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Document 62013CJ0503

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 5 de março de 2015.
Boston Scientific Medizintechnik GmbH contra AOK Sachsen-Anhalt – Die Gesundheitskasse e Betriebskrankenkasse RWE.
Pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Bundesgerichtshof.
Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos — Diretiva 85/374/CEE — Artigos 1.°, 6.°, n.° 1, e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a) — Estimulador cardíaco e desfibrilhador automático implantável — Risco de avaria do produto — Lesão corporal — Explantação do dispositivo alegadamente defeituoso e implantação de um outro — Reembolso das despesas relativas à operação.
Processos apensos C-503/13 e C-504/13.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2015:148

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

5 de março de 2015 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos — Diretiva 85/374/CEE — Artigos 1.°, 6.°, n.o 1, e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a) — Estimulador cardíaco e desfibrilhador automático implantável — Risco de avaria do produto — Lesão corporal — Explantação do dispositivo alegadamente defeituoso e implantação de um outro — Reembolso das despesas relativas à operação»

Nos processos apensos C‑503/13 e C‑504/13,

que tem por objeto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentados pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), por decisões de 30 de julho de 2013, entradas no Tribunal de Justiça em 19 de setembro de 2013, nos processos

Boston Scientific Medizintechnik GmbH

contra

AOK Sachsen‑Anhalt — Die Gesundheitskasse (C‑503/13),

Betriebskrankenkasse RWE (C‑504/13),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, K. Jürimäe, J. Malenovský, M. Safjan (relator) e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 3 de setembro de 2014,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Boston Scientific Medizintechnik GmbH, por C. Wagner, Rechtsanwalt,

em representação da AOK Sachsen‑Anhalt — Die Gesundheitskasse, por R. Schultze‑Zeu e H. Rien, Rechtsanwälte,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por D. Colas e S. Menez, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por P. Mihaylova e G. Wilms, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 21 de outubro de 2014,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação dos artigos 1.°, 6.°, n.o 1, e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (JO L 210, p. 29; EE 13 F19 p. 8).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de recursos de «Revision» que opõem a Boston Scientific Medizintechnik GmbH (a seguir «Boston Scientific Medizintechnik») ao AOK Sachsen‑Anhalt — Die Gesundheitskasse (C‑503/13) (a seguir «AOK») e ao Betriebskrankenkasse RWE (C‑504/13), organismos do sistema de seguro de saúde obrigatório, a propósito dos pedidos, destes últimos, de reembolso das despesas relacionadas com a implantação de estimuladores cardíacos e de um desfibrilhador automático implantável importados e comercializados na União Europeia pela G. GmbH (a seguir «G.»), sociedade que, posteriormente, se fundiu com a Boston Scientific Medizintechnik.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os primeiro, segundo, sexto, sétimo e nono considerandos da Diretiva 85/374 enunciam:

«Considerando que é necessária uma aproximação das legislações em matéria de responsabilidade do produtor pelos danos causados pela qualidade defeituosa dos seus produtos, por sua disparidade ser suscetível […] de originar diferenças relativamente ao grau de proteção do consumidor contra os danos causados à sua saúde e aos seus bens por um produto defeituoso;

Considerando que a responsabilidade não culposa do produtor é o único meio de resolver de modo adequado o problema, característico da nossa época de crescente tecnicidade, de uma justa atribuição dos riscos inerentes à produção técnica moderna;

[…]

Considerando que, com vista a proteger a integridade física do consumidor e os seus bens, a qualidade defeituosa de um produto não deve ser determinada com base numa inaptidão do produto para utilização, mas com base numa falta da segurança que o público em geral pode legitimamente esperar; que esta segurança se avalia excluindo qualquer utilização abusiva do produto que não seja razoável nas circunstâncias em causa;

Considerando que uma justa repartição dos riscos entre o lesado e o produtor implica que este último se possa eximir da responsabilidade se provar a existência de determinados factos que o isentem;

[…]

Considerando que a proteção do consumidor exige a indemnização dos danos causados por morte e por lesões corporais bem como a indemnização dos danos patrimoniais […];».

4

Nos termos do artigo 1.o desta diretiva:

«O produtor é responsável pelo dano causado por um defeito do seu produto.»

5

O artigo 3.o, n.os 1 e 2, da referida diretiva prevê:

«1.   O termo ‘produtor’ designa o fabricante de um produto acabado, o produtor de uma matéria‑prima ou o fabricante de uma parte componente, e qualquer pessoa que se apresente como produtor pela aposição sobre o produto do seu nome, marca ou qualquer outro sinal distintivo.

2.   Sem prejuízo da responsabilidade do produtor, qualquer pessoa que importe um produto na Comunidade tendo em vista uma venda, locação, locação financeira ou qualquer outra forma de distribuição no âmbito da sua atividade comercial, será considerada como produtor do mesmo, na aceção da presente diretiva, e responsável nos mesmos termos que o produtor.»

6

Nos termos do artigo 4.o da mesma diretiva:

«Cabe ao lesado a prova do dano, do defeito e do nexo causal entre o defeito e o dano.»

7

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 85/374 dispõe:

«Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias, tais como:

a)

A apresentação do produto;

b)

A utilização do produto que se pode razoavelmente esperar;

c)

O momento de entrada em circulação do produto.»

8

O artigo 9.o, primeiro parágrafo, desta diretiva prevê:

«Para efeitos do disposto no artigo 1.o, entende‑se por ‘dano’:

a)

O dano causado pela morte ou por lesões corporais;

b)

O dano causado a uma coisa ou a destruição de uma coisa que não seja o próprio produto defeituoso […]

[…]»

Direito alemão

9

O § 1, n.os 1 e 4, da Lei relativa à responsabilidade por produtos defeituosos (Gesetz über die Haftung für fehlerhafte Produkte), de 15 de dezembro de 1989 (BGBl. 1989 I, p. 2198), dispõe:

«1.   Em caso de morte, lesão corporal ou danos à saúde de alguém, bem como de danos a um bem, causados por um produto defeituoso, o produtor está obrigado a indemnizar o lesado pelo dano daí resultante. No caso de danos materiais, este princípio só se aplica quando tenha sido danificado um bem diferente do produto defeituoso e quando este outro bem se destine, em regra, a uso ou a consumo privados, tendo sido essencialmente utilizado pelo lesado para este efeito.

[…]

4.   O ónus da prova do defeito, do dano e do nexo causal entre o defeito e o dano recai sobre o lesado. […]»

10

O § 3, n.o 1, dessa lei tem a seguinte redação:

«Um produto apresenta um defeito quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias, tais como:

a)

A sua apresentação;

b)

A utilização que se pode razoavelmente esperar;

c)

O momento da sua entrada em circulação.»

11

Nos termos do § 8 da referida lei:

«No caso de lesões corporais ou danos à saúde, deve ser paga uma indemnização que cubra as despesas de tratamento suportadas pelo lesado para recuperar a saúde, e o prejuízo financeiro por ele sofrido devido à perda ou redução, temporária ou permanente, da sua capacidade de trabalho ou ao aumento temporário das suas necessidades na sequência das lesões.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

12

A G. Corporation, atualmente B. S. Corporation, sociedade com sede em Saint‑Paul (Estados Unidos), fabrica e vende estimuladores cardíacos e desfibrilhadores automáticos implantáveis.

13

A G. importava e comercializava na Alemanha estimuladores cardíacos do tipo «Guidant Pulsar 470» e «Guidant Meridian 976», fabricados nos Estados Unidos pela G. Corporation, e desfibrilhadores automáticos implantáveis do tipo «G. Contak Renewal 4 AVT 6», fabricados por esta última na Europa.

Recomendações da G., de 22 de julho de 2005, relativas aos estimuladores cardíacos, e factos subsequentes no processo C‑503/13

14

Numa carta de 22 de julho de 2005, enviada nomeadamente aos médicos responsáveis pelo tratamento, a G. indicou que o seu sistema de controlo de qualidade permitiu detetar que um componente utilizado para selar hermeticamente os estimuladores cardíacos que comercializou podia eventualmente apresentar uma avaria progressiva. Essa avaria podia ter como consequência o esgotamento antecipado da pilha, provocando a perda de telemetria e/ou da terapia por estimulação cardíaca, sem aviso prévio.

15

Por conseguinte, a G. recomendou aos médicos, nomeadamente, que ponderassem a substituição dos referidos estimuladores utilizados pelos seus pacientes. Não obstante a extinção do direito de garantia para os referidos estimuladores, a G. comprometeu‑se a colocar gratuitamente aparelhos de substituição à disposição dos pacientes dependentes desses estimuladores e daqueles relativamente aos quais os médicos considerassem ser preferível proceder à substituição.

16

Na sequência desta recomendação, os estimuladores cardíacos anteriormente implantados em B. e em W., dois beneficiários cobertos pelo seguro do AOK, foram substituídos, respetivamente, em setembro e novembro de 2005, por outros que o fabricante forneceu gratuitamente. Os estimuladores cardíacos retirados foram destruídos sem terem sido objeto de uma perícia relativa ao seu funcionamento.

17

O AOK, sub‑rogado nos direitos de B. e de W., intentou no Amtsgericht Stendal (tribunal de Stendal) uma ação em que pedia que a Boston Scientific Medizintechnik fosse condenada a indemnizar‑lhe as despesas relacionadas com as implantações dos primeiros estimuladores cardíacos, atualizados às datas de substituição desses estimuladores. Essas despesas ascendiam a 2 655,38 euros, no que respeita a B., e a 5 914,07 euros, no que respeita a W.

18

Por sentença de 25 de maio de 2011, o Amtsgericht Stendal julgou a ação procedente. Tendo o Landgericht Stendal (tribunal regional de Stendal) negado provimento ao recurso interposto pela Boston Scientific Medizintechnik daquela sentença, esta sociedade interpôs um recurso de «Revision» para o órgão jurisdicional de reenvio.

Recomendações de G., do mês de junho de 2005, relativas aos desfibrilhadores automáticos implantáveis, e factos subsequentes no processo C‑504/13

19

Por carta de junho de 2005, a G. informou os médicos responsáveis pelo tratamento que o seu sistema de controlo de qualidade tinha permitido detetar que o funcionamento dos desfibrilhadores implantáveis do tipo «G. Contak Renewal 4 AVT 6» podia ser afetado por um defeito de um componente suscetível de limitar os seus efeitos terapêuticos. Resultava do controlo técnico efetuado que um interruptor magnético desses desfibrilhadores podia ficar bloqueado na posição de fechado.

20

Como decorre da decisão de reenvio no processo C‑504/13, se a função «utilização do íman» estivesse ativa e se esse comutador magnético ficasse bloqueado em posição de fechado, o tratamento das arritmias ventriculares e auriculares seria interrompido. Por conseguinte, uma eventual perturbação do ritmo cardíaco que podia ser mortal não seria detetada pelos referidos desfibrilhadores e estes não emitiriam o choque que salva a vida do doente.

21

Nestas condições, a G. recomendou aos médicos a desativação do interruptor magnético dos desfibrilhadores em causa.

22

Em 2 de março de 2006, na sequência da divulgação da informação referida no n.o 19 do presente acórdão, o desfibrilhador automático implantável de F., beneficiário da cobertura do seguro do Betriebskrankenkasse RWE, foi substituído antecipadamente.

23

Por carta de 31 de agosto de 2009, o Betriebskrankenkasse RWE pediu à Boston Scientific Medizintechnik o reembolso das despesas do tratamento do seu assegurado, que ascendiam aos montantes de 20315,01 euros e de 122,50 euros, associadas à operação de substituição do referido desfibrilhador.

24

Por sentença de 3 de fevereiro de 2011, o Landgericht Düsseldorf (Tribunal Regional de Düsseldorf), no qual o Betriebskrankenkasse RWE intentou uma ação em que pedia a condenação da Boston Scientific Medizintechnik no referido reembolso, julgou a referida ação procedente. A Boston Scientific Medizintechnik interpôs recurso dessa sentença para o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Düsseldorf) que revogou parcialmente a referida sentença e condenou esta sociedade no pagamento de uma quantia de 5952,80 euros, acrescida de juros. A Boston Scientific Medizintechnik interpôs recurso de «Revision» para o órgão jurisdicional de reenvio, pedindo a improcedência total da ação do Betriebskrankenkasse RWE.

Considerações apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio nos processos C‑503/13 e C‑504/13

25

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a decisão dos litígios em causa nos processos principais depende da questão de saber se os estimuladores cardíacos e o desfibrilhador automático implantados no corpo dos segurados em causa são produtos defeituosos na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 85/374. A este respeito, considera que ainda não se determinou se esses aparelhos, por pertencerem a um grupo de produtos que apresentam um risco de avaria, eram, em si mesmos, defeituosos.

26

O referido órgão jurisdicional considera que, nesse contexto, pouco importa que nos circuitos médicos especializados se admita que, em caso de implantação de um estimulador cardíaco ou de um desfibrilhador automático, não se possa garantir uma segurança total. Tendo em conta o risco de vida que representa um aparelho defeituoso, o paciente deveria poder legitimamente esperar, em princípio, uma taxa de avaria do aparelho implantado próxima de zero.

27

Quanto aos desfibrilhadores automáticos implantáveis, resulta da decisão de reenvio que o facto de a utilidade terapêutica da função «utilização do íman» desaparecer quando esta última é desativada não constitui um risco para a integridade física e a vida do paciente. O armazenamento dos dados do doente não é interrompido por essa desativação. O facto de o bloqueio temporário da terapia de taquiarritmia apenas poder ser efetuado neste caso com a ajuda de um aparelho de programação não resulta num risco para a saúde, mas apenas numa limitação das funcionalidades desses desfibrilhadores.

28

Nestas condições, o Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas de forma semelhante nos dois processos C‑503/13 e C‑504/13:

«1)

Deve o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 85/374[…] ser interpretado no sentido de que um produto que constitui um dispositivo médico implantado no corpo humano (neste caso, um estimulador cardíaco [e um desfibrilhador automático implantável]) é, desde logo, defeituoso quando os [estimuladores cardíacos] do mesmo [lote] de produtos apresentam um risco de avaria significativamente superior [ou quando um número significativo de desfibrilhadores da mesma série revelou um mau funcionamento], não tendo, no entanto, sido constatado qualquer defeito no dispositivo implantado no caso concreto?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

As despesas relativas à operação de explantação do dispositivo e de implantação de um outro estimulador cardíaco [ou de um outro desfibrilhador] [constituem] um dano causado por lesões corporais na aceção [dos artigos] 1.° e 9.°, [primeiro parágrafo], alínea a), da Diretiva 85/374[…]?

29

Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 2 de outubro de 2013, os processos C‑503/13 e C‑504/13 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão a proferir.

Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

30

A fase oral do processo foi encerrada em 21 de outubro de 2014 após a apresentação das conclusões do advogado‑geral.

31

Por requerimento de 10 de novembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça no mesmo dia, a Boston Scientific Medizintechnik pediu ao Tribunal de Justiça que ordenasse a reabertura da fase oral do processo.

32

Em apoio deste pedido, alega, em particular, que as conclusões do advogado‑geral têm por base considerações jurídicas sobre as quais as partes no processo não puderam trocar as suas opiniões, nomeadamente, as relativas ao artigo 168.o TFUE e ao artigo 35.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Além disso, a Boston Scientific Medizintechnik defende que as conclusões apresentadas pelo advogado‑geral enfermam de vários erros.

33

A este propósito, importa realçar que o Tribunal de Justiça pode, em qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, em conformidade com o disposto no artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, nomeadamente se considerar que está insuficientemente esclarecido ou ainda quando a causa deva ser decidida com base num argumento que não foi debatido entre as partes ou entre os interessados referidos no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

34

No caso em apreço, ouvido o advogado‑geral, o Tribunal de Justiça considera que dispõe de todos os elementos necessários para responder às questões submetidas e que esses elementos foram objeto de debate neste Tribunal.

35

Consequentemente, há que indeferir o pedido de reabertura da fase oral do processo apresentado pela Boston Scientific Medizintechnik.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

36

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 85/374 deve ser interpretado no sentido de que a comprovação de um defeito potencial dos produtos do mesmo lote ou da mesma série de produção, como os estimuladores cardíacos e os desfibrilhadores automáticos implantáveis, permite qualificar tal produto de defeituoso sem que seja necessário comprovar o referido defeito desse produto.

37

A fim de responder a esta questão, há que salientar que, como resulta do artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva, um produto é defeituoso quando não oferece a segurança que se pode legitimamente esperar, tendo em conta todas as circunstâncias, nomeadamente a apresentação desse produto, a utilização do produto que se pode razoavelmente esperar e o momento da sua entrada em circulação. Por outro lado, em conformidade com o sexto considerando da Diretiva 85/374, há que efetuar esta apreciação atendendo às expectativas legítimas do público em geral.

38

Por conseguinte, a segurança que se pode legitimamente esperar, em conformidade com esta disposição, deve ser apreciada tendo em conta, nomeadamente, o destino, as características e as propriedades objetivas do produto em causa, bem como as especificidades do grupo dos utilizadores a que esse produto se destina.

39

Quanto a dispositivos médicos, como os estimuladores cardíacos e os desfibrilhadores automáticos implantáveis em causa nos processos principais, há que referir que, tendo em conta a sua função e a situação de particular vulnerabilidade dos pacientes que utilizam os referidos dispositivos, as exigências de segurança que esses pacientes podem legitimamente esperar dos mesmos são particularmente elevadas.

40

Por outro lado, como o advogado‑geral referiu, em substância, no n.o 30 das suas conclusões, o defeito potencial de segurança, que determina a responsabilidade do produtor nos termos da Diretiva 85/374, reside, no que se refere a produtos como os que estão em causa nos processos principais, na probabilidade anormal do dano que estes podem causar à pessoa.

41

Nestas condições, a comprovação de um defeito potencial desses produtos do mesmo lote ou da mesma série de produção permite qualificar todos os produtos desse lote ou dessa série de defeituosos, sem que seja necessário demonstrar o defeito do produto em causa.

42

Além disso, tal interpretação está de acordo com os objetivos prosseguidos pelo legislador da União que visam, nomeadamente, conforme resulta dos segundo e sétimo considerandos da Diretiva 85/374, assegurar a justa repartição dos riscos inerentes à produção técnica moderna entre o lesado e o produtor.

43

Resulta do conjunto das considerações precedentes que há que responder à primeira questão que o artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva deve ser interpretado no sentido de que a comprovação de um defeito potencial dos produtos do mesmo lote ou da mesma série de produção, como os estimuladores cardíacos e os desfibrilhadores automáticos implantáveis, permite qualificar tal produto de defeituoso sem que seja necessário comprovar o referido defeito desse produto.

Quanto à segunda questão

44

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 1.° e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 85/374 devem ser interpretados no sentido de que o dano causado por uma operação cirúrgica de substituição de um produto defeituoso, como um estimulador cardíaco ou um desfibrilhador automático implantável, constitui um «dano causado pela morte ou por lesões corporais», pelo qual o produtor é responsável.

45

A título preliminar, há que recordar que, conforme resulta da leitura conjugada dos artigos 1.° e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), da referida diretiva, o produtor é responsável pelo dano causado pela morte ou por lesões corporais, que são a consequência do defeito do seu produto.

46

Como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma indemnização adequada e integral das vítimas de um produto defeituoso deve ser garantida quanto ao dano referido no número anterior do presente acórdão (v. acórdão Veedfald, C‑203/99, EU:C:2001:258, n.o 27).

47

Conforme salientou o advogado‑geral nos n.os 61 a 63 das suas conclusões, o conceito de «dano causado pela morte ou por lesões corporais», na aceção do artigo 9.o, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 85/374, tendo em conta os objetivos de proteção da segurança e da saúde dos consumidores que essa diretiva prossegue em conformidade com os seus primeiro e sexto considerandos, deve ser objeto de uma interpretação ampla.

48

Para que surja a responsabilidade do produtor por um produto defeituoso, é necessário demonstrar, em conformidade com o artigo 4.o da Diretiva 85/374, um nexo causal entre o defeito e o dano sofrido.

49

A indemnização do dano abrange, assim, tudo o que for necessário para eliminar as consequências nocivas e para restabelecer o nível de segurança que se pode legitimamente esperar, em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, dessa diretiva.

50

Por conseguinte, no caso de dispositivos médicos, como os estimuladores cardíacos e os desfibrilhadores automáticos implantáveis, defeituosos na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva, a indemnização do dano deveria, nomeadamente, cobrir as despesas relacionadas com a substituição do produto defeituoso.

51

No caso vertente, conforme resulta da decisão de reenvio no processo C‑503/13, a G. recomendou aos médicos que ponderassem a substituição dos estimuladores cardíacos em causa.

52

Neste último processo, há que observar que as despesas relacionadas com a substituição desses estimuladores, incluindo as despesas com as operações cirúrgicas, constituem um dano, na aceção do artigo 9.o, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 85/374, pelo qual o produtor é responsável em conformidade com o artigo 1.o desta diretiva.

53

Esta apreciação pode ser diferente no caso dos desfibrilhadores automáticos implantáveis uma vez que, como resulta da decisão de reenvio no processo C‑504/13, a G. apenas recomendou a desativação do interruptor magnético desses dispositivos médicos.

54

A este respeito, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se, tendo em conta a situação de particular vulnerabilidade dos pacientes que utilizam um desfibrilhador automático implantável, tal desativação é adequada a eliminar o defeito desse produto, que implica um risco anormal de dano para os pacientes em causa, ou se a substituição desse produto é necessário para eliminar esse defeito.

55

Resulta do conjunto das considerações precedentes que há que responder à segunda questão que os artigos 1.° e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 85/374 devem ser interpretados no sentido de que o dano causado por uma operação cirúrgica de substituição de um produto defeituoso, como um estimulador cardíaco ou um desfibrilhador automático implantável, constitui um «dano causado pela morte ou por lesões corporais» pelo qual o produtor é responsável, quando essa operação é necessária para eliminar o defeito do produto em causa. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se este requisito se verifica nos processos principais.

Quanto às despesas

56

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 85/374/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, deve ser interpretado no sentido de que a comprovação de um defeito potencial dos produtos do mesmo lote ou da mesma série de produção, como os estimuladores cardíacos e os desfibrilhadores automáticos implantáveis, permite qualificar tal produto de defeituoso sem que seja necessário comprovar o referido defeito desse produto.

 

2)

Os artigos 1.° e 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 85/374 devem ser interpretados no sentido de que o dano causado por uma operação cirúrgica de substituição de um produto defeituoso, como um estimulador cardíaco ou um desfibrilhador automático implantável, constitui um «dano causado pela morte ou por lesões corporais» pelo qual o produtor é responsável, quando essa operação é necessária para eliminar o defeito do produto em causa. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se este requisito se verifica nos processos principais.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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