CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 11 de junho de 2015 ( 1 )

Processo C‑552/13

Grupo Hospitalario Quirón SA

contra

Departamento de Sanidad del Gobierno Vasco

e

Instituto de Religiosas Siervas de Jesús de la Caridad

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 6 de Bilbau (Espanha)]

«Pedido de decisão prejudicial — Processos de adjudicação dos contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigos 2.° e 23.°, n.o 2 — Princípio da igualdade de tratamento dos operadores económicos — Serviços de cuidados de saúde — Obrigação de prestar os serviços exclusivamente nos estabelecimentos situados no território de um determinado município»

I – Introdução

1.

Podem as especificações técnicas inerentes a um contrato público relativo à prestação de serviços de saúde prever a exigência de estes serviços apenas poderem ser prestados nos estabelecimentos situados no território de um determinado município? Pode tal exigência ser justificada por motivos relacionados com o acesso aos cuidados de saúde e à qualidade destes?

2.

Estas questões refletem as dúvidas que o Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo no 6 de Bilbau (tribunal administrativo n.o 6 de Bilbau, Espanha) manifestou ao Tribunal de Justiça num processo que tem por objeto dois concursos lançados pelas autoridades bascas com vista à adjudicação dos contratos públicos respeitantes à prestação de serviços relacionados com intervenções cirúrgicas. Estes contratos deviam permitir a disponibilização de salas de operação situadas nos hospitais privados, para intervenções efetuadas por médicos contratados pelos estabelecimentos públicos de saúde, com o objetivo de reduzir o tempo de espera pela intervenção.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

3.

O artigo 2.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços ( 2 ), sob a epígrafe «Princípios de adjudicação dos contratos», estabelece:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

4.

O artigo 21.o desta mesma diretiva tem a seguinte redação:

«Os contratos que tenham por objeto os serviços referidos no anexo II B estão sujeitos apenas ao artigo 23.o e ao n.o 4 do artigo 35.o»

5.

Nos termos do artigo 23.o, n.o 2, desta diretiva:

«As especificações técnicas devem permitir o acesso dos proponentes em condições de igualdade e não criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência.»

6.

O anexo II B da diretiva refere os «[s]erviços de saúde e de caráter social» (categoria 25).

B – Direito espanhol

7.

Os artigos 2.° e 23.°, n.o 2, da Diretiva 2004/18 foram transpostos para a ordem jurídica espanhola pelos artigos 101.°, n.o 2, e 123.° da Lei 30/2007 sobre os Contratos do Setor Público (Ley 30/2007 de contratos del setor público), de 30 de outubro de 2007 ( 3 ).

III – Tramitação do processo principal e questão prejudicial

8.

O caso em apreço diz respeito a dois processos de adjudicação de contratos públicos que têm por objeto serviços hospitalares relativos à realização de pequena cirurgia, cirurgia geral e digestiva, urologia, ginecologia, traumatologia, assim como cirurgia ortopédica e oftalmológica. Estes contratos públicos não visam os serviços do cirurgião, que é contratado pelo serviço público de saúde e que deve deslocar‑se ao hospital privado a quem foi adjudicado o contrato para efetuar a intervenção cirúrgica.

9.

Em 15 de dezembro de 2010, o Departamento de Sanidad del Gobierno Vasco (Departamento de Sanidad do Governo basco, a seguir «Departamento de Sanidad») aprovou o caderno de encargos do concurso n.o 21/2011, relativo à gestão do serviço público das intervenções cirúrgicas para a área de saúde de Biscaia (área de influência dos hospitais públicos de Basurto e de Galdakao). O valor estimado do contrato era de 5841041,84 euros.

10.

Em 10 de maio de 2011, o Departamento de Sanidad aprovou o caderno de encargos do concurso n.o 50/2011, relativo à gestão do serviço público das intervenções cirúrgicas oftalmológicas. Este serviço visa a área de influência do hospital público de Galdakao. O valor estimado do contrato era de 6273219,53 euros.

11.

Os anúncios correspondentes a estes dois concursos foram publicados, respetivamente, no Boletín Oficial del País Vasco (Jornal oficial do País Basco) em 31 de janeiro e 14 de junho de 2011. O n.o 2, alínea d), de cada um dos anúncios referia que o local de execução das prestações devia ser Bilbau.

12.

Em ambos os concursos, a parte A das especificações técnicas, sob a epígrafe «Estrutura, equipamento e gama de serviços do centro», relativa às exigências mínimas, incluía o seguinte n.o 2, sob a epígrafe «Localização»:

13.

O Grupo Hospitalario Quirón SA (a seguir «Grupo Hospitalario Quirón») é proprietário de um hospital geral situado no município de Erandio. Resulta da decisão de reenvio que este hospital cumpre as condições estabelecidas nas especificações técnicas, com exceção do facto de não estar situado no território do município de Bilbau, mas num território limítrofe.

14.

Em 13 de setembro de 2011, o Grupo Hospitalario Quirón interpôs recurso no Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo no 6 de Bilbau das decisões adotadas pelo Departamento de Sanidad a respeito dos anúncios relativos aos dois concursos referidos. O recorrente pedia, nomeadamente, a anulação das decisões impugnadas e que a Administração em causa fosse obrigada a realizar um novo concurso que não incluísse a exigência de as prestações de serviços serem executadas no território do município de Bilbau.

15.

O Instituto de Religiosas Siervas de Jesús de la Caridad, que possui um estabelecimento de cuidados de saúde em Bilbau, interveio nos processos na qualidade de recorrido. O órgão jurisdicional de reenvio apensou estes processos.

16.

Na sua petição, o Grupo Hospitalario Quirón alega que a obrigação de prestar os serviços exclusivamente nos estabelecimentos situados no território do município de Bilbau viola o princípio da igualdade, a liberdade de acesso aos concursos, os princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento entre os participantes e a livre concorrência. Afirma que, tendo em conta esta obrigação, é indispensável dispor em Bilbau de uma infraestrutura complexa cuja implementação exige tempo e avultados investimentos. Estes investimentos carecem de justificação se apenas tiverem sido realizados com o objetivo de prestar serviços objeto do concurso. Por conseguinte, os únicos operadores económicos que podem participar no concurso são os hospitais situados em Bilbau.

17.

O Grupo Hospitalario Quirón afirma que mesmo tendo em conta as dificuldades de deslocação dos pacientes e dos cirurgiões contratados pelos hospitais públicos de Basurto e de Galdakao, a obrigação referida é injustificada, a fortiori, no caso do recorrente, que possui um hospital num município limítrofe de Bilbau.

18.

Em resposta à petição, o Departamento de Sanidad alega que a obrigação em causa não limita o direito de os operadores económicos participarem no concurso, uma vez que não lhes é exigido que disponham de instalações em Bilbau, mas apenas que estejam em condições de prestar os serviços nas instalações situadas em Bilbau no momento da celebração do contrato. O Departamento de Sanidad afirma igualmente que a obrigação de prestar os serviços no município de Bilbau é justificada pelos eventuais inconvenientes associados à deslocação dos pacientes. Com efeito, o caráter radial da rede de transportes públicos da zona metropolitana de Bilbau garante deslocações simples.

19.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que não é possível excluir que a exigência em causa implique uma restrição inadmissível à livre concorrência no setor dos contratos públicos. Afirma que esta exigência não se afigura necessária de um ponto de vista prático. A adjudicação de contratos relativos à prestação de serviços de saúde nos estabelecimentos situados num município diferente daqueles onde residem os pacientes é uma prática corrente das autoridades de saúde em Espanha. Além disso, é possível aceder ao hospital que pertence ao Grupo Hospitalario Quirón desde Bilbau por metro ou autocarro e o mesmo trajeto demora, em média, catorze minutos utilizando‑se o transporte privado.

20.

De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, importa determinar, por um lado, se, no caso em apreço, a obrigação de o serviço ser prestado exclusivamente no território do município de Bilbau pode ser justificada pelo objeto do contrato e, por outro, se esta obrigação não constitui uma restrição inadmissível à livre concorrência, uma vez que não se afigura justificada à luz do objetivo de assegurar o acesso dos pacientes aos serviços em causa. Em especial, este órgão jurisdicional considera que nenhuma razão objetiva justifica a exclusão dos concursos de um operador que possui um hospital situado num município limítrofe, quando o tempo de trajeto entre o domicílio dos pacientes e o hospital é razoável. O órgão jurisdicional de reenvio alerta igualmente para o facto de as prestações de serviços não visarem unicamente os pacientes que residem no município de Bilbau. Assim, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, não é possível excluir que a obrigação em causa prevista nas especificações técnicas dos concursos viole os artigos 2.° e 23.°, n.o 2, da Diretiva 2004/18.

21.

Nestas circunstâncias, o Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo no 6 de Bilbau decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça:

«É compatível com o direito da União […] a exigência de que, nos contratos administrativos de gestão de serviços públicos de saúde, a prestação de cuidados de saúde objeto desses contratos só possa ter lugar num determinado município, que pode não ser o do domicílio dos pacientes?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

22.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 25 de outubro de 2013. O Tribunal de Justiça enviou um pedido de esclarecimentos ao órgão jurisdicional de reenvio, ao qual este respondeu em 11 de abril de 2014.

23.

Os recorridos no processo principal, o Governo espanhol e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. O Departamento de Sanidad e o Governo espanhol requereram a realização de uma audiência. O Grupo Hospitalario Quirón, o Departamento de Sanidad, o Governo espanhol e a Comissão participaram na audiência realizada em 20 de abril de 2015.

V – Apreciação

A – Considerações prévias

24.

O caso em apreço diz respeito a dois processos de adjudicação dos contratos públicos relativos à gestão do serviço público de cuidados de saúde. Resulta da decisão de reenvio que os contratos em causa têm por objeto os serviços hospitalares de apoio às intervenções cirúrgicas, no âmbito de um mecanismo específico de cooperação entre o serviço público de saúde e os hospitais privados, cuja finalidade é reduzir as listas de espera dos pacientes do setor público. Estes contratos públicos não visam os serviços do cirurgião, uma vez que as intervenções são realizadas por médicos que são contratados pelos hospitais públicos e que se deslocam ao hospital privado escolhido no âmbito do concurso.

25.

A decisão de reenvio não refere claramente se os concursos em questão dizem respeito aos contratos públicos de serviços ou às concessões de serviços, excluídas do âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18 ( 4 ).

26.

Todavia, resulta das explicações complementares apresentadas a pedido do Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio, assim como dos esclarecimentos prestados pelas partes na audiência, que o processo principal é relativo aos contratos públicos de serviços, que estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva.

27.

Resulta destas explicações e esclarecimentos que o adjudicatário é diretamente remunerado pela entidade adjudicante e que não assume a parte essencial do risco económico associado à exploração dos serviços ( 5 ). Mais particularmente, conforme o Departamento de Sanidad referiu na audiência, o serviço público continua a ser responsável por qualquer dano causado aos pacientes numa intervenção. De igual modo, o Governo espanhol sublinha nas suas observações escritas que, à luz das disposições de direito nacional mencionadas no anúncio de concurso, os contratos públicos em causa devem ser qualificados de contratos de serviços.

28.

Importa também referir que o valor estimado de cada um dos contratos ultrapassa largamente os limiares fixados no artigo 7.o da Diretiva 2004/18.

29.

Estas circunstâncias, que evidentemente cabe ao órgão jurisdicional de reenvio demonstrar, revelam de forma clara que a Diretiva 2004/18 é aplicável.

30.

Há que sublinhar, no entanto, que o princípio da igualdade de tratamento dos operadores económicos em matéria de prestação de serviços, que seguidamente será abordado em pormenor, também é aplicável no caso da adjudicação de uma concessão de serviços.

31.

Apesar de, no estado atual do direito da União, os contratos de concessão de serviços não estarem abrangidos pela Diretiva 2004/18, os poderes públicos estão, não obstante, obrigados — sob reserva de o contrato apresentar um determinado interesse transfronteiriço — a respeitar as disposições fundamentais do Tratado FUE, nomeadamente, os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE ( 6 ). Por outro lado, no presente processo, conforme sublinha o próprio Governo espanhol nas suas observações escritas, afigura‑se provável que os contratos públicos apresentem um interesse transfronteiriço devido à importância do seu valor estimado e à situação geográfica do País Basco.

32.

Os serviços prestados no âmbito do sistema de saúde pública, tais como os que são objeto dos concursos em questão, assumem inquestionavelmente uma dimensão social fundamental.

33.

Importa recordar que resulta tanto do artigo 168.o, n.o 7, TFUE como da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o direito da União não prejudica a competência dos Estados‑Membros para organizarem os seus sistemas de saúde pública ( 7 ).

34.

Todavia, no exercício dessa competência, os Estados‑Membros não podem introduzir ou manter restrições injustificadas para o exercício das liberdades fundamentais do mercado interno. Na apreciação do cumprimento dessa proibição, deve ser tido em conta que a saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado e que cabe aos Estados‑Membros, que dispõem de uma margem de apreciação, decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública, bem como o modo como esse nível deve ser alcançado ( 8 ).

35.

Além disso, os sistemas de saúde são organizados de forma bastante diferente em cada um dos Estados‑Membros e a dimensão transfronteiriça dos serviços prestados no âmbito destes sistemas é limitada.

36.

Estas circunstâncias foram tidas em conta pelo legislador da União, que decidiu que os «serviços de saúde» pertenciam à categoria dos serviços não prioritários enumerados no anexo II B da Diretiva 2004/18 ( 9 ).

37.

O legislador da União parte da presunção de que estes serviços não apresentam, a priori, um interesse transfronteiriço e, por isso, não estão totalmente abrangidos pelo âmbito de aplicação da diretiva ( 10 ).

38.

Em conformidade com o artigo 21.o da Diretiva 2004/18, os serviços enumerados no anexo II B, dos quais fazem parte os «serviços de saúde e de caráter social», estão unicamente sujeitos aos artigos 23.° e 35.°, n.o 4, da diretiva.

39.

Todavia, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o artigo 21.o da Diretiva 2004/18 não exclui a aplicação das disposições gerais e finais da diretiva, nomeadamente do seu artigo 2.o, referido na decisão de reenvio ( 11 ).

B – Quanto à restrição do acesso dos operadores económicos aos processos de adjudicação dos contratos públicos à luz dos artigos 2.° e 23.°, n.o 2, da Diretiva 2004/18

40.

Importa observar que tanto o artigo 2.o como o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2004/18 são a expressão do princípio da igualdade de tratamento dos operadores económicos, o qual constitui igualmente um princípio geral que decorre das liberdades fundamentais do mercado interno definidas, nomeadamente, nos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE. Por conseguinte, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à interpretação das liberdades fundamentais do mercado interno é relevante para efeitos da interpretação das referidas disposições da diretiva.

41.

No quadro do exame do caso em apreço à luz desta jurisprudência, importa, não obstante, ter presente que a Diretiva 2004/18 alarga o âmbito de aplicação do princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação dos operadores económicos às situações internas. No que respeita a um domínio harmonizado pelo direito da União, a aplicação deste princípio aos contratos públicos abrangidos pela diretiva não implica a necessidade de identificar um elemento transfronteiriço.

42.

Em conformidade com a regra geral prevista no artigo 2.o da Diretiva 2004/18, as entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem com transparência. Estes princípios revestem uma importância crucial no que se refere às especificações técnicas, tendo em conta os riscos de discriminação ligados quer à sua escolha quer à forma de as formular ( 12 ).

43.

Por esta razão, o artigo 23.o, n.o 2, da Diretiva 2004/18, que prevê as regras de elaboração das especificações técnicas e de definição das exigências que a entidade adjudicante pretende incluir, dispõe que as especificações técnicas devem permitir o acesso dos proponentes em condições de igualdade e não criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência.

44.

No presente processo, não há dúvida de que a obrigação de dispor de um estabelecimento de cuidados de saúde em Bilbau, que figura nas especificações técnicas dos dois concursos controvertidos, é suscetível de tornar mais difícil o acesso aos contratos públicos para os operadores económicos potenciais que não disponham de tal estabelecimento.

45.

Há que salientar que esta obrigação limita o acesso aos contratos públicos mesmo que não seja definida como critério de seleção dos operadores económicos e que o facto de dispor de um estabelecimento apenas seja indispensável na fase da execução do contrato.

46.

Neste ponto discordo da posição do Departamento de Sanidad que, invocando o acórdão Contse e o. ( 13 ), afirma que a obrigação de dispor de um estabelecimento no local da prestação dos serviços não limita o acesso aos contratos públicos se esta obrigação estiver definida como requisito de execução do contrato.

47.

Recordo que no processo Contse e o. ( 14 ), os proponentes, para poderem participar em concursos relativos a serviços de saúde de terapias respiratórias, deviam dispor de um escritório numa determinada província. Esta exigência constitui um critério de seleção aplicável no momento da apresentação da proposta e provavelmente não teria colocado problemas se apenas tivesse de ser preenchida na fase da prestação dos serviços.

48.

Todavia, resulta claramente do acórdão referido que a obrigação de dispor de um escritório numa determinada província não exigia grandes investimentos e que, pela sua natureza, podia ser facilmente cumprida a todo momento. Não é o que sucede no caso em apreço, uma vez que, como refere o órgão jurisdicional de reenvio, a criação de uma infraestrutura hospitalar em Bilbau exige bastante tempo e avultados investimentos, os quais provavelmente não seriam rentáveis tendo em conta a extensão limitada dos serviços em causa nos concursos.

49.

Atendendo à obrigação em causa no processo principal, o acesso aos concursos implica o compromisso do operador económico de realizar os investimentos necessários à prestação dos serviços nos estabelecimentos situados no território do município de Bilbau.

50.

Além disso, a exigência associada à necessidade de dispor de estabelecimentos no referido município, apesar de se aplicar unicamente na fase da execução do contrato, é suscetível de afetar ou de tornar menos atrativo o exercício da livre prestação de serviços, conforme garantido pelo Tratado.

51.

Tendo em consideração o exposto, é evidente que a exigência em causa limita o acesso dos operadores económicos aos processos de adjudicação dos contratos públicos na aceção dos artigos 2.° e 23.°, n.o 2, da Diretiva 2004/18.

C – Quanto à justificação por razões de interesse geral

52.

Importa apreciar, em seguida, se esta exigência pode ser justificada por razões imperativas de interesse geral e se é conforme ao princípio da proporcionalidade.

53.

Há que salientar que apesar de a obrigação controvertida constituir uma restrição justificada à luz dos princípios desenvolvidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de restrições ao exercício das liberdades fundamentais do mercado interno, importa estabelecer igualmente que é conforme aos artigos 2.° e 23.°, n.o 2, da Diretiva 2004/18. Com efeito, estas disposições proíbem a criação de «obstáculos injustificados» à abertura dos contratos públicos à concorrência.

54.

Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os critérios utilizados no âmbito da adjudicação dos contratos públicos devem respeitar o princípio da não discriminação conforme resulta das disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços. Além disso, as restrições a esta última podem ser justificadas se respeitarem as condições desenvolvidas pela jurisprudência relativa a esta liberdade ( 15 ).

55.

As medidas nacionais suscetíveis de afetar ou de tornar menos atrativo o exercício das liberdades fundamentais devem preencher quatro condições para estarem conformes com os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE: aplicarem‑se de modo não discriminatório, justificarem‑se por razões imperativas de interesse geral, serem adequadas a garantir a realização do objetivo que prosseguem e não ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objetivo ( 16 ).

56.

A fim de justificarem a obrigação controvertida, os recorridos no processo principal e o Governo espanhol invocam a necessidade de garantir a qualidade e a fiabilidade do sistema de saúde pública.

57.

O Governo espanhol alega que a finalidade dos processos em causa é o apoio aos serviços públicos de saúde no domínio das intervenções cirúrgicas. Uma vez que se trata de serviços essenciais para a população, prestados pelo Governo basco, não se afigura surpreendente que este decida, ao invocar razões de interesse geral, celebrar um contrato com um operador privado que dispõe de um centro hospitalar em Bilbau, onde reside uma parte significativa da população da província de Biscaia. As considerações associadas à qualidade e à fiabilidade dos serviços de saúde prestados por conta das autoridades públicas devem ser suficientes para justificar tal restrição às liberdades garantidas pelo Tratado.

58.

Para justificar a obrigação controvertida, o Departamento de Sanidad invoca dificuldades associadas à deslocação dos cirurgiões, dos pacientes e dos seus familiares, e destaca o caráter radial da rede de transportes públicos da zona metropolitana de Bilbau, assim como a existência de ligações de transporte diretas entre esta cidade e outras localidades da província. Alega igualmente que é responsabilidade do serviço público de saúde a escolha da melhor situação geográfica para um estabelecimento médico relativamente aos pacientes.

59.

Por outro lado, o Departamento de Sanidad invoca a divisão territorial instituída em matéria de prestação de serviços públicos de saúde. Esta divisão deve ser mantida, incluindo quando o sistema de saúde pública recebe o apoio de estabelecimentos médicos privados escolhidos no âmbito de um concurso. No caso das especificações técnicas de tais concursos, o facto de as prestações deverem ser realizadas numa determinada área de influência constitui uma exigência essencial associada à prestação de serviços de apoio aos serviços públicos. O Departamento de Sanidad sublinha que o hospital que pertence ao Grupo Hospitalario Quirón está localizado em Erandio e, por conseguinte, num município que pertence a uma área de influência diferente da área de influência dos hospitais de Basurto e de Galdakao. O município de Erandio está localizado na área de influência do hospital público de Cruces, que não é visada pelos concursos objeto do litígio no processo principal.

60.

Considero estes argumentos não convincentes.

61.

Quanto ao argumento do Departamento de Sanidad relativo à divisão territorial do serviço público de saúde, há que recordar que, nos termos de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros não podem invocar considerações de ordem administrativa para justificar restrições às liberdades fundamentais ( 17 ).

62.

No presente processo, a referência à divisão territorial do serviço público de saúde instituída pela Administração não constitui, assim, um argumento que justifique a restrição relativa ao lugar da prestação dos serviços objeto dos concursos. Tal justificação deve assentar na indicação de dificuldades práticas reais que exigem que o serviço seja prestado nos estabelecimentos de cuidados de saúde situados em Bilbau.

63.

De igual modo, também não me convence o argumento do Departamento de Sanidad segundo o qual, se os concursos fossem alargados aos estabelecimentos situados noutros municípios, a celebração de contratos com os operadores privados poderia ficar sem objeto, uma vez que as intervenções em causa poderiam ser efetuadas num hospital público pertencente a outra área de influência, não visada pelos concursos controvertidos, por exemplo, no hospital de Cruces.

64.

O direito da União não se opõe a que o Departamento de Sanidad recorra a um hospital público situado noutro município da província. Uma autoridade pública pode desempenhar as missões de interesse público que lhe incumbem, através dos seus próprios meios, sem ser obrigada a recorrer a entidades externas e pode fazê‑lo em colaboração com outras autoridades públicas ( 18 ).

65.

Todavia, uma vez que esta autoridade decidiu que era necessário celebrar um contrato com um operador privado no âmbito de um concurso, não pode excluir um proponente apenas com fundamento na divisão territorial administrativa da atividade dos hospitais públicos.

66.

Além disso, no que respeita às considerações associadas à qualidade e à fiabilidade do sistema de saúde pública, invocadas pelo Governo espanhol, há que reconhecer que constituem indiscutivelmente um motivo suscetível de justificar uma restrição à livre prestação de serviços.

67.

Nos termos de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o objetivo de manutenção de um serviço médico e hospitalar equilibrado, acessível a todos e de qualidade pode ser abrangido pelas derrogações previstas no artigo 52.o TFUE, na medida em que contribui para a obtenção de um nível elevado de proteção da saúde ( 19 ).

68.

A localização de um estabelecimento de cuidados de saúde em função do local de residência do paciente constitui, indubitavelmente, um elemento importante da prestação de serviços de saúde. A obrigação de deslocação origina custos adicionais e até mesmo, em caso de urgência, um risco para a saúde do paciente, dificuldades para os familiares e, no presente processo, inconvenientes relacionados com a necessidade de o pessoal médico contratado pelos hospitais públicos ter de se deslocar ao hospital privado onde será realizada a intervenção.

69.

Em minha opinião, não há dúvida de que estas circunstâncias são suscetíveis de justificar uma limitação da zona geográfica na qual as prestações de serviços de saúde objeto dos concursos devem ser realizadas.

70.

Não obstante, a restrição relativa ao local da prestação dos serviços deve ser conforme ao princípio de proporcionalidade e, por conseguinte, deve ser adequada à realização do objetivo prosseguido e não ultrapassar o necessário para o atingir ( 20 ).

71.

Para que a restrição associada à localização dos estabelecimentos seja adequada a garantir a realização do objetivo da acessibilidade e da qualidade dos cuidados de saúde, não deve apenas fundamentar‑se na divisão territorial administrativa. Com efeito, esta divisão não tem em consideração, na maioria das situações, a especificidade que decorre da localização dos estabelecimentos de cuidados de saúde e do local de residência dos pacientes.

72.

A fim de determinar o local da prestação dos serviços, importa ter objetivamente em consideração o inconveniente associado à distância que separa os estabelecimentos de cuidados de saúde do local de residência dos pacientes.

73.

Importa também observar que a distância que é necessário percorrer para a deslocação a um estabelecimento de cuidados de saúde pode assumir uma importância variável em função do tipo de prestações. Esta distância tem evidentemente uma importância fundamental no caso das intervenções urgentes. Em contrapartida, no caso das intervenções planificadas, as dificuldades práticas associadas ao tempo de trajeto não constituem uma condição tão importante da prestação dos serviços de saúde.

74.

Em minha opinião, a exigência em causa é desproporcionada, uma vez que prevê a prestação de serviços nos limites do município de Bilbau, tal como são fixados para efeitos administrativos. Esta exigência não se baseia numa avaliação objetiva das dificuldades de deslocação para o estabelecimento de cuidados e também não tem em conta a natureza das prestações de saúde objeto dos concursos.

75.

O caráter desproporcionado da exigência em causa é igualmente demonstrado pelo facto de os pacientes em causa — conforme sublinha o órgão jurisdicional de reenvio — não residirem exclusivamente no território do município de Bilbau, mas também no território de municípios limítrofes e que, no caso de um dos contratos públicos, o hospital público que beneficia do apoio dos estabelecimentos privados é o hospital de Galdakao, situado fora do município de Bilbau.

76.

O Departamento de Sanidad e o Governo espanhol alegam que a designação de Bilbau como local de prestação dos serviços assenta na premissa de que esta cidade constitui um nó modal de transportes públicos que permite uma deslocação fácil a Bilbau a partir das outras localidades da província.

77.

Em minha opinião, este argumento não permite, por si só, demonstrar a proporcionalidade da exigência em causa no processo principal.

78.

Por um lado, não é possível excluir que o trajeto do centro da cidade de Bilbau para um hospital privado situado nos limites da cidade cria dificuldades semelhantes às que caracterizam o trajeto para um hospital situado num município limítrofe.

79.

Por outro lado, resulta da decisão de reenvio que o tempo necessário para efetuar o trajeto do centro da cidade de Bilbau até ao hospital que pertence à recorrente, que se encontra num município limítrofe, não cria grandes dificuldades. Resulta igualmente das respostas fornecidas pelas partes na audiência que os contratos públicos em questão têm por objeto serviços de saúde associados às intervenções planificadas.

80.

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que os contratos públicos relativos à prestação de serviços de saúde adjudicados pelo Departamento de Sanidad não previam tal exigência de localização dos estabelecimentos e que o consultor jurídico da entidade adjudicante emitiu um parecer recomendando a eliminação desta exigência por ser dificilmente compatível com o princípio da igualdade de tratamento dos operadores económicos.

81.

Há que recordar que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apurar os factos e deles retirar conclusões quanto à proporcionalidade da restrição.

82.

Todavia, os factos descritos na decisão de reenvio demonstram que o trajeto até ao hospital situado no município de Erandio não cria dificuldades excessivas aos pacientes e ao pessoal médico. Por conseguinte, estes factos levam‑me a concluir que a exigência em causa é desproporcionada.

83.

Conforme sublinha acertadamente a Comissão nas suas observações escritas, deve também ser apreciada a existência de medidas menos restritivas da livre prestação de serviços que permitam alcançar o objetivo prosseguido.

84.

No caso em apreço, não é possível excluir que o interesse geral, invocado pelo Departamento de Sanidad e pelo Governo espanhol, possa ser garantido por medidas menos restritivas como, por exemplo, a exigência de as prestações de serviços serem efetuadas em estabelecimentos de cuidados de saúde em que o acesso por transportes públicos não apresenta dificuldades excessivas para os pacientes e o pessoal médico. As especificações técnicas assim definidas podem igualmente prever uma indicação do tempo de trajeto desde o centro da cidade de Bilbau considerado razoável pela entidade adjudicante.

VI – Conclusão

85.

Tendo em consideração o exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda da seguinte forma à questão submetida pelo Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo no 6 de Bilbau (Espanha):


( 1 )   Língua original: polaco.

( 2 )   JO L 134, p. 114, conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1177/2009 da Comissão, de 30 de novembro de 2009 (JO L 314, p. 64; a seguir «Diretiva 2004/18»).

( 3 )   Boletín Oficial del Estado de 31 de outubro de 2007.

( 4 )   V. artigos 1.°, n.o 14, e 17.° da Diretiva 2004/18.

( 5 )   V., neste sentido, acórdãos Contse e o. (C‑234/03, EU:C:2005:644, n.o 22); Eurawasser (C‑206/08, EU:C:2009:540, n.os 66 e 67); e Privater Rettungsdienst und Krankentransport Stadler (C‑274/09, EU:C:2011:130, n.o 37).

( 6 )   Acórdãos Coname (C‑231/03, EU:C:2005:487, n.o 16), e Privater Rettungsdienst und Krankentransport Stadler (C‑274/09, EU:C:2011:130, n.o 49). A Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão (JO L 94, p. 1), não é aplicável ao presente processo devido ao seu prazo de transposição e às disposições transitórias que figuram no seu artigo 54.o, n.o 2.

( 7 )   V. acórdão Azienda sanitaria locale n.o 5 «Spezzino» e o. (C‑113/13, EU:C:2014:2440, n.o 55 e jurisprudência referida).

( 8 )   Ibidem (n.o 56 e jurisprudência referida).

( 9 )   O regime específico dos serviços de saúde foi mantido pela nova Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO L 94, p. 65) (artigo 74.o e anexo XIV), que não se aplica ratione temporis ao presente processo, e, quanto à adjudicação de contratos de concessão, pela Diretiva 2014/23 (artigo 19.o e anexo IV).

( 10 )   Acórdão Comissão/Irlanda (C‑507/03, EU:C:2007:676, n.o 25). Esta questão foi igualmente apreciada pela doutrina: v., Sołtysińska, A., Europejskie prawo zamówień publicznych, LEX Wolters Kluwer, Varsóvia, 2012, p. 167.

( 11 )   V., neste sentido, acórdão Contse e o. (C‑234/03, EU:C:2005:644, n.o 47).

( 12 )   Acórdão Comissão/Países Baixos (C‑368/10, EU:C:2012:284, n.o 62).

( 13 )   C‑234/03, EU:C:2005:644.

( 14 )   Ibidem (n.os 55 a 57).

( 15 )   Ibidem (n.o 49).

( 16 )   Acórdão Gebhard (C‑55/94, EU:C:1995:411, n.o 37).

( 17 )   V. acórdão Comissão/Áustria (C‑356/08, EU:C:2009:401, n.o 46 e jurisprudência referida).

( 18 )   Acórdão Comissão/Alemanha (C‑480/06, EU:C:2009:357, n.o 45).

( 19 )   V., entre outros, acórdãos Kohll (C‑158/96, EU:C:1998:171, n.os 50 e 51), e Smits e Peerbooms (C‑157/99, EU:C:2001:404, n.os 73 e 74).

( 20 )   V. acórdãos Comissão/Espanha (C‑158/03, EU:C:2005:642, n.o 70), e Contse e o. (C‑234/03, EU:C:2005:644, n.o 41). Importa recordar que o critério de proporcionalidade desempenha um papel essencial na apreciação da legalidade das medidas nacionais que limitam as liberdades do mercado interno: v., Frąckowiak‑Adamska, A., Zasada proporcjonalności jako gwarancja swobód rynku wewnętrznego Wspólnoty Europejskiej, Wolters Kluwer, Varsovie, 2009, secção 3.1.1.