ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

5 de fevereiro de 2015 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Precursores de drogas — Vigilância do comércio entre os Estados‑Membros — Regulamento (CE) n.o 273/2004 — Vigilância do comércio entre a União Europeia e os países terceiros — Regulamento (CE) n.o 111/2005 — Comércio dos medicamentos que contêm efedrina ou pseudoefedrina — Conceito de ‘substância inventariada’ — Composição — Exclusão dos medicamentos enquanto tais ou só dos que contêm substâncias inventariadas compostos de tal modo que essas substâncias não podem ser facilmente extraídas — Diretiva 2001/83/CE — Conceito de ‘medicamento’»

Nos processos apensos C‑627/13 e C‑2/14,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), por decisões de 22 de outubro e 5 de dezembro de 2013, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 2 de dezembro de 2013 e 3 de janeiro de 2014, nos processos penais contra

Miguel M. (C‑627/13),

e

Thi Bich Ngoc Nguyen,

Nadine Schönherr (C‑2/14),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, C. Vajda, A. Rosas, E. Juhász e D. Šváby (relator), juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof, por H. Range, na qualidade de agente,

em representação do Governo espanhol, por L. Banciella Rodríguez‑Miñón, na qualidade de agente,

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e A. P. Antunes, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por T. Maxian Rusche e K. Talabér‑Ritz, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar as causas sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 273/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, relativo aos precursores de drogas (JO L 47, p. 1), e do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 111/2005 do Conselho, de 22 de dezembro de 2004, que estabelece regras de controlo do comércio de precursores de drogas entre a Comunidade e países terceiros (JO 2005, L 22, p. 1).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de recursos de revista («Revision») interpostos contra decisões de tribunais penais alemães que condenaram M. M., T. Nguyen e N. Schönherr pela participação, como autor ou cúmplice, no comércio ilícito de um «precursor» destinado a ser utilizado no fabrico ilícito de estupefacientes.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

Sob a epígrafe «Substâncias frequentemente utilizadas no fabrico ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas», o artigo 12.o da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, celebrada em Viena, em 20 de dezembro de 1988 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1582, n.o 1‑27627), e aprovada pela Comunidade pela Decisão 90/611/CEE do Conselho, de 22 de outubro de 1990 (JO L 326, p. 56, a seguir «Convenção das Nações Unidas de 1988»), dispõe, no n.o 1, que «[a]s Partes adotam as medidas que entenderem adequadas a fim de prevenir o extravio de substâncias compreendidas nas Tabelas I e II utilizadas no fabrico ilícito de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas e cooperam entre si para esse fim».

4

O artigo 12.o, n.o 14, dessa Convenção prevê:

«As disposições do presente artigo não se aplicam aos preparados farmacêuticos nem a outros preparados contendo substâncias compreendidas nas Tabelas I ou II e que sejam compostos de tal forma que essas substâncias não possam ser facilmente utilizadas ou recuperadas por meios de aplicação expedita.»

5

A efedrina e a pseudoefedrina fazem parte das substâncias enumeradas na tabela I da Convenção das Nações Unidas de 1988.

Direito da União

Diretiva 2001/83/CE

6

Como resulta dos seus considerandos 2 e 3, a Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1901/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 (JO L 378, p. 1, a seguir «Diretiva 2001/83»), tem por objetivo essencial a proteção da saúde pública sem que a prossecução desse objetivo possa travar o desenvolvimento da indústria farmacêutica e o comércio de medicamentos na União Europeia.

7

Os considerandos 6, 29, 32 e 35 desta diretiva têm a seguinte redação:

«(6)

Para reduzir as disparidades que subsistem, importa, por um lado, determinar as regras relativas ao controlo de medicamentos e, por outro lado, definir as tarefas que incumbem às autoridades competentes dos Estados‑Membros para assegurar o respeito das disposições legais.

[...]

(29)

Importa harmonizar as condições de fornecimento dos medicamentos ao público.

[...]

(32)

Importa, por conseguinte, numa primeira fase, harmonizar os princípios básicos aplicáveis à classificação em matéria de fornecimento de medicamentos na Comunidade ou no Estado‑Membro em questão, com base nos princípios já estabelecidos pelo Conselho da Europa, bem como nos trabalhos de harmonização realizados no âmbito das Nações Unidas no que respeita aos estupefacientes e aos psicotrópicos.

[...]

(35)

É necessário exercer um controlo de toda a cadeia de distribuição dos medicamentos, desde o fabrico ou importação na Comunidade até ao fornecimento ao público, por forma a garantir que estes sejam conservados, transportados e manipulados em condições adequadas. As disposições que importa adotar para este efeito vão facilitar consideravelmente a retirada de produtos defeituosos do mercado e permitir combater mais eficazmente as contrafações.»

8

O artigo 1.o, n.o 2, desta diretiva dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

2)

Medicamento:

a)

Toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças em seres humanos; ou

b)

Toda a substância ou associação de substâncias que possa ser utilizada ou administrada em seres humanos com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas ao exercer uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, ou a estabelecer um diagnóstico médico».

9

O artigo 2.o da referida diretiva, que faz parte do título II da mesma, intitulado «Âmbito de aplicação», dispõe, no n.o 2:

«Em caso de dúvida, se, tendo em conta a globalidade das suas características, um produto corresponder simultaneamente à definição do medicamento e à definição de um produto regido por outras disposições legislativas comunitárias, aplicam‑se as outras disposições da presente diretiva.»

10

O artigo 6.o, n.o 1, da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«1.   Nenhum medicamento pode ser introduzido no mercado de um Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida, pelas autoridades competentes desse Estado‑Membro, uma autorização de introdução no mercado, nos termos da presente diretiva, ou sem que tenha sido concedida uma autorização nos termos do Regulamento (CE) n.o 726/2004 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e de fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Medicamentos (JO L 136, p. 1)], conjugado com o Regulamento […] n.o 1901/2006 [...]»

11

No título IV da Diretiva 2001/83, com a epígrafe «Fabrico e importação», os artigos 40.° a 53.° indicam que os Estados‑Membros tomarão todas as medidas necessárias para que o fabrico dos medicamentos no seu território esteja dependente da titularidade de uma autorização, que é igualmente exigida quando os medicamentos sejam fabricados para a exportação, e definem os requisitos e as modalidades de atribuição dessa autorização.

12

O artigo 71.o, n.o 1, da referida diretiva indica:

«Estão sujeitos a receita médica os medicamentos que:

[...]

sejam com frequência utilizados em quantidade considerável para fins diferentes daquele a que se destinam, se daí puder resultar qualquer risco direto ou indireto para a saúde,

[...]»

13

Os artigos 77.° a 81.° desta mesma diretiva especificam que os Estados‑Membros adotarão todas as disposições necessárias para que a distribuição por grosso de medicamentos esteja condicionada à posse de uma autorização de exercício da atividade de grossista de medicamentos e fixam os requisitos e as modalidades de atribuição dessa autorização.

14

O artigo 80.o, alíneas b) e c), da Diretiva 2001/83 prevê:

«O titular da autorização de distribuição deve satisfazer, no mínimo, as seguintes condições:

[...]

b)

Aprovisionar‑se de medicamentos apenas junto de pessoas que possuam a autorização de distribuição ou estejam dispensadas dessa autorização por força do n.o 3 do artigo 77.o;

c)

Apenas fornecer medicamentos a pessoas que possuam a autorização de distribuição ou estejam habilitadas a fornecer medicamentos ao público no Estado‑Membro em causa».

Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005

15

A fim de evitar o extravio de substâncias frequentemente utilizadas no fabrico ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas e de respeitar as exigências previstas no artigo 12.o da Convenção das Nações Unidas de 1988, o legislador da União adotou medidas de vigilância e de controlo internos e externos respetivamente definidas pelos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005.

¾ Regulamento n.o 273/2004

16

O considerando 13 do Regulamento n.o 273/2004 enuncia:

«Inúmeras outras substâncias, muitas delas [legalmente] comercializadas em grandes quantidades, foram identificadas como sendo precursores do fabrico ilegal de drogas sintéticas e de substâncias psicotrópicas. Submeter estas substâncias aos mesmos controlos estritos a que são submetidas as substâncias referidas no anexo [I] criaria um obstáculo desnecessário ao comércio, implicando licenças para operar e documentação relativa às transações. Por conseguinte, deve ser estabelecido um mecanismo mais flexível a nível comunitário, através do qual as autoridades competentes dos Estados‑Membros sejam notificadas dessas transações.»

17

O artigo 2.o, alínea a), deste regulamento estabelece:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

a)

‘Substância inventariada’: qualquer substância referida no anexo I, incluindo as misturas e os produtos naturais que contêm essas substâncias. Excluem‑se os medicamentos [definidos na Diretiva 2001/83], as preparações farmacêuticas, as misturas, os produtos naturais ou outras preparações com substâncias inventariadas cujo modo de composição impeça uma fácil utilização dessas substâncias ou a sua extração por meios facilmente exequíveis ou economicamente viáveis».

18

O artigo 3.o, n.os 2 e 3, do mesmo regulamento tem a seguinte redação:

«2.   Será requerido aos operadores que obtenham uma licença, a ser concedida pelas autoridades competentes, antes de poderem possuir ou colocar no mercado as substâncias inventariadas referidas na categoria 1 do anexo I [...]

3.   Qualquer operador titular da licença prevista no n.o 2 apenas fornecerá as substâncias inventariadas da categoria 1 do anexo I a pessoas singulares ou coletivas que detenham essa licença e tenham assinado uma declaração de cliente, nos termos do n.o 1 do artigo 4.o»

19

O anexo I do Regulamento n.o 273/2004 estabelece a lista restritiva das «substâncias inventariadas» na aceção do artigo 2.o, alínea a), do mesmo regulamento, entre as quais figuram, na categoria 1, a efedrina e a pseudoefedrina.

¾ Regulamento n.o 111/2005

20

A definição do conceito de «substância inventariada» constante do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 111/2005 é, em substância, idêntica à do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 273/2004.

21

O artigo 6.o, n.o 1, deste regulamento dispõe que «[o]s operadores estabelecidos na Comunidade que participem na importação, na exportação ou em atividades intermédias que envolvam substâncias inventariadas constantes da categoria 1 do anexo, com exceção dos despachantes oficiais e dos transportadores que atuem exclusivamente nessa qualidade, devem possuir uma licença. [...]»

22

O anexo do Regulamento n.o 111/2005 para o qual remete o artigo 2.o, alínea a), do mesmo regulamento é também, em substância, idêntico ao anexo I do Regulamento n.o 273/2004.

Regulamentos (UE) n.o 1258/2013 e (UE) n.o 1259/2013

23

A definição do conceito de «substância inventariada» adotada, respetivamente, nos artigos 2.°, alínea a), dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 foi alterada pelos Regulamentos (UE) n.o 1258/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de novembro de 2013 (JO L 330, p. 21), e (UE) n.o 1259/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de novembro de 2013 (JO L 330, p. 30). No entanto, dado que só entraram em vigor em 30 de dezembro de 2013, estes regulamentos não são aplicáveis aos litígios objeto dos processos principais.

Direito alemão

24

O § 1, ponto 1, da Lei da fiscalização do comércio de precursores que podem ser utilizados no fabrico ilícito de estupefacientes (Gesetz zur Überwachung des Verkehrs mit Grundstoffen, die für die unerlaubte Herstellung von Betäubungsmitteln missbraucht werden können, a seguir «GÜG») define o conceito de «precursor» como uma «substância inventariada» na aceção do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 273/2004, conjugado com o anexo I do mesmo, e do artigo 2.o, alínea a), do Regulamento n.o 111/2005, conjugado com o anexo deste último.

25

O § 3 da GÜG dispõe que «é proibido possuir, fabricar, comercializar ou, sem comercializar, importar ou exportar, fazer transitar ou transportar no âmbito de aplicação da presente lei, vender, ceder um precursor destinado a ser utilizado no fabrico ilícito de estupefacientes, ou, de algum modo, permitir a outrem que disponha efetivamente, adquira ou obtenha essa substância de qualquer modo».

26

O § 19 da GÜG determina:

«1)   É punido com pena de prisão até cinco anos, ou com multa, quem

1.

violando o disposto no § 3, possuir, fabricar, comercializar ou, sem comercializar, importar ou exportar, fizer transitar ou transportar no âmbito de aplicação da presente lei, vender, ceder um precursor, ou, de algum modo, permitir a outrem que disponha efetivamente, adquira ou obtenha essa substância de qualquer modo.

[...]»

Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

27

Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2014, os processos C‑627/13 e C‑2/14 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

28

No processo Nguyen e Schönherr (C‑2/14), o órgão jurisdicional de reenvio, no pedido de decisão prejudicial, requereu a aplicação da tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

29

Não havendo urgência, este pedido foi indeferido pelo despacho do presidente do Tribunal de Justiça, Nguyen e Schönherr (C‑2/14, EU:C:2014:1999).

30

O presidente do Tribunal de Justiça decidiu, respetivamente, em 8 de janeiro e 20 de janeiro de 2014, que os processos C‑627/13 e C‑2/14 deviam ser julgados prioritariamente nos termos do artigo 53.o, n.o 3, do Regulamento de Processo.

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑627/13

31

Através de M. M., uma empresa sediada em Bruxelas (Bélgica), entre 15 de junho de 2007 e 6 de outubro de 2008, enviou para Belize e para o México comprimidos de efedrina fabricados legalmente para serem utilizados como medicamentos. No entanto, desde antes do início dos envios, M. M. sabia que esses comprimidos, com um peso total de 4,179 quilogramas de cloridrato de efedrina, na realidade, eram destinados à produção de metanfetamina.

32

Por decisão de 23 de janeiro de 2013, o Landgericht Krefeld, com fundamento no § 19, n.o 1, ponto 1, da GÜG, conjugado com os §§ 1, ponto 1, e 3 dessa lei, condenou M. M. numa pena de três anos e três meses de prisão, por comércio de «precursores» destinados a serem utilizados no fabrico ilícito de estupefacientes e proferiu, relativamente a ele, uma decisão de compensação e de perda de bens.

33

No âmbito do recurso de revista («Revision») interposto por M. M. dessa decisão, o Bundesgerichtshof salienta que o caráter ilícito dos factos em causa depende de saber se os medicamentos em questão, que é facto assente conterem uma substância abrangida pela categoria 1 dos anexos pertinentes dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005, estão excluídos do âmbito de aplicação desses regulamentos.

34

A este propósito, o Bundesgerichtshof salienta que o conceito de «precursor» na aceção do § 1, ponto 1, da GÜG é definido por remissão para o conceito de «substância inventariada» definido no artigo 2.o, alínea a), dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 e que a formulação desta última disposição não é unívoca.

35

A análise gramatical da versão em língua alemã desta disposição pode antes indicar que os medicamentos só estão excluídos do âmbito de aplicação dos referidos regulamentos se forem compostos de tal modo que as substâncias inventariadas que contêm não possam ser facilmente utilizadas ou extraídas através de meios acessíveis e economicamente viáveis, como já foi interpretado por certos tribunais alemães. As outras versões linguísticas não dão, aliás, nenhuma indicação determinante.

36

Inversamente, a interpretação histórica e teleológica desses regulamentos aponta mais no sentido da exclusão dos medicamentos enquanto tais da definição das «substâncias inventariadas», o que resulta, por um lado, da Convenção das Nações Unidas de 1988, a que os Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 dão execução, e, por outro, das diretivas que antecederam esses regulamentos. O mesmo acontece com a interpretação adotada pela Comissão Europeia em certos documentos não vinculativos e nas propostas de alteração dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005.

37

Nestas circunstâncias, o Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os medicamentos, conforme definidos pela Diretiva [2001/83], que contêm substâncias inventariadas nos Regulamentos [n.o 273/2004 e n.o 111/2005] estão sempre excluídos do âmbito de aplicação desses regulamentos, por força do artigo 2.o, alínea a), dos mesmos, ou essa exclusão só é admissível se os medicamentos tiverem sido compostos de forma a que as substâncias inventariadas não possam ser facilmente utilizadas ou extraídas através de meios acessíveis e economicamente viáveis?»

Processo C‑2/14

38

Entre agosto de 2010 e março de 2011, T. Nguyen adquiriu, por oito vezes, direta ou indiretamente, na Alemanha e na Hungria, grandes quantidades de medicamentos para produzir um estupefaciente, a metanfetamina. Esses medicamentos, em seguida transportados para a República Checa, continham, no total, 29,5 quilogramas de pseudoefedrina, a qual permitiu produzir 6,5 quilogramas de metanfetamina. N. Schönherr participou, com pleno conhecimento de causa, no transporte de parte desses medicamentos da Alemanha para a República Checa.

39

Por decisão de 13 de fevereiro de 2013, o Landgericht München II, com fundamento nos §§ 19, n.o 1, ponto 1, e 3 da GÜG, condenou T. Nguyen numa pena de seis anos e seis meses de prisão, por comércio ilícito de um «precursor» destinado a ser utilizado no fabrico ilícito de estupefacientes. Por sua vez, N. Schönherr foi condenada, com fundamento nos §§ 19, n.o 1, ponto 1, e 3 da GÜG e § 27 do Código Penal (Strafgesetzbuch), numa pena de dez meses de prisão, suspensa com sujeição ao regime de prova, por cumplicidade no tráfico ilícito de um precursor destinado a ser utilizado no fabrico ilícito de estupefacientes.

40

T. Nguyen e N. Schönherr interpuseram recurso de revista («Revision») dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. T. Nguyen alegou designadamente que os medicamentos em causa não podiam ser qualificados de «precursores» na aceção dos §§ 19, n.o 1, ponto 1, e 3 da GÜG.

41

Por motivos idênticos aos aduzidos no seu despacho de 22 de outubro de 2013, o Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial, em substância, idêntica à apresentada no processo C‑627/13.

Quanto à questão prejudicial

42

Com a sua questão nos dois processos principais, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 devem ser interpretados no sentido de que um medicamento, conforme definido no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83, que contém uma substância inventariada no anexo I do Regulamento n.o 273/2004 e no anexo do Regulamento n.o 111/2005, e que pode ser facilmente utilizada ou extraída através de meios acessíveis e economicamente viáveis, deve ser qualificado de «substância inventariada» ou de que um «medicamento» não pode, como tal, ser qualificado de «substância inventariada».

43

A título preliminar, cumpre recordar que o conceito de «substância inventariada» é definido nos artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 como qualquer substância enumerada nos anexos pertinentes desses regulamentos, incluindo misturas e produtos naturais que contenham tais substâncias, exceto medicamentos, tal como definidos pela Diretiva 2001/83, preparações farmacêuticas e misturas, produtos naturais e outras preparações que contenham substâncias inventariadas compostas de forma a que tais substâncias não possam ser facilmente utilizadas ou extraídas através de meios acessíveis e economicamente viáveis.

44

Decorre dessa definição que o conceito de «substância inventariada», para o qual a GÜG remete, não permite, como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, determinar se a exclusão dos «medicamentos» na aceção da Diretiva 2001/83 da mesma definição está condicionada pelo facto de as substâncias elencadas nos anexos pertinentes dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 e contidas nestes «medicamentos» não poderem ser facilmente utilizadas ou extraídas por meios facilmente exequíveis ou economicamente viáveis.

45

A comparação entre as diferentes versões linguísticas destas disposições mostra que certas versões, designadamente nas línguas alemã, grega, inglesa, neerlandesa, eslovaca e sueca, podem permitir, através da sua análise gramatical, considerar que os «medicamentos» na aceção da Diretiva 2001/83 só estão excluídos do conceito de «substância inventariada» se forem compostos de forma a que as substâncias elencadas nos anexos pertinentes dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 que eles contêm não possam ser facilmente utilizadas ou extraídas por meios facilmente exequíveis ou economicamente viáveis.

46

Em contrapartida, outras versões linguísticas como as versões em línguas francesa, italiana e portuguesa não permitem essa interpretação e excluem, enquanto tais, os «medicamentos» na aceção do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83 da definição de «substância inventariada» na aceção dos artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005, uma vez que o último membro de frase desta última definição, a saber, «com substâncias inventariadas cujo modo de composição impeça uma fácil utilização dessas substâncias ou a sua extração por meios facilmente exequíveis ou economicamente viáveis», não pode, devido a uma interpretação assente numa análise gramatical, reportar‑se, designadamente, aos medicamentos.

47

Além disso, o artigo 12.o, n.o 14, da Convenção das Nações Unidas de 1988, que é aplicada na ordem jurídica da União pelos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005, não confirma uma ou outra interpretação.

48

Em tais circunstâncias, segundo jurisprudência constante, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir como ponto de partida único para a interpretação dessa disposição, nem ser‑lhe atribuído, a esse propósito, um caráter prioritário em relação a outras versões linguísticas. As disposições do direito da União devem ser interpretadas e aplicadas de maneira uniforme à luz das versões aprovadas em todas as línguas da União (acórdão Ivansson e o., C‑307/13, EU:C:2014:2058, n.o 40 e jurisprudência aí referida).

49

Em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto do direito da União, a disposição em causa deve ser interpretada em função do seu contexto e dos objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (v., neste sentido, acórdão Kirin Amgen, C‑66/09, EU:C:2010:484, n.o 41 e jurisprudência aí referida).

50

A remissão explícita efetuada pelo legislador da União, nos artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005, para o conceito de «medicamento» conforme definido pela Diretiva 2001/83 assume, a este respeito, uma importância significativa na interpretação dessas disposições.

51

Para o efeito, há que ter em consideração que este conceito constitui, relativamente aos outros conceitos utilizados nessa disposição, a saber, os conceitos de «preparações farmacêuticas», de «misturas», de «produtos naturais» e de «outras preparações», o único que é objeto de uma definição precisa noutro texto legislativo da União, no caso, a Diretiva 2001/83, que tem por objeto regular a produção, a distribuição e a utilização dos medicamentos a que se reporta.

52

Ao mesmo tempo, cumpre observar que, através dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005, o legislador da União define pormenorizadamente o regime aplicável aos precursores de droga.

53

Nestas condições e tendo devidamente em conta as finalidades dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 adotados a fim de combater eficazmente o extravio de substâncias frequentemente utilizadas no fabrico ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas instaurando um sistema de vigilância da comercialização dessas substâncias que prevê sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas, a interpretação do conceito de «substância inventariada» não pode ser efetuada sem ter em consideração o regime jurídico aplicável aos medicamentos, conforme definidos pela Diretiva 2001/83, incluindo a finalidade e o âmbito de aplicação da mesma.

54

A este propósito, no que respeita ao regime jurídico aplicável aos medicamentos no mercado interno, deve salientar‑se que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 prevê, designadamente, que nenhum medicamento pode ser introduzido no mercado de um Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida uma autorização de introdução no mercado pela autoridade competente desse Estado‑Membro, em conformidade com esta diretiva, ou sem que tenha sido concedida uma autorização emitida em conformidade com o procedimento centralizado previsto pelo Regulamento n.o 726/2004 para os medicamentos referidos no anexo deste (acórdão Comissão/Polónia, C‑185/10, EU:C:2012:181, n.o 26).

55

Este dispositivo de autorização prévia é, aliás, completado por um sistema completo de regras aplicáveis à produção, à importação e à distribuição por grosso de medicamentos, estando o exercício dessas atividades, como decorre, designadamente, dos artigos 40.° e 77.° da Diretiva 2001/83, dependente da titularidade de uma autorização, à semelhança da licença exigida para possuir e colocar substâncias inventariadas no mercado, em aplicação do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 273/2004.

56

No que respeita à distribuição por grosso de medicamentos, o artigo 80.o, alíneas b) e c), da Diretiva 2001/83 exige, em especial, que o titular da autorização se aprovisione de medicamentos apenas junto de pessoas que possuam a autorização de distribuição ou estejam dispensadas dessa autorização mas também que forneça apenas medicamentos a pessoas que possuam a autorização de distribuição ou estejam habilitadas a fornecer medicamentos ao público no Estado‑Membro em causa. Esse regime mostra‑se equivalente ao estabelecido pelo artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento n.o 273/2004.

57

Além disso, no que respeita mais especificamente aos medicamentos que contêm uma substância inventariada no anexo I do Regulamento n.o 273/2004 que possa ser facilmente utilizada ou extraída através de meios acessíveis e economicamente viáveis e como salientam com justeza o Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof, o Governo português e a Comissão, o artigo 71.o, n.o 1, segundo travessão, da Diretiva 2001/83 dispõe que estão sujeitos a receita médica os medicamentos que «sejam com frequência utilizados em quantidade considerável para fins diferentes daquele a que se destinam, se daí puder resultar qualquer risco direto ou indireto para a saúde», permitindo assim um controlo ainda mais estrito desses medicamentos.

58

Assim sendo, os regimes de autorização e de controlo, instituídos pelo legislador da União, aplicáveis às substâncias inventariadas e aos medicamentos nos termos, respetivamente, do Regulamento n.o 273/2004 e da Diretiva 2001/83 são, no essencial, similares.

59

Ora, não resulta de nenhum elemento do Regulamento n.o 273/2004, na versão aplicável à data dos factos na origem dos processos principais, que o mesmo tivesse em vista submeter os medicamentos que contêm uma substância inventariada no seu anexo I que possa ser facilmente utilizada ou extraída através de meios acessíveis e economicamente viáveis a um regime suplementar de autorização e de controlo distinto do aplicável aos medicamentos por força da Diretiva 2001/83.

60

Isto é confirmado pelo considerando 13 do Regulamento n.o 273/2004, do qual resulta que se deve limitar os obstáculos desnecessários ao comércio das substâncias legalmente comercializadas em grandes quantidades, mas contudo identificadas como precursores do fabrico ilegal de drogas sintéticas e de substâncias psicotrópicas.

61

No que respeita ao Regulamento n.o 111/2005, é certo que há que referir que o mesmo estabelece um conjunto de regras precisas que não encontram correspondência na Diretiva 2001/83 relativa aos medicamentos. Em especial, a secção 5 do capítulo II desse regulamento estabelece um regime específico de autorização e de controlo das exportações de substâncias inventariadas.

62

No entanto, não se pode deduzir apenas desse facto que o legislador da União pretendeu submeter os medicamentos que contêm uma substância inventariada no anexo do Regulamento n.o 111/2005 e que possa ser facilmente utilizada ou extraída através de meios acessíveis e economicamente viáveis não só à Diretiva 2001/83 mas também a este regulamento.

63

A análise sistemática do regime dos precursores de drogas também remete para essa conclusão. Com efeito, resulta dos artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 que a definição do conceito de «substância inventariada» é idêntica, excluindo assim que medicamentos não abrangidos pelo Regulamento n.o 273/2004 no mercado interno o sejam pelo Regulamento n.o 111/2005 no que respeita à sua exportação para países terceiros.

64

É assim, aliás, que decorre dos considerandos 2, 3 e 7 do Regulamento n.o 1259/2013, que altera o Regulamento n.o 111/2005, por um lado, que o legislador da União considera que o comércio dos medicamentos, até á entrada em vigor deste regulamento, não era controlado no âmbito do sistema de controlo dos precursores de drogas da União, dado que, sob a égide da legislação anterior, os medicamentos estavam excluídos da definição do conceito de «substância inventariada».

65

Por outro lado, foi igualmente por essa razão que o legislador da União decidiu, no âmbito do Regulamento n.o 1259/2013, submeter exclusivamente os medicamentos que contenham duas substâncias inventariadas, no caso, a efedrina e a pseudoefedrina e os seus sais, ao regime de controlo do comércio dos precursores de drogas entre a União e os países terceiros.

66

Consequentemente, um produto que, como os que estão em causa nos processos principais, corresponde à definição do conceito de «medicamento» na aceção da Diretiva 2001/83 não pode ser qualificado de «substância inventariada» na aceção dos artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005.

67

À luz destas considerações, há que responder à questão submetida que os artigos 2.°, alínea a), respetivamente, dos Regulamentos n.os 273/2004 e 111/2005 devem ser interpretados no sentido de que um medicamento, conforme definido no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83, não pode, enquanto tal, ser qualificado de «substância inventariada», mesmo que contenha uma substância inventariada no anexo I do Regulamento n.o 273/2004 e no anexo do Regulamento n.o 111/2005 e que possa ser facilmente utilizada ou extraída através de meios acessíveis e economicamente viáveis.

Quanto às despesas

68

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

Os artigos 2.°, alínea a), respetivamente, do Regulamento (CE) n.o 273/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, relativo aos precursores de drogas, e do Regulamento (CE) n.o 111/2005 do Conselho, de 22 de dezembro de 2004, que estabelece regras de controlo do comércio de precursores de drogas entre a Comunidade e países terceiros, devem ser interpretados no sentido de que um medicamento, conforme definido no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1901/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, não pode, enquanto tal, ser qualificado de «substância inventariada», mesmo que contenha uma substância inventariada no anexo I do Regulamento n.o 273/2004 e no anexo do Regulamento n.o 111/2005 e que possa ser facilmente utilizada ou extraída através de meios acessíveis e economicamente viáveis.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.