CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NIILO JÄÄSKINEN

apresentadas em 16 de julho de 2015 ( 1 )

Processo C‑603/13 P

Galp Energía España, SA

Petróleos de Portugal (Petrogal), SA

Galp Energia, SGPS, SA

contra

Comissão Europeia

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Acordos, decisões e práticas concertadas — Mercado espanhol do betume rodoviário — Repartição do mercado e concertação dos preços — Competência de plena jurisdição — Princípio ne ultra petita — Direito a um processo equitativo — Direitos da defesa — Princípio do contraditório — Infração única e continuada — Alegado conhecimento do sistema de supervisão e do mecanismo de compensação estabelecidos pelos outros participantes no acordo ilegal — Desvirtuação dos elementos de prova»

I – Introdução

1.

O processo submetido ao Tribunal de Justiça tem por objeto um recurso interposto pelo grupo de sociedades Galp Energía España, SA, Petróleos de Portugal (Petrogal), SA e Galp Energía, SGPS, SA (a seguir, conjuntamente, «recorrentes») do acórdão Galp Energía España e o./Comissão (T‑462/07, a seguir «acórdão recorrido») ( 2 ), pelo qual o Tribunal Geral deu provimento parcial ao seu recurso de anulação da Decisão C(2007) 4441 final da Comissão ( 3 ) (a seguir «decisão controvertida»), e ao seu pedido subsidiário de redução do montante da coima que lhes havia sido aplicada.

2.

Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões limitar‑se‑ão à análise do segundo fundamento que está no cerne do presente recurso e que suscita, em substância, a questão dos limites da competência de plena jurisdição atribuída ao Tribunal Geral. Na minha opinião, pelas razões que exporei a seguir, o Tribunal Geral excedeu os referidos limites e o presente recurso deve ser julgado procedente. Com efeito, considero que a competência de plena jurisdição não confere ao Tribunal Geral a competência para confirmar uma infração que não ficou provada na decisão da Comissão.

II – Antecedentes do litígio

3.

Os antecedentes do litígio foram expostos nos n.os 1 a 85 do acórdão recorrido para o qual remeto.

4.

Na medida do necessário, basta recordar que, em 3 de outubro de 2007, a Comissão adotou a decisão controvertida, na qual concluiu que as recorrentes tinham participado num conjunto de acordos e de práticas concertadas no mercado do betume de penetração que cobria o território espanhol (com exceção das Ilhas Canárias) sob a forma de acordos de partilha do mercado e de concertação dos preços. A Comissão considerou que ambas as restrições da concorrência constatadas, concretamente, os acordos horizontais de partilha do mercado e a concertação dos preços, estavam compreendidas, pela sua própria natureza, nos mais graves tipos de infrações ao artigo 81.o CE, que são suscetíveis de justificar, segundo a jurisprudência, a qualificação de infrações «muito graves» tendo em conta apenas a sua natureza, sem que seja necessário que esse comportamento cubra uma zona geográfica específica ou tenha um impacto específico ( 4 ).

5.

Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 19 de dezembro de 2007, as recorrentes contestaram o conteúdo da decisão e pediram a sua anulação parcial ou total.

6.

No acórdão recorrido, o Tribunal Geral acolheu o terceiro fundamento de anulação baseando‑se na ilegalidade que afetava a declaração de participação das recorrentes no sistema de supervisão e no mecanismo de compensação relativos à implementação dos acordos de partilha do mercado e dos clientes pelos membros do cartel. Por conseguinte, o Tribunal Geral anulou parcialmente a decisão controvertida na medida em que a mesma declarava, no seu artigo 1.o, que as recorrentes estavam implicadas num conjunto de acordos e de práticas concertadas no mercado espanhol do betume e obrigava as referidas recorrentes, no seu artigo 3.o, a pôr fim à infração conforme declarada no artigo 1.o da decisão controvertida.

7.

No entanto, o Tribunal Geral considerou que as recorrentes podiam ser responsabilizadas pelos dois elementos da infração acima referidos (n.o 626 do acórdão recorrido). Fundamentou esta conclusão numa declaração de V. C., que era o diretor de vendas de betume da Petrogal e, em seguida, da Galp Energía España (a seguir «declaração de V. C.») ( 5 ). Por essa razão, o Tribunal Geral considerou que não tinha que alterar o montante de partida da coima (n.o 630 do acórdão recorrido). Em contrapartida, considerou necessário reduzir mais a coima aplicada pela Comissão por circunstâncias atenuantes (n.o 632 do acórdão recorrido). Por conseguinte, procedeu a uma redução suplementar de 4% a acrescer à redução de 10% já concedida pela decisão controvertida (n.o 635 do acórdão recorrido). O Tribunal Geral rejeitou os outros fundamentos de anulação das partes, incluindo o quinto fundamento, relativo à ilegalidade que afeta a declaração da sua participação na concertação dos preços (n.os 450 a 456 do acórdão recorrido) ( 6 ).

III – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

8.

Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de novembro de 2013, as recorrentes interpuseram um recurso no qual pedem ao Tribunal de Justiça que se digne:

a título principal, anular o acórdão recorrido e os artigos 1.°, 2.° e 3.° da decisão controvertida, na medida em que diz respeito às recorrentes, e/ou reduzir o montante da coima aplicada às recorrentes,

a título subsidiário, anular o acórdão recorrido e remeter o processo ao Tribunal Geral para decisão quanto ao mérito,

condenar a Comissão nas despesas

9.

A Comissão conclui pedindo que seja negado provimento ao recurso e que as recorrentes sejam condenadas nas despesas.

10.

No Tribunal de Justiça, as partes expuseram a respetiva posição por escrito e foram ouvidas na audiência que teve lugar em 15 de abril de 2015.

IV – Quanto à declaração da responsabilidade das recorrentes pelo Tribunal Geral como ponto de partida da análise do segundo fundamento do recurso

A – Breve recapitulação sobre a competência de plena jurisdição

11.

Com o seu segundo fundamento, subdividido em três partes, as recorrentes acusam o Tribunal Geral de ter cometido um erro de direito nos n.os 626 e 630 do acórdão recorrido. Evocando uma multitude de princípios e de regras processuais, as recorrentes censuram na realidade ao Tribunal Geral um ato preciso, a saber, a tomada em consideração de um documento emitido depois da adoção da decisão controvertida, isto é, a declaração de V. C., acima referida, com o objetivo de declarar a responsabilidade das recorrentes relativamente aos dois elementos do mecanismo da infração ( 7 ).

12.

Ora, antes de mais, saliento que o Tribunal Geral fundamentou a tomada em consideração da declaração de V. C. na sua competência de plena jurisdição.

13.

Consequentemente, importa recordar que a competência de plena jurisdição conferida ao Tribunal Geral completa a fiscalização da legalidade prevista no artigo 263.o TFUE. Como declarou o Tribunal de Justiça, «a fiscalização da legalidade é completada pela competência de plena jurisdição que é reconhecida ao juiz da União pelo artigo 31.o do Regulamento n.o 1/2003, em conformidade com o artigo 261.o TFUE. Esta competência habilita o juiz, para além da simples fiscalização da legalidade da punição, a substituir a apreciação da Comissão pela sua própria apreciação e, deste modo, a suprimir, reduzir ou aumentar a coima ou a sanção pecuniária compulsória aplicada» ( 8 ). A jurisprudência esclareceu que o poder de reforma se aplica mesmo na ausência de erro cometido pela Comissão ( 9 ). Permite ao juiz, designadamente em matéria da concorrência, não só anular ou confirmar uma coima, mas também aumentá‑la ou diminuí‑la.

14.

Assim, a competência de plena jurisdição habilita o órgão jurisdicional a reformar o ato impugnado, mesmo sem o anular, tendo em conta todas as circunstâncias de facto, a fim de alterar, por exemplo, o montante da coima aplicada ( 10 ). No entanto, as modalidades de exercício da competência de plena jurisdição não estão todas definidas ( 11 ).

15.

Saliento que, nos acórdãos Chalkor ( 12 ) e KME ( 13 ), o Tribunal de Justiça claramente concluiu que a fiscalização de plena jurisdição do Tribunal Geral implicava uma fiscalização tanto de direito como de facto, bem como o poder de apreciar as provas, de anular a decisão controvertida e de alterar o montante das coimas ( 14 ).

16.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça também considerou que a fiscalização da legalidade prevista no artigo 263.o TFUE, completada pela competência de plena jurisdição quanto ao montante da coima, prevista no artigo 31.o do Regulamento n.o 1/2003 ( 15 ), não é contrária às exigências do princípio da proteção jurisdicional efetiva que figura no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ( 16 ).

B – Raciocínio do Tribunal Geral e apreciação da responsabilidade

17.

Uma vez que a compreensão do raciocínio do Tribunal Geral é, na minha opinião, determinante para efeitos da análise do segundo fundamento do recurso, proponho‑me analisar o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal Geral no âmbito do exame do terceiro e do nono fundamentos do recurso em primeira instância, a fim de abordar as alegações pontuais suscitadas no presente recurso.

18.

Com o seu terceiro fundamento invocado perante o Tribunal Geral, as recorrentes contestaram a sua implicação no sistema de supervisão e no mecanismo de compensação.

19.

Na sequência da sua análise, o Tribunal Geral acolheu o terceiro fundamento na medida em que a Comissão declarou a responsabilidade das recorrentes em relação a toda a infração, apesar de não ter feito prova bastante da sua participação nos dois elementos da infração. Acresce que esta mesma instituição não tinha demonstrado o seu conhecimento ou, pelo menos, a impossibilidade de ignorar a existência dos dois elementos acima referidos para poder aplicar corretamente o conceito de infração única e continuada. Por conseguinte, o Tribunal Geral anulou o artigo 1.o da decisão controvertida na medida em que esta declara que as recorrentes estavam implicadas num conjunto de acordos e de práticas concertadas no mercado espanhol do betume.

20.

Na medida em que o Tribunal Geral se fundamentou no conceito de infração única e continuada ( 17 ), importa recordar que uma empresa que tenha participado numa infração única e complexa através de comportamentos anticoncorrenciais que visavam contribuir para a realização da infração no seu conjunto, pode também ser responsável por comportamentos materialmente postos em prática por outras empresas participantes. Tal é o caso quando se prova que a referida empresa pretendia contribuir, através do seu próprio comportamento, para os objetivos comuns prosseguidos pelo conjunto dos participantes e tinha conhecimento dos comportamentos infratores perspetivados ou postos em prática por outras empresas na prossecução dos mesmos objetivos, ou podia razoavelmente prevê‑los e estava pronta a aceitar o risco ( 18 ).

21.

Em contrapartida, se o juiz da União declarar que a Comissão não provou totalmente que uma empresa, ao participar num dos comportamentos anticoncorrenciais que compõem uma infração única e continuada, tinha conhecimento dos outros comportamentos anticoncorrenciais adotados pelos outros participantes no acordo na prossecução dos mesmos objetivos, ou podia razoavelmente prevê‑los e estava pronta a aceitar o risco, deve daí tirar como única consequência que não se pode imputar a essa empresa a responsabilidade desses outros comportamentos e, portanto, da infração única e continuada, no seu conjunto, e que a decisão controvertida deve ser considerada não fundamentada exclusivamente nessa medida ( 19 ). A este propósito, há que observar que, no acórdão Soliver/Comissão, o Tribunal Geral se mostrou recentemente bastante exigente quanto à prova da participação na infração única e continuada ( 20 ).

22.

No caso em apreço, o Tribunal Geral concluiu, nos n.os 273 e 279 do acórdão recorrido, que a Comissão declarou a responsabilidade das recorrentes pelo conjunto dos elementos da infração, incluindo a participação no sistema de supervisão e no mecanismo de compensação. Por outro lado, o Tribunal Geral destacou, no n.o 286 do acórdão recorrido, que, para provar a responsabilidade das recorrentes, a Comissão não se tinha baseado noutro elemento além do resultante da participação nos referidos elementos da infração. Ora, nos n.os 272 e 280 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que não estava provada a participação das recorrentes nos dois elementos da infração.

23.

É certo que a jurisprudência acima referida respeitante à infração única e continuada permite declarar a responsabilidade de uma empresa pelo conjunto da infração, desde que esta tenha conhecimento dos comportamentos infratores ou não possa ignorar a sua existência.

24.

No entanto, o Tribunal Geral declarou expressamente, no n.o 289 do acórdão recorrido, que a Comissão não se tinha baseado num conhecimento que as recorrentes tivessem do sistema de supervisão e do sistema de compensação nem no facto de não poderem ignorar esses elementos. De acordo com o Tribunal Geral, no n.o 290 desse mesmo acórdão, esse conhecimento ou a impossibilidade de ignorar a sua existência não está demonstrado na decisão controvertida.

25.

Por último, no n.o 291 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral excluiu a possibilidade de presumir esse conhecimento tendo em conta o seu papel no cartel. Consequentemente, o Tribunal Geral concluiu, no n.o 292 do acórdão recorrido, que a responsabilidade das recorrentes em relação ao sistema de supervisão e ao mecanismo de compensação não estava estabelecida.

26.

Para colmatar a lacuna de que, segundo o Tribunal Geral, enfermava a decisão controvertida, a Comissão invocou a declaração de V. C. Este elemento foi rejeitado pelo Tribunal Geral nos n.os 294 a 295 do acórdão recorrido. Segundo o Tribunal Geral, embora a declaração revelasse a posteriori o conhecimento efetivo que as recorrentes tinham do mecanismo de compensação, não é menos verdade que o Tribunal Geral não pode, no quadro do controlo da legalidade, substituir a fundamentação da Comissão por uma nova fundamentação. Além disso, considerou que essa declaração não permitia, em qualquer caso, sanar o vício de legalidade que afetava a decisão controvertida.

27.

Este raciocínio deve ser relacionado com a declaração da responsabilidade das recorrentes, efetuada pelo Tribunal Geral no âmbito do nono fundamento do recurso em primeira instância.

28.

No âmbito do nono fundamento invocado perante o Tribunal Geral, as recorrentes contestaram a não redução da coima apesar da sua participação muito limitada na infração. A este respeito, o Tribunal Geral recordou, no n.o 606 do acórdão recorrido, que, como concluiu no âmbito do terceiro fundamento em primeira instância, não só a Comissão não tinha provado a participação das recorrentes nos dois elementos da infração constituídos pelos sistemas de supervisão e de compensação, como também não tinha apresentado elementos suficientes que lhe permitissem declarar a sua responsabilidade quanto a esses elementos.

29.

Todavia, não obstante as conclusões recordadas supra, o Tribunal Geral deduziu da declaração de V. C. que as recorrentes tinham conhecimento do mecanismo de compensação, o que implica, segundo o Tribunal Geral, que as recorrentes tinham conhecimento do sistema de supervisão, uma vez que o mecanismo de compensação não podia existir sem um mecanismo de supervisão. Resulta do n.o 624 do acórdão recorrido que o Tribunal agiu, a este respeito, com fundamento na sua competência de plena jurisdição.

30.

Resulta dos n.os 610 a 626 do acórdão recorrido que o Tribunal Geral se fundamentou na declaração de V. C. para estabelecer a responsabilidade das recorrentes em relação àqueles dois elementos da infração. Por último, resulta do n.o 627 do acórdão recorrido que foi à luz destes elementos que o Tribunal Geral examinou os montantes das coimas aplicadas às recorrentes.

31.

São precisamente estes elementos controvertidos do raciocínio do Tribunal Geral que constituem o objeto do segundo fundamento do presente recurso.

V – Competência de plena jurisdição e princípio ne ultra petita

A – Argumentos das partes

32.

Na primeira parte do segundo fundamento, as recorrentes alegam que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao exceder as suas competências e ao decidir ultra petita, na medida em que, pelo conhecimento oficioso de um fundamento não invocado pelas recorrentes nem pela Comissão ( 21 ), considerou‑as responsáveis em resultado de dois elementos da infração ao artigo 81.o, n.o 1, CE, a saber, o conhecimento do mecanismo de compensação e a previsibilidade do sistema de supervisão ( 22 ).

33.

No caso em apreço, o Tribunal Geral decidiu ultra petita, uma vez que a Comissão não se tinha baseado nesses motivos na decisão, que esses motivos não foram invocados como fundamentos de anulação pelas recorrentes e que os mesmos motivos não foram objeto de nenhum debate, exceto do ponto de vista da admissibilidade da declaração de V. C.

34.

Pelo seu lado, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral, no exercício da sua plena jurisdição ao decidir quanto ao nível da coima, podia validamente ter em conta o conhecimento dos mecanismos de supervisão e de compensação pelas recorrentes, uma vez que se trata de uma circunstância de facto. Em relação à declaração de V. C., a Comissão considera que o Tribunal Geral podia validamente tomá‑la em consideração ao decidir sobre o nível da coima ( 23 ), nomeadamente na medida em que a jurisprudência admite a possibilidade de incluir «a apresentação e a tomada em consideração de elementos complementares de informação cuja menção na decisão não é como tal exigida» ( 24 ). Por último, a Comissão entende que o fundamento é inoperante na medida em que o Tribunal Geral já reduziu o montante da coima ( 25 ).

B – Apreciação

35.

É facto assente que o juiz da União chamado a decidir sobre um recurso de anulação está vinculado pelo princípio dito «ne ultra petita», o qual decorre do adágio «ne eat iudex ultra petita partium», que proíbe o juiz de se pronunciar sobre questões que não constam dos pedidos das partes. Por força deste princípio, a decisão de anulação proferida não pode exceder a requerida pelo recorrente ( 26 ). Não tem competência para redefinir o objeto principal do recurso, nem para atuar oficiosamente fora dos casos excecionais em que o interesse público exija a sua intervenção ( 27 ). Com efeito, o juiz da União tem a faculdade e, se for caso disso, a obrigação de conhecer oficiosamente determinados fundamentos de legalidade externa ( 28 ).

36.

Importa assinalar que o princípio ne ultra petita só é plenamente aplicável no âmbito dos processos de direito civil, enquanto princípio do dispositivo. Em contrapartida, nos processos de direito público, entre os quais figuram os de direito da concorrência, o seu alcance é mais difícil de delimitar. Com efeito, na minha opinião, o referido princípio não desempenha uma função específica, antes se transforma num aspeto do direito a um processo equitativo em geral. Tal como o advogado‑geral P. Léger afirmou, o juiz não está, nesta matéria, de modo algum, confinado a um papel passivo e não pode ser relegado para a função de «voz das partes» ( 29 ). Observo, nomeadamente, que a proibição de invocar fundamentos oficiosamente é apenas aplicável no âmbito do contencioso de anulação, isto é, da fiscalização da legalidade. Em contrapartida, não desempenha uma função semelhante no âmbito da competência de plena jurisdição.

37.

Isso leva‑me à questão de saber como aplicar o princípio ne ultra petita no âmbito da competência de plena jurisdição, uma vez que o presente processo respeita no essencial aos limites da referida competência que é o cerne do presente processo. No acórdão Danone/Comissão, o Tribunal de Justiça declarou que «o juiz comunitário pode exercer a sua competência de plena jurisdição, quando a questão do montante da coima é submetida à sua apreciação, e que essa competência pode ser exercida tanto para reduzir esse montante como para o aumentar» ( 30 ).

38.

Isso abre caminho para duas interpretações diferentes. Por um lado, pode sustentar‑se que uma parte deve, para que o Tribunal Geral possa exercer a sua competência de plena jurisdição, suscitar a questão do montante da coima de forma expressa e precisa no pedido. Por outro, também se pode deduzir da posição do Tribunal de Justiça que basta que a questão da coima seja objeto do litígio e seja debatida no âmbito dos fundamentos. Esta questão assume particular importância dado que o exercício da plena jurisdição equivale à competência do Tribunal Geral para aumentar a coima, embora o pedido das partes respeite unicamente à sua redução ( 31 ).

39.

A aplicação do princípio ne ultra petita no âmbito da plena jurisdição não é unívoca, mas parece pleitear no sentido da primeira interpretação evocada no acórdão Danone, a saber, que o montante da coima deve ser objeto do pedido. Assim, no acórdão Comissão e o./Siemens Österreich e o., o Tribunal de Justiça declarou que o Tribunal Geral decidiu ultra petita ao anular uma disposição da decisão da Comissão e ao alterar as coimas aplicadas, englobando‑as num único montante a pagar solidariamente pelas partes ( 32 ). Acresce que, no acórdão Alliance One International/Comissão, o Tribunal de Justiça, ao rejeitar o fundamento baseado numa violação do princípio ne ultra petita, sublinhou que, não obstante a falta de pedido, a parte tinha pedido, a título subsidiário, a redução do montante da coima aplicada a um outro participante de um cartel e, solidariamente, a si própria e que os seus fundamentos tinham, nomeadamente, o objetivo de justificar a concessão dessa redução ( 33 ).

40.

À luz de tudo o que antecede, considero que as alegações das recorrentes não são, na realidade, relativas a uma violação do princípio ne ultra petita ou a um conhecimento oficioso incorreto. Em todo o caso, parece‑me que as referidas alegações procedem de uma leitura errada do acórdão recorrido. Conforme já salientei, os argumentos apresentados pelas recorrentes respeitam ao alcance da competência de plena jurisdição do Tribunal Geral, o qual, ao constatar a responsabilidade das recorrentes pelos dois elementos do cartel, estabeleceu, na realidade, a infração controvertida.

41.

Todavia, se se devesse considerar que as alegações das recorrentes eram, não obstante, relativas à violação do princípio ne ultra petita, bastaria observar, a este respeito, que, na primeira instância, foram as recorrentes que apresentaram a declaração de V. C. para demonstrar que não tinham participado nos mecanismos de supervisão e de compensação. Perante o Tribunal Geral, as recorrentes pediram, a título principal, a anulação da decisão controvertida na sua totalidade. A título subsidiário, pediram a anulação dos artigos 1.°, 2.° e 3.° da decisão controvertida na medida em que respeitam às recorrentes e, subsidiariamente, a redução da coima aplicada às recorrentes pelo artigo 2.o da decisão controvertida ( 34 ). Em relação à Comissão, é um facto assente que tinha pedido, em primeira instância, que fosse negado provimento ao recurso.

42.

Conforme anteriormente recordado, o Tribunal Geral anulou, em parte, a decisão controvertida e reduziu a coima aplicada pela Comissão. Assim analisado, o acórdão recorrido não enferma de nenhum erro de direito relativo a uma violação do princípio ne ultra petita. Consequentemente, proponho que o Tribunal de Justiça declare improcedente a primeira parte do segundo fundamento.

VI – Plena jurisdição e direito a um processo equitativo

A – Argumentos das partes

43.

Na segunda parte do segundo fundamento, as recorrentes alegam que o Tribunal Geral violou o direito a um processo equitativo (o qual engloba o princípio da igualdade das armas) e os direitos da defesa e, mais especificamente, o princípio do contraditório, ao concluir nos n.os 624 a 626 do acórdão que lhe compete, no exercício do seu poder de plena jurisdição, tomar em consideração a declaração de V. C., para estabelecer a responsabilidade das recorrentes pela sua participação no sistema de supervisão e pelo seu conhecimento do mecanismo de compensação.

44.

O Tribunal Geral violou o direito a um processo equitativo, em especial o princípio da igualdade das armas, e os direitos da defesa, incluindo o princípio do contraditório, ao não comunicar com precisão às recorrentes, antes de decidir, a natureza e o fundamento dessa nova acusação, em conformidade com os requisitos constantes do artigo 6.o da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, e dos artigos 47.° e 48.° da Carta.

45.

A Comissão contesta os argumentos das recorrentes pondo a tónica no facto de os elementos de prova produzidos por V. C. relativos ao conhecimento terem sido mencionados pela primeira vez pelas recorrentes. Por conseguinte, seria absurdo da parte das recorrentes alegarem que não puderam tomar conhecimento desses elementos ( 35 ).

B – Apreciação

1. Observações introdutórias

46.

O direito a um processo equitativo, garantido pelo artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, constitui um princípio geral de direito da União, atualmente inscrito no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta. O princípio da proteção jurisdicional efetiva que figura no referido artigo 47.o agrupa diversos elementos, entre os quais constam, designadamente os direitos da defesa, o princípio da igualdade das armas e o direito de acesso aos tribunais.

47.

Em relação ao princípio do contraditório, é um facto assente que o referido princípio faz parte dos direitos da defesa. Aplica‑se a todos os procedimentos suscetíveis de conduzir a decisões de instituições comunitárias que afetem de forma sensível os interesses de uma pessoa ( 36 ). O princípio da igualdade de armas, sendo um corolário do próprio conceito de processo equitativo, implica a obrigação de oferecer a cada parte uma possibilidade razoável de apresentar a sua causa, incluindo as provas, em condições que não a coloquem numa situação de clara desvantagem relativamente ao seu adversário ( 37 ). Este princípio é invocável nos procedimentos sancionatórios instaurados pela Comissão ( 38 ).

48.

No domínio do direito da concorrência, parece‑me essencial declarar que é à Comissão que compete apresentar a prova das infrações que constata e apresentar elementos de prova adequados para demonstrar, de modo jurídico bastante, a existência dos factos constitutivos de uma infração. Com efeito, o que é exigido a um recorrente, no âmbito de um recurso jurisdicional, é que identifique os elementos contestados da decisão controvertida, formule alegações a esse respeito e apresente provas, as quais podem ser constituídas por indícios sérios, destinadas a demonstrar que as suas alegações são procedentes ( 39 ).

2. Apreciação da tomada em consideração da declaração de V. C. pelo Tribunal Geral do ponto de vista da competência de plena jurisdição

49.

Resulta do acórdão recorrido que a declaração de V. C. foi apresentada em 6 de dezembro de 2007, ou seja, posteriormente à decisão controvertida, e que foi anexada à petição entregue no Tribunal Geral e junta aos autos pelas recorrentes nesse Tribunal ( 40 ). A Comissão invocou essa declaração nos seus articulados ( 41 ). A declaração foi considerada admissível pelo Tribunal Geral. As recorrentes também a invocaram no Tribunal Geral, nomeadamente, no âmbito do quarto fundamento ( 42 ).

50.

Recordo que o respeito dos direitos de defesa em matéria de concorrência exige que a empresa em causa esteja em condições, durante o procedimento administrativo, de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre a realidade e a pertinência dos factos e das circunstâncias alegados e sobre os documentos considerados pela Comissão em apoio da sua alegação da existência de uma infração ao Tratado CE ( 43 ). É, nomeadamente, a comunicação de acusações que permite às empresas que são alvo de um inquérito tomar conhecimento dos elementos de prova de que dispõe a Comissão e conferir aos direitos de defesa a sua plena eficácia ( 44 ).

51.

Ora, como sublinha a Comissão, resulta da jurisprudência que «uma parte que apresenta ela própria os elementos de facto em causa, teve, mesmo que por hipótese, todas as condições para expor, na altura da referida apresentação, a eventual pertinência que estes tinham para a solução do processo» ( 45 ).

52.

A este respeito, é um facto assente que, no exercício da sua competência de plena jurisdição em relação ao montante da coima, o Tribunal Geral deve colocar‑se na data em que profere o seu acórdão. Assim, importa distinguir entre, por um lado, a tomada em conta, pelo Tribunal Geral, dos documentos ou elementos adicionais que não foram apresentados pela Comissão ( 46 ) ou até dos elementos de que esta não tinha conhecimento no momento da adoção da decisão e, por outro, a determinação do comportamento infrator e a tomada em conta da responsabilidade dos participantes do cartel, a qual ou foi expressamente excluída na decisão da Comissão ou não foi provada pela Comissão.

53.

Com efeito, em relação à tomada em consideração dos elementos adicionais, resulta da jurisprudência que «o Tribunal Geral tem competência para apreciar, no âmbito do seu poder de plena jurisdição que lhe é reconhecido pelo artigo 261.o TFUE e pelo artigo 31.o do Regulamento n.o 1/2003, o caráter apropriado do montante das coimas, baseando‑se nomeadamente em elementos complementares de informação, que não foram mencionados na comunicação das acusações ou na decisão da Comissão» ( 47 ).

54.

Conforme salientou o advogado‑geral M. Wathelet no processo Telefónica e Telefónica de España/Comissão, o Tribunal Geral deve, portanto, avaliar por si mesmo se a coima é adequada e proporcionada e deve verificar por si mesmo se todos os elementos relevantes para o efeito de calcular a coima foram realmente tomados em consideração pela Comissão, entendendo‑se que o Tribunal Geral também deve poder, por conseguinte, reconsiderar os factos e as circunstâncias que os recorrentes lhe apresentam ( 48 ).

55.

Para esse efeito, o Tribunal Geral também pode ter em conta elementos de que a Comissão não teve conhecimento na adoção da decisão controvertida ( 49 ). Assim, o Tribunal Geral tem em conta elementos posteriores à decisão da Comissão, nomeadamente em relação à situação financeira da empresa ( 50 ).

56.

Sob este ponto de vista, a tomada em consideração da declaração de V. C. não infringe os direitos da defesa nem o princípio do contraditório, ainda que o valor que o Tribunal Geral lhe atribui não seja unívoco ( 51 ). Por um lado, tendo em conta que é posterior à decisão controvertida, este documento não pode contradizer os elementos de prova apresentados pela Comissão e, por outro, a declaração é tida em consideração para fundamentar a responsabilidade das empresas em causa. No entanto, à luz da jurisprudência referida, a tomada em consideração da declaração, em si, no âmbito da ponderação da sanção pelo Tribunal Geral no exercício da sua competência de plena jurisdição, parece‑me admissível ( 52 ).

57.

Em qualquer caso, a situação do processo em apreço difere, no meu entendimento, da que deu origem ao acórdão Comissão/Edison ( 53 ), no qual o Tribunal de Justiça validou o raciocínio do Tribunal Geral segundo a qual o elemento tido em consideração na decisão da Comissão era um elemento que não tinha sido exposto na comunicação das acusações e sobre o qual a Edison não tinha tido a oportunidade de invocar o seu ponto de vista no procedimento administrativo. Por conseguinte, foi com razão que o Tribunal Geral declarou esse elemento inoponível à referida sociedade ( 54 ).

3. Violação do princípio de plena jurisdição e dos direitos da defesa pela determinação da responsabilidade das recorrentes pelo Tribunal Geral

58.

A problemática da tomada em consideração formal da declaração de V.C deve, no entanto, ser distinguida da que suscita a maneira como o Tribunal Geral utilizou a referida declaração, ou seja, de quais são as consequências que o Tribunal Geral lhe atribuiu e com que finalidade a empregou. É certo que resulta do acórdão recorrido que o Tribunal Geral a teve em conta para efeitos de apreciação da coima, mas, ao fazê‑lo, concluiu pela responsabilidade das recorrentes sem que estas tivessem beneficiado de um debate contraditório.

59.

Ao contrário da Comissão, considero que as consequências que o Tribunal Geral extraiu desse documento não constituem um simples elemento de facto. Pelo contrário, é especialmente importante do ponto de vista do respeito dos direitos da defesa. Conforme a advogada‑geral J. Kokott salientou no processo Comissão/Alrosa, o Tribunal Geral podia adotar uma «decisão surpresa» não só quando aprecia o processo apoiando‑se em factos que não eram conhecidos pelas partes, mas também quando se apoia para isso em factos que, embora conhecidos das partes, não tinham sido, como tal, objeto de discussão no processo judicial ( 55 ).

60.

Ora, neste caso, determinante é que ao tomar em consideração a declaração de V. C., o Tribunal Geral alterou a qualificação do ato incriminado tal como foi constatado na decisão da Comissão.

61.

Ao considerar um comportamento para determinar a responsabilidade das recorrentes, o Tribunal Geral excedeu os limites da plena jurisdição. Com efeito, ao fazê‑lo, constatou uma infração não declarada pela Comissão. Deste ponto de vista, o n.o 621 do acórdão recorrido, no qual o Tribunal Geral parece sugerir, em violação do conjunto das regras referidas, que a constatação da infração podia assentar em elementos complementares de informação, bem como o n.o 622 do mesmo acórdão, parecem justificar a anulação do acórdão recorrido.

62.

Acresce que o acórdão recorrido enferma de uma contradição flagrante de fundamentação. Assim, no n.o 614, o Tribunal Geral conclui que não lhe compete substituir por uma fundamentação totalmente nova a fundamentação errada adotada pela Comissão. Ora, no n.o 626, o Tribunal Geral declara a responsabilidade das recorrentes quanto aos dois elementos da infração.

63.

Na mesma ordem de ideias, parece‑me que o Tribunal Geral fez uma distinção artificial e, portanto, errada entre a determinação da responsabilidade «para efeitos da coima» e a determinação da responsabilidade enquanto tal. Ora, é facto assente que a coima constitui a sanção da responsabilidade previamente determinada. Assim, sem essa constatação prévia, a questão do montante da coima não se coloca. Consequentemente, o Tribunal Geral excluiu, em primeiro lugar, a infração declarada pela Comissão, para depois a reformular, no âmbito do nono fundamento, excedendo assim os limites da sua competência de plena jurisdição.

64.

Por último, parece‑me que, ao fazê‑lo, o Tribunal Geral também infringiu os direitos da defesa, e em especial, o princípio do contraditório, uma vez que não deu às partes a possibilidade de debaterem a responsabilidade que ele próprio declarou.

65.

Ora, a competência de plena jurisdição permanece sujeita a limites. Se a competência de anulação está limitada à infração apurada na decisão controvertida, a competência de plena jurisdição não confere, por conseguinte, ao Tribunal Geral a competência para constatar a existência de infrações não apuradas pela Comissão na decisão controvertida ( 56 ).

66.

Consequentemente, a segunda parte do segundo fundamento deve ser julgada procedente. Tendo em conta o caráter fundamental do erro assim apurado, parece‑me que este deve conduzir à anulação do acórdão recorrido.

VII – Quanto à desvirtuação dos elementos de prova

67.

Tendo em conta a natureza do erro verificado, não há, na minha opinião, que decidir sobre a terceira parte do segundo fundamento. Por conseguinte, é apenas a título subsidiário que abordo esta terceira parte. A este propósito, saliento que as recorrentes sustentam que, ao considerá‑las responsáveis em relação aos dois elementos da infração, o Tribunal Geral desvirtuou, no n.o 626 do acórdão, os elementos de prova e violou o princípio da presunção de inocência. A conclusão baseia‑se numa citação incompleta da declaração de V. C. da qual resulta assim claramente que V. C. não tinha nenhum conhecimento da natureza do mecanismo de compensação objeto da decisão.

68.

Por outro lado, a declaração de V. C. deixa totalmente em aberto o momento a partir do qual teve conhecimento da «existência de um certo tipo de mecanismo de compensação». Pelo contrário, segundo a Comissão, o Tribunal Geral não desvirtuou os elementos de prova que constam da declaração de V. C.

69.

A este propósito, deve recordar‑se que, quando um recorrente alega desvirtuação de elementos de prova pelo Tribunal Geral, deve, em aplicação do artigo 256.o, n.o 1, segundo parágrafo, TFUE, do artigo 51.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça e do artigo 168.o, n.o 1, alínea d), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, indicar de modo preciso os elementos que por aquele foram desvirtuados e demonstrar os erros de análise que, do seu ponto de vista, levaram o Tribunal Geral a essa desvirtuação ( 57 ).

70.

Tal desvirtuação existe quando, sem ter recorrido a novos elementos de prova, a apreciação dos elementos de prova existentes se afigura manifestamente errada ( 58 ). Todavia, com esta terceira parte do segundo fundamento, parece‑me que as recorrentes propõem uma leitura da declaração de V. C. diferente da adotada pelo Tribunal Geral. Todavia, os argumentos invocados neste caso não permitem concluir que o Tribunal Geral tenha excedido manifestamente os limites de uma apreciação razoável dos referidos elementos de prova ( 59 ).

71.

Nestas condições, a terceira parte do segundo fundamento deve ser julgada improcedente.

VIII – Quanto à remessa do processo ao Tribunal Geral

72.

Observo que as recorrentes pedem, no âmbito do seu recurso, a anulação dos artigos 1.°, 2.° e 3.° da decisão controvertida, na parte em que lhes diz respeito, ou a redução do montante da coima.

73.

Em conformidade com o artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça, quando o recurso for julgado procedente, o Tribunal de Justiça pode, no caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado. Ora, atenta a natureza do erro cometido pelo Tribunal Geral, parece‑me que o presente processo não está em condições de ser julgado ( 60 ). Sobretudo, considero que as partes não tiveram suficiente oportunidade de expor no Tribunal Geral o respetivo ponto de vista sobre as consequências a tirar da declaração de V. C., no âmbito do exercício pelo Tribunal Geral da sua competência de plena jurisdição. Em consequência, proponho que o Tribunal de Justiça remeta o processo ao Tribunal Geral.

IX – Conclusão

74.

Por estas razões, e sem prejuízo da análise de outros fundamentos do recurso, proponho ao Tribunal de Justiça que julgue procedente a segunda parte do segundo fundamento, o que deve, na minha opinião, implicar a anulação do acórdão Galp Energía España e o./Comissão (T‑462/07, EU:T:2013:459) e a remessa do processo ao Tribunal Geral. Reserva‑se para final a decisão quanto às despesas.


( 1 )   Língua original: francês.

( 2 )   EU:T:2013:459.

( 3 )   Decisão de 3 de outubro de 2007, relativa a um procedimento nos termos do artigo 81.o CE [Processo COMP/38710 — Betume (Espanha)].

( 4 )   Considerando 500 da decisão controvertida. Em consequência da sua participação nessa infração, a Comissão considerou que a Galp Energía España S.A. e a Petróleos de Portugal S.A. eram solidariamente responsáveis pelo pagamento de 8662500 EUR; a Galp Energia, SGPS, S.A. era solidariamente responsável pelo pagamento de 6435000 EUR. Considerou‑se que a Galp Energía España S.A. e a Petróleos de Portugal S.A. participaram na infração no período compreendido entre 31 de janeiro de 1995 e 1 de outubro de 2002, enquanto a Galp Energia, SGPS, S.A. foi considerada participante na infração entre 22 de abril de 1999 e 1 de outubro de 2002.

( 5 )   V. n.os 87 e 215 do acórdão recorrido. Na sua declaração, V. C. confirmou nestes termos que as recorrentes nunca estiveram implicadas num sistema de supervisão: «Assinalei a acusação da Comissão Europeia de que a Galp Energía España […] participou no funcionamento de um sistema de supervisão e de um mecanismo de compensação da mesa do asfalto. Não é exato. Pelo simples facto de nunca termos sido compensados, independentemente do volume de vendas da Galp Energía España […]. É verdade que num determinado momento constatei a existência de um certo tipo de mecanismo de compensação no qual participavam os membros da mesa de negociação sobre o asfalto, mas nunca soube o que é que essas sociedades tinham a ver com esse sistema. Por conseguinte, a Galp Energía España […] nunca esteve implicada em nenhum mecanismo de compensação.»

( 6 )   Consequentemente, o montante da coima aplicada à Galp Energía España, SA e à Petróleos de Portugal (Petrogal), SA foi reduzido para 8277500 euros, enquanto o montante da coima aplicada à Galp Energia, SGPS foi reduzido para 6149000 euros.

( 7 )   No âmbito da análise do terceiro fundamento, o Tribunal Geral acusou a Comissão de não ter feito prova bastante da participação das recorrentes nos dois elementos da infração, o que o levou a anular nessa medida a decisão controvertida.

( 8 )   Acórdão KME Germany e o./Comissão (C‑272/09 P, EU:C:2011:810, n.o 103).

( 9 )   Acórdãos Groupe Danone/Comissão (C‑3/06 P, EU:C:2007:88, n.o 61) e Prym e Prym Consumer/Comissão (C‑534/07, EU:C:2009:505, n.o 86).

( 10 )   Acórdãos Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão (C‑238/99 P, EU:C:2002:582, n.o 692; Prym e Prym Consumer/Comissão (EU:C:2009:505, n.o 86), e JFE Engineering e o./Comissão (T‑67/00, T‑68/00, T‑71/00 e T‑78/00, EU:T:2004:221, n.o 577).

( 11 )   V., para uma análise detalhada, conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Telefónica e Telefónica de España/Comissão (C‑295/12 P, EU:C:2013:619).

( 12 )   C‑386/10 P, EU:C:2011:815.

( 13 )   C‑272/09 P, EU:C:2011:810.

( 14 )   Este aspeto é crucial para o presente processo, tendo em conta o fundamento do raciocínio do Tribunal Geral, conforme exposto no n.o 12 das presentes conclusões.

( 15 )   Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [81.° CE] e [82.° CE] (JO L 1, p. 1).

( 16 )   Acórdão KME Germany e o./Comissão (C‑272/09 P, EU:C:2011:810, n.o 106).

( 17 )   Acórdão Comissão/Anic Partecipazioni (C‑49/92 P, EU:C:1999:356, n.o 82).

( 18 )   Acórdãos Comissão/Verhuizingen Coppens (C‑441/11 P, EU:C:2012:778, n.os 41 e 42); Comissão/Aalberts Industries e o. (C‑287/11 P, EU:C:2013:445, n.o 63), e Siemens e o./Comissão (C‑239/11 P, C‑489/11 P e C‑498/11 P, EU:C:2013:866, n.o 242).

( 19 )   Acórdão Comissão/Verhuizingen Coppens (C‑441/11, EU:C:2012:778, n.o 47).

( 20 )   T‑68/09, EU:T:2014:867. Neste processo, o Tribunal Geral considerou que a Comissão não tinha feito prova da participação da Soliver. Uma anulação parcial da decisão não constituía uma opção, dado que a Comissão não tinha feito uma qualificação adequada da participação da recorrente nos comportamentos que integram a infração, pelo que o Tribunal Geral anulou integralmente a decisão da Comissão.

( 21 )   As recorrentes recordam que o processo pendente nos órgãos jurisdicionais da União Europeia é contraditório. Por conseguinte, compete às partes no litígio e só a elas (exceto em relação aos fundamentos de ordem pública) invocar os fundamentos de anulação (v. acórdão KME Germany e o./Comissão, C‑389/10 P, EU:C:2011:816, n.o 131). Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça declarou, no processo ThyssenKrupp. Nirosta/Comissão (acórdão C‑352/09 P, EU:C:2011:191), que o papel do Tribunal Geral se limita a decidir sobre os argumentos que lhe forem apresentados.

( 22 )   N.o 626 do acórdão recorrido.

( 23 )   Acórdão Prym e Prym Consumer/Comissão (C‑534/07 P, EU:C:2009:505, n.o 86).

( 24 )   Acórdão KNP BT/Comissão (C‑248/98 P, EU:C:2000:625, n.o 40).

( 25 )   Em 4% suplementares, que acrescem à redução de 10% concedida anteriormente pela Comissão, para tomar em consideração a participação menos regular ou ativa da parte recorrente na infração.

( 26 )   V. acórdãos Meroni/Haute Autorité (46/59, EU:C:1962:44, p. 783, em especial p. 801); Nachi Europe (C‑239/99, EU:C:2001:101, n.o 24); Comunità montana della Valnerina/Comissão (C‑240/03 P, EU:C:2006:44, n.o 43) e n.os 146 a 148 das conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Comissão/Alrosa (C‑441/07 P, EU:C:2009:555).

( 27 )   Acórdão Comissão/Roodhuijzen (T‑58/08 P, EU:T:2009:385, n.o 34 e jurisprudência referida). No entanto, resulta da jurisprudência que, no âmbito do litígio circunscrito pelas partes, o juiz da União, embora deva conhecer apenas dos pedidos das partes, não pode estar limitado unicamente pelos argumentos invocados por aquelas em apoio das suas pretensões, sob pena de se ver obrigado, eventualmente, a fundamentar a sua decisão em considerações jurídicas erradas (acórdão ETF/Michel, T‑108/11 P, n.os 42 e 51).

( 28 )   Com efeito, a violação de formalidades essenciais e a incompetência, na aceção do artigo 263.o TFUE, constituem fundamentos de ordem pública que devem ser conhecidos oficiosamente pelo juiz da União (v. acórdão Hungria/Comissão, T‑240/10, EU:T:2013:645). A falta de fundamentação conta‑se entre os fundamentos de legalidade externa. Todavia, recordo que o conhecimento oficioso de um fundamento de ordem pública não tem por objetivo corrigir uma insuficiência da petição, mas fazer respeitar uma regra que, devido à sua importância, não está à disposição das partes em nenhuma fase do processo. A questão do conhecimento oficioso aplicável aos fundamentos deve, no entanto, ser distinguida do alcance do princípio ne ultra petita, que respeita aos pedidos das partes.

( 29 )   Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Parlamento/Gutiérrez de Quijano y Lloréns (C‑252/96 P, EU:C:1998:157, n.o 36).

( 30 )   C‑3/06 P, EU:C:2007:88, n.o 62, sublinhado por mim. V., igualmente, conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro neste processo (C‑3/06 P, EU:C:2006:720, n.os 46 a 50).

( 31 )   A este propósito, v. acórdãos Shell Petroleum e o./Comissão (T‑343/06, EU:T:2012:478) e InnoLux/Comissão (T‑91/11, EU:T:2014:92).

( 32 )   C‑231/11 P a C‑233/11 P, EU:C:2014:256, n.o 129.

( 33 )   C‑679/11 P, EU:C:2013:606, n.os 103‑107.

( 34 )   V. n.o 87 do acórdão recorrido.

( 35 )   Acórdão 1. garantovaná/Comissão (T‑392/09, EU:T:2012:674, n.os 78 a 79).

( 36 )   Acórdão Comissão/Irlanda e o. (C‑89/08 P, EU:C:2009:742, n.o 50).

( 37 )   Acórdão Otis e o. (C‑199/11, EU:C:2012:684, n.os 46 a 49, e 72).

( 38 )   V., nomeadamente, acórdão LR AF 1998/Comissão (T‑23/99, EU:T:2002:75, n.o 171).

( 39 )   Acórdão KME Germany e o./Comissão (C‑272/09 P, EU:C:2011:810, n.os 104 a 106).

( 40 )   N.o 293 do acórdão recorrido.

( 41 )   N.os 293 e 612 do acórdão recorrido.

( 42 )   N.o 320 do acórdão recorrido.

( 43 )   V., nomeadamente, acórdão Archer Daniels Midland/Comissão (C‑511/06 P, EU:C:2009:433, n.o 85 e jurisprudência referida).

( 44 )   Ibidem, n.o 86 e jurisprudência referida).

( 45 )   Acórdão 1. garantovaná/Comissão (T‑392/09, EU:T:2012:674, n.os 78 e 79).

( 46 )   Acórdão Shell Petroleum e o./Comissão (T‑343/06, EU:T:2012:478, n.os 176, 220 e 232).

( 47 )   Ibidem, n.o 220).

( 48 )   C‑295/12 P, EU:C:2013:619, n.o 129.

( 49 )   Acórdão Arkema France e o./Comissão (T‑217/06, EU:T:2011:251, n.os 249 a 256) sobre a tomada em conta do facto de a empresa em causa ter deixado de ser controlada pelo grupo Total e, consequentemente, de a majoração a título de efeito dissuasor ter deixado de se justificar.

( 50 )   Acórdão Novácke chemické závody/Comissão (T‑352/09, EU:T:2012:673), a propósito de uma declaração segundo a qual o pagamento de uma coima não afetava a viabilidade da empresa, e acórdão Reagens/Comissão (T‑30/10, EU:T:2014:253, n.o 305), sobre elementos relativos à capacidade financeira.

( 51 )   A título ilustrativo, a propósito da fixação dos preços, resulta do n.o 405 do acórdão recorrido que a declaração em questão «não é, em todo o caso, suscetível de contradizer os elementos de prova não contemporâneos e contemporâneos dos factos analisados supra, que foram apresentados pela Comissão em apoio da participação das recorrentes nas atividades de concertação dos preços».

( 52 )   Além disso, creio ser útil recordar que o Tribunal de Justiça declarou que, não obstante o facto de o Tribunal Geral não ter comunicado às partes a sua intenção de ter em conta a redução suplementar, esse aspeto se enquadrava numa apreciação jurídica que o Tribunal Geral tinha o direito de efetuar no exercício da sua competência de plena jurisdição, sem avisar as partes antes da prolação do acórdão (v., acórdão Alliance One International/Comissão, C‑679/11 P, EU:C:2013:606, n.o 110).

( 53 )   C‑446/11 P, EU:C:2013:798.

( 54 )   O Tribunal de Justiça remeteu, no acórdão Comissão/Edison, por analogia, para o acórdão Papierfabrik August Koehler e o./Comissão (C‑322/07 P, C‑327/07 P e C‑338/07 P, EU:C:2009:500, n.os 34 a 37).

( 55 )   C‑441/07 P, EU:C:2009:555, n.os 151 e 152.

( 56 )   V., neste sentido, acórdão Tokai Carbon e o./Comissão (T‑71/03, T‑74/03, T‑87/03 e T‑91/03, EU:T:2005:220, n.o 370).

( 57 )   Acórdão Comissão/Aalberts Industries e o. (C‑287/11 P, EU:C:2013:445, n.o 50).

( 58 )   Acórdãos PKK e KNK/Conselho (C‑229/05 P, EU:C:2007:32, n.o 37), e Lafarge/Comissão (C‑413/08 P, EU:C:2010:346, n.o 17).

( 59 )   V., por analogia, acórdão Activision Blizzard Germany/Comissão (C‑260/09 P, EU:C:2011:62, n.o 57).

( 60 )   Em sentido diverso, nomeadamente, do processo Comissão/Verhuizingen Coppens, v. conclusões da advogada‑geral J. Kokott neste processo (C‑441/11 P, EU:C:2012:317, n.os 43 a 46).