CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 30 de março de 2023 ( 1 )

Processo C‑27/22

Volkswagen Group Italia S.p.A.,

Volkswagen Aktiengesellschaft

contra

Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato,

sendo intervenientes:

Associazione Cittadinanza Attiva Onlus,

Coordinamento delle associazioni per la tutela dell’ambiente e dei diritti degli utenti e consumatori (Codacons)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália)]

«Reenvio prejudicial — Direitos fundamentais — Princípio ne bis in idem — Sanções aplicadas em matéria de práticas comerciais desleais — Condenação penal definitiva proferida num Estado‑Membro — Sanção administrativa pecuniária de natureza penal aplicada noutro Estado‑Membro contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos — Aplicação do princípio ne bis in idem ao cúmulo de procedimentos sancionatórios transfronteiriços — Restrições ao princípio ne bis in idem — Coordenação do cúmulo de procedimentos sancionatórios»

1.

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a aplicação a nível transfronteiriço do artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), num processo que não está relacionado com a livre circulação de pessoas no espaço de liberdade, segurança e justiça.

2.

O caso em apreço caracteriza‑se pela convergência de sanções aplicadas e procedimentos sancionatórios instaurados por parte das autoridades de dois Estados‑Membros, Alemanha e Itália ( 2 ). As condutas punidas cujos efeitos se produzem em ambos os Estados‑Membros (entre outros), são atribuídas a um mesmo grupo de empresas do setor automóvel com sede na Alemanha.

3.

Em litígios desta natureza, o problema da aplicação de restrições ao exercício do direito de beneficiar do princípio ne bis in idem, com base no artigo 52.o da Carta, coloca‑se quando os procedimentos instaurados pelas autoridades de dois Estados‑Membros não decorrem de forma suficientemente coordenada, o que conduz à dualidade de sanções.

4.

Com efeito, o Tribunal de Justiça reconheceu que a coordenação dos processos sancionatórios é um requisito essencial para aceitar tais restrições. Resta saber, no entanto, se é possível (e realista) o cumprimento deste requisito quando há um cúmulo de procedimentos sancionatórios instaurados em dois Estados‑Membros, pelas autoridades competentes em diferentes setores de atividade, e quando não existe um mecanismo jurídico de coordenação das suas intervenções ( 3 ).

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

5.

O artigo 50.o («Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito») dispõe:

«Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei».

6.

O artigo 52.o («Âmbito […] dos direitos […]») prevê:

«1.   Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

[…]»

2. Diretiva 2005/29/CE ( 4 )

7.

Nos termos do artigo 1.o:

«A presente diretiva tem por objetivo contribuir para o funcionamento correto do mercado interno e alcançar um elevado nível de defesa dos consumidores através da aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às práticas comerciais desleais que lesam os interesses económicos dos consumidores.»

8.

O artigo 3.o, n.o 4, dispõe:

«Em caso de conflito entre as disposições da presente diretiva e outras normas comunitárias que regulem aspetos específicos das práticas comerciais desleais, estas últimas prevalecem, aplicando‑se a esses aspetos específicos.»

9.

O artigo 13.o previa:

«Os Estados‑Membros devem determinar as sanções aplicáveis às violações das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. Essas sanções devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»

10.

O mesmo artigo 13.o, após ter sido alterado pela Diretiva (UE) 2019/2161 ( 5 ), com efeitos a partir de 28 de maio de 2022, passou a ter o seguinte teor:

«1.   Os Estados‑Membros estabelecem as regras relativas às sanções aplicáveis em caso de violação das disposições nacionais adotadas nos termos da presente diretiva e tomam todas as medidas necessárias para garantir a sua aplicação. As sanções previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

2.   Os Estados‑Membros asseguram que, na aplicação de uma sanção, são tidos em conta, sempre que for caso disso, os seguintes critérios não exaustivos e indicativos:

[…]

e)

as sanções impostas ao profissional pela mesma infração noutros Estados‑Membros, em situações transfronteiriças caso a informação sobre essas sanções esteja disponível através do mecanismo estabelecido pelo Regulamento (UE) 2017/2394 do Parlamento Europeu e do Conselho[; ( 6 )]

[…]

3.   Os Estados‑Membros asseguram que, aquando da aplicação de sanções nos termos do artigo 21.o do Regulamento (UE) 2017/2394, essas sanções contemplam a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para a aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4 % do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)‑Membro(s) em causa. […]

[…]».

B.   Direito nacional. Decreto Legislativo n.o 206, de 6 de setembro de 2005 ( 7 )

11.

O artigo 20.o, n.o 2, precisa:

«Uma prática comercial é considerada desleal se for contrária à diligência profissional e falsear ou for suscetível de falsear de maneira significativa o comportamento económico, em relação ao produto, do consumidor médio que afeta ou ao qual se destina, ou da pessoa média que é membro do grupo específico de consumidores visado pela referida prática.»

12.

O artigo 20.o, n.o 4, identifica duas categorias de práticas desleais: as práticas enganosas (a que se referem os artigos 21.o, 22.o e 23.o) e as práticas agressivas (a que se referem os artigos 24.o, 25.o e 26.o).

13.

O artigo 27.o, n.o 9, dispõe:

«Paralelamente à medida que proíbe a prática comercial desleal, a autoridade decide aplicar uma sanção pecuniária administrativa de 5000 euros a 5000000 euros, tendo em conta a gravidade e a duração da infração. Em caso de práticas comerciais desleais nos termos do artigo 21.o, n.os 3 e 4, a sanção não pode ser inferior a 50000 euros».

II. Matéria de facto, litígio no processo principal e questões prejudiciais

14.

Através da Decisão n.o 26137, de 4 de agosto de 2016, a AGCM aplicou à Volkswagen Group Italia S.p.A. e à Volkswagen Aktiengesellschaft (a seguir, respetivamente, «VWGI» e «VWAG») uma sanção pecuniária de 5 milhões de euros, por serem culpadas de práticas comerciais desleais referidas nos termos dos artigos 21.o, n.o 1, alínea b), 23.o, n.o 1, alínea d), e 21.o, n.os 3 e 4, do Código do Consumo. Estas disposições transpõem a Diretiva 2005/29 para o direito italiano.

15.

Segundo o despacho de reenvio, as violações imputadas à VWGI e à VWAG pela AGCM referiam‑se a:

comercialização em Itália de veículos com motor a gasóleo dotados de sistemas destinados a alterar a medição das emissões poluentes para efeitos de homologação ( 8 ).

difusão de mensagens publicitárias que, apesar da alteração das medições das emissões, sublinhavam a conformidade dos referidos veículos com os critérios normativos em matéria ambiental.

16.

A VWGI e a VWAG impugnaram a decisão da AGCM no Tribunale Amministrativo Regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália, a seguir «TAR do Lácio»).

17.

Em 2018, após a adoção pela AGCM da Decisão n.o 26137 de 2016, mas antes de o TAR do Lácio se pronunciar sobre a ação intentada, o Ministério Público de Braunschweig notificou à VWAG uma decisão através da qual lhe aplicava, ao abrigo da Gesetz über Ordnungswidrigkeiten (Lei Geral das Contraordenações, a seguir «OWiG»), uma sanção de 1000 milhões de euros ( 9 ).

18.

Esta sanção dizia respeito, designadamente, aos mesmos factos punidos pela AGCM. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o comportamento imputado na Alemanha consistia na:

comercialização a nível mundial (10,7 milhões de veículos no total, 700000 dos quais corresponderam ao mercado italiano) de veículos dotados de sistemas destinados a alterar a medição das emissões poluentes para efeitos de homologação.

difusão de mensagens publicitárias que, apesar da alteração das medições das emissões, declaravam que os referidos veículos eram particularmente respeitadores do ambiente.

19.

A decisão do Ministério Público de Braunschweig tornou‑se definitiva em 13 de junho de 2018, uma vez que a VWAG renunciou ao seu direito de recurso e, além disso, pagou o montante da sanção pecuniária que lhe foi aplicada em 18 de junho de 2018.

20.

Em 3 de abril de 2019, o TAR do Lácio julgou improcedente o recurso interposto pela VWGI e pela VWAG no Acórdão n.o 6920/2019, embora estas duas sociedades tivessem invocado a decisão da Ministério Público de Braunschweig.

21.

Em especial, a VWGI e a VWAG invocaram decisões de órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros, que punham termo a processos internos relativos à alteração das medições das emissões, em virtude de esses factos já terem sido punidos na Alemanha.

22.

O TAR do Lácio não acolheu esse fundamento pois considerou que a base jurídica da sanção aplicada pela AGCM era diferente da base jurídica da sanção proferida na Alemanha e que o princípio ne bis in idem não se opunha à primeira.

23.

A VWGI e a VWAG interpuseram recurso do acórdão proferido pelo TAR do Lácio no Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), que formula as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem as sanções aplicadas em matéria de práticas comerciais desleais, na aceção da legislação nacional de transposição da Diretiva 2005/29/CE, ser consideradas sanções administrativas de natureza penal?

2)

Deve o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que permite confirmar judicialmente e tornar definitiva uma sanção administrativa pecuniária de natureza penal aplicada a uma pessoa coletiva por condutas ilícitas constitutivas de práticas comerciais desleais, condutas essas que deram entretanto lugar a uma condenação penal definitiva proferida noutro Estado‑Membro, no caso de esta última decisão se ter tornado definitiva antes do trânsito em julgado da decisão no processo judicial de impugnação da sanção administrativa pecuniária de natureza penal?

3)

Pode o disposto na Diretiva 2005/29, especialmente os artigos 3.o, n.o 4, e 13.o, n.o 2, alínea e), desta, justificar uma derrogação da proibição de “ne bis in idem” estabelecida no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (posteriormente incorporada no Tratado da União Europeia pelo artigo 6.o TUE) e no artigo 54.o da Convenção de Schengen?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

24.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de janeiro de 2022.

25.

Foram apresentadas observações escritas pela AGCM, pela Associação Codacons ( 10 ), pela VWGI, pelos Governos neerlandês e italiano, bem como pela Comissão Europeia.

26.

Estiveram presentes na audiência realizada em 19 de janeiro de 2023 a AGCM, a VWGI, os Governos holandês e italiano e a Comissão.

IV. Apreciação

A.   Admissibilidade

27.

A AGCM considera que as questões prejudiciais são inadmissíveis com base em dois fundamentos:

O artigo 50.o da Carta e o artigo 54.o da Convenção de Schengen ( 11 ) não são relevantes para efeitos do presente litígio, uma vez que a legislação relativa à responsabilidade das pessoas coletivas com base na qual foi aplicada a sanção alemã não é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

Não há identidade entre os factos que conduziram à aplicação das duas sanções. A decisão alemã pune o comportamento da VWAG que consiste na violação, por negligência, da obrigação de fiscalizar a instalação de um dispositivo que permitiu falsificar os testes relativos às emissões poluentes dos seus veículos. Pelo contrário, a decisão italiana pune a VWAG e a VWGI por não terem informado os consumidores da existência deste dispositivo nos veículos vendidos em Itália.

28.

Nenhum destes dois argumentos se afigura convincente para declarar a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial.

29.

No que respeita ao primeiro, o artigo 51.o, n.o 1, da Carta estabelece que as suas disposições têm por destinatários os Estados‑Membros quando apliquem o direito da União ( 12 ). Uma vez que a decisão da AGCM assenta em disposições do Código do Consumo italiano que transpõem a Diretiva 2005/29, estamos perante um domínio em que um Estado‑Membro aplica o direito da União.

30.

Esta circunstância é suficiente para efeitos da aplicação do artigo 50.o da Carta, independentemente da questão de saber se, além disso, a decisão do Ministério Público alemão foi adotada com base numa norma interna que aplica o direito da União.

31.

De resto, embora a sanção alemã seja diretamente abrangida pela OWiG (uma lei que, em princípio, extravasa o âmbito do direito da União), a mesma pune, em última análise, não só a simples violação formal dos deveres de vigilância, mas, indiretamente, a violação substantiva de normas regulamentares da União no âmbito do sistema de homologação de veículos ( 13 ). A este respeito, aplica igualmente o direito da União e deve, portanto, respeitar a Carta, em especial o seu artigo 50.o

32.

O segundo fundamento no que diz respeito à exceção de inadmissibilidade suscitada pela AGCM, que se refere mais ao mérito do litígio do que às condições de admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, também não pode ser acolhido.

33.

Os factos objeto dos procedimentos sancionatórios italiano e alemão estão estreitamente relacionados na medida em que dizem respeito, em ambos os casos: a) à instalação irregular de um dispositivo que falsifica os testes de emissão e b) da promoção e venda de veículos, com omissão deste facto, noutro Estado‑Membro.

34.

Saber se este nexo é suficiente para apreciar a identidade dos fatos punidos em ambos os processos, é algo que, insisto, diz respeito ao mérito e não às condições de admissibilidade do pedido de decisão prejudicial.

B.   Observações preliminares

35.

Antes de propor uma resposta ao órgão jurisdicional de reenvio, importa fazer dois esclarecimentos sobre as normas que o órgão jurisdicional de reenvio refere na sua terceira questão prejudicial.

36.

De entre estas, nem o artigo 3.o, n.o 4, e o artigo 13.o, n.o 2, alínea e), da Diretiva 2005/29, nem o artigo 54.o do CAAS são aplicáveis no caso em apreço.

37.

Decorre do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 2005/29 ( 14 ), interpretado à luz do seu considerando 10, que a referida diretiva se aplica quando não existam disposições da União particulares que regulem aspetos específicos das práticas comerciais desleais. A disposição refere‑se aos conflitos entre as normas da União e não entre normas nacionais ( 15 ).

38.

O referido artigo é uma manifestação do princípio da especialidade: o procedimento da Diretiva 2005/29 configura‑se como subsidiário relativamente a outros procedimentos mais específicos do direito da União que punem as práticas comerciais desleais ( 16 ). Não é uma norma jurídica que pressuponha a especificação do princípio ne bis in idem, protegido pelo artigo 50.o da Carta. Simplesmente, visa evitar o cúmulo de procedimentos que obedeçam a normas divergentes em matéria de repressão de práticas comerciais desleais.

39.

Já no que diz respeito ao artigo 13.o, n.o 2, da Diretiva 2005/29, foi inserido pela Diretiva 2019/2161 ( 17 ) e começou a produzir efeitos apenas a partir de 28 de maio de 2022 ( 18 ). Não é, portanto, aplicável ratione temporis aos factos punidos no âmbito do processo principal.

40.

Relativamente ao artigo 54.o da CAAS, o Tribunal de Justiça já declarou que «o princípio ne bis in idem enunciado no referido artigo visa evitar que, no espaço de liberdade, segurança e justiça, uma pessoa que julgada definitivamente, possa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, ser perseguida pelos mesmos factos no território de vários Estados‑Membros […]» ( 19 ).

41.

No presente processo, embora se trate da aplicação a nível transfronteiriço do princípio ne bis in idem com a participação das autoridades alemãs e italianas, não está em causa a proteção da livre circulação de pessoas, que constitui a ratio legis do artigo 54.o da CAAS.

42.

Em face do exposto, considero que a resposta ao órgão jurisdicional de reenvio deve ser dada apenas à luz do artigo 50.o da Carta.

C.   Primeira questão prejudicial

43.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) pretende saber se as sanções aplicadas em matéria de práticas comerciais desleais devem ser consideradas sanções administrativas de natureza penal por força da legislação nacional que transpôs a Diretiva 2005/29. O montante destas sanções pode variar entre 5000 euros e 5 milhões de euros.

44.

O princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 50.o da Carta, proíbe o cúmulo tanto de procedimentos como de sanções que tenham natureza penal na aceção deste artigo pelos mesmos factos e contra a mesma pessoa ( 20 ).

45.

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar em cada caso o caráter penal dos procedimentos e das sanções, aplicando os critérios reconhecidos pelo Tribunal de Justiça, que remetem para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ( 21 ) (denominados «critérios Engel») ( 22 ). O Tribunal de Justiça pode, todavia, fornecer precisões adicionais destinadas a orientar o órgão jurisdicional nacional na sua interpretação.

46.

Os critérios mencionados dizem respeito: i) à qualificação jurídica da infração no direito interno; ii) à natureza da sanção; iii) ao nível de gravidade da sanção suscetível de ser aplicada ( 23 ).

1. Qualificação jurídica da infração

47.

Segundo o direito italiano, são consideradas administrativas as infrações (bem como o procedimento para a sua declaração) previstas nos artigos 21.o e 23.o do Código do Consumo. A sanção pecuniária aplicável tem a mesma natureza, nos termos do artigo 27.o, n.o 9, do referido Código.

48.

No que diz respeito à sanção aplicada pelo Ministério Público de Braunschweig, o órgão jurisdicional de reenvio não tem dúvidas quanto à sua natureza penal.

49.

Uma infração e uma sanção nominalmente administrativas, segundo o direito interno, podem, contudo, revestir natureza penal para efeitos do presente processo. O Tribunal de Justiça declarou que a aplicação do artigo 50.o da Carta não se limita apenas aos procedimentos e sanções qualificados de «penais» pelo direito nacional, mas estende‑se, independentemente dessa qualificação no direito interno, aos procedimentos e às sanções que devem ser considerados de natureza penal com base nos dois outros critérios indicados ( 24 ).

2. Natureza da sanção

50.

No que se refere à natureza da sanção, há que verificar se esta «prossegue, nomeadamente, uma finalidade repressiva […] Daqui decorre que uma sanção com finalidade repressiva tem natureza penal na aceção do artigo 50.o da Carta e que a simples circunstância de prosseguir também uma finalidade preventiva não é suscetível de lhe retirar a sua qualificação de sanção penal. […] [É] próprio das sanções penais destinarem‑se tanto à repressão como à prevenção de condutas ilícitas. Em contrapartida, uma medida que se limita a reparar o prejuízo causado pela infração em causa não tem natureza penal» ( 25 ).

51.

O artigo 27.o, n.o 9, do Código do Consumo prevê que a sanção pecuniária deve ser acrescentada a outras medidas destinadas a reprimir práticas comerciais desleais, em especial, à proibição da continuação ou repetição de tais práticas.

52.

Segundo o Governo italiano, são essas medidas, e não a sanção pecuniária prevista no artigo 27.o, n.o 9, do Código do Consumo, que têm um caráter repressivo. Entende que a sanção pecuniária visa anular a vantagem competitiva obtida pela empresa através de um comportamento fraudulento perante os consumidores e restabelecer a concorrência no mercado, tal como existia antes da prática comercial desleal.

53.

Sem prejuízo da apreciação final do órgão jurisdicional de reenvio, não considero convincente o argumento do Governo italiano a este respeito. Pelo contrário, sou de opinião que a sanção pecuniária prevista no artigo 27.o, n.o 9, do Código do Consumo é de natureza repressiva: a sua finalidade principal não é a reparação do dano sofrido por terceiros em consequência da infração, mas sim punir condutas ilícitas ( 26 ).

54.

Com efeito, o referido artigo não contém nenhuma indicação sobre o caráter reparador da sanção, nem o montante desta depende dos efeitos da infração em relação a terceiros.

55.

Por último, é irrelevante para o caso em apreço que a sanção tenha uma finalidade preventiva, além da sua finalidade repressiva, a saber, a de dissuadir as empresas de se envolverem em práticas comerciais desleais.

3. Nível de gravidade

56.

O limite máximo da sanção prevista no artigo 27.o, n.o 9, do Código do Consumo ascende a 5 milhões de euros, o que constitui um montante elevado, indicativo da sua gravidade ( 27 ).

57.

É certo que uma sanção no montante de 5 milhões de euros pode não ser particularmente onerosa para uma empresa multinacional com elevado volume de negócios, como é o caso da VWAG ( 28 ).

58.

Todavia, esta circunstância não põe em causa o caráter gravemente punitivo da sanção prevista na lei. Quando muito, poderá incentivar o legislador a aumentar o montante das coimas em caso de práticas comerciais desleais, substituindo o montante fixo por um proporcional ao volume de negócios ( 29 ).

59.

De resto, a gravidade da sanção deve ser apreciada com base nas suas características objetivas e não no seu impacto, especificamente, sobre uma determinada empresa sancionada.

60.

Em suma, considero que uma sanção administrativa como a que está em causa no processo principal, cujo montante pode ascender a 5 milhões de euros, tem natureza materialmente penal, na aceção do artigo 50.o da Carta, em virtude da existência de práticas comerciais desleais.

D.   Segunda questão prejudicial

61.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) pretende saber se o artigo 50.o da Carta se opõe a «uma legislação nacional que permite confirmar judicialmente e tornar definitiva uma sanção administrativa pecuniária de natureza penal aplicada a uma pessoa coletiva por condutas ilícitas constitutivas de práticas comerciais desleais, condutas essas que deram entretanto lugar a uma condenação penal definitiva proferida noutro Estado‑Membro, no caso de esta última decisão se ter tornado definitiva antes do trânsito em julgado da decisão no processo judicial de impugnação da sanção administrativa pecuniária de natureza penal».

62.

Segundo o Tribunal de Justiça, «[a] aplicação do princípio ne bis in idem está sujeita a uma dupla condição, a saber, por um lado, que haja uma decisão anterior definitiva (condição “bis”) e, por outro, que os mesmos factos sejam abrangidos pela decisão anterior e pelos procedimentos ou decisões posteriores (condição “idem”)» ( 30 ).

1. Quanto à condição «bis»

63.

«[P]ara que se possa considerar que uma decisão judicial se pronunciou definitivamente sobre os factos submetidos a um segundo processo, é necessário não só que essa decisão se tenha tornado definitiva, mas também que tenha sido proferida na sequência de uma apreciação do mérito da causa» ( 31 ).

64.

Decorre dos elementos que constam dos autos que a decisão do Ministério Público de Braunschweig se tornou definitiva em 13 de junho de 2018 e foi adotada, de forma fundamentada, na sequência de uma apreciação do mérito da causa. Nessa data, o procedimento administrativo sancionatório italiano já tinha sido instaurado, mas continuava pendente: a Decisão da AGCM de 4 de agosto de 2016 foi objeto de recurso, pelo que ainda não se tinha tornado (nem se tornou) definitiva.

65.

Embora ambos os processos tenham corrido os seus trâmites parcialmente em paralelo (sobrepuseram‑se durante quatro meses, segundo informações fornecidas na audiência), a sanção aplicada pelo Ministério Público de Braunschweig tornou‑se definitiva antes de as autoridades italianas se terem pronunciado definitivamente sobre os mesmos factos e as mesmas empresas. A este respeito, é irrelevante que o caráter definitivo da decisão alemã resulte do facto de a VWAG não ter interposto recurso dessa decisão ( 32 ).

66.

Há, portanto, uma dualidade de procedimentos sancionatórios, um dos quais culminou com uma decisão que se tornou definitiva, o que implica que se determine se ambos diziam respeito aos mesmos factos e se dirigiam à mesma pessoa.

2. Quanto à condição «idem»

67.

A tese predominante na jurisprudência do Tribunal de Justiça é a de que a proibição da dupla pena se refere aos mesmos factos materiais (idem factum), entendidos como um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si, independentemente da qualificação jurídica desses factos (idem crimen).

68.

Conforme refere o órgão jurisdicional de reenvio, os dois processos em causa dizem respeito à mesma pessoa coletiva (VWAG). É certo que a decisão italiana também visava a VWGI, mas tal não afeta necessariamente a identidade subjetiva, já que esta última empresa pertence à primeira e se encontra sob o seu controlo.

69.

Em todo o caso, face às objeções suscitadas a este respeito pela AGCM, cabe ao Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) dirimir o litígio sobre a identidade subjetiva das empresas em causa.

70.

Quanto à identidade objetiva, o artigo 50.o da Carta proíbe a aplicação, por factos idênticos, de várias sanções de natureza penal no termo de diferentes procedimentos instaurados para estes fins ( 33 ).

71.

Não basta, portanto, que se trate de factos semelhantes, devendo estes ser idênticos. Com efeito, entende‑se por identidade dos factos materiais um conjunto de circunstâncias concretas que decorrem de acontecimentos que são, em substância, os mesmos, porquanto implicam o mesmo autor e estão indissociavelmente ligados entre si no tempo e no espaço ( 34 ).

72.

Uma vez apreciada a identidade dos factos, a sua qualificação jurídica pelo direito nacional torna‑se secundária. O mesmo sucede com a disparidade de interesses jurídicos protegidos, num ou noutro Estado, para efeitos da verificação da existência de uma mesma infração, na medida em que o alcance da proteção conferida pelo artigo 50.o da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro ( 35 ).

73.

Nos Acórdãos bpost e Nordzücker, o Tribunal de Justiça corroborou a prevalência da identidade factual (idem factum) sobre a identidade jurídica (idem crimen). Fê‑lo no domínio das regras de livre concorrência, clarificando assim a sua jurisprudência anterior nesta matéria ( 36 ).

74.

Na audiência, o Governo italiano propôs ( 37 ) que, perante a impossibilidade de haver coordenação entre as autoridades nacionais, sejam tidos em conta os interesses gerais protegidos pelas normas dos dois Estados‑Membros em causa de forma a determinar se há identidade de facto.

75.

Tratar‑se‑ia, se bem compreendo, de reconsiderar a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à aplicação do princípio ne bis in idem em matéria de regras da concorrência, que exigia a identidade factual e dos interesses jurídicos protegidos para demonstrar a existência da condição idem. Considero, no entanto, que esta tese é ultrapassada pelos Acórdãos bpost e Nordzücker.

76.

Cabe ao Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) determinar se, no caso em apreço, os factos são idênticos do ponto de vista material e temporal. No despacho de reenvio, evoca a «semelhança, ou mesmo identidade» dos factos punidos, para depois destacar a «homogeneidade das condutas», uma vez que em ambos os procedimentos foram punidos comportamentos relativos à comercialização de veículos com dispositivos fraudulentos e à publicidade que realçava o respeito pela regulamentação ambiental ( 38 ).

77.

A este respeito, o Tribunal de Justiça pode, todavia, fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os seguintes elementos de reflexão:

A análise, pormenorizada e específica, das condutas punidas deve conduzir a uma apreciação da sua identidade, e não da sua mera semelhança.

Em caso de cúmulo transfronteiriço de procedimentos e sanções, a identidade territorial não é essencial, mas é um fator que pode servir para outros fins ( 39 ). Este mesmo fator permitirá afastar as suspeitas de «escolha interessada» da autoridade sancionadora competente ( 40 ).

O Ministério Público de Braunschweig, embora salientando que na origem das infrações cometidas pela VWAG está a falta de vigilância a nível mundial entre 2007 e 2015, tem em consideração, enquanto factos pertinentes, a comercialização noutros países (incluindo em Itália) de veículos equipados com o sistema informático de manipulação, bem como a publicidade enganosa para a venda desses veículos ( 41 ).

A ligação entre estes três elementos parece clara, ainda que o órgão jurisdicional de reenvio deva decidir se é suficiente para concluir pela identidade factual. O Ministério Público de Braunschweig salienta, precisamente, que a sua decisão se opõe, em razão do princípio ne bis in idem, à aplicação de sanções noutros Estados contra a VWAG por essas mesmas condutas ( 42 ).

78.

Se o órgão jurisdicional de reenvio considerar, à luz destas considerações, que a condição relativa ao idem factum está preenchida, a dualidade processual constituirá, em princípio e sem prejuízo da análise que se segue, uma violação do direito fundamental garantido no artigo 50.o da Carta ( 43 ).

E.   Terceira questão prejudicial

79.

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado) pretende saber se a Diretiva 2005/29 [nomeadamente os seus artigos 3.o, n.o 4, e 13.o, n.o 2, alínea e)] pode justificar «uma derrogação da proibição de “bis in idem” estabelecida no artigo 50.o da Carta».

80.

Já indiquei ( 44 ) as razões pelas quais considero que os artigos 3.o, n.o 4, e 13.o, n.o 2, alínea e), da Diretiva 2005/29 não se aplicam no caso vertente. Farei, portanto, referência apenas ao artigo 50.o da Carta e às possibilidades de recorrer ao seu artigo 52.o, n.o 1, primeiro período, para admitir uma derrogação da referida proibição.

81.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição do direito fundamental garantido no artigo 50.o da Carta pode ser justificada com base no artigo 52.o, n.o 1, da mesma ( 45 ), sob certas condições: i) que seja uma restrição legalmente prevista; ii) que respeite o conteúdo essencial do direito; iii) que exista um motivo de interesse geral ou a necessidade de proteger um direito fundamental; e iv) que a restrição obedeça aos princípios da necessidade e da proporcionalidade.

1. Restrição prevista por lei

82.

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, conforme resulta do seu despacho, a intervenção do Ministério Público de Braunschweig e da AGCM italiana respeita o disposto na lei.

83.

Não parece haver dúvidas quanto à conformidade com o previsto na lei, uma vez que a AGCM aplicou o Código do Consumo e o Ministério Público de Braunschweig a OWiG.

2. Respeito do conteúdo essencial do direito de beneficiar do princípio ne bis in idem

84.

O órgão jurisdicional de reenvio também não parece ter dúvidas quanto ao facto de esta condição se encontrar preenchida no litígio que lhe foi submetido.

3. Proteção dos objetivos de interesse geral

85.

A exceção prevista no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, à proibição de ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelos mesmos factos deve corresponder a um objetivo ou objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteger os direitos e liberdades de terceiros.

86.

Conforme já referi, a identidade dos interesses jurídicos protegidos pelas normas em virtude das quais são aplicadas as duas sanções deixou de ser relevante para a qualificação do idem ( 46 ).

87.

No entanto, desde o Acórdão Menci que esses mesmos interesses jurídicos podem ser relevantes para efeitos da aplicação das derrogações baseadas no artigo 52.o da Carta. As normas devem proteger interesses gerais complementares, mas não idênticos. Se os dois procedimentos nacionais tivessem por objetivo proteger o mesmo interesse geral, perder‑se‑ia a complementaridade e o seu cúmulo não poderia ser justificado pelo artigo 52.o da Carta ( 47 ).

88.

No caso em apreço, as legislações alemã e italiana não parecem prosseguir objetivos idênticos, mas sim complementares:

O artigo 130.o da OWiG pretende que as empresas e os seus trabalhadores atuem no respeito da lei e, por isso, pune a violação culposa do dever de vigilância no âmbito da atividade empresarial. Este objetivo corresponde ao objetivo de interesse geral de garantir o bom funcionamento do mercado, semelhante ao adotado pelos acórdãos do Tribunal de Justiça ( 48 ).

As regras do Código do Consumo aplicadas pela AGCM transpõem a Diretiva 2005/29. Têm por objetivo assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores, nos termos do artigo 1.o da referida diretiva, contribuindo simultaneamente para o bom funcionamento do mercado interno.

89.

São, pois, objetivos complementares: o respeito do dever de vigilância das empresas favorece a proteção dos direitos dos consumidores que adquirem os seus produtos. Ambos, repito, obedecem a considerações de interesse geral, como o Tribunal de Justiça teve oportunidade de corroborar ( 49 ).

4. Proporcionalidade e necessidade da restrição

90.

A limitação do princípio non bis in idem nos termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta deve, além disso, ser proporcionada e necessária.

91.

O Tribunal de Justiça consagrou o princípio geral da proporcionalidade e da necessidade da referida restrição, de que são exemplo as seguintes considerações:

O respeito pelo princípio da proporcionalidade«exige que o cúmulo de procedimentos e de sanções previsto por uma regulamentação nacional […] não exceda os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos por essa regulamentação, entendendo‑se que, quando haja uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva e que os inconvenientes causados por esta não devem ser desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos» ( 50 ).

«[A]s autoridades públicas podem legitimamente optar por respostas jurídicas complementares face a determinados comportamentos socialmente lesivos através de diferentes procedimentos que formem um todo coerente, de modo a lidar com os diferentes aspetos do problema social em questão, desde que estas respostas jurídicas combinadas não representem um encargo excessivo para a pessoa em questão […] Por conseguinte, o facto de dois procedimentos prosseguirem objetivos de interesse geral distintos cuja proteção cumulada é legítima pode ser tido em conta, no âmbito da análise da proporcionalidade de um cúmulo de procedimentos e de sanções, enquanto fator tendente a justificar esse cúmulo, desde que esses procedimentos sejam complementares e que o encargo adicional representado pelo referido cúmulo possa ser, desse modo, justificado pelos dois objetivos prosseguidos» ( 51 ).

Quanto ao caráter estritamente necessário desse cúmulo, «há que apreciar se existem regras claras e precisas que permitam prever quais os atos e omissões que podem ser objeto de um cúmulo de procedimentos e de sanções, bem como a coordenação entre as diferentes autoridades, se os dois procedimentos foram conduzidos de forma suficientemente coordenada e aproximada no tempo, e se a sanção eventualmente aplicada, quando do primeiro procedimento no plano temporal foi tida em conta na avaliação da segunda sanção, de modo a que os encargos resultantes, para as pessoas visadas, desse cúmulo se limitem ao estritamente necessário e que o conjunto das sanções impostas corresponda à gravidade das infrações cometidas» ( 52 ).

«[A] invocação dessa justificação exige que se determine que o cúmulo de procedimentos era estritamente necessário, tendo em conta nesse contexto, em substância, a existência de um nexo material e temporal suficientemente estreito entre os dois procedimentos em causa […]» ( 53 ).

92.

Assim, o Tribunal de Justiça exige a verificação do cumprimento dos seguintes três critérios:

Regras claras e precisas quanto ao cúmulo de procedimentos e sanções.

Coordenação dos procedimentos sancionatórios, que devem ter um nexo material e temporal suficientemente estreito para reduzir ao estritamente necessário o encargo complementar que implica um cúmulo de processos de natureza penal que são conduzidos de forma independente.

Garantia de que a gravidade do conjunto das sanções aplicadas corresponde à gravidade da infração em causa.

93.

Mais uma vez, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, tendo em conta todas as circunstâncias, se estes três critérios estão preenchidos no litígio a quo. No entanto, de forma a dar uma resposta útil, o Tribunal de Justiça pode fornecer‑lhe os seguintes esclarecimentos.

a) Clareza e precisão das regras relativas ao cúmulo dos procedimentos e das sanções

94.

O despacho de reenvio não enuncia normas nacionais, italianas ou alemãs, que prevejam especificamente a possibilidade (e as condições) de instaurar processos em simultâneo e de aplicar sanções independentes pelos mesmos factos, quando estes são praticados em dois Estados‑Membros.

95.

É outra questão que tanto a OWiG como as disposições do Código do Consumo italiano sobre práticas comerciais desleais constituam bases jurídicas sólidas para a tramitação de processos e a aplicação de sanções. Como já expus, a clareza e a precisão destas regras não parecem suscitar dúvidas.

96.

Nesta perspetiva, a VWAG podia prever e esperar ser punida em ambos os Estados‑Membros (e noutros) pelo seu comportamento em relação à modificação dos motores, à venda de veículos com esse tipo de motores e à publicidade que dissimulava a adulteração.

b) Gravidade do conjunto das sanções aplicadas

97.

Decorre dos elementos que constam dos autos que o cúmulo da sanção italiana com a alemã não seria desproporcionado em relação à conduta punida, dado o volume de negócios da VWAG e a vantagem económica obtida por esta empresa multinacional como consequência da modificação de motores (calculada em 995 milhões de euros).

98.

A sanção da autoridade alemã é de 1000 milhões de euros e a da autoridade italiana é de 5 milhões de euros. A soma de ambas não se afigura, portanto, excessiva para a repressão do comportamento punido.

99.

É certo que a sanção alemã inclui uma parte estritamente «punitiva» e outra que corresponde à neutralização do lucro obtido pela VWAG. Mas esta circunstância não obsta a que, em si mesma, seja uma sanção de montante elevado. O mesmo se aplica à sanção da AGCM, que é a de montante mais elevado que podia ser aplicada em conformidade com a legislação italiana que transpôs a Diretiva 2005/29.

100.

Em todo o caso, insisto que o cúmulo de sanções não me parece desproporcionado face à gravidade da infração cometida e às vantagens auferidas pela VWAG.

c) Coordenação dos procedimentos

101.

A coordenação dos procedimentos sancionatórios alemão e italiano e a comprovação de um nexo material e temporal suficientemente estreito entre eles suscitam, no caso em apreço, bastantes dúvidas.

102.

Adianto desde já que darei especial atenção a este problema, porquanto considero que, salvo se o órgão jurisdicional de reenvio dispuser de informações adicionais noutro sentido, não houve coordenação nos dois processos instaurados pelo Ministério Público de Braunschweig e pela AGCM italiana.

103.

Pode‑se aceitar, na melhor das hipóteses, que houve um nexo material entre os dois procedimentos e que correram os seus trâmites em estreita proximidade temporal, mas, repito, o requisito de coordenação não foi cumprido.

104.

Alguns domínios do direito da União dispõem de mecanismos de coordenação das autoridades nacionais (entre si e com a Comissão ou com outro organismo da União) para facilitar a cooperação, a assistência mútua e o intercâmbio de informações, nomeadamente no que diz respeito à instrução dos procedimentos sancionatórios:

No domínio do direito da concorrência, no quadro da Rede Europeia de Autoridades da Concorrência ( 54 ).

No domínio da cooperação judiciária penal, graças à intervenção da Eurojust ( 55 ).

105.

Estes mecanismos facilitam a aplicação do princípio ne bis in idem ao evitar a duplicação de procedimentos sancionatórios pelos mesmos factos em litígios transfronteiriços que envolvam vários Estados‑Membros ( 56 ).

106.

Pelo contrário, no presente litígio não havia nenhum mecanismo de coordenação específico à disposição das autoridades nacionais dotadas de poderes heterogéneos.

107.

É certo que o Regulamento (UE) n.o 2006/2004 ( 57 ), aplicável à data dos factos e posteriormente substituído pelo Regulamento 2017/2394, prevê um meio de cooperação e de coordenação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção do consumidor. A AGCM é uma dessas autoridades e poderia recorrer a este instrumento, mas não foi o que aconteceu com o Ministério Público de Braunschweig ( 58 ).

108.

Em resposta às questões do Tribunal de Justiça, as partes forneceram, na audiência, as seguintes informações:

O Ministério Público de Braunschweig procurou, no âmbito da Eurojust, impedir o cúmulo de processos penais contra a VWAG em vários Estados‑Membros. Após uma reunião de coordenação na sede da Eurojust em Haia em 10 de março de 2016, só as autoridades da Bélgica, Suécia e Espanha ( 59 ), mas não as italianas, concordaram em prescindir da ação penal a favor do Ministério Público de Braunschweig. A AGCM não participou nessa tentativa de coordenação das ações penais contra a VWAG.

O Ministério Público de Braunschweig tinha conhecimento desde 9 de agosto de 2016 da existência da decisão sancionatória da AGCM contra VWAG e a VWGI, que foi adotada em 4 de agosto de 2016. O Ministério Público instaurou um procedimento sancionatório contra a VWAG em 14 de abril de 2016. Os procedimentos sancionatórios na Alemanha e em Itália correram, portanto, os seus trâmites paralelamente durante menos de quatro meses.

Não houve qualquer coordenação entre o Ministério Público de Braunschweig e a AGCM.

109.

Seja como for, o que este pedido de decisão prejudicial evidencia, a meu ver, é a dificuldade de aplicar a jurisprudência do Tribunal de Justiça que aceita restrições ao artigo 50.o da Carta, com base no seu artigo 52.o, a casos como o vertente.

110.

Em especial, afigura‑se difícil que a condição relativa à coordenação possa ser respeitada quando se trata de um cúmulo de procedimentos e sanções, por autoridades nacionais de dois Estados com competências em domínios diferentes, relativamente aos quais não existem mecanismos específicos de coordenação previstos no direito da União ( 60 ).

111.

Além disso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à exigência de coordenação entre autoridades em caso de cúmulo de procedimentos e sanções poderá ter, nestes casos, um efeito paradoxal:

Os mecanismos de coordenação criados pelo direito da União visam promover a proibição do bis in idem, ou seja, evitar que a mesma pessoa seja julgada ou punida mais do que uma vez pelos mesmos factos.

Pelo contrário, a jurisprudência do Tribunal de Justiça acolhe o critério da coordenação dos procedimentos sancionatórios, que devem apresentar um nexo material e temporal suficientemente estreito, a fim de facilitar as derrogações ao exercício do direito fundamental protegido pelo artigo 50.o da Carta.

112.

Talvez por estas ou por outras razões, o Governo italiano propôs na audiência, a título subsidiário ( 61 ), a não aplicação do requisito de coordenação, exigindo apenas que se verificasse a proporcionalidade do cúmulo de sanções. A Comissão, por sua vez, sugeriu uma interpretação flexível do requisito da coordenação, chegando a afirmar que o critério de coordenação não seria necessário em casos como este ( 62 ).

113.

No que me concerne, não alimento grandes esperanças de que o Tribunal de Justiça modifique a sua jurisprudência nesta matéria. Se não acolheu a posição que defendi nas minhas Conclusões no processo Menci ( 63 ), nem as posteriores críticas do advogado‑geral M. Bobek ( 64 ) em relação ao critério do Acórdão Menci (mais tarde reiterado nos Acórdãos bpost e Nordzücker), é pouco provável que o faça agora.

114.

O Tribunal de Justiça tem, pois, três hipóteses:

ou prescinde, em casos como o vertente, da exigência de coordenação entre os procedimentos sancionatórios, o que pode comprometer o conteúdo do direito constante do artigo 50.o da Carta, alargando o âmbito de aplicação das suas derrogações;

ou relativiza a exigência desse critério, na linha defendida pela Comissão, deixando‑o, na prática, irreconhecível;

ou insiste no facto de que a duplicidade de procedimentos sancionatórios entre autoridades nacionais de diferentes Estados e diferentes domínios de competência está igualmente sujeita à exigência de coordenação, como forma de justificar a restrição ao ne bis in idem com base no artigo 52.o, n.o 1, da Carta.

115.

A coerência com a jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça abona, na minha opinião, a favor da terceira solução. É tanto por esta razão como por considerar que a aplicação do artigo 50.o da Carta deve prevalecer e que o artigo 52.o, n.o 1, da mesma não dá cobertura à pluralidade de procedimentos instaurados e de sanções aplicadas por autoridades nacionais de diferentes domínios a uma mesma pessoa por factos idênticos, quando não há coordenação suficiente entre as suas atuações, que também proponho a terceira solução para efeitos do presente processo.

V. Conclusão

116.

Com base no exposto, sugiro que o Tribunal de Justiça responda ao pedido de decisão prejudicial do Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) da seguinte forma:

«O artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que:

A sanção administrativa pecuniária, aplicada pela autoridade nacional competente para a defesa do consumidor a uma pessoa coletiva que tenha incorrido em práticas comerciais desleais, no montante de 5 milhões de euros, reveste caráter materialmente penal, na aceção dessa disposição.

Uma sanção administrativa pecuniária de natureza materialmente penal, aplicada a pessoa coletiva por condutas constitutivas de práticas comerciais desleais, viola, em princípio, o artigo 50.o da Carta quando, por factos idênticos, essa pessoa coletiva já tiver sido objeto de uma condenação penal definitiva proferida noutro Estado‑Membro.

Não é admissível restringir o direito de não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito, nos termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, quando o cúmulo concomitante de procedimentos e de sanções aplicadas por autoridades nacionais de dois ou mais Estados‑Membros, competentes em diferentes domínios, tenha ocorrido sem suficiente coordenação.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Trata‑se, por um lado, da Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (Autoridade de Defesa da Concorrência e do Mercado, Itália, a seguir «AGCM») e, por outro, do Ministério Público de Braunschweig, Alemanha.

( 3 ) O Tribunal de Justiça pronunciou‑se, até à data, em processos que incidiam sobre o princípio ne bis in idem no âmbito dos quais foram aplicadas sanções por diferentes autoridades nacionais de um mesmo Estado‑Membro [como no caso que deu lugar ao Acórdão de 22 de março de 2022, bpost (C‑117/20, EU:C:2022:202, a seguir «Acórdão bpost»), envolvendo as autoridades belgas de regulação dos serviços postais e de proteção da concorrência]. Pronunciou‑se igualmente sobre pedidos de decisão prejudicial em que as sanções emanavam de autoridades nacionais da concorrência de dois Estados‑Membros [Acórdão de 22 de março de 2022, Nordzucker (C‑151/20, EU:C:2022:203), a seguir «Acórdão Nordzucker»].

( 4 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2005, L 149, p. 22).

( 5 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e as Diretivas 98/6/CE, 2005/29/CE e 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho a fim de assegurar uma melhor aplicação e a modernização das regras da União em matéria de defesa dos consumidores (JO 2019, L 328, p. 7).

( 6 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2017, relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores e que revoga o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 (JO 2017, L 345, p. 1).

( 7 ) Decreto legislativo n.o 206 — Codice del consumo, a norma dell’articolo 7 della legge 29 luglio 2003, n.o 229 (Decreto Legislativo n.o 206, que aprova o Código do Consumo nos Termos do artigo 7.o da Lei n.o 229, de 29 de julho de 2003), de 6 de setembro de 2005 (suplemento ordinário da GURI n.o 235, de 8 de outubro de 2005; a seguir «Código do Consumo»).

( 8 ) Trata‑se de um dispositivo incorporado em veículos equipados com motores Volkswagen nos quais foi instalado um software capaz de detetar quando o carro se encontrava em banco de ensaio para verificar as suas emissões poluentes, para que nesse momento tivesse um desempenho menos poluente, de forma que reduza as emissões de gases. Após passar nos testes, o veículo encontrando‑se a funcionar em condições normais, recuperava o seu nível de emissões, muito superior ao permitido legalmente. Este dispositivo é proibido pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1). V., a este respeito, Acórdãos de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel) (C‑693/18, EU:C:2020:1040); de 14 de julho de 2022, GSMB Invest (C‑128/20, UE:C:2022:570); e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen (C‑145/20, EU:C:2022:572).

( 9 ) A decisão alemã tem a referência «NZS 411 JS 27840/18».

( 10 ) A Associação Codacons (Coordinamento delle associazioni per la tutela dell’Ambiente e dei diritti degli utenti e consumatori) intervém no âmbito do processo principal em apoio das observações apresentadas pela AGCM.

( 11 ) Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen em 19 de junho de 1990 e que entrou em vigor em 26 de março de 1995 (JO 2000, L 239, p. 19; a seguir «CAAS»). Nos termos do artigo 54.o: «Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

( 12 ) Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A.K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982), n.o 78 e jurisprudência referida; de 20 de março de 2018, Garlsson Real Estate e o. (C‑537/16, EU:C:2018:193, a seguir, «Acórdão Garlsson Real Estate»), n.o 23; e de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013;105, n.os 19 e 21).

( 13 ) Conforme alegado pela VWGI na audiência.

( 14 )

( 15 ) Conforme referido nos Acórdãos de 13 de setembro de 2018, Wind Tre e Vodafone Italia (C‑54/17 e C‑55/17, EU:C:2018:710), n.os 58 e 59; e de 16 de julho de 2015, Abcur (C‑544/13 e C‑545/13, EU:C:2015:481), n.o 79.

( 16 ) Remeto para a análise constante das minhas Conclusões apresentadas no processo Wind Tre e Vodafone Italia (C‑54/17 e C‑55/17, EU:C:2018:377), n.os 92 a 119.

( 17 ) O novo número é reproduzido, em parte, no n.o 10 das presentes conclusões.

( 18 ) Conforme prevê o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2019/2161.

( 19 ) Acórdão de 28 de outubro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Extradição e princípio ne bis in idem) (C‑435/22 PPU, EU:C:2022:852), n.o 76.

( 20 ) Acórdãos bpost, n.o 24; Nordzucker, n.o 28; e de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, a seguir, «Acórdão Menci»), n.o 25.

( 21 ) A seguir «TEDH».

( 22 ) Acórdão de 8 de junho de 1976, Engel e o./Países Baixos [recursos n.os 5100/71, 5101/71, 5102/71, 5354/72 e 5370/72 (CE:ECHR:1976:0608JUD000510071)].

( 23 ) Acórdãos de 5 de junho de 2012, Bonda (C‑489/10, EU:C:2012:319), n.o 37; Menci, n.os 26 e 27; e bpost, n.o 25.

( 24 ) Acórdãos Menci, n.o 30; bpost, n.o 26; e Nordzucker, n.o 31.

( 25 ) Acórdão Garlsson Real Estate, n.o 33. Nas minhas conclusões apresentadas no respetivo processo (C‑537/16, EU:C:2017:668), n.o 64, e nas minhas Conclusões de 12 de setembro de 2017, Menci (C‑524/15, EU:C:2017:667), n.o 113 indiquei que qualquer sanção tem, na realidade, uma componente repressiva e o seu efeito preventivo ou dissuasor resulta, precisamente, da punição que lhe está associada. Nesse mesmo sentido, v. Acórdão de 22 de junho de 2021, Latvijas Republikas Saeima (Pontos de penalização) (C‑439/19, EU:C:2021:504), n.o 89.

( 26 ) Refiro‑me às minhas Conclusões no Acórdão Menci (C‑524/15, EU:C:2017:667) no âmbito das quais defendi que «[…] sendo as sanções administrativas e as sanções penais manifestações do ius puniendi do Estado, não vejo como (a não ser numa construção artificial, meramente dogmática) negar às primeiras a sua dupla vocação preventiva e repressiva, que as aproxima das normas estritamente penais […] [T]oda a sanção tem, na realidade, uma componente repressiva e o seu efeito preventivo ou dissuasivo decorre, precisamente, da punição que a acompanha» (n.o 113).

( 27 ) A sanção prevista no artigo 187.o‑B da lei aplicável tinha o mesmo limiar (5 milhões de euros), tendo o Tribunal de Justiça considerado no Acórdão Garlsson Real Estate que constitui uma sanção administrativa de natureza penal, embora nesse caso estivessem em causa outros fatores.

( 28 ) A AGCM refere que a sanção representa apenas 0,0068 % do volume de negócios da VWAG em 2015 (73,510 milhões de euros) e 0,12 % do volume de negócios da VWGI, e que, se se tratasse de uma coima por violação das normas da concorrência, teria subido para 10 % do volume de negócios.

( 29 ) Conforme já indiquei, na sequência da adoção da Diretiva 2019/2161, o montante máximo das coimas deverá ser de «pelo menos, 4 % do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)‑Membro(s) em causa […]». Assim, será possível aplicar coimas por práticas comerciais desleais de montante muito superior aos atuais, no caso de empresas nacionais ou multinacionais cujos volumes de negócios sejam elevados.

( 30 ) Acórdão bpost, n.o 28.

( 31 ) Acórdão bpost, n.o 29.

( 32 ) É pura especulação supor que a falta de interposição de recurso da sanção alemã se insere numa estratégia da empresa com o intuito de, com base no princípio ne bis in idem, paralisar ou impedir os processos sancionatórios instaurados contra a VWAG noutros Estados‑Membros. A Comissão chama a atenção para o risco de favorecer o forum shopping por parte de empresas multinacionais que, ao invocar o artigo 50.o da Carta, estariam possivelmente à procura de obter uma sanção no Estado‑Membro com o regime mais favorável e assim evitar que lhes fossem aplicadas sanções pelos mesmos factos noutros Estados‑Membros. Na audiência, a AGCM afirmou não ter motivos para acreditar que a VWAG tivesse essa estratégia, afirmação que essa empresa corroborou ao argumentar que seria ilógico aceitar uma sanção pecuniária tão pesada como a aplicada na Alemanha para evitar outra de montante muito inferior.

( 33 ) Acórdãos Menci, n.o 35; Garlsson Real Estate e o., n.o 37; bpost, n.o 33.

( 34 ) Acórdãos do TEDH de 10 de fevereiro de 2009, Sergueï Zolotoukhine c. Rússia (CE:ECHR:2009:0210JUD001493903), §§ 83 e 84; e de 20 de maio de 2014, Pirttimäki/Finlândia (CE:ECHR:2014:0520JUD003523211), §§ 49 a 52, referidos no Acórdão bpost, n.os 36 e 37.

( 35 ) Acórdãos Menci, n.o 36; Garlsson Real Estate, n.o 38; e bpost, n.o 34.

( 36 ) V. Van Cleynenbreugel, P., «BPost and Nordzücker: Searching for the essence of the ne bis in idem in European Union Law», European Constitutional Law Review, 2022, n.o 3, pp. 361 e 362.

( 37 ) A AGCM insistiu igualmente, na audiência, na disparidade dos interesses gerais protegidos pela norma alemã e os tutelados pela italiana, como argumento para questionar a existência da condição idem.

( 38 ) Despacho de reenvio, n.os 1.7 e 1.8.

( 39 ) A maior dificuldade em apreciar a identidade neste caso está refletida no Acórdão Nordzücker, n.o 46: «No âmbito desta apreciação, importa, nomeadamente, examinar se as apreciações jurídicas efetuadas pela Autoridade Alemã com base nos elementos de facto constatados na sua decisão definitiva incidiram exclusivamente sobre o mercado alemão ou se também incidiram sobre o mercado austríaco do açúcar. Também é pertinente a questão de saber se, para efeitos do cálculo da coima baseado no volume de negócios realizado no mercado afetado pela infração, a Autoridade Alemã tomou apenas como base de cálculo o volume de negócios realizado na Alemanha (v., por analogia, Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o., C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 101)».

( 40 ) V., supra, nota 32.

( 41 ) Menciona expressamente que a venda de veículos com motores modificados noutros Estados, incluindo em Itália, foi tida em conta na aplicação da sanção à VWAG.

( 42 ) O órgão jurisdicional de reenvio deve ter em conta o facto de que «[…] a mera circunstância de uma autoridade de um Estado‑Membro mencionar, numa decisão que constata uma infração ao direito da concorrência da União e às correspondentes disposições do direito deste Estado‑Membro, um elemento de facto que se refere ao território de outro Estado‑Membro não é suficiente para considerar que esse elemento de facto está na origem dos procedimentos ou que foi tomado em consideração por esta autoridade entre os elementos constitutivos desta infração» (Acórdão Nordzücker, n.o 44).

( 43 ) Acórdão bpost, n.os 38 e 39.

( 44 ) V. n.os 36 a 39 das presentes conclusões.

( 45 ) Acórdãos de 27 de maio de 2014, Spasic (C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586), n.os 55 e 56; Menci, n.o 40; bpost, n.o 41; e Nordzücker, n.o 49.

( 46 ) Acórdão bpost, n.o 34: «[R]esulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a qualificação jurídica dos factos no direito nacional e o interesse jurídico protegido não são relevantes para efeitos da verificação da existência de uma mesma infração, na medida em que o alcance da proteção conferida pelo artigo 50.o da Carta não pode variar de um Estado‑Membro para outro». O sublinhado é meu.

( 47 ) Podemos encontrar um exemplo nesse sentido no Acórdão Nordzücker: «na hipótese de duas autoridades nacionais de concorrência instaurarem procedimentos e punirem os mesmos factos para garantir que é respeitada a proibição dos acordos em aplicação do artigo 101.o TFUE e das correspondentes disposições dos seus respetivos direitos nacionais, estas duas autoridades estariam a prosseguir o mesmo objetivo de interesse geral, que visa garantir que a concorrência no mercado interno não é falseada através de acordos, de decisões de associações de empresas ou de práticas concertadas anticoncorrenciais» (n.o 56). «Nestas condições, […] um cúmulo dos procedimentos e das sanções, quando não visem finalidades complementares que tenham por objeto aspetos diferentes do mesmo comportamento […], não pode, seja como for, ser justificado ao abrigo do artigo 52.o, n.o 1, da Carta» (n.o 57).

( 48 ) O Acórdão bpost, n.os 45 a 47, considera objetivos de interesse geral de liberalização do mercado interno dos serviços postais e de proteção da livre concorrência. O Acórdão de 20 de março de 2018, Di Puma e Zecca (C‑596/16 e C‑597/16, EU:C:2018:192), n.o 42, menciona como objetivos de interesse geral a proteção da integridade dos mercados financeiros e da confiança do público nos instrumentos financeiros.

( 49 ) O facto de a defesa do consumidor constituir um objetivo de interesse geral é confirmado pelos Acórdãos bpost, n.o 27, e Nordzücker, n.os 51 e 52. É também corroborado pelos artigos 12.o TFUE, 114.o TFUE e 169.o TFUE, bem como pelo artigo 38.o da Carta.

( 50 ) Acórdãos Menci, n.o 46; bpost, n.o 48; e de 5 de maio de 2022, BV (C‑570/20, EU:C:2022:348), n.o 34.

( 51 ) Acórdão bpost, n.o 49. O Tribunal de Justiça faz referência, neste excerto, ao Acórdão do TEDH de 15 de novembro de 2016, A e B c. Noruega (EC:ECHR:2016:1115JUD002413011), §§ 121 e 132. No entanto, a lógica deste acórdão não foi integralmente seguida pelo Tribunal de Justiça: o TEDH considera que, no caso de dois processos de natureza penal estreitamente ligados, não há violação do ne bis in idem, já para o Tribunal de Justiça tal violação existe, mas pode ser justificada ao abrigo do artigo 52.o da Carta.

( 52 ) Acórdãos Menci, n.os 49, 52, 53, 55 e 58; e bpost, n.o 51; bem como Acórdão do TEDH de 15 de novembro de 2016, A e B c. Noruega (CE:ECHR:2016:1115JUD002413011), §§ 130 a 132. V., para uma crítica circunstanciada do Acórdão Menci, as Conclusões do advogado‑geral M. Bobek nos processos bpost (EU:C:2021:680) e Nordzucker (EU:C:2021:681); nomeadamente, n.os 101 a 117.

( 53 ) Acórdãos Menci, n.o 61; e bpost, n.o 53; assim como, por analogia, Acórdão do TEDH de 15 de novembro de 2016, A e B c. Noruega (CE:ECHR:2016:1115JUD002413011), § 130.

( 54 ) V., Comunicação da Comissão sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades de concorrência (JO 2004, C 101, p. 43).

( 55 ) Regulamento (UE) 2018/1727 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de novembro de 2018, que cria a Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust), e que substitui e revoga a Decisão 2002/187/JAI do Conselho (JO 2018, L 295, p. 138).

( 56 ) A hipótese do Acórdão Nordzücker é disso prova.

( 57 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de outubro de 2004, relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de defesa do consumidor («Regulamento relativo à cooperação no domínio da defesa do consumidor») (JO 2004, L 364, p. 1).

( 58 ) V. lista das referidas autoridades em https://commission.europa.eu/system/files/2021‑01/designated_bodies_18jan2021.pdf.

( 59 ) Tal resulta do Acórdão do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) de 20 de setembro de 2021 (ES:TS:2021:3449).

( 60 ) Esta dificuldade já foi apontada pelo advogado‑geral M. Bobek nas suas Conclusões no processo bpost (EU:C:2021:680), n.o 115: «[…] uma vez que a conjugação dos processos relevantes implica uma pluralidade de regimes administrativos paralelos e, mais importante, mais do que um Estado‑Membro ou autoridades dos Estados‑Membros e da União Europeia, então as sugestões quanto à conveniência de sistemas unitários podem rapidamente passar do plano das boas intenções para o campo da ficção científica». Após referir a existência de sistemas de redes de autoridades administrativas nacionais e da União e as dificuldades de coordenação que, apesar disso, existem, afirmou (no n.o 116 dessas conclusões) que «[s]endo esta a situação atual em sistemas específicos e expressamente regulamentados em toda a União Europeia, não é, desde logo, evidente de que forma poderia o nível de coordenação necessário ser razoavelmente previsto e alcançado em vários domínios do direito, no âmbito dos diversos organismos e em vários Estados‑Membros».

( 61 ) A principal tese do Governo italiano é que não houve violação do artigo 50.o da Carta, pelo que não é necessário recorrer ao artigo 52.o

( 62 ) Em suma, a Comissão propôs que a exigência fosse aplicada com base na existência de mecanismos de coordenação ou de troca de informações. A inexistência de tais mecanismos implicaria a aceitação de uma derrogação à proibição do ne bis in idem.

( 63 ) N.o 72: «se a jurisprudência do Tribunal de Justiça tinha consolidado uma doutrina de acordo com a qual dois processos, paralelos ou sucessivos, que conduzam a duas sanções materialmente penais, pelos mesmos factos, continuam a ser dois (bis) e não um, não encontro razões consistentes para a abandonar». No n.o 73 acrescentei que «introduzir no direito da União um critério interpretativo do artigo 50.o da Carta que assente na maior ou menor relação material e temporal entre uns processos (os penais) e outros (os administrativos sancionatórios) acrescentaria uma considerável incerteza e complexidade ao direito das pessoas a não ser julgadas nem condenadas mais do que uma vez pelos mesmos factos. Os direitos fundamentais reconhecidos na Carta têm de ser de fácil compreensão para todos e o seu exercício exige uma previsibilidade e uma certeza que, na minha opinião, não são compatíveis com o referido critério».

( 64 ) No n.o 109 das suas Conclusões no processo bpost afirma que «a aplicação do princípio ne bis in idem deixa de se basear num critério ex ante definido em termos normativos. Em vez disso, passa a ser um critério corretivo ex post, podendo ou não ser aplicável, em função das circunstâncias e do número exato de sanções aplicadas». No n.o 111 refere que «as vertentes de um critério que não se destina a uma proteção ex ante, mas antes a uma correção ex post, são necessariamente circunstanciais».