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Document 62013CJ0113

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 11 de dezembro de 2014.
Azienda sanitaria locale n.° 5 «Spezzino» e o. contra San Lorenzo Soc. coop. Sociale e Croce Verde Cogema cooperativa sociale Onlus.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato.
Reenvio prejudicial — Serviços de transporte sanitário — Legislação nacional que reserva prioritariamente as atividades de transporte sanitário para os estabelecimentos de saúde públicos às associações de voluntariado registadas que cumprem as exigências legais — Compatibilidade com o direito da União — Contratos públicos — Artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE — Diretiva 2004/18/CE — Serviços mistos, previstos no anexo II A e no anexo II B da Diretiva 2004/18 — Artigo 1.°, n.° 2, alíneas a) e d) — Conceito de ‘contrato público de serviços’ — Caráter oneroso — Contraprestação que consiste no reembolso das despesas efetuadas.
Processo C‑113/13.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2014:2440

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

11 de dezembro de 2014 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Serviços de transporte sanitário — Legislação nacional que reserva prioritariamente as atividades de transporte sanitário para os estabelecimentos de saúde públicos às associações de voluntariado registadas que cumprem as exigências legais — Compatibilidade com o direito da União — Contratos públicos — Artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE — Diretiva 2004/18/CE — Serviços mistos, previstos no anexo II A e no anexo II B da Diretiva 2004/18 — Artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e d) — Conceito de ‘contrato público de serviços’ — Caráter oneroso — Contraprestação que consiste no reembolso das despesas efetuadas»

No processo C‑113/13,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Itália), por decisão de 25 de janeiro de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de março de 2013, no processo

Azienda sanitaria locale n. 5 «Spezzino»,

Associazione nazionale pubblica assistenza (ANPAS) — Comitato regionale Liguria,

Regione Liguria

contra

San Lorenzo Soc. coop. sociale,

Croce Verde Cogema cooperativa sociale Onlus,

estando presentes:

Croce Rossa Italiana — Comitato regionale Liguria e o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, C. Vajda, A. Rosas, A. Rosas, E. Juhász e D. Šváby (relator), juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 26 de fevereiro de 2014,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Associazione nazionale pubblica assistenza (ANPAS) — Comitato regionale Liguria, por R. Damonte, avvocato,

em representação da Regione Liguria, por B. Baroli, avvocatessa,

em representação da San Lorenzo Soc. coop. sociale e da Croce Verde Cogema cooperativa sociale Onlus, por S. Betti, avvocato,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por C. Colelli, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por L. Pignataro, A. Tokár e A. Aresu, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de abril de 2014,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE, 105.° TFUE e 106.° TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe, em sede de recurso, a Azienda sanitaria locale n. 5 «Spezzino» (a seguir «ASL n. 5»), autoridade administrativa local responsável pela gestão do Serviço de Saúde, a Associazione nazionale pubblica assistenza (ANPAS) — Comitato regionale Liguria (associação nacional de assistência pública — Comité Regional da Ligúria) e a Regione Liguria à San Lorenzo Soc. coop. sociale e à Croce Verde Cogema cooperativa sociale Onlus, cooperativas que prestam serviços de transporte sanitário, quanto a várias decisões relativas à organização, a nível regional e local, do transporte sanitário de urgência e de emergência.

Quadro jurídico

Direito da União

3

A Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114, e retificação no JO L 351, p. 44), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1177/2009 da Comissão, de 30 de novembro de 2009 (JO L 314, p. 64), contém no seu artigo 1.o, n.os 2 e 5, as seguintes definições:

«2.   

a)

‘Contratos públicos’ são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção da presente diretiva.

[...]

d)

‘Contratos públicos de serviços’ são contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II.

[...]

5.   ‘Acordo‑quadro’ é um acordo entre uma ou mais entidades adjudicantes e um ou mais operadores económicos, que tem por objeto fixar os termos dos contratos a celebrar durante um determinado período, nomeadamente em matéria de preços e, se necessário, de quantidades previstas.»

4

A aplicabilidade da Diretiva 2004/18 à adjudicação de contratos públicos de serviços está sujeita a vários requisitos, nomeadamente no que respeita ao valor desses contratos e à natureza dos serviços em causa.

5

Assim, por um lado, em conformidade com o artigo 7.o, alínea b), primeiro e terceiro travessões, da Diretiva 2004/18, esta é aplicável aos contratos públicos de serviços de valor igual ou superior a 193 000 euros (sem imposto sobre o valor acrescentado) que, respetivamente, têm por objeto serviços que figuram no anexo II A desta diretiva e são adjudicados por entidades adjudicantes que não sejam as autoridades governamentais centrais mencionadas no seu anexo IV, ou têm por objeto serviços que figuram no anexo II B da referida diretiva. Nos termos do artigo 9.o, n.o 9, desta última, o valor a tomar em consideração relativamente aos acordos‑quadro é o valor máximo estimado de todos os contratos previstos durante toda a vigência do acordo‑quadro em causa. O artigo 9.o, n.o 8, alínea b), ii), da mesma diretiva precisa, contudo, que, nos contratos de duração indeterminada, o valor tido em conta é o valor mensal desse contrato multiplicado por 48.

6

Por outro lado, nos termos dos artigos 20.° e 21.° da Diretiva 2004/18, a adjudicação de contratos que tenham por objeto serviços referidos no anexo II A dessa diretiva está sujeita aos artigos 23.° a 55.° da referida diretiva e a adjudicação de contratos que tenham por objeto serviços enumerados no anexo II B da referida diretiva está apenas sujeita aos artigos 23.° e 35.°, n.o 4, desta última. Em conformidade com o artigo 22.o da Diretiva 2004/18, os contratos que tenham simultaneamente por objeto a prestação de serviços referidos nestes dois anexos devem ser adjudicados de acordo com os artigos 23.° a 55.° desta diretiva quando o valor dos serviços referidos no anexo II A for superior ao valor dos serviços referidos no referido anexo II B, ou seja, de acordo apenas com os artigos 23.° e 35.°, n.o 4, da referida diretiva, no caso contrário.

7

A categoria 2 que figura no anexo II A da Diretiva 2004/18 visa os serviços de transporte terrestres, incluindo os serviços de veículos blindados e os serviços de correio, com exclusão dos transportes do correio. A categoria 25 que figura no anexo II B desta diretiva visa os serviços de saúde e de caráter social.

8

Em conformidade com o artigo 10.o, alínea h), da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18 (JO L 94, p. 65), a Diretiva 2014/24 não se aplica, nomeadamente, aos contratos públicos de serviços de transporte sanitário de urgência. Resulta do considerando 28 desta última diretiva que, ao prever esta exclusão, o legislador da União Europeia quis ter em conta a natureza especial das organizações ou associações sem fins lucrativos. A Diretiva 2014/24 não se aplica, contudo, no âmbito do processo principal na medida em que decorre do seu artigo 91.o que a Diretiva 2004/18 é aplicável até 18 de abril de 2016, data em que produz efeito a sua revogação.

Direito italiano

9

Resulta da decisão de reenvio que a República Italiana consagrou na sua Constituição o princípio da ação voluntária dos cidadãos. Assim, o seu artigo 118.o, último parágrafo, prevê que estes últimos, atuando individualmente ou em associação, participam nas atividades de interesse geral com o apoio das autoridades públicas, com base no princípio da subsidiariedade.

10

Esta participação foi implementada, em matéria de saúde, pela Lei n.o 833, relativa à instituição do Serviço Nacional de Saúde (legge n.o 833 — Istituzione del servizio sanitario nazionale), de 23 de dezembro de 1978 (suplemento ordinário do GURI n.o 360, de 28 de dezembro de 1978). O artigo 45.o desta lei reconhece a função das associações de voluntariado e das instituições de caráter associativo que têm por objeto contribuir para a realização dos objetivos institucionais do serviço nacional de saúde. O referido artigo prevê que esta contribuição é organizada mediante convenções celebradas em conformidade com a programação e a legislação estabelecida a nível regional.

11

O caráter voluntário dessa participação é regulado, a nível nacional, Lei‑Quadro n.o 266, relativa ao voluntariado (legge n.o 266 — Legge‑quadro sul volontariato), de 11 de agosto de 1991 (GURI n.o 196, de 22 de agosto de 1991, a seguir «Lei n.o 266/1991»). O artigo 1.o da referida lei enuncia o princípio da atividade do voluntariado nos seguintes termos:

«A República Italiana reconhece o valor social e a função do voluntariado enquanto expressão de uma forma de solidariedade e de pluralismo, que promove o desenvolvimento mantendo a autonomia e incentiva a contribuição original na prossecução de objetivos de caráter social, civil e cultural fixados pelo Estado, pelas regiões, pelas Províncias Autónomas de Trentino e de Bolzano e pelas autarquias locais.»

12

O artigo 2.o desta lei define o voluntariado como toda a atividade «prestada de modo pessoal, espontâneo e gratuito, por intermédio de uma organização em que se integra o voluntário, sem fim lucrativo, mesmo indireto, e exclusivamente para fins de solidariedade.» A inexistência do fim lucrativo é concretizada pela proibição de o voluntário ser remunerado por qualquer meio, podendo apenas as despesas efetivamente efetuadas por este com a atividade prestada ser‑lhe reembolsadas pela organização de que faz parte, nos limites fixados por esta. O mesmo artigo estabelece uma incompatibilidade entre a qualidade de voluntário e qualquer relação laboral, subordinada ou independente, e qualquer relação de natureza patrimonial entre o voluntário e a organização de que faz parte.

13

Em conformidade com o artigo 3.o da referida lei, um organismo de voluntariado é qualquer organismo constituído com a finalidade de exercer uma atividade humanitária recorrendo de forma determinante e predominante às prestações pessoais, voluntárias e gratuitas dos seus membros, autorizando o mesmo artigo esse organismo a recorrer a trabalhadores assalariados ou independentes apenas nos limites necessários ao seu funcionamento regular ou para satisfazer necessidades de qualificação ou de especialização da atividade.

14

O artigo 5.o da Lei n.o 266/1991 prevê que as organizações de voluntariado possam extrair os seus recursos apenas das cotizações dos aderentes, das contribuições de particulares ou de instituições, dos donativos e dos legados, dos reembolsos efetuados ao abrigo de convenções e receitas de atividades comerciais ou produtivas marginais. Estas últimas são objeto de um Decreto do Ministério das Finanças e do Ministério da Família e da Solidariedade Social, relativo aos critérios de identificação das atividades comerciais e produtivas marginais exercidas pelas organizações de voluntariado (Criteri per l’individuazione delle attività commerciali e produttive marginali svolte dalle organizzazioni di volontariato) de 25 de maio de 1995 (GURI n.o 134, de 10 de junho de 1995, p. 28). Este decreto enumera essas atividades e precisa, por um lado, que estas não podem dar lugar à utilização de meios profissionalmente organizados para assegurar a sua competitividade no mercado (como publicidade, letreiros luminosos, locais adaptados segundo os usos dos estabelecimentos comerciais, marcas) e, por outro, que os produtos de convenções celebradas com entidades públicas não constituem receitas dessa natureza.

15

Por último, o artigo 7.o da Lei n.o 266/1991 regula a celebração dessas convenções, que só pode ter lugar com associações inscritas num registo das organizações de voluntariado. Essas convenções devem enquadrar a atividade das associações em matéria de prestações, de continuidade da atividade, de respeito dos direitos e da dignidade dos utilizadores e prever também as modalidades de reembolso das despesas efetuadas e uma cobertura de seguro, cujos encargos incumbem à entidade pública.

16

Este enquadramento é precisado e aplicado, na Região da Ligúria, pela Lei Regional n.o 15, relativa ao regime do voluntariado (legge regionale n.o 15 — Disciplina del volontariato), de 28 de maio de 1992, e pela Lei Regional n.o 41, relativa à reorganização do Serviço Regional de Saúde (legge n.o 41‑Riordino del Servizio Sanitario Regionale), de 7 de dezembro de 2006, conforme alterada pela Lei Regional n.o 57, de 25 de novembro de 2009 (a seguir «LR n.o 41/2006»). Esta lei organiza a participação das associações de voluntariado na realização dos objetivos do Serviço Regional de Saúde.

17

Nos termos do artigo 75.o, n.o 1, da LR n.o 41/2006, a Região da Ligúria «reconhece o valor e o papel do voluntariado e incentiva a sua contribuição para a prossecução das finalidades do serviço de saúde definidas no âmbito da programação regional». Os n.os 2 e 3 desse artigo precisam que esta contribuição é organizada mediante convenções celebradas com as entidades sanitárias em conformidade com as disposições tomadas pelo órgão executivo regional tendo em conta as exigências de homogeneidade e uniformidade, nomeadamente no que respeita à celebração de acordos‑quadro. Em conformidade com o artigo 75.o‑A da referida lei regional, as associações de voluntariado que concorrem para a realização dos objetivos do Serviço Regional de Saúde devem estar inscritas no registo do voluntariado previsto na Lei Regional n.o 15, de 28 de maio de 1992.

18

O artigo 75.o‑B da LR n.o 41/2006, que respeita ao transporte sanitário, dispõe:

«1.   O transporte sanitário é uma atividade de interesse geral que se rege pelos princípios da universalidade, da solidariedade, da eficácia económica e da adequação.

2.   O transporte sanitário referido no n.o 1 é assegurado pelas diferentes entidades sanitárias e outras entidades prestadoras públicas ou equiparadas com recurso a meios e pessoais próprios. Quando tal não for possível, o transporte sanitário é confiado a entidades que preenchem as condições [fixadas por várias leis, nacionais ou regionais que enquadram o voluntariado, o sistema de urgências sanitárias e o transporte sanitário] e [que dispõem] do equipamento e do pessoal próprio para assegurar o serviço requerido, com base nos seguintes princípios:

a)

Os serviços de transporte sanitário a cargo do Serviço Regional de Saúde são confiados prioritariamente às associações de voluntariado, à Croce Rossa Italiana e às outras instituições ou entidades públicas autorizadas, a fim de garantir que esse serviço de interesse geral seja assegurado em condições de equilíbrio económico no que se refere ao orçamento. As relações com a Croce Rossa Italiana e as associações são reguladas por convenções em conformidade com as disposições do artigo 45.o da Lei n.o 833, de 23 de dezembro de 1978 (relativa à criação do Serviço Nacional de Saúde); [...]

b)

O transporte sanitário pode ser confiado a entidades diferentes das indicadas na alínea a) desde que seja respeitada a regulamentação em vigor em matéria de contratos públicos de serviços e fornecimentos.

3.   As convenções e protocolos previstos no n.o 2, alínea a), preveem apenas, no que se refere às associações de voluntariado, à Croce Rossa Italiana e às outras instituições ou entidades públicas autorizadas, o reembolso das despesas efetivamente suportadas, segundo os princípios da eficácia económica, da eficiência e da exclusão de qualquer sobrecompensação das despesas suportadas.

[...]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19

Com a Decisão n.o 283, de 9 de fevereiro de 2010, a Regione Liguria aprovou um acordo‑quadro regional celebrado com a ANPAS, o Consorzio italiano pubbliche assistenze (CIPAS) e a Croce Rossa Italiana — Comitato regionale Liguria, organismos que representam as associações de voluntariado, relativo à regulamentação das relações entre as entidades sanitárias e hospitalares, por um lado, e as associações de voluntariado e a Croce Rossa Italiana — Comitato regionale Liguria, por outro (a seguir «acordo‑quadro regional»), em aplicação do artigo 75.o‑B, n.o 2, alínea a), da LR n.o 41/2006.

20

Com a Decisão n.o 940, de 22 de dezembro de 2010, a ASL n. 5 implementou esse acordo‑quadro mediante a celebração de convenções relativas aos transportes sanitários de urgência e de emergência com as associações de voluntariado filiadas na ANPAS e com a Croce Rossa Italiana — Comitato regionale Ligura (a seguir «convenções controvertidas»).

21

A San Lorenzo Soc. coop. sociale e a Croce Verde Cogema cooperativa sociale Onlus interpuseram um recurso contra, entre outras, as decisões referidas nos dois números anteriores do presente acórdão.

22

A título principal, este recurso baseava‑se na incompatibilidade com o direito da União, em especial com a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços e os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação, do artigo 75.o‑B, n.o 2, alínea a), da LR n.o 41/2006, na medida em que este prevê que os transportes sanitários são confiados prioritariamente às associações de voluntariado e à Croce Rossa Italiana assim como às outras instituições ou entidades públicas autorizadas, o que constitui uma discriminação em relação aos organismos que não exercem uma atividade de voluntariado, ativos nesse setor de atividade.

23

A título subsidiário, as referidas sociedades contestaram o facto de os pagamentos previstos pelas decisões que regulam, a este respeito, as convenções controvertidas constituírem simples reembolsos das despesas das associações de voluntariado pelos transportes sanitários que efetuam.

24

Entretanto, a Giunta regionale della Liguria (órgão executivo da Região da Ligúria) adotou a Decisão n.o 861, de 15 de julho de 2011, relativa ao modelo de declaração das contas a apresentar pelas associações de voluntariado em execução do acordo‑quadro regional. Esta decisão limita os reembolsos devidos aos organismos de voluntariado convencionados pela execução das convenções decorrentes do acordo‑quadro regional aos custos diretos das prestações de transporte efetuadas por uma associação e à tomada em consideração dos custos indiretos e gerais proporcionais à relação existente entre o montante total dos referidos custos diretos e o montante total dos custos diretos relativos a toda a atividade dessa associação.

25

O órgão jurisdicional de primeira instância deu provimento ao recurso com base na argumentação subsidiária apresentada. Considerou, com efeito, que o acordo‑quadro regional prevê mais do que um simples reembolso de despesas efetivamente suportadas, na medida em que toma em consideração custos indiretos e custos de gestão. Consequentemente, impõe‑se o respeito dos princípios enunciados pelo Tratado FUE.

26

O Consiglio di Stato (Conselho de Estado), chamado a pronunciar‑se em recurso interposto da sentença proferida em primeira instância, interroga‑se, em primeiro lugar, sobre a possibilidade de uma autoridade pública que decide recorrer a entidades terceiras para a prestação de certos serviços se dirigir prioritariamente a organismos de voluntariado, com exclusão das entidades que prosseguem um fim lucrativo, à luz dos artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE, 105.° TFUE e 106.° TFUE.

27

Refere que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, em particular com os acórdãos Comissão/Itália (C‑119/06, EU:C:2007:729) e CoNISMa (C‑305/08, EU:C:2009:807), o conceito de operador económico não exclui as entidades que não prosseguem fins lucrativos a título principal, ou mesmo as entidades completamente desprovidas de fim lucrativo, que podem concorrer com as empresas para a adjudicação de contratos públicos. Isto põe em causa a possibilidade de as autoridades públicas recorrerem a associações de voluntariado, com exclusão das empresas com fins lucrativos, para a prestação de certos serviços, como é tradição em Itália. Com efeito, um sistema dessa natureza levaria a beneficiar as referidas associações, dado que beneficiariam de uma dupla possibilidade de prestar serviços a essas autoridades, por um lado, no âmbito do seu privilégio tradicional e, por outro, no âmbito de concursos públicos.

28

Tanto mais assim seria se as associações de voluntariado pudessem, além disso, retirar das convenções que lhes estão reservadas recursos financeiros que lhes permitissem apresentar propostas atrativas no âmbito dos processos de concurso, o que seria o caso se estivessem autorizadas a receber o reembolso de determinados custos indiretos no âmbito das prestações que fornecem à margem de qualquer concorrência com as empresas com fins lucrativos. Esse reembolso assemelhar‑se‑ia a um auxílio de Estado.

29

O órgão jurisdicional de reenvio vê aqui uma problemática que qualifica de «concorrência entre entidades não homogéneas», que o Tribunal de Justiça até agora ainda não analisou completamente.

30

Em segundo lugar, no caso de esse recurso pelas autoridades públicas a associações de voluntariado não ser, em si mesmo, contrário ao Tratado, o Consiglio di Stato interroga‑se sobre o caráter não oneroso das convenções controvertidas, atendendo ao facto de a sua execução dar lugar a reembolsos de despesas relativas:

aos custos indiretos e despesas gerais dos organismos de voluntariado convencionados, relacionados com o exercício da atividade em causa (assinaturas, taxas, encargos associados à propriedade horizontal, seguros, despesas de funcionamento), calculados proporcionalmente à relação existente entre o montante total dos custos diretos dessa atividade para um organismo dessa natureza e o montante total dos custos diretos relativos a todas as atividades desse organismo; e

aos custos diretos correspondentes a despesas duradouras, como salários do pessoal, que os organismos de voluntariado convencionados devem em qualquer caso suportar.

31

Nestas condições, o Consiglio di Stato decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Os artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE, 105.° TFUE e 106.° TFUE opõem‑se a uma norma interna que prevê que o transporte sanitário seja prioritariamente adjudicado [pelas entidades públicas competentes] às associações de voluntariado, à [Croce Rossa Italiana] e a outras instituições ou entidades públicas autorizadas, mesmo que nas convenções que subscreveram só esteja previsto o reembolso das despesas efetivamente suportadas?

2)

O direito da União em matéria de contratos públicos — no caso em apreço, tratando‑se de contratos excluídos [da Diretiva 2004/18], os princípios gerais da livre concorrência, [da] não discriminação, [da] transparência [e da] proporcionalidade — opõe‑se a uma legislação nacional que permite a adjudicação direta do serviço de transporte sanitário, devendo qualificar‑se de oneroso um acordo‑quadro, como o [acordo‑quadro regional], que prevê também o reembolso das despesas fixas e duradouras?»

Quanto às questões prejudiciais

32

Com as suas duas questões, que devem ser apreciadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as regras do direito da União em matéria de contratos públicos e as regras de concorrência do Tratado devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, como a que está em causa no processo principal, prevê que as autoridades locais devem confiar a prestação de serviços de transporte sanitário de urgência e de emergência prioritariamente e por ajuste direto, sem qualquer forma de publicidade, aos organismos de voluntariado convencionados, que, pela prestação desses serviços, recebem apenas o reembolso das despesas efetivamente efetuadas para esse fim e uma fração dos custos fixos e permanentes.

33

No que respeita à interpretação das regras do direito da União em matéria de contratos públicos, há que recordar, a título preliminar, que a Diretiva 2004/18 se aplica aos contratos públicos de serviços, que o artigo 1.o, n.o 2, alínea d), desta diretiva define como sendo contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, e que são relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II da referida diretiva.

34

Este anexo divide‑se em duas partes, A e B. Os serviços de transporte sanitário de urgência e de emergência inserem‑se, simultaneamente, na categoria 2, que figura no anexo II A da Diretiva 2004/18, no que toca aos aspetos dos serviços de transporte, e na categoria 25, que figura no anexo II B da referida diretiva, no que se refere aos aspetos médicos desses serviços [v., no que respeita às categorias correspondentes dos anexos I A e I B da Diretiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1), acórdão Tögel, C‑76/97, EU:C:1998:432, n.o 39].

35

Resulta da decisão de reenvio que a regulamentação regional pertinente é implementada, antes de mais, pelo acordo‑quadro regional, celebrado com os organismos que representam as associações de voluntariado, que fixa as modalidades das convenções especiais que devem ser celebradas entre as autoridades sanitárias territoriais e essas associações e, depois, por essas convenções especiais.

36

Ora, um acordo‑quadro dessa natureza constitui um acordo‑quadro na aceção do artigo 1.o, n.o 5, da Diretiva 2004/18 e decorre, assim, de um modo geral, do conceito de contrato público (v., neste sentido, acórdão Comissão/Itália, EU:C:2007:729, n.os 43 e 44), e a circunstância de ser celebrado por conta de entidades que não prosseguem fins lucrativos não é suscetível de excluir essa qualificação (v., neste sentido, acórdão Comissão/Itália, EU:C:2007:729, n.o 41).

37

Cumpre também observar que o facto de o referido acordo‑quadro e as convenções especiais que daí decorrem não preverem outras transferências financeiras a favor das associações de voluntariado para além dos reembolsos de despesas não é um elemento decisivo. Com efeito, um contrato não pode escapar ao conceito de contrato público pelo mero facto de a sua remuneração ficar limitada ao reembolso dos custos suportados para fornecer o serviço acordado (acórdão Ordine degli Ingegneri della Provincia di Lecce e o., C‑159/11, EU:C:2012:817, n.o 29). Consequentemente, como salientou o advogado‑geral no n.o 27 das suas conclusões, é irrelevante saber se as despesas que devem ser pagas a essas associações pelas autoridades públicas abrangem apenas os custos diretamente ligados ao cumprimento das prestações em causa ou, além disso, uma parte das despesas gerais.

38

Assim, há que considerar que um acordo‑quadro como o acordo‑quadro regional e as convenções como as que decorrem desse acordo estão, em princípio, abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18.

39

A este propósito, resulta da decisão de reenvio, e nomeadamente da segunda questão prejudicial, que o órgão jurisdicional de reenvio parte da hipótese de que a Diretiva 2004/18 não é aplicável ao acordo‑quadro regional nem às convenções que daí decorrem, de modo que só lhes seriam aplicáveis os princípios do Tratado e a obrigação de transparência que estes preveem.

40

Deve, contudo, recordar‑se que a natureza mista dos serviços que, como os que estão em causa no processo principal, estão abrangidos simultaneamente pelos anexos II A e II B da Diretiva 2004/18 tem como consequência que o artigo 22.o da referida diretiva deva ser aplicado. Ora, em conformidade com este artigo, os contratos públicos, ou se for o caso, os acordos‑quadro cujo valor exceda o patamar pertinente fixado no artigo 7.o da referida diretiva e tenham por objeto esses serviços, devem ser adjudicados em conformidade com as regras processuais enunciadas nos artigos 23.° a 55.° da mesma diretiva se o valor dos serviços de transporte, que figuram no dito anexo II A, ultrapassar o valor dos serviços de saúde, que figuram no referido anexo II B.

41

Uma vez que o valor dos serviços que figuram no anexo II B ultrapassa o valor dos que figuram no anexo II A, o contrato deve ser adjudicado em conformidade apenas com os artigos 23.° e 35.°, n.o 4, da Diretiva 2004/18. Em contrapartida, as outras regras relativas à coordenação dos procedimentos previstos na Diretiva 2004/18, nomeadamente as regras relativas às obrigações de sujeição à concorrência com publicidade prévia e as regras relativas aos critérios de adjudicação dos contratos, não são aplicáveis a esses contratos (acórdãos Comissão/Irlanda, C‑507/03, EU:C:2007:676, n.o 24, e Comissão/Irlanda, C‑226/09, EU:C:2010:697, n.o 27).

42

Com efeito, o legislador da União partiu da presunção de que os contratos relativos a serviços abrangidos pelo anexo II B da Diretiva 2004/18 não apresentam, a priori, tendo em conta a sua natureza específica, um interesse transfronteiriço suscetível de justificar que a sua adjudicação se faça na sequência de um processo de concurso que vise permitir a empresas de outros Estados‑Membros tomarem conhecimento do anúncio de concurso e apresentarem propostas (v. acórdãos Comissão/Irlanda, EU:C:2010:697, n.o 25, e Strong Segurança, C‑95/10, EU:C:2011:161, n.o 35 e jurisprudência referida).

43

Resulta assim dos n.os 40 e 41 do presente acórdão que, desde que o valor do acordo‑quadro regional exceda o patamar pertinente fixado no artigo 7.o da Diretiva 2004/18, todas as regras processuais da referida diretiva ou apenas as que figuram nos artigos 23.° e 35.°, n.o 4, da mesma diretiva são aplicáveis consoante o valor dos serviços de transporte ultrapasse o valor dos serviços de saúde ou não. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se esse acordo ultrapassa esse patamar de aplicação e determinar o valor respetivo dos serviços de transporte e dos serviços médicos.

44

No caso de o valor do acordo‑quadro regional exceder o patamar pertinente fixado no referido artigo 7.o e o valor dos serviços de transporte exceder o dos serviços de saúde, há que considerar que a Diretiva 2004/18 se opõe a uma regulamentação, como a que está em causa no processo principal, que prevê que as autoridades locais confiem a prestação de serviços de transporte sanitário de urgência e de emergência, prioritariamente e por ajuste direto e sem qualquer forma de publicidade, aos organismos de voluntariado convencionados.

45

Em contrapartida, no caso de o órgão jurisdicional de reenvio verificar que o referido patamar não é alcançado ou que o valor dos serviços de saúde ultrapassa o valor dos serviços de transporte, só seriam suscetíveis de ser aplicados, para além, neste último caso, dos artigos 23.° e 35.°, n.o 4, da Diretiva 2004/18, os princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento decorrentes dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE (v., neste sentido, acórdãos Comissão/Irlanda, EU:C:2007:676, n.o 26 e jurisprudência referida, e Strong Segurança, EU:C:2011:161, n.o 35).

46

Contudo, para que esses princípios possam ser aplicados em matéria de contratos públicos às atividades cuja totalidade dos elementos pertinentes se circunscreve ao interior de um único Estado‑Membro, é necessário que o contrato em causa no processo principal tenha um interesse transfronteiriço certo (v., neste sentido, acórdãos Comissão/Irlanda, EU:C:2007:676, n.o 29; Comissão/Itália, C‑412/04, EU:C:2008:102, n.os 66 e 81; SECAP e Santorso, C‑147/06 e C‑148/06, EU:C:2008:277, n.o 21; Serrantoni e Consorzio stabile edili, C‑376/08, EU:C:2009:808, n.o 24; e Comissão/Irlanda, EU:C:2010:697, n.o 31).

47

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio não constatou os elementos necessários que permitam ao Tribunal de Justiça verificar se, no processo principal, existe um interesse transfronteiriço certo. Ora, como resulta do artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, na sua versão entrada em vigor em 1 de novembro de 2012, este deve encontrar num pedido de decisão prejudicial uma exposição dos dados factuais em que as questões assentam e o nexo existente nomeadamente entre esses dados e essas questões. Assim, a constatação dos elementos necessários que permitam a verificação da existência de um interesse transfronteiriço certo, do mesmo modo que, de modo geral, todas as constatações que incumbem aos órgãos jurisdicionais nacionais proceder e das quais depende a aplicabilidade de um ato de direito derivado ou do direito primário da União, deve ser efetuada antes de recorrer ao Tribunal de Justiça.

48

Devido ao espírito de cooperação que preside às relações entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça no âmbito do processo prejudicial, a falta dessas constatações prévias pelo órgão jurisdicional de reenvio relativas à existência de um eventual interesse transfronteiriço certo não leva à inadmissibilidade do pedido se, apesar dessas deficiências, o Tribunal de Justiça, face aos elementos dos autos, considerar que está em condições de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio. É esse nomeadamente o caso quando a decisão de reenvio contém elementos suficientes pertinentes para apreciar a eventual existência de esse interesse. Contudo, a resposta dada pelo Tribunal de Justiça só tem lugar sob reserva de um interesse transfronteiriço certo no processo principal poder, com base numa apreciação circunstanciada de todos os elementos pertinentes relativos ao processo principal, ser constatado pelo órgão jurisdicional de reenvio (v. acórdãos SECAP e Santorso, EU:C:2008:277, n.o 34, e Serrantoni e Consorzio stabile edili, EU:C:2009:808, n.o 25).

49

Quanto aos critérios objetivos suscetíveis de indicar a existência de um interesse transfronteiriço, o Tribunal de Justiça já declarou que esses critérios podem ser, nomeadamente, a importância económica do contrato em causa conjugada com o local de execução dos trabalhos ou ainda as características técnicas do contrato (v. acórdãos SECAP e Santorso, EU:C:2008:277, n.o 31, e Belgacom, C‑221/12, EU:C:2013:736, n.o 29). O órgão jurisdicional de reenvio pode, na sua apreciação global da existência de um interesse transfronteiriço certo, ter também em conta a existência de denúncias apresentadas por operadores situados noutros Estados‑Membros, na condição de que seja verificado que estas são reais e não fictícias. No que respeita mais especificamente aos transportes sanitários, o Tribunal de Justiça considerou, no âmbito de uma ação por incumprimento, que o interesse transfronteiriço certo não estava estabelecido pelo simples facto de alguns operadores situados noutros Estados‑Membros terem apresentado uma denúncia junto da Comissão Europeia e de os contratos em causa terem importância económica (v., neste sentido, acórdão Comissão/Alemanha, C‑160/08, EU:C:2010:230, n.os 18, 27 e segs., 54 e 123).

50

Sob esta reserva, há assim que considerar que os princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento que decorrem dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE podem, em princípio, ser aplicados ao acordo‑quadro regional e às convenções como as que decorrem desse acordo‑quadro.

51

Ora, o direito da União em matéria de contratos públicos, na parte em que se refere em particular aos contratos públicos de serviços, visa assegurar a livre circulação de serviços e a abertura à concorrência não falseada e o mais ampla possível nos Estados‑Membros (v. acórdão Bayerischer Rundfunk e o., C‑337/06, EU:C:2007:786, n.o 39 e jurisprudência referida).

52

Consequentemente, impõe‑se observar que um sistema convencionado como o instituído pelo artigo 75.o‑B da LR n.o 41/2006 leva a um resultado contrário aos referidos objetivos. Com efeito, ao prever que as autoridades públicas competentes recorrem, por ajuste direto, prioritariamente aos organismos de voluntariado convencionados para responder às necessidades nesse domínio, essa regulamentação exclui as entidades sem caráter de voluntariado de uma parte essencial do mercado em causa. Ora, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a adjudicação, sem qualquer transparência, de um contrato a uma empresa situada no Estado‑Membro da entidade adjudicante desse contrato constitui uma diferença de tratamento desfavorável às empresas que possam ter interesses nesse contrato, situadas noutro Estado‑Membro. A menos que se justifique por circunstâncias objetivas, essa diferença de tratamento, que, ao excluir todas as empresas situadas noutro Estado‑Membro, prejudica principalmente estas últimas, constitui uma discriminação indireta em função da nacionalidade, proibida nos termos dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE (v., neste sentido, acórdãos Comissão/Irlanda, EU:C:2007:676, n.os 30 e 31; Comissão/Itália, EU:C:2007:729, n.o 64; e Comissão/Itália, EU:C:2008:102, n.o 66).

53

Há, contudo, que observar que, nos termos do artigo 75.o‑B, n.os 1 e 2, alínea a), da LR n.o 41/2006, o modo de organização do serviço de transporte sanitário em causa no processo principal assenta nos princípios da universalidade, da solidariedade, da eficácia económica e da adequação, na medida em que o recurso prioritário aos organismos de voluntariado convencionados visa garantir que esse serviço de interesse geral seja assegurado em condições de equilíbrio económico no plano orçamental. Uma vez que prevê a participação dos organismos de voluntariado num serviço de interesse geral e se refere ao princípio da solidariedade, o referido artigo 75.o‑B assemelha‑se às disposições constitucionais e legais relativas à ação voluntária dos cidadãos referidas nos n.os 9 a 11 do presente acórdão.

54

Ora, esses objetivos são tidos em consideração pelo direito da União.

55

A este respeito, deve recordar‑se, em primeiro lugar, que o direito da União não prejudica a competência dos Estados‑Membros para organizarem os seus sistemas de saúde pública e de segurança social (v., neste sentido, designadamente, acórdãos Sodemare e o., C‑70/95, EU:C:1997:301, n.o 27 e jurisprudência referida, e Blanco Pérez e Chao Gómez, C‑570/07 e C‑571/07, EU:C:2010:300, n.o 43 e jurisprudência referida).

56

É certo que, no exercício dessa competência, os Estados‑Membros não podem introduzir ou manter restrições injustificadas para o exercício das liberdades fundamentais no domínio dos cuidados de saúde. Contudo, na apreciação do cumprimento dessa proibição, deve ser tido em conta que saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado e que cabe aos Estados‑Membros, que dispõem de uma margem de apreciação, decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública, bem como o modo como esse nível deve ser alcançado (v., neste sentido, designadamente, acórdãos Comissão/Alemanha, C‑141/07, EU:C:2008:492, n.os 46, 51 e jurisprudência referida, e Blanco Pérez e Chao Gómez, EU:C:2010:300, n.os 43, 44, 68, 90 e jurisprudência referida).

57

Por outro lado, não só um risco grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social pode constituir, em si mesmo, uma razão imperativa de interesse geral suscetível de justificar um entrave ao princípio da livre prestação de serviços mas além disso o objetivo de manter, por razões de saúde pública, um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos pode igualmente ser abrangido por uma das derrogações por razões de saúde pública, na medida em que esse objetivo contribua para a realização de um nível elevado de proteção da saúde (v., neste sentido, acórdão Stamatelaki, C‑444/05, EU:C:2007:231, n.os 30, 31 e jurisprudência referida). São assim visadas as medidas que, por um lado, respondem ao objetivo geral de garantir, no território do Estado‑Membro em causa, uma acessibilidade suficiente e permanente a uma gama equilibrada de cuidados hospitalares de qualidade e, por outro, que participem da vontade de garantir um controlo dos custos e de evitar, na medida do possível, qualquer desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos (v., neste sentido, acórdão Comissão/Alemanha, EU:C:2008:492, n.o 61).

58

Em segundo lugar, há que recordar que, no n.o 32 do acórdão Sodemare e o. (EU:C:1997:301), o Tribunal de Justiça declarou que um Estado‑Membro, no âmbito da sua competência para organizar o seu sistema de segurança social, pode considerar que um sistema de assistência social aos idosos cujo estado torna indispensáveis prestações de cuidados de saúde implica necessariamente, para serem alcançados os seus objetivos, neste caso, o respeito da finalidade exclusivamente social desse sistema, que a admissão de operadores privados na qualidade de prestadores de serviços de assistência social dependa da condição de não terem fim lucrativo.

59

Por conseguinte, um Estado‑Membro pode considerar, no âmbito da margem de apreciação de que dispõe para decidir o nível de proteção da saúde pública e organizar o seu sistema de segurança social, que o recurso às associações de voluntariado corresponde à finalidade social do serviço de transporte sanitário de urgência e é suscetível de contribuir para controlar os custos associados a esse serviço.

60

Deve, contudo, salientar‑se que um sistema de organização do serviço de transporte sanitário de urgência como o que está em causa no processo principal, que consiste no recurso prioritário das autoridades competentes às associações de voluntariado, deve contribuir efetivamente para um fim social e para a prossecução de objetivos de solidariedade e de eficácia orçamental em que assenta este sistema.

61

A este respeito, exige‑se que, quando intervêm nesse quadro, as associações de voluntariado prossigam apenas os objetivos mencionados no número anterior do presente acórdão, que não obtenham nenhum lucro pelas prestações que levam a cabo, independentemente do reembolso dos custos variáveis, fixos e permanentes necessários para as levar a cabo, nem tenham em vista qualquer benefício para os seus membros. Por outro lado, embora seja admitido o recurso a trabalhadores, uma vez que, a não ser assim, essas associações ficariam privadas da possibilidade efetiva de agir em muitos domínios em que o princípio da solidariedade pode naturalmente ser aplicado, a atividade das referidas associações deve respeitar estritamente as exigências estabelecidas na legislação nacional a seu respeito.

62

Tendo em conta o princípio geral do direito da União da proibição do abuso do direito (v., por analogia, acórdão 3M Italia, C‑417/10, EU:C:2012:184, n.o 33), a aplicação dessa legislação não pode ser alargada até abranger práticas abusivas das associações de voluntariado ou ainda dos seus membros. Assim, a atividade das associações de voluntariado só pode ser exercida por trabalhadores nos limites necessários ao seu funcionamento regular. No que se refere ao reembolso das despesas, deve assegurar‑se que nenhum fim lucrativo, mesmo indireto, possa ser prosseguido a coberto de uma atividade voluntária e que o voluntário possa ser unicamente reembolsado das despesas efetivamente efetuadas com a atividade prestada, nos limites previamente estabelecidos pelas próprias associações.

63

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio levar a cabo todas as apreciações necessárias para verificar se o sistema de organização do serviço de transporte sanitário de urgência em causa no processo principal, tal como é regulado pela legislação aplicável e implementado pelo acordo‑quadro regional e pelas convenções especiais que dele decorrem, contribui efetivamente para a finalidade social e para a prossecução dos objetivos de solidariedade e de eficácia orçamental em que esse sistema se baseia.

64

No que respeita à interpretação das regras do Tratado em matéria de concorrência, decorre das considerações relativas à interpretação do direito da União em matéria de contratos públicos que não é necessário examinar uma regulamentação como a que está em causa no processo principal à luz das referidas regras de concorrência.

65

Em face das considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional que, como a que está em causa no processo principal, prevê que a prestação de serviços de transporte sanitário de urgência e de emergência deve ser confiada prioritariamente e por ajuste direto, sem qualquer forma de publicidade, aos organismos de voluntariado convencionados, desde que o quadro legal e convencional ao abrigo do qual se desenvolve a atividade desses organismos contribua efetivamente para a finalidade social e para a prossecução dos objetivos de solidariedade e de eficácia orçamental em que essa regulamentação se baseia.

Quanto às despesas

66

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

Os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional que, como a que está em causa no processo principal, prevê que a prestação de serviços de transporte sanitário de urgência e de emergência deve ser confiada prioritariamente e por ajuste direto, sem qualquer forma de publicidade, aos organismos de voluntariado convencionados, desde que o quadro legal e convencional ao abrigo do qual se desenvolve a atividade desses organismos contribua efetivamente para a finalidade social e para a prossecução dos objetivos de solidariedade e de eficácia orçamental em que essa regulamentação se baseia.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.

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