se exclua que, em casos duvidosos, a definição de produto cosmético seja aproximada da do medicamento antes de um produto ser qualificado de medicamento por função, também é verdade que um produto que apresente o caracter de um medicamento ou de uma especialidade farmacêutica não entra no âmbito de aplicação da Directiva 76/768 atrás referida, e é sujeito apenas às disposições da Directiva 65/65, atrás referida, e das directivas que a alteraram.

21

Por outro lado, esta conclusão é a única que está de acordo com o objectivo da protecção da saúde pública que prosseguem ambas as directivas, uma vez que o regime jurídico das especialidades farmacêuticas é mais rigoroso do que o dos produtos cosméticos, tendo em consideração os perigos especiais que podem representar as especialidades farmacêuticas para a saúde pública e que não representam, geralmente, os produtos cosméticos.

22

Nestas condições, mesmo que seja abrangido pela definição do artigo 1.°, n.° 1 da Directiva 76/768, um produto deve, no entanto, ser considerado como «medicamento» e está sujeito ao regime correspondente se apresentado como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças, ou se for destinado a ser administrado com vista a restaurar, corrigir ou modificar as funções orgânicas.

23

As diferentes questões apresentadas destinam-se, essencialmente, a saber se podem ou devem ser qualificados como medicamentos os produtos com determinadas características descritas pelo juiz a quo.

24

Em primeiro lugar, pergunta-se se um produto cuja publicidade menciona que tem por objectivo activar funções fisiológicas naturais, como a digestão ou a eliminação da bílis, pode ser, num Estado-membro, qualificado como medicamento, quando, por um lado, é qualificado como produto alimentar num outro Estado-membro e que, por outro lado, a Directiva 80/777/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1980, relativa à aproximação de legislações dos Estados-membros respeitantes à exploração e à comercialização de águas minerais naturais (JO L 229, p. 1; EE 13 Fil p. 47), que proíbe as indicações «que atribuam a uma água mineral propriedades de prevenção, de tratamento ou de cura de uma doença humana» [artigo 9.°, n.° 2, alínea a)] autoriza especificar que esta água pode favorecer determinadas funções, como as funções hepático-biliares.

25

Um produto apresentado como destinado a favorecer determinadas funções como a digestão ou as funções hepático-biliares pode ser abrangido pela definição de medicamento dada no artigo 1.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Directiva 65/65, atrás referida, uma vez que é susceptível de ser administrado com vista a restaurar, corrigir ou modificar funções orgânicas.

26

Para decidir se um produto deste género deve, em conclusão, ser qualificado de alimento ou de medicamento convém, de acordo com o acórdão de 30 de Novembro de 1983, Van Bennekom, atrás referido, apreciar caso a caso, tendo em consideração as propriedades farmacológicas do produto em causa, tais como podem ser determinadas no estádio actual do conhecimento científico.

27

De qualquer forma, a circunstância de um produto ser qualificado como alimento num outro Estado-membro não pode impedir que lhe seja reconhecida, no Estado interessado, a qualidade de medicamento desde que apresente as respectivas características.

28

Efectivamente, embora a Directiva 65/65, atrás referida, tenha por objectivo essencial, como o refere o seu quarto considerando, eliminar os entraves ao comércio das especialidades farmacêuticas na Comunidade e, embora com esse objectivo, dê, no artigo 1.°, uma definição da especialidade farmacêutica e do medicamento, no entanto, constitui apenas, como salienta o acórdão de 30 de Novembro de 1983, Van Bennekom, atrás referido, a primeira fase de harmonização das regulamentações nacionais em matéria de produção e de distribuição dos produtos farmacêuticos.

29

Neste estádio do direito comunitário, é difícil evitar que subsistam, temporariamente e, sem dúvida, enquanto a harmonização das medidas necessárias a assegurar a protecção da saúde não for mais completa, diferenças entre os Estado-membros, na qualificação dos produtos.

30

Por último, as especificidades da legislação relativa às águas minerais naturais que permitem informar de modo útil o consumidor sobre as propriedades dessas águas sem, todavia, correr o risco de as confundir com os medicamentos, não têm repercussões na definição de medicamento, na acepção da Directiva 65/65, atrás referida.

31

Pergunta-se, em segundo lugar, se um produto qualificado num Estado-membro como produto alimentar pode, apesar disso, ser qualificado de medicamento num outro Estado sem que tenham sido consultados os diferentes comités que funcionam junto da Comissão e competentes nesses domínios.

32

Para a aplicação, aos diferentes produtos, da definição do medicamento dada pelo artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 65/65, atrás referida, os Estados-membros devem ter em consideração, como geralmente nestas matérias, os resultados da investigação científica internacional e, nomeadamente, os trabalhos dos comités especializados ao nível comunitário (acórdão de 10 de Dezembro de 1985, Motte, 247/84, Recueil, p. 3887). Todavia, nenhum destes textos os obriga a consultá-los antes de adoptarem uma decisão relativa a um determinado produto.

33

Pergunta-se, em terceiro lugar, se um produto apresentado como destinando-se a combater determinadas sensações ou determinados estados, como a fome, a sensação de peso nas pernas, o cansaço ou o prurido é um medicamento na acepção da Directiva 65/65, atrás referida.

34

Esses estados ou sensações são, em si mesmo, ambíguos. Podem ser o sintoma de uma doença e, confrontados com outros sinais clínicos, revelar um estado patológico. Também podem, como a fadiga passageira ou uma necessidade de alimentação, ser desprovidos de qualquer conotação patológica. A referência que pode ser feita a esses estados ou sensações na apresentação de um produto não é, por isso, decisiva.

35

Em consequência, compete às autoridades nacionais determinarem, sob o controlo do juiz, se, tendo em consideração a sua composição, os riscos que o seu consumo prolongado pode ocasionar ou os seus efeitos secundários e, de um modo geral, o conjunto das suas características, um produto, apresentado como o que acaba de ser descrito, constitui ou não um medicamento.

36

Por último, pergunta-se em que medida a forma externa de um produto, como a pílula, a cápsula gelatinosa ou a tablete, pode conduzir a considerá-lo como medicamento, quando esse produto é apresentado como não sendo um medicamento e não é apresentado como possuindo propriedades curativas e preventivas, que, aliás, não possui.

37

Esta questão deve ser entendida como relativa à definição do medicamento dada pelo artigo 1.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Directiva 65/65, ou seja, a do medicamento por apresentação.

38

Como o Tribunal já salientou no acórdão de 30 de Novembro de 1983, Ven Bennekom, atrás citado, a que o juiz a quo faz, aliás, referência, a forma externa dada a um produto não pode, embora seja um indício sério da intenção do vendedor ou do fabricante de comercializá-lo como medicamento, constituir um indício exclusivo e determinante, sob pena de englobar determinados produtos alimentares tradicionalmente apresentados sob forma semelhante à dos produtos farmacêuticos.

39

Todavia, há que observar que, segundo o mesmo acórdão, a primeira definição de medicamento dada pela Directiva 65/65, atrás referida, que tem em consideração a apresentação do produto em causa, deve, em razão do seu próprio objectivo que é proteger os consumidores contra a colocação no mercado de produtos que não têm propriedades curativas ou que não têm as que lhes são atribuídas, ser interpretada de modo suficientemente lato.

40

Por outro lado, a forma deve abranger não apenas o próprio produto (tabletes, pílulas ou cápsulas), mas também o acondicionamento do produto que pode, por razões de política comercial, tender a assimilá-lo a um medicamento. Por outro lado, é necessário ter em consideração a atitude de um consumidor medianamente informado ao qual a forma dada a um produto pode inspirar uma confiança especial do tipo da que lhe inspira normalmente uma especialidade farmacêutica, tendo em conta as garantias de que se reveste o seu fabrico e a sua comercialização.

41

Nestas condições, um produto pode ser considerado medicamento por apresentação desde que a sua forma e o seu acondicionamento o assimilem suficientemente a um medicamento e que, em especial, a sua embalagem e a literatura que o acompanham invoquem investigações de laboratórios farmacêuticos, métodos ou substâncias desenvolvidas por médicos ou mesmo determinados depoimentos de médicos a favor das qualidades desse produto. A menção de que o produto não é um medicamento é uma indicação útil que o juiz nacional pode ter em conta, mas não é, por si só, determinante.

42

Embora seja um facto que a Directiva 77/436/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1977, relativa à aproximação das disposições dos Estados-membros respeitantes aos extractos de café e aos extractos de chicória (JO L 172, p. 20; EE 13 F7 p. 58), invocada pelo juiz de instrução, se refira a produtos habitualmente apresentados «em pó, granulado, em palhetas, em tablete» ou sob outras formas deste tipo, esta circunstância não é susceptível de impedir a aplicação dos critérios do medicamento dados pela Directiva 65/65, atrás referida. Por outro lado, convém assinalar que, como foi recordado mais acima, a forma do próprio produto é apenas um dos elementos da sua apresentação a tomar em consideração para saber se deve ser ou não qualificado de medicamento.

43

Assim deve-se responder às questões relativas à definição do medicamento em direito comunitário do seguinte modo:

a)

um produto apresentado como destinando-se a favorecer certas funções orgânicas pode caber no âmbito de aplicação da definição comunitária de medicamento dada pelo artigo 1.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Directiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de Janeiro de 1965, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às especialidades farmacêuticas. Para decidir se tal produto deve ser qualificado como medicamento ou como alimento, há que ter em conta as suas propriedades farmacológicas. A circunstância de tal produto ser qualificado como alimento num Estado-membro não impede que se lhe reconheça a qualidade de medicamento no Estado em causa, desde que apresente as respectivas características. As especificidades da legislação relativa às águas minerais naturais não têm qualquer repercussão na definição de medicamento na acepção da Directiva 65/65;

b)

nenhum diploma obriga os Estados-membros a consultar os comités consultivos existentes junto das instituições comunitárias, especializados no domínio dos medicamentos, antes de, no direito interno, extraírem as consequências das definições de medicamento dadas pela Directiva 65/65;

c)

compete às autoridades nacionais determinar, sob controlo judicial, se, tendo em conta a sua composição, os riscos que o seu consumo prolongado pode provocar ou os seus efeitos secundários e, de um modo geral, o conjunto das suas características, um produto apresentado como destinando-se a combater determinadas sensações ou determinados estados, como a fome, a sensação de peso nas pernas, o cansaço ou o prurido constitui ou não um medicamento;

d)

um produto pode ser considerado um medicamento com fundamento na sua apresentação, desde que a sua forma e o seu acondicionamento sejam bastante semelhantes aos de um medicamento e que, em especial, a sua embalagem e a literatura que o acompanham invoquem investigações de laboratórios farmacêuticos, métodos ou substâncias desenvolvidos por médicos ou mesmo determinados depoimentos de médicos pronunciando-se a favor das qualidades desse produto. A menção de que o produto não é um medicamento é uma indicação útil que o juiz nacional pode ter em conta, mas não é, por si só, determinante.

Quanto ao monopólio dos farmacêuticos

44

O juiz nacional pretende essencialmente saber se o monopólio dos farmacêuticos é uma noção comunitária, se, pela definição dos limites desse monopólio, o medicamento deve ser entendido no sentido comunitário ou nacional, se esse monopólio constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa e, no caso de resposta afirmativa, a que condições deve esta medida obedecer para ser incompatível com o direito comunitário.

45

É necessário recordar, em primeiro lugar, o objectivo da regulamentação comunitária em matéria de medicamentos.

46

A Directiva 65/65, atrás citada, bem como as diferentes directivas que a alteraram têm por único objectivo dar uma definição comunitária do medicamento e da especialidade farmacêutica, com excepção, aliás, das especialidades farmacêuticas mencionadas no artigo 34.° da segunda Directiva 75/319/CEE do Conselho, de 20 de Maio de 1975 (JO L 147, p. 13; EE 13 F4 p. 92), a fim de delimitar o âmbito de aplicação do processo harmonizado de autorização de colocação do consumo que institui com o objectivo de facilitar a livre circulação destes produtos.

47

Esta afirmação é apoiada pelo preâmbulo da Directiva 85/432/CEE do Conselho, de 16 de Setembro de 1985, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a certas actividades do sector farmacêutico (JO L 253, p. 34; EE 06 F3 p. 25). Este precisa, com efeito, que «a repartição geográfica das farmácias e o monopolio de distribuição dos medicamentos continuam a ser da competencia dos Estados-membros».

48

Daqui resulta que no estadio actual do direito comunitario, em que nenhuma harmonização das normas relativas à comercialização dos medicamentos no interior de cada Estado-membro foi realizada (acórdão de 27 de Maio de 1986, Legia, 87/85 e 88/85, Colect., p. 1707), a fixação das regras relativas à distribuição, propriamente dita, dos produtos farmacêuticos é da competência dos Estados-membros, sem prejuízo do cumprimento das disposições do Tratado e, nomeadamente, das relativas à livre circulação de mercadorias.

49

Do mesmo modo, os Estados-membros podem, sob a mesma reserva, submeter produtos que não entram no âmbito de aplicação da Directiva 65/65, atrás referida, quer se tratem de outros medicamentos ou de substâncias ou de composições farmacêuticas ou ainda de outros produtos semelhantes, a um regime restritivo da venda ou da comercialização (acórdãos de 30 de Novembro de 1983, Van Bennekom, atrás referido, e de 20 de Março de 1986, Tissier, 35/85, Colect., p. 1207).

50

Como o Tribunal de Justiça já decidiu, uma legislação que limite ou proíba certas formas de publicidade e certos meios de promoção das vendas, ainda que não condicione directamente as importações, pode ser susceptível de restringir o seu volume, pelo facto de afectar as possibilidades de comercialização relativamente aos produtos importados. Não pode ser excluído que a obrigação em que se pode encontrar o operador em causa, devendo adoptar sistemas diferentes de publicidade ou de promoção das vendas em função dos Estados-membros em questão ou abandonar o sistema que pensa ser particularmente eficaz, pode constituir um obstáculo às importações mesmo que essa legislação seja aplicável indistintamente aos produtos nacionais e aos produtos importados. Esta observação ainda tem mais razão de ser quando a regulamentação em causa priva o operador da possibilidade de praticar não um sistema de publicidade, mas um método de comercialização que lhe permite realizar a quase totalidade das suas vendas (acórdãos de 15 de Dezembro de 1982, Oosthoeck's Uitgeversmaatschappij BV, 286/81, Recueil, p. 4575, e de 16 de Maio de 1989, Buet, 382/87, Colect., p. 1235), como o método de venda por correspondencia.

51

Daqui resulta que um monopólio, conferido aos farmacêuticos, para a comercialização de medicamentos ou de outros produtos, pelo facto de canalizar as vendas, é susceptível de afectar as possibilidades de comercialização dos produtos importados e pode, nessas condições, constituir uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, na acepção do artigo 30.° do Tratado.

52

Todavia, a existência de um monopólio dos farmacêuticos pode ser justificada por um dos interesses gerais mencionados no artigo 36.° do Tratado, entre os quais figura a protecção da saúde e a vida das pessoas. Além disso, sendo, em princípio, indistintamente aplicável aos produtos nacionais e aos produtos importados, este monopólio pode também ser justificado pela protecção dos consumidores que, segundo a jurisprudência do Tribunal, figura entra as exigências imperativas que podem justificar uma medida susceptível de entravar o comércio intracomunitário (acórdão de 11 de Maio de 1989, Wurmser, n.° 10, 25/88, Colect., p. 1105).

53

Na ausência de harmonização das regras relativas à distribuição tanto dos medicamentos como dos produtos chamados «parafarmacêuticos», compete aos Estados-membros escolher a que nível pretendem garantir a protecção da saúde pública.

54

No que diz respeito aos medicamentos na acepção da Directiva 65/65, atrás referida, há que ter em consideração a natureza muito especial do produto e do mercado em causa que explica que todos os Estados-membros consagrem, embora segundo várias modalidades, regras restritivas para a sua comercialização e, em especial, um monopólio, mais ou menos alargado da sua venda a retalho reservado aos farmacêuticos, devido às garantias que estes últimos devem oferecer e às informações que devem estar em condições de fonecer ao consumidor.

55

Todavia, convém observar que, embora na parte mencionada do preâmbulo da Directiva 85/432, atrás referida, o Conselho verifique e, por conseguinte, reconheça a existência nos Estados-membros de um monopólio dos farmacêuticos, não o definiu, porque esse monopólio não é uma noção de direito comunitário.

56

Daqui resulta que, embora, em princípio, os Estados-membros possam reservar a venda a retalho dos produtos que são abrangidos pela definição comunitária do medicamento aos farmacêuticos e, embora, nessas condições, o seu monopólio possa, em relação a esses produtos, ser admitido como constituindo uma forma adequada de protecção da saúde pública, a prova contrária pode ser feita em relação a determinados medicamentos, cuja utilização não faz correr perigos sérios à saúde pública e em relação aos quais a sujeição ao monopólio dos farmacêuticos aparece manifestamente desproporcionada, quer dizer, contrária aos princípios definidos pelo Tribunal relativamente à interpretação dos artigos 30.° e 36.° do Tratado.

57

No que diz respeito a outros produtos, como os chamados «parafarmacêuticos», que podem ser muito diversos, se o monopólio da sua comercialização for conferido aos farmacêuticos, a necessidade desse monopólio, para a protecção da saúde pública ou dos consumidores, deve, independentemente da qualificação dos produtos no direito nacional, ser demonstrada em cada caso e é ainda necessário que estes dois objectivos não possam ser atingidos por medidas menos restritivas do comércio intracomunitário.

58

Tratando-se, em especial, de produtos do tipo daqueles que são objecto do litígio no processo principal, apresentados, nomeadamente, como permitindo perder peso, favorecer determinadas funções orgânicas, tais como a digestão, ou lutar contra certas sensações ou estados, como a fadiga, devem, nos casos em que não são abrangidos pela definição comunitária de medicamento, ser tomados em consideração os perigos reais que podem apresentar para a saúde pública, de um modo geral ou em determinadas condições de utilização, e do risco de erro em que podem induzir um consumidor medianamente informado.

59

Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar, tendo em conta estes critérios, a fundamentação das acusações que lhe compete apreciar.

60

Assim, há que responder às questões relativas ao monopólio dos farmacêuticos do seguinte modo:

no estádio actual do desenvolvimento do direito comunitário, a fixação das regras relativas à distribuição dos produtos farmacêuticos continua a caber aos Estados-membros, desde que sejam respeitadas as disposições do Tratado e, designadamente, as relativas à livre circulação de mercadorias;

um monopólio da distribuição de medicamentos ou de outros produtos conferido aos farmacêuticos pode constituir um entrave às importações;

o facto de um Estado-membro optar por reservar a respectiva distribuição aos farmacêuticos, constitui um entrave que, em princípio e salvo prova em contrário, se justifica no que respeita aos medicamentos, nos termos da Directiva 65/65;

no que respeita aos outros produtos, seja qual for a sua qualificação no direito nacional, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se o monopólio conferido aos farmacêuticos para a sua comercialização é necessário para a protecção da saúde pública ou dos consumidores e se esses dois objectivos não podem ser alcançados através de medidas menos restritivas do comércio intracomunitário.

Quanto à quarta questão prejudicial

61

Através da quarta questão prejudicial, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se a Directiva 74/329, atrás referida, se opõe a que um Estados-membro restrinja o comércio de um produto como a goma de guar que figura no seu anexo 1 e, no caso de resposta negativa, a que condições essa restrição deve obedecer face ao direito comunitário.

62

A Directiva 74/329 tem por único objectivo a aproximação das legislações nacionais respeitantes aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser adicionados aos géneros alimentícios para os tratar. As medidas que podem ser adoptadas pelos Estados-membros em relação às substâncias enumeradas no seu anexo 1, quando forem utilizadas para outro fim, encontram-se, deste modo, fora do seu âmbito de aplicação.

63

A goma de guar, que está em causa no litígio no processo principal, entra nesta última hipótese. Com efeito, segundo as observações de J. Delattre perante o Tribunal de Justiça, entre os onze produtos que estão em causa nas acusações que lhe são feitas, só o produto «Zéro 3» é composto de goma de guar e este produto «cria uma sensação de saciedade que permite comer menos».

64

Daqui resulta que a compatibilidade com o direito comunitário de restrições ao comércio de um produto como o «Zéro 3» deve ser apreciado no âmbito dos artigos 30.° e 36.° do Tratado.

65

Uma medida pela qual um Estado-membro submete uma substância como a goma de guar, quando é utilizada num método destinado a conseguir a perda de peso, a uma autorização de colocação no mercado e ao monopólio dos farmacêuticos, independentemente de qual seja a qualificação desse produto no direito nacional, pode constituir um entrave às importações.

66

Relativamente aos artigos 30.° e 36.° do Tratado, esse entrave é, todavia, admissível dentro dos limites e pelos motivos recordados mais acima a propósito do monopólio dos farmacêuticos. Para apreciar, na hipótese em que o produto composto da goma de guar não é um medicamento na acepção da Directiva 65/65, atrás referida, se esse entrave é justificado, convém, em especial, tomar em consideração o risco que pode envolver uma perda de peso importante sem vigilância especial, bem como o risco de erro para o consumidor que, pelo facto da apresentação ou do acondicionamento do produto, pode, subjectivamente, atribuir-lhe propriedades especiais.

67

Deste modo há que responder à quarta questão que a Directiva 74/329 e os artigos 30.° e 36.° do Tratado CEE devem ser interpretados no sentido de que urna medida através da qual um Estado-membro sujeita um produto como a goma de guar, quando utilizada num método visando a redução do peso, a uma autorização de colocação no mercado e ao monopólio dos farmacêuticos, independentemente da qualificação desse produto no direito nacional, não cabe no âmbito de aplicação desta directiva, mas pode constituir um entrave às importações. Quando o produto em causa não for um medicamento na acepção da Directiva 65/65, tal medida só é admissível, à luz do direito comunitário, se for necessária para efeitos de protecção da saúde pública ou do consumidor e proporcionada a tais objectivos.

Quanto às despesas

68

As despesas efectuadas pelo Governo francês, Governo italiano e a Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdiconal nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo juiz de instrução no tribunal de grande instance de Nice, por despacho de 12 de Dezembro de 1988, declara:

 

1)

A Directiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de Janeiro de 1965, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às especialidades farmacêuticas, não dá qualquer definição de doença.

 

2)

a)

Um produto apresentado como destinando-se a favorecer certas funções orgânicas pode caber no âmbito de aplicação da definição comunitária de medicamento dada pelo artigo 1.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Directiva 65/65/CEE do Conselho. Para decidir se tal produto deve ser qualificado como medicamento ou como alimento, há que ter em conta as suas propriedades farmacológicas. A circunstância de tal produto ser qualificado como alimento num Estado-membro não impede que se lhe reconheça a qualidade de medicamento no Estado em causa, desde que apresente as respectivas características. As especificidades da legislação relativa às águas minerais naturais não têm qualquer repercussão na definição de medicamento na acepção da Directiva 65/65/CEE.

b)

Nenhum diploma obriga os Estados-membros a consultar os comités consultivos existentes junto das instituições comunitárias, especializados no domínio dos medicamentos, antes de, no direito interno, extraírem as consequências das definições de medicamento dadas pela Directiva 65/65/CEE.

c)

Compete às autoridades nacionais determinar, sob controlo judicial, se, tendo em conta a sua composição, os riscos que o seu consumo prolongado pode provocar ou os seus efeitos secundários e, de um modo geral, o conjunto das suas características, um produto apresentado como destinando-se a combater determinadas sensações ou determinados estados como a fome, a sensação de peso nas pernas, o cansaço ou o prurido constitui ou não um medicamento.

d)

Um produto pode ser considerado um medicamento com fundamento na sua apresentação, desde que a sua forma e o seu acondicionamento sejam bastante semelhantes aos de um medicamento e que, em especial, a sua embalagem e a literatura que o acompanham invoquem investigações de laboratórios farmacêuticos, métodos ou substâncias desenvolvidas por médicos ou mesmo determinados depoimentos de médicos pronunciando-se a favor das qualidades desse produto. A menção de que o produto não é um medicamento é uma indicação útil que o juiz nacional pode ter em conta, mas não é, por si só, determinante.

 

3)

No estádio actual do desenvolvimento do direito comunitário, a fixação das regras relativas à distribuição dos produtos farmacêuticos continua a caber aos Estados-membros, desde que sejam respeitadas as disposições do Tratado e, designadamente, as relativas à livre circulação de mercadorias.

Um monopólio da distribuição de medicamentos ou de outros produtos conferido aos farmacêuticos pode constituir um entrave às importações.

O facto de um Estado-membro optar por reservar a respectiva distribuição aos farmacêuticos, constitui um entrave que, em princípio e salvo prova em contrário, se justifica no que respeita aos medicamentos, nos termos da Directiva 65/65/CEE do Conselho.

No que respeita aos outros produtos, seja qual for a sua qualificação no direito nacional, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se o monopólio conferido aos farmacêuticos para a sua comercialização é necessário para a protecção da saúde pública ou dos consumidores e se esses objectivos não podem ser alcançados através de medidas menos restritivas do comércio intracomunitário.

 

4)

A Directiva 74/329/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1974, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos emulsionantes, estabilizadores, espessantes e gelificantes que podem ser utilizados nos géneros alimentícios e os artigos 30.° e 36.° do Tratado CEE devem ser interpretados no sentido de que uma medida através da qual um Estado-membro sujeita um produto como a goma de guar, quando utilizada num método visando a redução do peso, a uma autorização de colocação no mercado e ao monopólio dos farmacêuticos, independentemente da qualificação desse produto no direito nacional, não cabe no âmbito de aplicação desta directiva, mas pode constituir um entrave às importações. Quando o produto em causa não for um medicamento na acepção da Directiva 65/65/CEE, tal medida só é admissível, à luz do direito comunitário, se for necessária para efeitos de protecção da saúde pública ou do consumidor e proporcionada a tais objectivos.

 

Moitinho de Almeida

Rodríguez Iglesias

Slynn

Grévisse

Zuleeg

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 21 de Março de 1991.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Quinta Secção

J.C. Moitinho de Almeida


( *1 ) Língua do processo: francês.

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