CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 6 de junho de 2018 ( 1 )

Processo C‑149/17

Bastei Lübbe GmbH & Co. KG

contra

Michael Strotzer

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Direito de autor e direitos conexos — Diretiva 2001/29/CE — Respeito dos direitos de propriedade intelectual — Diretiva 2004/48/CE — Indemnização no caso de partilha de ficheiros com violação do direito de autor — Ligação internet acessível a membros da família do titular — Exoneração da responsabilidade do titular sem necessidade de precisar a natureza da utilização da ligação pelo membro da família»

Introdução

1.

Embora o direito substantivo da propriedade intelectual esteja parcialmente harmonizado no direito da União, os procedimentos que visam punir as violações deste direito e reparar os prejuízos que delas resultam são regulados, em princípio, pelo direito interno dos Estados‑Membros. O direito da União impõe, no entanto, alguns requisitos que vão além do simples critério da efetividade normalmente aplicado no âmbito da autonomia processual dos Estados‑Membros.

2.

O presente processo suscita a questão da extensão desses requisitos e da sua articulação com os direitos fundamentais. Esta problemática já foi submetida ao Tribunal de Justiça, mas o presente processo dar‑lhe‑á a oportunidade de desenvolver e precisar mais pormenorizadamente a sua jurisprudência a este respeito.

Quadro jurídico

Direito da União

3.

O artigo 3.o, n.os 1 e 2, alínea b), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação ( 2 ), dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

2.   Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que seja acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, cabe:

[…]

b)

Aos produtores de fonogramas, para os seus fonogramas;

[…]»

4.

Segundo o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da mesma diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros devem prever as sanções e vias de recurso adequadas para as violações dos direitos e obrigações previstas na presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação efetiva de tais sanções e vias de recurso. As sanções previstas devem ser eficazes, proporcionadas e dissuasivas.

2.   Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas necessárias para assegurar que os titulares dos direitos cujos interesses sejam afetados por uma violação praticada no seu território possam intentar uma ação de indemnização […]»

5.

O artigo 2.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual ( 3 ), dispõe:

«1.   Sem prejuízo dos meios já previstos ou que possam vir a ser previstos na legislação comunitária ou nacional e desde que esses meios sejam mais favoráveis aos titulares de direitos, as medidas, procedimentos e recursos previstos na presente diretiva são aplicáveis, nos termos do artigo 3.o, a qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual previstos na legislação comunitária e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa.

2.   A presente diretiva não prejudica as disposições específicas, previstas na legislação comunitária, relativas ao respeito pelos direitos e às exceções no domínio do direito de autor e direitos conexos, nomeadamente […] na [Diretiva 2001/29], nomeadamente, nos seus artigos 2.o a 6.o e 8.o»

6.

Nos termos do artigo 3.o desta diretiva:

«1.   Os Estados‑Membros devem estabelecer as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual abrangidos pela presente diretiva. Essas medidas, procedimentos e recursos devem ser justos e equitativos, não devendo ser desnecessariamente complexos ou onerosos, comportar prazos que não sejam razoáveis ou implicar atrasos injustificados.

2.   As medidas, procedimentos e recursos também devem ser eficazes, proporcionados e dissuasivos e aplicados de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio lícito e a prever salvaguardas contra os abusos.»

7.

Segundo o artigo 6.o, n.o 1, primeiro período, da mesma diretiva:

«Os Estados‑Membros devem garantir que, a pedido da parte que tiver apresentado provas razoavelmente disponíveis e suficientes para fundamentar as suas alegações e especificado as provas suscetíveis de as apoiar que se encontram sob o controlo da parte contrária, as autoridades judiciais competentes podem ordenar que esses elementos de prova sejam apresentados pela parte contrária, desde que a proteção das informações confidenciais seja salvaguardada.»

8.

Finalmente, nos termos do artigo 13.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/48:

«Os Estados‑Membros devem assegurar que, a pedido da parte lesada, as autoridades judiciais competentes ordenem ao infrator que, sabendo‑o ou tendo motivos razoáveis para o saber, tenha desenvolvido uma atividade ilícita, pague ao titular do direito uma indemnização por perdas e danos adequada ao prejuízo por este efetivamente sofrido devido à violação.»

Direito alemão

9.

O § 97 da Gesetz über Urheberrecht und verwandte Schutzrechte — Urheberrechtsgesetz [Lei sobre os direitos de autor e direitos conexos], de 9 de setembro de 1965, dispõe:

«1.   Quem infringir ilicitamente os direitos de autor ou outro direito protegido nos termos desta lei pode ser demandado em juízo pelo lesado, para eliminar o prejuízo ou, em caso de risco de repetição, para cessar a infração. A ação para cessação da infração também pode ser intentada quando o risco de infração surge pela primeira vez.

2.   Quem praticar a infração dolosamente ou com negligência fica obrigado a reparar os prejuízos causados ao lesado pelo seu comportamento. No cálculo da indemnização pode ser igualmente tido em conta o ganho obtido pelo infrator com a violação do direito. A indemnização também poderá ser calculada com base no montante que o infrator teria que pagar a título de remuneração adequada se tivesse pedido autorização para a utilização do direito violado. Os autores, editores de obras científicas (§ 70), fotógrafos (§ 72) e artistas executantes (§ 73) também podem pedir uma indemnização por danos que não sejam patrimoniais, se e na medida em que tal for razoável.»

Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

10.

A Bastei Lübbe AG, sociedade de direito alemão, enquanto produtora de fonogramas, é titular dos direitos de autor e dos direitos conexos sobre a versão áudio de um livro.

11.

Michael Strotzer é titular de uma ligação Internet, através da qual, em 8 de maio de 2010, este fonograma foi partilhado, para ser feito o seu download, com um número indeterminado de utilizadores de uma plataforma de troca de ficheiros na Internet (peer‑to‑peer). Um perito atribuiu exatamente o endereço IP a M. Strotzer.

12.

Por carta de 28 de outubro de 2010, a Bastei Lübbe interpelou M. Strotzer para cessar a violação do direito de autor. Não tendo esta interpelação produzido qualquer resultado, a Bastei Lübbe intentou uma ação no Amtsgericht München (Tribunal de Primeira Instância de Munique, Alemanha) contra M. Strotzer, como titular do endereço IP em causa, pedindo uma indemnização pecuniária.

13.

Todavia, M. Strotzer contesta ter violado ele próprio o direito de autor e alega que a sua ligação Internet estava suficientemente protegida. Além disso, afirma que os seus pais, que vivem na mesma habitação, também tinham acesso a esta ligação, mas que, tanto quanto sabe, não tinham esta obra no seu computador, ignoravam a sua existência e não utilizavam o suporte lógico (software) para uma plataforma de troca de ficheiros. Além disso, segundo afirma, o computador estava desligado no momento da violação em causa.

14.

O Amtsgericht München (Tribunal de Primeira Instância de Munique) julgou improcedente a ação de indemnização intentada pela Bastei Lübbe com o fundamento de que não se podia considerar que M. Strotzer cometera a alegada violação dos direitos de autor, pois que tinha indicado que os seus pais também poderiam ter cometido essa violação. A Bastei Lübbe interpôs então recurso para o Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha), órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

15.

O órgão jurisdicional de reenvio inclina‑se para considerar que há responsabilidade de M. Strotzer por ter cometido a alegada violação do direito de autor, na medida em que não resulta das suas explicações que um terceiro tivesse utilizado a ligação Internet no momento em que a violação foi cometida, de modo que havia sérias probabilidades de que ele a tivesse cometido. O órgão jurisdicional de reenvio está, no entanto, confrontado com a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha) que, no seu entender, poderia opor‑se à condenação do demandado ( 4 ).

16.

Com efeito, segundo a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal), tal como a interpreta o órgão jurisdicional de reenvio, é ao demandante que compete alegar e provar a violação do direito de autor. O Bundesgerichtshof considera, por outro lado, que se presume que o titular da ligação Internet cometeu essa violação, uma vez que nenhuma outra pessoa podia utilizar essa ligação Internet no momento da referida violação. No entanto, se a ligação Internet não estivesse suficientemente protegida ou estivesse conscientemente colocada à disposição de outras pessoas no momento da violação, não se presume inilidivelmente que o titular dessa ligação a tivesse cometido.

17.

Em tal caso, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) impõe, todavia, ao titular da ligação internet o ónus secundário de o alegar. Este titular desonera‑se suficientemente deste ónus secundário se alegar que outras pessoas, cuja identidade eventualmente precisa, tinham acesso autónomo à sua ligação Internet e, por isso, podem ter cometido a alegada violação do direito de autor. Se um membro da família tiver tido acesso à ligação Internet em causa, o titular desta ligação, no entanto, não é obrigado a fornecer precisões complementares relativamente ao momento e à natureza da utilização dessa ligação, tendo em conta o respeito pela vida privada e familiar garantido pelo artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e as respetivas disposições do direito constitucional alemão.

18.

Nestas condições, o Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 8.o, n.os 1 e 2, em conjugação com o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29/CE ser interpretado no sentido de que continua a poder falar‑se de “sanções eficazes e dissuasivas” em caso de violações do direito de comunicação ao público de uma obra, quando a responsabilidade do titular da ligação à Internet, por meio da qual foram cometidas violações de direitos de autor, através da partilha de ficheiros, é excluída se esse titular indicar pelo menos um membro de família que, para além dele, tinha a possibilidade de aceder a essa ligação à Internet, sem que tenha de comunicar detalhes, obtidos através de pesquisas, sobre o momento e o tipo de utilização da Internet por esse membro da família?

2)

Deve o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/48/CE ser interpretado no sentido de que continua a poder falar‑se de “medidas eficazes para garantir o respeito dos direitos de propriedade intelectual” quando a responsabilidade do titular da ligação à Internet, por meio da qual foram cometidas violações de direitos de autor, através da partilha de ficheiros, é excluída se esse titular indicar pelo menos um membro de família que, para além dele, tinha a possibilidade de aceder a essa ligação à Internet, sem que tenha de comunicar detalhes, obtidos através de pesquisas, sobre o momento e o tipo de utilização da Internet por esse membro da família?»

19.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de março de 2017. A Bastei Lübbe, o governo austríaco e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. A Bastei Lübbe e a Comissão estiveram representadas na audiência realizada em 14 de março de 2018.

Análise

Observações preliminares

20.

Nas suas observações escritas, a Comissão manifesta dúvidas quanto à pertinência das questões prejudiciais para a resolução do litígio no processo principal. Não partilho dessas dúvidas.

21.

Com as suas questões prejudiciais, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se é compatível com o requisito de eficácia das medidas previstas para garantir o respeito dos direitos de autor que decorrem do artigo 8.o da Diretiva 2001/29 e do artigo 3.o da Diretiva 2004/48 permitir ao titular de uma ligação Internet, através da qual tenham sido cometidas violações dos direitos de autor ( 5 ), eximir‑se à responsabilidade pelas referidas violações baseada numa presunção, designando, sem mais precisões, um membro da família que também tinha acesso a essa ligação. As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio resultam da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) relativa aos meios processuais de que os titulares dos direitos de autor lesados dispõem no direito alemão.

22.

Não compete ao Tribunal de Justiça mas exclusivamente aos órgãos jurisdicionais nacionais interpretar e aplicar a jurisprudência interna dos Estados‑Membros. Resulta, porém, do princípio da interpretação conforme que as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de interpretar, tanto quanto possível, as disposições do seu direito interno de modo a assegurar o pleno efeito do direito da União. Esta exigência inclui a obrigação de alterar uma jurisprudência assente se a mesma for incompatível com este direito ( 6 ). Parece, portanto, que a exigência de interpretação conforme impõe ao órgão jurisdicional de reenvio o dever de interpretar e aplicar a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal), tanto quanto possível, de modo a garantir o pleno efeito das obrigações que decorrem do direito da União relativas à eficácia dos meios processuais à disposição dos titulares dos direitos de autor. Ora, compete seguramente ao Tribunal de Justiça fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todas as indicações necessárias relativamente ao alcance destas obrigações.

23.

Por conseguinte, se o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à conformidade da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal), tal como aquele órgão jurisdicional a interpreta, com os requisitos que decorrem do direito da União, o Tribunal de Justiça é perfeitamente competente para definir o alcance desses requisitos. Há que analisar dois aspetos dessa problemática: o alcance das disposições pertinentes do direito da União e o respeito dos direitos fundamentais na aplicação dessas disposições.

Disposições pertinentes das Diretivas 2001/29 e 2004/48

24.

A Diretiva 2001/29 é bastante lacónica no que respeita às medidas destinadas a garantir o respeito dos direitos por ela harmonizados. O seu artigo 8.o limita‑se a obrigar os Estados‑Membros, de modo geral, a preverem sanções eficazes, proporcionadas e dissuasivas para reprimir as violações dos referidos direitos. Por outro lado, os Estados‑Membros devem assegurar que os titulares dos direitos cujos interesses sejam afetados por uma violação possam intentar uma ação de indemnização. As medidas concretas a tomar para cumprimento destas obrigações foram deixadas à total discrição dos Estados‑Membros.

25.

No entanto, dada a importância dos direitos de propriedade intelectual para a realização do mercado interno, o legislador da União considerou necessário criar regras harmonizadas mais precisas para garantir uma proteção homogénea destes direitos em toda a União ( 7 ). A Diretiva 2004/48 é, assim, inteiramente consagrada às medidas destinadas a garantir o respeito dos direitos de propriedade intelectual.

26.

É certo que, segundo o seu artigo 2.o, n.o 2, a Diretiva 2004/48 não prejudica as disposições específicas relativas ao direito de autor, nomeadamente as previstas no artigo 8.o da Diretiva 2001/29. Por conseguinte, esta disposição estabelece a prevalência das regras da Diretiva 2001/29 sobre as da Diretiva 2004/48. Daí não resulta, porém, que o direito de autor deva ser totalmente excluído do âmbito de aplicação da Diretiva 2004/48. O artigo 2.o, n.o 1, desta diretiva estabelece de modo muito claro que as suas disposições são aplicáveis a «qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual previstos na legislação comunitária e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa». Incluindo‑se incontestavelmente o direito de autor na propriedade intelectual, é aplicável ao mesmo a Diretiva 2004/48, sem prejuízo das disposições específicas contidas noutros atos jurídicos da União que lhe digam respeito. Esta diretiva prevê, aliás, disposições específicas do direito de autor, nomeadamente no seu artigo 5.o, que estabelece uma presunção da autoria ou da posse de um direito conexo com o direito de autor.

27.

O artigo 8.o da Diretiva 2001/29 deve, portanto, ser entendido não como uma disposição isolada de caráter muito geral, mas antes como um elemento do sistema harmonizado da proteção dos direitos de propriedade intelectual instituído pela Diretiva 2004/48. Este sistema vai além da simples autonomia processual dos Estados‑Membros, impondo a estes obrigações concretas, cujo respeito, inclusivamente no aspeto processual, está sujeito à fiscalização do Tribunal de Justiça, que ultrapassa o âmbito da fiscalização clássica dos princípios da equivalência e da efetividade. Uma interpretação diferente privaria a Diretiva 2004/48 da sua razão de ser, porque não acrescentaria nada à obrigação que já incumbe aos Estados‑Membros, por força do princípio da efetividade, de garantirem a eficácia das disposições materiais do direito da União no domínio da propriedade intelectual. Com efeito, seria ilógico considerar que o legislador da União tivesse concebido uma diretiva composta de obrigações que poderiam ser esvaziadas de qualquer conteúdo pela aplicação das regras processuais dos Estados‑Membros. Além disso, a Diretiva 2004/48 tem um âmbito de aplicação autónomo, pois, segundo o seu artigo 2.o, n.o 1, aplica‑se não apenas à proteção dos direitos de propriedade intelectual harmonizados ao nível do direito da União, mas também aos direitos previstos na legislação interna dos Estados‑Membros. Esta diretiva não pode, pois, ser reduzida a uma simples concretização do princípio geral da efetividade da proteção dos direitos conferidos pelo direito da União, princípio que se aplica, no âmbito da autonomia processual dos Estados‑Membros, quando não existam disposições específicas do direito da União.

28.

Por conseguinte, embora o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29, completado e precisado a este respeito pelo artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48, preveja o direito do titular lesado de intentar uma ação de indemnização, isso implica, no meu entender, a obrigação de prever e aplicar, no sistema jurídico interno, mecanismos que permitam efetivamente aos titulares obter esta indemnização. Embora os mecanismos processuais concretos destinados a aplicar estas diretivas sejam da competência dos Estados‑Membros, a sua eficácia está sujeita â fiscalização do Tribunal de Justiça. Contrariamente ao que sugere a Comissão nas suas observações, esta fiscalização não se limita à questão de saber se é praticamente impossível ou excessivamente difícil obter indemnização, porque normalmente esta apreciação é feita no âmbito da fiscalização do respeito do princípio da efetividade. A fiscalização do respeito das obrigações que decorrem destas diretivas necessita de uma interpretação das suas disposições concretas à luz do seu efeito útil.

29.

No processo principal, trata‑se de violações do direito de colocação à disposição do público, cometidas através da Internet. É difícil para os titulares do direito lesados por este tipo de violações identificar os infratores e provar a sua implicação. Com efeito, as violações praticadas através da Internet não deixam um rasto materializado ( 8 ) e permitem, em certa medida, preservar o anonimato dos infratores. O único indício que habitualmente é possível encontrar é o endereço IP a partir do qual a violação foi praticada. Esta identificação do titular do endereço IP, mesmo sendo exata, não constitui prova da responsabilidade de uma pessoa determinada, sobretudo se a ligação Internet em questão for acessível a várias pessoas.

30.

É por esta razão que os ordenamentos jurídicos nacionais preveem frequentemente medidas de simplificação do ónus da prova que impende sobre os titulares dos direitos de autor lesados. Uma medida nesse sentido pode nomeadamente ser tomada sob a forma de presunção de culpabilidade do titular da ligação Internet pela violação praticada a partir do seu endereço IP. Estas medidas permitem assegurar a efetividade do direito dos titulares de pedirem uma indemnização no caso de violações cometidas através da Internet. Segundo as informações contidas no pedido de decisão prejudicial, uma presunção desse tipo foi introduzida no sistema jurídico alemão por via jurisprudencial.

31.

A obrigação de introduzir uma presunção deste tipo não está expressamente prevista nem nas disposições da Diretiva 2001/29 nem nas da Diretiva 2004/48. No entanto, se esta medida é o principal meio previsto pelo direito nacional para garantir a eficácia do direito à reparação do prejuízo sofrido mencionado no artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29, deve a mesma ser aplicada de modo coerente e eficaz. Esta medida não poderia atingir o seu objetivo se fosse muito fácil ilidir a presunção de culpa, deixando o titular lesado sem outra possibilidade de fazer valer o seu direito à reparação do prejuízo sofrido. Este direito seria então ilusório.

32.

Assim, embora o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29 não preveja nenhum meio concreto para garantir a efetividade do direito à indemnização, decorre dele, na minha opinião, que as medidas que existem devem ser aplicadas de modo coerente e eficaz. A este respeito, os órgãos jurisdicionais nacionais têm um papel primordial de apreciação das provas e de ponderação dos diferentes interesses em presença.

33.

Por conseguinte, se o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à interpretação e à aplicação da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) relativa à responsabilidade e às obrigações dos titulares de uma ligação Internet, deve privilegiar a que permite garantir o melhor possível a eficácia da proteção dos direitos de propriedade intelectual.

Proteção dos direitos fundamentais

34.

Parece que o problema com que se defronta o órgão jurisdicional de reenvio na aplicação da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) reside no recurso ao princípio da proteção da vida privada e familiar para limitar a obrigação do titular da ligação Internet de fornecer informações relativas à pessoa que possa ter praticado a violação dos direitos de autor. Assim, quando o referido titular da ligação indicasse que outras pessoas para além dele próprio podiam ter acesso a essa ligação, não seria obrigado nem a divulgar a sua identidade nem a dar outras explicações relativas a essas pessoas, porque tal obrigação constituiria uma ingerência injustificada na sua esfera familiar.

35.

Deve sublinhar‑se a este respeito que, ao aplicarem as disposições que transpõem as Diretivas 2001/29 e 2004/48, os Estados‑Membros estão naturalmente vinculados pelas disposições da Carta. O direito ao respeito pela vida privada e familiar está protegido pelo seu artigo 7.o No entanto, nos litígios relativos aos direitos de autor, o direito ao respeito pela vida privada e familiar pode estar em concorrência com o direito fundamental da propriedade consagrado no artigo 17.o da Carta. A propriedade intelectual está expressamente mencionada no n.o 2 desse artigo.

36.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de sublinhar que o direito à informação de que o demandante deve beneficiar no âmbito de uma ação relativa à proteção de direitos de propriedade intelectual é abrangido pelo direito fundamental a um recurso efetivo garantido no artigo 47.o da Carta e permite assegurar desse modo a proteção efetiva do direito de propriedade intelectual ( 9 ).

37.

Numa situação dessa natureza, em que vários direitos fundamentais estão em concorrência, incumbe às autoridades ou aos órgãos jurisdicionais nacionais garantir o justo equilíbrio entre esses direitos ( 10 ). Também é possível que a necessária compatibilização entre as exigências associadas à proteção de diferentes direitos fundamentais deva ser realizada ao nível do direito da União, nomeadamente pelo Tribunal de Justiça ao interpretar este direito ( 11 ).

38.

No âmbito deste exercício de conciliação, deve ser respeitado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa. Assim, o Tribunal de Justiça já decidiu que é contrário quer ao direito fundamental à propriedade quer ao direito a um recurso efetivo permitir a um estabelecimento bancário invocar o sigilo bancário, em nome do direito à proteção dos dados pessoais, consagrado no artigo 8.o da Carta, para recusar fornecer os dados do titular de uma conta que teriam permitido intentar contra este uma ação relativa à proteção de direitos de propriedade intelectual ( 12 ).

39.

Seria possível seguir um raciocínio semelhante no que respeita à interdependência entre o direito de propriedade intelectual e o direito ao recurso efetivo, por um lado, e o direito ao respeito pela vida familiar, por outro.

40.

Se o direito reconhecido ao titular da ligação Internet, em nome da proteção da sua vida familiar, de recusar dar explicações relativas às pessoas que possam ter praticado a violação dos direitos de autor impedisse na prática o titular desses direitos de obter reparação do prejuízo sofrido, isso afetaria o conteúdo essencial do direito de propriedade intelectual deste titular. Nesse caso, o direito de propriedade deveria prevalecer sobre o direito ao respeito da vida familiar. Pelo contrário, se tal ingerência na vida familiar devesse ser julgada inadmissível pelo órgão jurisdicional nacional, seria o titular da ligação Internet que deveria ser responsabilizado da violação dos direitos de autor. Essa responsabilidade secundária é aparentemente possível no direito alemão ( 13 ). Antes de invocar a responsabilidade do titular da ligação Internet, o órgão jurisdicional nacional deveria ainda assegurar‑se de que não há outros meios processuais que permitam ao titular dos direitos de autor lesado identificar as pessoas que praticaram a violação, a fim de obter reparação ( 14 ).

41.

Além disso, parece‑me que podem ainda ser tidas em conta no exercício de ponderação dos direitos fundamentais duas outras disposições da Carta.

42.

Trata‑se, em primeiro lugar, do artigo 20.o da Carta, que consagra a igualdade perante a lei. Com efeito, segundo as informações fornecidas pela Bastei Lübbe nas suas observações, cerca de 70% das ligações Internet na Alemanha são «ligações familiares», ou seja, ligações utilizadas no contexto familiar. Restam assim 30% de ligações que não são utilizadas nesse contexto, algumas das quais são provavelmente detidas por pessoas que vivem sós. Se a utilização de uma ligação Internet no contexto familiar permitisse escapar facilmente à responsabilidade por violações dos direitos de autor, isso levaria a um tratamento mais desfavorável das pessoas que, vivendo sós, não permitem a outros membros da família aceder à sua ligação Internet. Ora, se as pessoas que vivem em família não se encontram na mesma situação que as que vivem sós do ponto de vista do respeito da vida familiar, essa diferença de situação não existe no que respeita à responsabilidade pelas violações dos direitos de autor. Assim, o simples facto de coabitar com outros membros da família não pode implicar automaticamente a exclusão dessa responsabilidade.

43.

Em segundo lugar, o artigo 54.o da Carta impõe a proibição do abuso dos direitos que nela são reconhecidos. É verdade que este artigo visa principalmente os atos que, a pretexto dos direitos reconhecidos pela Carta, têm na realidade como objetivo lutar contra os direitos fundamentais e aniquilá‑los ( 15 ). A violação de um direito de propriedade intelectual não é, evidentemente, um ato dessa natureza.

44.

Dito isto, a proibição do abuso de direito faz parte dos princípios gerais do direito da União há muito tempo ( 16 ). Por força deste princípio, os cidadãos não podem invocar abusivamente os direitos conferidos pelas normas da União com a finalidade de beneficiar abusivamente das vantagens que deles resultam sem violarem o objetivo destas normas.

45.

No processo principal, M. Strotzer sustenta que não pode ser responsabilizado pela violação dos direitos de autor cometida através da sua ligação Internet, porque outras pessoas, a saber, os seus pais, também têm acesso a esta ligação. Ao mesmo tempo, afirma que os seus pais não têm conhecimentos sobre o software utilizado para praticar essa violação nem possuem no seu computador a obra que foi colocada ilegalmente à disposição do público.

46.

Compete então ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se M. Strotzer abusa do direito à proteção da vida familiar, invocando‑o não para proteger os membros da sua família contra uma eventual responsabilidade pela violação dos direitos de autor com a qual eles não têm visivelmente nenhuma relação, mas apenas para escapar à sua própria responsabilidade por essa violação. Se tal fosse o caso, o direito à proteção da vida familiar não deveria obstar à proteção da propriedade intelectual dos titulares dos referidos direitos de autor.

Conclusão

47.

Face às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que dê a seguinte resposta às questões prejudiciais apresentadas pelo Landgericht München I (Tribunal Regional de Munique I, Alemanha):

O artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, e o artigo 13.o, n.o 1, da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual, devem ser interpretados no sentido de que não impõem que sejam introduzidas no direito interno dos Estados‑Membros presunções de responsabilidade dos titulares de ligações Internet pelas violações dos direitos de autor praticadas através dessas ligações. No entanto, se o direito interno previr tais presunções para garantir a proteção dos referidos direitos, estas devem ser aplicadas de modo coerente para garantir a eficácia dessa proteção. O direito ao respeito da vida familiar reconhecido pelo artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não pode ser interpretado de modo que prive os titulares de qualquer possibilidade efetiva de proteção do seu direito de propriedade intelectual consagrado no artigo 17.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2001, L 167, p. 10.

( 3 ) JO 2004, L 157, p. 45.

( 4 ) O órgão jurisdicional de reenvio cita, designadamente, o Acórdão do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) de 6 de outubro de 2016, I ZR 154/15, Afterlife.

( 5 ) Entendo esta expressão no sentido de que engloba quer os direitos de autor quer os direitos conexos, tais como os direitos dos produtores de fonogramas.

( 6 ) V., mais recentemente, Acórdão de 17 de abril de 2018, Egenberger (C‑414/16, EU:C:2018:257, n.os 71 e 72).

( 7 ) V. considerandos 1, 8 e 9 da Diretiva 2004/48 [N. do T.: No EUR‑Lex só está disponível a versão PDF da diretiva, e os considerandos começam com o n.o (10). Assim, as referências aos considerandos 1, 8 e 9, devem ser entendidas para os considerandos 10, 18 e 19].

( 8 ) Contrariamente, por exemplo, à venda de mercadorias contrafeitas.

( 9 ) Acórdão de 16 de julho de 2015, Coty Germany (C‑580/13, EU:C:2015:485, n.o 29).

( 10 ) Acórdão de 15 de setembro de 2016, Mc Fadden (C‑484/14, EU:C:2016:689, n.o 84).

( 11 ) Acórdão de 16 de julho de 2015, Coty Germany (C‑580/13, EU:C:2015:485, n.o 33).

( 12 ) Acórdão de 16 de julho de 2015, Coty Germany (C‑580/13, EU:C:2015:485, n.os 37 a 41).

( 13 ) V. Acórdão do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) de 30 de março de 2017, I ZR 19/16 Loud, proferido após a apresentação do pedido de decisão prejudicial no presente processo.

( 14 ) V., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2015, Coty Germany (C‑580/13, EU:C:2015:485, n.o 42).

( 15 ) V. Woods, L., «Article 54 — Abuse of Rights», in Peers, S., Hervey, T. K. Kenner, J. e o. (éd.), The EU Charter of Fundamental Rights: A Commentary, Hart Publishing, Oxford Portland (Oregon), 2014, p. 1539.

( 16 ) V., para uma aplicação recente, Acórdão de 6 de fevereiro de 2018, Altun e o. (C‑359/16, EU:C:2018:63, n.os 48 e segs.)