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Document 62002CJ0263

Acórdão do Tribunal (Sexta Secção) de 1 de Abril de 2004.
Comissão das Comunidades Europeias contra Jégo-Quéré & Cie SA.
Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância - Admissibilidade de um recurso de anulação de um regulamento, interposto por uma pessoa colectiva.
Processo C-263/02 P.

Colectânea de Jurisprudência 2004 I-03425

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2004:210

Arrêt de la Cour

Processo C-263/02 P


Comissão das Comunidades Europeias
contra
Jégo-Quéré & Cie SA


«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Admissibilidade de um recurso de anulação de um regulamento, interposto por uma pessoa colectiva»

Conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs apresentadas em 10 de Julho de 2003
    
Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 1 de Abril de 2004
    

Sumário do acórdão

1.
Comunidades Europeias – Fiscalização jurisdicional da legalidade dos actos das instituições – Actos de alcance geral – Necessidade de as pessoas singulares ou colectivas seguirem a via da excepção de ilegalidade ou do reenvio prejudicial para apreciação da validade – Obrigação de os órgãos jurisdicionais nacionais aplicarem as regras processuais nacionais de maneira a permitir a contestação da legalidade dos actos comunitários de alcance geral – Interposição do recurso de anulação perante o juiz comunitário em caso de obstáculo intransponível ao nível das regras processuais nacionais – Exclusão

(Artigos 10.° CE, 230.°, quarto parágrafo, CE, 234.° CE e 241.° CE)

2.
Recurso de anulação – Pessoas singulares ou colectivas – Actos que lhes dizem directa e individualmente respeito – Interpretação contra legem da condição relativa à necessidade de o acto lhes dizer individualmente respeito – Inadmissibilidade

(Artigo 230.°, quarto parágrafo, CE)

3.
Recurso de anulação – Pessoas singulares ou colectivas – Actos que lhes dizem directa e individualmente respeito – Regulamento que estabelece medidas para a recuperação da unidade populacional de pescada bem como as respectivas condições para o controlo das actividades dos navios de pesca – Inexistência de situação jurídica particular a favor de um operador económico à luz da adopção do referido regulamento – Inadmissibilidade

(Artigo 230.°, quarto parágrafo, CE; Regulamento n.° 1162/2001 da Comissão)

1.
O Tratado, através dos artigos 230.° CE e 241.° CE, por um lado, e do artigo 234.° CE, por outro, instituiu um sistema completo de vias de recurso e de meios processuais destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos actos das instituições, confiando essa fiscalização ao tribunal comunitário. Neste sistema, as pessoas singulares ou colectivas que não podem, em razão das condições de admissibilidade previstas no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, impugnar directamente actos comunitários de alcance geral têm a possibilidade, conforme os casos, de invocar a invalidade de tais actos, quer a título incidental, ao abrigo do artigo 241.° CE, no tribunal comunitário, quer perante os órgãos jurisdicionais nacionais, que não são competentes para declarar a invalidade dos referidos actos, levando‑os a interrogar a este respeito o Tribunal de Justiça através de questões prejudiciais.
Assim, compete aos Estados‑Membros prever um sistema de vias de recurso e de meios processuais que permita assegurar o respeito do direito a uma tutela jurisdicional efectiva.
Neste âmbito, em conformidade com o princípio da cooperação leal enunciado no artigo 10.° CE, os órgãos jurisdicionais nacionais estão obrigados, em toda a medida do possível, a interpretar e a aplicar as normas processuais internas que regem o exercício dos recursos, de maneira a permitir às pessoas singulares e colectivas contestar judicialmente a legalidade de qualquer decisão ou de qualquer medida nacional relativa à aplicação, em relação a elas, de um acto comunitário de alcance geral, invocando a invalidade deste último.
No entanto, os particulares não podem interpor no tribunal comunitário um recurso de anulação de um acto de alcance geral como um regulamento, que não os individualiza da mesma maneira que a um destinatário, mesmo que eles pudessem demonstrar, após exame concreto das regras processuais nacionais pelo referido tribunal, que essas regras não autorizam os particulares a interpor um recurso que lhes permita pôr em causa a validade do acto comunitário impugnado. Com efeito, tal regime exigiria que o juiz comunitário examinasse e interpretasse, em cada caso concreto, o direito processual nacional, o que excederia a sua competência no âmbito da fiscalização da legalidade dos actos comunitários.
Consequentemente, de qualquer forma, não é possível a um particular interpor um recurso de anulação no tribunal comunitário, mesmo que se verificasse que as normas processuais nacionais só o autorizam a pôr em causa a validade do acto comunitário impugnado depois de o ter violado.
A este respeito, o facto de um regulamento se aplicar directamente, sem a intervenção das autoridades nacionais, não implica, só por si, que um operador a quem o acto diga directamente respeito apenas possa pôr em causa a validade do referido regulamento depois de o ter violado. Com efeito, não se pode excluir que um sistema jurídico nacional permita que um particular, a quem um acto normativo geral de direito interno diga respeito, acto esse que não pode ser directamente impugnado nos tribunais, solicite às autoridades nacionais uma medida relacionada com o referido acto, que possa ser posta em causa no órgão jurisdicional nacional, por forma a que esse particular possa impugnar indirectamente o acto em questão. Também não se pode excluir que um sistema jurídico nacional permita que um operador, a quem um regulamento diga directamente respeito, solicite às autoridades nacionais um acto relacionado com este regulamento, que possa ser posto em causa no órgão jurisdicional nacional, por forma a permitir a esse operador impugnar indirectamente o regulamento em questão.

(cf. n.os 30‑35)

2.
Se é verdade que a condição de uma pessoa singular ou colectiva apenas poder interpor recurso de um regulamento se este lhe disser não só directamente mas também individualmente respeito deve ser interpretada à luz do princípio de uma tutela jurisdicional efectiva, tendo em conta as diversas circunstâncias susceptíveis de individualizar um recorrente, tal interpretação não pode levar a afastar a condição em causa, que se encontra expressamente prevista no Tratado. Caso contrário, os órgãos jurisdicionais comunitários excederiam as competências que lhes são atribuídas por este último.
Ora, é esse o caso da interpretação da referida condição, segundo a qual se deve considerar que uma disposição comunitária de carácter geral que diz directamente respeito a uma pessoa singular ou a uma pessoa colectiva lhe diz individualmente respeito se a disposição em questão afectar, de forma certa e actual, a sua situação jurídica, restringindo os seus direitos ou impondo‑lhe obrigações.
Com efeito, essa interpretação leva, no essencial, a desvirtuar a condição de dizer individualmente respeito, conforme prevista no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE

(cf. n.os 36‑38)

3.
Na falta de uma disposição de direito comunitário que imponha que a Comissão, para adoptar determinado regulamento, observe um procedimento no âmbito do qual um operador económico tem o direito de reivindicar eventuais direitos, entre os quais o de ser ouvido, não é atribuída a esse operador uma posição jurídica particular em relação com a adopção do referido regulamento. O facto de esse operador ter sido o único a propor, antes da adopção do referido regulamento, uma solução concreta que contribuía para a realização do objectivo prosseguido pelo mesmo não o individualiza na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

(cf. n.os 47, 48)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)
1 de Abril de 2004(1)

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Admissibilidade de um recurso de anulação de um regulamento, interposto por uma pessoa colectiva»

No processo C-263/02 P,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por T. van Rijn e A. Bordes, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

que tem por objecto um recurso do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias (Primeira Secção Alargada) de 3 de Maio de 2002, Jégo-Quéré/Comissão (T-177/01, Colect., p. II-2365), em que se pede a anulação desse acórdão,

sendo a outra parte no processo:

Jégo-Quéré et Cie SA, representada por A. Creus Carreras e B. Uriarte Valiente, abogados,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),,



composto por: C. Gulmann (relator), exercendo funções de presidente da Sexta Secção, J. N. Cunha Rodrigues, J.-P. Puissochet, R. Schintgen e F. Macken, juízes,

advogado-geral: F. G. Jacobs,
secretário: L. Hewlett, administradora principal,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 22 de Maio de 2003,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de10 de Julho de 2003,

profere o presente



Acórdão



1
Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 17 de Julho de 2002, a Comissão das Comunidades Europeias interpôs, ao abrigo do artigo 49.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça, recurso do acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 3 de Maio de 2002, Jégo‑Quéré/Comissão (T‑177/01, Colect., p. II‑2365, a seguir «acórdão recorrido»), que declarou admissível o recurso interposto pela sociedade Jégo‑Quéré et Cie SA (a seguir «Jégo‑Quéré») pedindo a anulação do artigo 3.° , alínea d), e do artigo 5.° do Regulamento (CE) n.° 1162/2001 da Comissão, de 14 de Junho de 2001, que estabelece medidas para a recuperação da unidade populacional de pescada nas subzonas CIEM III, IV, V, VI e VII e nas divisões CIEM VIIIa, b, d, e, bem como as respectivas condições para o controlo das actividades dos navios de pesca (JO L 159, p. 4).


Enquadramento jurídico

2
O artigo 15.° do Regulamento (CEE) n.° 3760/92 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1992, que institui um regime comunitário da pesca e da aquicultura (JO L 389, p. 1), prevê a possibilidade de a Comissão adoptar medidas urgentes quando a conservação dos recursos haliêuticos está ameaçada de perturbações graves e inesperadas.

3
No mês de Dezembro de 2000, a Comissão e o Conselho da União Europeia, alertados pelo Conselho Internacional para a Exploração do Mar (CIEM), consideraram urgente estabelecer um plano de recuperação da unidade populacional de pescada.

4
O Regulamento n.° 1162/2001, adoptado para o efeito, tem por finalidade principal a redução imediata das capturas de juvenis de pescada. Este regulamento é aplicável aos navios de pesca que operam nas zonas nele definidas. Impõe a estes navios uma malhagem mínima, que varia segundo as zonas, para as diferentes técnicas de pesca à rede, independentemente da espécie perseguida pelo navio em causa. O dispositivo não diz respeito aos navios com menos de doze metros que efectuem saídas não superiores a 24 horas.

5
O artigo 3.°, alínea d), do Regulamento n.° 1162/2001 proíbe a utilização de «qualquer rede rebocada pelo fundo a que esteja fixado um saco de malhagem inferior a 100 mm por qualquer meio diferente de uma costura na parte da rede anterior ao saco». O artigo 5.° do mesmo regulamento define, no n.° 1, as zonas geográficas em que se aplicam as disposições do referido regulamento e estabelece, no n.° 2, para todas essas zonas, as proibições relativas à utilização, à imersão e à calagem de redes rebocadas, com uma malhagem determinada, bem como as obrigações relativas à sua amarragem e arrumação. Para cada uma dessas zonas, o mesmo artigo estabelece igualmente as proibições relativas à utilização, à imersão e à calagem das artes fixas de uma malhagem determinada, bem como as obrigações relativas à sua amarragem e arrumação. No que respeita às redes rebocadas, as proibições aplicam‑se às malhagens compreendidas entre 55 mm e 99 mm. Quanto às artes fixas, essas proibições aplicam‑se, segundo as zonas, às malhagens inferiores a 100 mm ou a 120 mm.


Factos na origem do litígio e acórdão recorrido

6
A Jégo‑Quéré é uma sociedade de armação de pesca estabelecida em França e que exerce de modo permanente, a sul da Irlanda, na zona CIEM VII referida no artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1162/2001, uma actividade de pesca orientada para a pescada, espécie que representa, em média, 67,3% das suas capturas. Possui quatro navios com dimensões superiores a 30 metros e utiliza redes com uma malhagem de 80 mm.

7
Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 2 de Agosto de 2001, a Jégo‑Quéré interpôs, com fundamento no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, um recurso destinado a obter a anulação dos artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento n.° 1162/2001.

8
Em requerimento separado, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 30 de Outubro de 2001, a Comissão suscitou, ao abrigo do artigo 114.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, uma questão prévia de inadmissibilidade.

9
No acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância julgou improcedente a questão prévia de inadmissibilidade e declarou que o processo prosseguia quanto ao mérito.

10
Depois de ter declarado, no n.° 24 do referido acórdão, que as disposições impugnadas têm, pela sua natureza, carácter geral, o Tribunal de Primeira Instância recordou, no n.° 25 do mesmo acórdão, que o carácter geral de uma disposição não exclui a possibilidade de ela poder dizer directa e individualmente respeito a alguns dos operadores económicos interessados.

11
No n.° 38 do acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância declarou que «não se pode considerar que o acto diz individualmente respeito à [Jégo‑Quéré] na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, com base nos critérios até agora elaborados pela jurisprudência comunitária».

12
A Jégo‑Quéré tinha alegado que, no caso vertente, não podia recorrer aos órgãos jurisdicionais nacionais, uma vez que o Regulamento n.° 1162/2001 não previa que os Estados‑Membros adoptassem quaisquer medidas de execução e que, por essa razão, a declaração da inadmissibilidade do seu recurso no Tribunal de Primeira Instância a privaria de qualquer via de recurso para contestar a legalidade das disposições impugnadas. O Tribunal de Primeira Instância considerou que havia que examinar se, num caso como o que lhe tinha sido submetido, no âmbito do qual a legalidade de disposições de carácter geral que dizem directamente respeito à situação jurídica de um particular é contestada por este, a inadmissibilidade do recurso de anulação privaria a recorrente do direito a um recurso efectivo, conforme garantido na ordem jurídica assente no Tratado CE, nomeadamente por força dos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»).

13
A este respeito, o Tribunal de Primeira Instância declarou que:

«44
[…] deve recordar‑se que, para além do recurso de anulação, existem outras duas vias de recurso que permitem a um particular dirigir‑se ao órgão jurisdicional comunitário, único que tem competência para esse fim, para obter a declaração de ilegalidade de um acto comunitário, a saber, o recurso para o órgão jurisdicional [nacional] com reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 234.° CE, e a acção de responsabilidade extracontratual da Comunidade prevista nos artigos 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE.

45
Todavia, quanto ao recurso aos tribunais nacionais com reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 234.° CE, deve sublinhar‑se que, num caso como o presente, não existem medidas de execução que possam servir de base à acção perante os órgãos jurisdicionais nacionais. O facto de um particular afectado por uma medida comunitária ter a possibilidade de levar a validade da medida comunitária à apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais, violando as normas estabelecidas pela medida e invocando a ilegalidade de tais normas como defesa num processo judicial contra ele directamente dirigido, não lhe confere uma via adequada de tutela jurisdicional. Com efeito, não pode pedir‑se aos particulares que violem a lei para obterem o acesso à justiça (v. conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs de 21 de Março de 2002 no processo Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, C‑50/00 P [acórdão de 25 de Julho de 2002, Colect., p. I‑6677], n.° 43).

46
A via da acção de indemnização fundada na responsabilidade extracontratual da Comunidade não proporciona, num caso como o vertente, uma solução satisfatória aos interesses dos particulares. Com efeito, esta acção não pode conduzir a afastar da ordem jurídica comunitária um acto mesmo que, por hipótese, seja considerado ilegal. Tendo como pressuposto a existência de um dano directo causado pela aplicação do acto controvertido, esta acção está sujeita a condições de admissibilidade e de mérito diferentes das que regem o recurso de anulação e não coloca, portanto, o órgão jurisdicional comunitário em condições de exercer, em toda a sua dimensão, a fiscalização da legalidade que tem por missão efectuar. Em particular, quando uma medida de carácter geral, como as disposições impugnadas neste caso concreto, é posta em causa no contexto de uma tal acção, a fiscalização efectuada pelo órgão jurisdicional comunitário não se estende a todos os elementos susceptíveis de afectar a legalidade dessa medida, mas limita‑se a sancionar as violações suficientemente caracterizadas de regras de direito que têm por objecto conferir direitos aos particulares (acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2000, Bergaderm e Goupil/Comissão, C‑352/98 P, Colect., p. I‑5291, n.os 41 a 43; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 23 de Outubro de 2001, Dieckmann & Hansen/Comissão, T‑155/99, Colect., p. II‑3143, n.os 42 e 43; v. também, para um caso de violação não suficientemente caracterizada, acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 1992, Mulder e o./Conselho e Comissão, C‑104/89 e C‑37/90, Colect., p. I‑3061, n.os 18 e 19, e, para um caso em que a regra invocada não tem por efeito conferir direitos aos particulares, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Dezembro de 2001, Area Cova e o./Conselho e Comissão, T‑196/99, Colect., p. II‑3597, n.° 43).

47
Com base no exposto, há que concluir que não se pode considerar que os processos previstos nos artigos 234.° CE, por um lado, e 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE, por outro, à luz dos artigos 6.° e 13.° da CEDH e do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais, garantem aos particulares um direito de recurso efectivo que lhes permite contestar a legalidade de disposições comunitárias de carácter geral que afectem directamente a sua situação jurídica.

48
É verdade que esta circunstância não pode autorizar uma modificação do sistema de vias de recurso e de processos estabelecido pelo Tratado e destinado a confiar ao órgão jurisdicional comunitário a fiscalização da legalidade dos actos das instituições. Em caso algum permite declarar admissível um recurso de anulação interposto por uma pessoa singular ou colectiva que não preencha as condições exigidas pelo artigo 230.°, quarto parágrafo, CE [v. despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2000, Federación de Cofradías de Pescadores de Guipúzcoa e o./Conselho, C‑300/00 P(R), Colect., p. I‑8797, n.° 37].

49
Deve, porém, sublinhar‑se, como observou o advogado‑geral F. G. Jacobs nas suas conclusões no processo Unión de Pequeños Agricultores/Conselho (referidas no n.° 45 supra, n.° 59), que não há razões imperiosas para entender que o conceito de pessoa a quem um acto diz individualmente respeito, na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, pressupõe que o particular que pretenda impugnar uma medida de carácter geral deve ser individualizado de modo análogo ao de um destinatário.

50
Nestas condições, e tendo em conta que o Tratado CE instituiu um sistema completo de vias de recurso e de processos destinado a confiar ao órgão jurisdicional comunitário a fiscalização da legalidade dos actos das instituições (acórdão [de 23 Abril de 1986,] Os Verdes/Parlamento, [294/83, Colect., p. 1339,] n.° 23), há que repensar a interpretação estrita, até agora feita, do conceito de pessoa a quem um acto diz individualmente respeito na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

51
À luz do que fica exposto, e a fim de assegurar uma protecção jurisdicional efectiva dos particulares, deve considerar‑se que uma disposição comunitária de carácter geral que diz directamente respeito a uma pessoa singular ou colectiva lhe diz individualmente respeito se a disposição em questão afectar, de forma certa e actual, a sua situação jurídica, restringindo os seus direitos ou impondo‑lhe obrigações. O número e a situação de outras pessoas igualmente afectadas pela disposição ou susceptíveis de o ser não são, a este respeito, considerações pertinentes.

52
Neste caso concreto, são efectivamente impostas obrigações à sociedade Jégo‑Quéré pelas disposições impugnadas. Com efeito, a recorrente, cujos navios estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do regulamento, exerce actividades de pesca numa das zonas em que as actividades de pesca estão submetidas, pelas disposições impugnadas, a obrigações precisas respeitantes à malhagem das redes a utilizar.

53
Daí resulta que as disposições impugnadas dizem individualmente respeito à recorrente.

54
Uma vez que as decisões impugnadas também dizem directamente respeito à recorrente (v. n.° 26 supra), deve ser julgada improcedente a questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão e ordenar[‑se] o prosseguimento do processo.»


O presente recurso

14
Através do presente recurso, a Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

anular o acórdão recorrido;

declarar inadmissível o recurso de anulação do Regulamento n.° 1162/2001 ou, subsidiariamente, remeter os autos ao Tribunal de Primeira Instância;

condenar a Jégo‑Quéré nas despesas da instância, incluindo nas despesas do processo no Tribunal de Primeira Instância.

15
A Jégo‑Quéré conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

declarar o presente recurso inadmissível na medida em que foi interposto fora de prazo;

negar provimento ao presente recurso e confirmar o acórdão recorrido;

anular o referido acórdão, na parte em que declara que a Jégo‑Quéré não é uma pessoa a quem um acto diga directa e individualmente respeito na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE;

decidir ele próprio do litígio, com base nas observações da Jégo‑Quéré apresentadas no Tribunal de Primeira Instância e, em particular,

declarar admissível o recurso interposto no Tribunal de Primeira Instância,

anular os artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento n.° 1162/2001;

proceder à audição, enquanto testemunhas, de:

John Farnell, director «Política de Conservação» da Direcção‑Geral das Pescas da Comissão, e

Victor Badiola, gerente da Organização dos Produtores de Pesca de Ondárroa;

condenar a Comissão nas despesas do presente processo, bem como nas despesas no Tribunal de Primeira Instância.

16
Em apoio do presente recurso, a Comissão invoca dois fundamentos.

17
Em primeiro lugar, considera que o Tribunal de Primeira Instância violou o seu próprio Regulamento de Processo, na medida em que os autos deveriam ter sido remetidos à sessão plenária do referido órgão jurisdicional. Em segundo lugar, alega que o Tribunal de Primeira Instância violou o artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, na medida em que interpretou a condição de o acto dizer individualmente respeito ao recorrente em sentido contrário ao sistema jurisdicional instituído pelo Tratado.

Quanto à admissibilidade do recurso

18
A Jégo‑Quéré deduz uma questão prévia de inadmissibilidade do recurso. Com efeito, a Comissão não deu nenhuma indicação sobre a data em que o acórdão recorrido lhe foi notificado. Na falta de prova em contrário, a Jégo‑Quéré contesta que o presente recurso tenha sido efectivamente interposto no prazo autorizado.

19
A este respeito, deve recordar‑se que, nos termos do artigo 49.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça, conjugado com o artigo 81.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, pode ser interposto um recurso no Tribunal de Justiça, no prazo de dois meses a contar da notificação da decisão impugnada, acrescido de um prazo dilatório em razão da distância, de dez dias. Segundo o artigo 112.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a decisão do Tribunal de Primeira Instância da qual é interposto recurso deve ser apensa a este último e deve indicar‑se a data em que a decisão impugnada foi notificada ao recorrente.

20
Ora, a Comissão anexou ao presente recurso o acórdão recorrido assim como a carta do secretário do Tribunal de Primeira Instância que acompanhava o acórdão, carta essa que tem aposto um carimbo indicando o dia 8 de Maio de 2002 como data de recepção. Por outro lado, essa data é confirmada pelo aviso de recepção do envio. Como é indicado no n.° 1 do presente acórdão, o presente recurso foi apresentado pela Comissão na Secretaria do Tribunal de Justiça em 17 de Julho de 2002.

21
Verifica‑se, portanto, que a Comissão indicou, no presente recurso, a data em que o acórdão recorrido lhe tinha sido notificado e que o referido recurso foi interposto no prazo fixado.

22
Consequentemente, há que declarar admissível o recurso da Comissão.

Quanto ao segundo fundamento

Argumentos das partes

23
A Comissão defende que a interpretação do conceito de pessoa a quem a decisão diz individualmente respeito, adoptada pelo Tribunal de Primeira Instância no acórdão recorrido, é de tal forma ampla que suprime, de facto, a condição de dizer individualmente respeito, conforme prevista no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE. Segundo a Comissão, o Tribunal de Primeira Instância incorreu num erro de direito ao confundir o direito a um recurso efectivo com o direito geral de recurso directo dos particulares no contencioso de anulação dos actos de alcance geral, pois a falta do segundo não implica a inexistência do primeiro. A Comissão considera que é errado concluir, como fez o Tribunal de Primeira Instância no n.° 47 do acórdão recorrido, que já não se pode considerar que o sistema jurisdicional previsto no Tratado garante aos particulares um direito de recurso efectivo que lhes permite contestar a legalidade de disposições comunitárias de alcance geral que afectem directamente a sua situação jurídica, e que, consequentemente, há que alargar as condições de admissibilidade do recurso de anulação em benefício dos particulares, repensando a interpretação jurisprudencial até agora feita do conceito de pessoa a quem uma decisão diz individualmente respeito na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

24
A este propósito, a Comissão recorda que, na maioria dos Estados‑Membros, o direito de os particulares interporem recurso directo de anulação de um acto de alcance geral está sujeito a várias restrições. Frequentemente, o recurso de anulação de uma lei ou é impossível ou é limitado pela natureza dos fundamentos que podem ser invocados ou pelos requisitos impostos quanto à legitimidade activa. Em alguns Estados‑Membros, nem sequer existe o direito geral de os particulares recorrerem directamente de actos normativos que emanem das autoridades administrativas. Ora, tais regimes nunca foram alvo de crítica por parte da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

25
Por último, a Comissão alega que, tendo em conta a jurisprudência TWD Textilwerke Deggendorf (acórdão de 9 de Março de 1994, C‑188/92, Colect., p. I‑833), a interpretação do conceito de pessoa a quem uma decisão diz individualmente respeito, conforme acolhida pelo Tribunal de Primeira Instância, restringe as possibilidades de os particulares porem em causa, por via de excepção, a legalidade de actos comunitários de alcance geral.

26
A Jégo‑Quéré alega que uma interpretação alargada e flexível do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, como a que o Tribunal de Primeira Instância adoptou, lhe permitiria, sem com isso modificar o sistema jurisdicional previsto no Tratado, pôr em causa a legalidade de uma norma que lhe causa consideráveis prejuízos. Caso contrário, são violados os artigos 6.° e 13.° da CEDH, uma vez que não lhe é facultado nenhum meio para contestar a legalidade das disposições em causa. Com efeito, uma vez que o Regulamento n.° 1162/2001 é directamente aplicável sem a intervenção das autoridades nacionais, não existe nenhum acto que possa ser posto em causa no órgão jurisdicional nacional de modo a permitir impugnar, de forma indirecta, o referido regulamento. Consequentemente, não existe nenhuma possibilidade de se beneficiar de uma tutela jurisdicional completa através das vias nacionais, sem violar o Regulamento n.° 1162/2001.

27
Quanto à acção de indemnização em matéria de responsabilidade extracontratual, prevista nos artigos 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE, a Jégo‑Quéré refuta o argumento da Comissão de que, atendendo ao prazo limitado de seis meses previsto no Regulamento n.° 1162/2001, uma acção de indemnização pode constituir uma solução mais adequada do que um recurso de anulação. Com efeito, o referido regulamento constitui apenas uma etapa do processo actual de reforma da política comum da pesca, que implica a adopção de medidas a médio e a longo prazo. Por conseguinte, a sociedade Jégo‑Quéré não teria outra alternativa senão propor periodicamente novas acções.

28
Além disso, considera que não é coerente interpretar de forma restritiva o conceito de acto que diz individualmente respeito, quando não existem restrições quanto à possibilidade de os particulares intentarem acções de indemnização ao abrigo dos artigos 235.° CE e 288.° CE, que, geralmente, pressupõem a impugnação da legalidade de medidas comunitárias de alcance geral.

Apreciação do Tribunal de Justiça

29
Recorde‑se que os particulares devem poder beneficiar de uma tutela jurisdicional efectiva dos direitos que a ordem jurídica comunitária lhes confere, fazendo o direito a essa tutela parte dos princípios gerais de direito que resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros. Este direito foi igualmente consagrado nos artigos 6.° e 13° da CEDH (v., nomeadamente, acórdãos de 15 de Maio de 1986, Johnston, 222/84, Colect., p. 1651, n.° 18, e de 25 de Julho de 2002, Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, C‑50/00 P, Colect., p. I‑6677, n.° 39).

30
Ora, o Tratado, através dos artigos 230.° CE e 241.° CE, por um lado, e do artigo 234.° CE, por outro, instituiu um sistema completo de vias de recurso e de meios processuais destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos actos das instituições, confiando essa fiscalização ao tribunal comunitário. Neste sistema, as pessoas singulares ou colectivas que não podem, em razão das condições de admissibilidade previstas no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, impugnar directamente actos comunitários de alcance geral têm a possibilidade, conforme os casos, de invocar a invalidade de tais actos, quer a título incidental, ao abrigo do artigo 241.° CE, no tribunal comunitário, quer perante os órgãos jurisdicionais nacionais, que não são competentes para declarar a invalidade dos referidos actos, levando‑os a interrogar a este respeito o Tribunal de Justiça através de questões prejudiciais (v. acórdão Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, já referido, n.° 40).

31
Assim, compete aos Estados‑Membros prever um sistema de vias de recurso e de meios processuais que permita assegurar o respeito do direito a uma tutela jurisdicional efectiva (v. acórdão Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, já referido, n.° 41).

32
Neste âmbito, em conformidade com o princípio da cooperação leal enunciado no artigo 10.° CE, os órgãos jurisdicionais nacionais estão obrigados, em toda a medida do possível, a interpretar e a aplicar as normas processuais internas que regem o exercício dos recursos, de maneira a permitir às pessoas singulares e colectivas contestar judicialmente a legalidade de qualquer decisão ou de qualquer medida nacional relativa à aplicação, em relação a elas, de um acto comunitário de alcance geral, invocando a invalidade deste último (v. acórdão Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, já referido, n.° 42).

33
No entanto, os particulares não podem interpor no tribunal comunitário um recurso de anulação de um acto de alcance geral como um regulamento, que não os individualiza da mesma maneira que a um destinatário, mesmo que eles pudessem demonstrar, após exame concreto das regras processuais nacionais pelo referido tribunal, que essas regras não autorizam os particulares a interpor um recurso que lhes permita pôr em causa a validade do acto comunitário impugnado. Com efeito, tal regime exigiria que o juiz comunitário examinasse e interpretasse, em cada caso concreto, o direito processual nacional, o que excederia a sua competência no âmbito da fiscalização da legalidade dos actos comunitários (v. acórdão Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, já referido, n.os 37 e 43).

34
Consequentemente, de qualquer forma, não é possível a um particular interpor um recurso de anulação no tribunal comunitário, mesmo que se verificasse que as normas processuais nacionais só o autorizam a pôr em causa a validade do acto comunitário impugnado depois de o ter violado.

35
No caso vertente, há que referir que o facto de o Regulamento n.° 1162/2001 se aplicar directamente, sem a intervenção das autoridades nacionais, não implica, só por si, que um operador a quem o acto diga directamente respeito apenas possa pôr em causa a validade do referido regulamento depois de o ter violado. Com efeito, não se pode excluir que um sistema jurídico nacional permita que um particular, a quem um acto normativo geral de direito interno diga respeito, acto esse que não pode ser directamente impugnado nos tribunais, solicite às autoridades nacionais uma medida relacionada com o referido acto, que possa ser posta em causa no órgão jurisdicional nacional, por forma a que esse particular possa impugnar indirectamente o acto em questão. Também não se pode excluir que um sistema jurídico nacional permita que um operador, a quem o Regulamento n.° 1162/2001 diga directamente respeito, solicite às autoridades nacionais um acto relacionado com este regulamento, que possa ser posto em causa no órgão jurisdicional nacional, por forma a permitir a esse operador impugnar indirectamente o regulamento em questão.

36
Se é verdade que a condição de uma pessoa singular ou colectiva apenas poder interpor recurso de um regulamento se este lhe disser não só directamente mas também individualmente respeito deve ser interpretada à luz do princípio de uma tutela jurisdicional efectiva, tendo em conta as diversas circunstâncias susceptíveis de individualizar um recorrente, tal interpretação não pode levar a afastar a condição em causa, que se encontra expressamente prevista no Tratado. Caso contrário, os órgãos jurisdicionais comunitários excederiam as competências que lhes são atribuídas por este último (v. acórdão Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, já referido, n.° 44).

37
Ora, é esse o caso da interpretação da referida condição, que figura no n.° 51 do acórdão recorrido, segundo a qual se deve considerar que uma disposição comunitária de carácter geral que diz directamente respeito a uma pessoa singular ou a uma pessoa colectiva lhe diz individualmente respeito se a disposição em questão afectar, de forma certa e actual, a sua situação jurídica, restringindo os seus direitos ou impondo‑lhe obrigações.

38
Com efeito, essa interpretação leva, no essencial, a desvirtuar a condição de dizer individualmente respeito, conforme prevista no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

39
Resulta do exposto que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito. Consequentemente, o segundo fundamento deve ser julgado procedente.

Quanto ao recurso subordinado

Argumentos das partes

40
A Jégo‑Quéré alega que o Tribunal de Primeira Instância declarou, erradamente, que o Regulamento n.° 1162/2001 não lhe diz individualmente respeito, na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, conforme foi interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Na realidade, o regulamento em causa é constituído por um grupo de decisões individuais adaptadas aos casos particulares de alguns operadores aos quais essas decisões dizem respeito, sem que tenham existido razões objectivas susceptíveis de justificar um tratamento individualizado. Ora, tendo em conta o objectivo de protecção dos juvenis de pescada, um regulamento de alcance geral deve prever, sem excepção, a proibição de pescar nas zonas visadas, com malhas inferiores a 100 mm.

41
Segundo a Jégo‑Quéré, há duas circunstâncias que, em particular, a caracterizam em relação às restantes pessoas às quais o Regulamento n.° 1162/2001 diz respeito. Em primeiro lugar, a Jégo‑Quéré é o único operador que pesca, de forma permanente, pescada no Mar Céltico, utilizando navios de dimensões superiores a 30 m, e que captura apenas quantidades mínimas de juvenis de pescada por via do «by‑catch». Em segundo lugar, foi a única sociedade de armação de pesca a propor à Comissão, antes da adopção do Regulamento n.° 1162/2001, uma solução concreta que contribuía para a reconstituição da unidade populacional de pescada, solução que acabou por não ser acolhida.

42
Na audiência, a Comissão sustentou que nenhum dos argumentos invocados pela Jégo‑Quéré permitia concluir que o Regulamento n.° 1162/2001 dizia individualmente respeito a essa sociedade. Nestes termos, alegou que devia ser negado provimento ao recurso subordinado.

Apreciação do Tribunal de Justiça

43
Como o Tribunal de Primeira Instância, acertadamente, declarou nos n.os 23 e 24 do acórdão recorrido, os artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento n.° 1162/2001, cuja anulação é pedida pela Jégo‑Quéré, dirigem‑se, em abstracto, a categorias de pessoas indeterminadas e aplicam‑se a situações definidas objectivamente. Os referidos artigos têm, por natureza, alcance geral.

44
No entanto, é jurisprudência assente que não é pelo facto de uma disposição ter alcance geral que fica excluído que a mesma possa dizer directamente e individualmente respeito a determinados operadores económicos (v., nomeadamente, acórdão de 10 de Abril de 2003, Comissão/Nederlandse Antillen, C‑142/00 P, Colect., p. I‑3483, n.° 64).

45
Em particular, essa disposição só pode dizer individualmente respeito a uma pessoa singular ou a uma pessoa colectiva se a atingir em razão de determinadas qualidades que lhe são específicas ou em razão de uma situação de facto que a caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e, por isso, a individualiza de modo análogo ao do destinatário (v., nomeadamente, acórdãos de 15 de Julho de 1963, Plaumann/Comissão, 25/62, Colect. 1962‑1964, pp. 279, 284, e Comissão/Nederlandse Antillen, já referido, n.° 65).

46
Ora, o facto de a Jégo‑Quéré ser o único operador que captura pescada nas águas a sul da Irlanda utilizando navios com dimensões superiores a 30 m não é, como referiu o Tribunal de Primeira Instância no n.° 30 do acórdão recorrido, susceptível de a individualizar, uma vez que os artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento n.° 1162/2001 apenas lhe dizem respeito na sua qualidade objectiva de pescador de pescada que utiliza uma certa técnica de pesca em determinada zona, da mesma forma que dizem respeito a qualquer outro operador económico que se encontre, actual ou potencialmente, numa situação idêntica.

47
Além disso, nenhuma disposição de direito comunitário impunha à Comissão que, para adoptar o Regulamento n.° 1162/2001, seguisse um procedimento no âmbito do qual a Jégo‑Quéré teria tido o direito de reivindicar eventuais direitos, entre os quais o de ser ouvida. Assim, o direito comunitário não definiu uma posição jurídica particular a favor de um operador como a Jégo‑Quéré em relação com a adopção do Regulamento n.° 1162/2001 (v., neste sentido, acórdão de 4 de Outubro de 1983, FEDIOL/Comissão, 191/82, Colect., p. 2913, n.° 31).

48
Nestas condições, o facto de a Jégo‑Quéré ter sido a única sociedade de armação de pesca a propor à Comissão, antes da adopção do Regulamento n.° 1162/2001, uma solução concreta que contribuía para a reconstituição da unidade populacional de pescada não a individualiza na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

49
Por conseguinte, deve ser negado provimento ao presente recurso.

50
Tendo em conta o exposto, o acórdão recorrido deve ser anulado e, à luz do disposto no artigo 61.°, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça, o pedido de anulação dos artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento n.° 1162/2001 deve ser declarado inadmissível.


Quanto às despesas

51
Nos termos do artigo 122.°, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo, se o recurso for julgado procedente e o Tribunal de Justiça decidir definitivamente o litígio, decidirá igualmente sobre as despesas. Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do mesmo regulamento, aplicável aos recursos de decisões do Tribunal de Primeira Instância por força do artigo 118.° do referido regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

52
Tendo o presente recurso obtido provimento e a questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão sido julgada procedente, há que decidir que a Jégo‑Quéré suportará a integralidade das despesas efectuadas no Tribunal de Primeira Instância e no Tribunal de Justiça.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

decide:

1)
O acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 3 de Maio de 2002, Jégo‑Quéré/Comissão (T‑177/01), é anulado.

2)
O recurso interposto pela Jégo‑Quéré et Cie SA, pedindo a anulação dos artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento (CE) n.° 1162/2001 da Comissão, de 14 de Junho de 2001, que estabelece medidas para a recuperação da unidade populacional de pescada nas subzonas CIEM III, IV, V, VI e VII e nas divisões CIEM VIIIa, b, d, e, bem como as respectivas condições para o controlo das actividades dos navios de pesca, é inadmissível.

3)
A Jégo‑Quéré et Cie SA é condenada nas despesas relativas aos dois processos.

Gulmann

Cunha Rodrigues

Puissochet

Schintgen

Macken

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 1 de Abril de 2004.

O secretário

O presidente

R. Grass

V. Skouris


1
Língua do processo:francês.

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