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Document 61987CJ0186

Acórdão do Tribunal de 2 de Fevereiro de 1989.
Ian William Cowan contra Trésor public.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal de grande instance de Paris - França.
Turistas na qualidade de destinatários de serviços - Direito à indemnização em caso de agressão.
Processo 186/87.

Colectânea de Jurisprudência 1989 -00195

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1989:47

61987J0186

ACORDAO DO TRIBUNAL DE 2 DE FEVEREIRO DE 1989. - IAN WILLIAM COWAN CONTRA TRESOR PUBLIC. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICAL DO TRIBUNAL DE GRANDE INSTANCE DE PARIS. - TURISTAS ENQUANTO DESTINATARIOS DE SERVICOS - DIREITO A INDEMNIZACAO EM CASO DE AGRESSOES. - PROCESSO 186/87.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 00195
Edição especial sueca página 00001
Edição especial finlandesa página 00011


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


++++

Direito comunitário - Princípios - Igualdade de tratamento - Discriminação em razão da nacionalidade - Indemnização pelo Estado das vítimas de agressões - Discriminação contra os nacionais de outros Estados-membros que beneficiam da liberdade de circulação, designadamente, enquanto destinatários de serviços - Proibição

(artigo 7.° do Tratado CEE)

Sumário


O princípio da não discriminação, enunciado, designadamente, no artigo 7.° do Tratado, deve ser interpretado no sentido de que proíbe os Estados-membros, relativamente às pessoas a quem o direito comunitário garante a liberdade de se dirigirem a esse Estado, nomeadamente, enquanto destinatários de serviços, de sujeitar a concessão de uma indemnização estadual, destinada a ressarcir o prejuízo causado nesse Estado à vítima de uma agressão que tenha provocado danos corporais, à condição de esta ser titular de um cartão de residente ou de ser nacional de um país que tenha concluído um acordo de reciprocidade com esse Estado-membro.

Partes


No processo 186/87,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pela Comissão de indemnização de vítimas de infracções do tribunal de grande instance de Paris e destinado a obter, no processo pendente neste Tribunal entre

Ian William Cowan

e

Trésor public (Fazenda Pública),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do princípio da não discriminação consagrado no artigo 7.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL,

constituído pelos Srs. O. Due, presidente, T. Koopmans, R. Joliet e T. F. O' Higgins, presidentes de secção, Sir Gordon Slynn, G. F. Mancini, C. N. Kakouris, F. A. Schockweiler, J. C. Moitinho de Almeida, G. C. Rodríguez Iglesias e Díez de Velasco, juízes,

advogado-geral: C.O. Lenz

secretário: J.A. Pompe, secretário-adjunto

vistas as observações apresentadas:

- em representação de Ian William Cowan, demandante no processo principal, por M. Renouf, P. Jenkinson e L. Misson, advogados,

- em representação do Trésor public, demandado no processo principal, durante a fase escrita, pelo agente do Governo francês, G. Guillaume, director dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistido por M. Giacomini, secretário dos Negócios Estrangeiros deste mesmo ministério, na qualidade de agente suplente, e, na audiência, por M. Giacomini, assistido por M. Baconnin, na qualidade de perito,

- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, pelo seu consultor jurídico, J. Amphoux, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência, completado após a audiência de 3 de Outubro de 1988,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 6 de Dezembro de 1988,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por decisão de 5 de Junho de 1987, entrada na Secretaria do Tribunal a 16 de Junho, a Comissão de indemnização das vítimas de infracções do tribunal de grande instance de Paris submeteu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do princípio da não-discriminação, enunciado designadamente nos artigo 7.° do Tratado, a fim de poder decidir se uma norma do code de prócedure pénale francês é compatível com o direito comunitário.

2 Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio entre o Trésor public (Fazenda Pública) francês e um cidadão britânico, Ian William Cowan, a propósito da indemnização do prejuízo causado por uma agressão violenta de que foi vítima à saída de uma estação do metro, durante uma breve estadia em Paris.

3 Dado que os autores da agressão não puderam ser identificados, Ian Cowan requereu à comissão de indemnização de vítimas de infracções do tribunal de grande instance de Paris uma indemnização, nos termos do artigo 706.°, n.° 3, do code de prócedure pénale. Esta disposição prevê a concessão de uma indemnização pelo Estado sempre que a vítima de uma agressão que tenha provocado danos corporais e sequelas de certa gravidade, não possa obter, a qualquer outro título, uma indemnização efectiva e suficiente do dano sofrido.

4 Perante a comissão de indemnização, o agente judiciário do Trésor alegou que Ian Cowan não preenchia as condições a que o artigo 706.°, n.° 14, do code de prócedure pénale subordina o benefício da indemnização acima referida. Nos termos desta última disposição apenas podem beneficiar de tal indemnização

"as pessoas que tenham a nacionalidade francesa ou as de nacionalidade estrangeira que provem:

- ou que são nacionais de um Estado que concluiu com a França um acordo de reciprocidade para a aplicação das referidas disposições e que satisfazem as condições fixadas por esse acordo;

- ou que são titulares do chamado cartão de residente".

5 Ian Cowan invocou então o princípio da não-discriminação a que se refere designadamente o artigo 7.° do Tratado CEE. Defendeu que as referidas condições eram discriminatórias, impedindo os turistas de se dirigir livremente para outro Estado-membro a fim de aí beneficiarem de prestações de serviços. O agente do Trésor e o Ministério Público responderam que as normas em questão equiparavam todos os estrangeiros residentes aos nacionais e que o facto de distinguir a situação destes da de um turista era conforme ao direito comunitário, o qual sujeita igualmente a estada de nacionais de um Estado-membro noutro Estado-membro a condições diversas, consoante a duração da estada.

6 É neste contexto que a Comissão de indemnização, entendendo que a apreciação da compatibilidade da norma em questão com o Tratado requeria uma interpretação das regras comunitárias à luz dos imperativos e das finalidades do direito comunitário, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

"As disposições do artigo 706.°, n.°15, do code de prócedure pénale, que regulam os casos em que um cidadão estrangeiro, vítima em França de uma infracção, pode beneficiar de uma indemnização pelo Estado francês, são compatíveis com o princípio da não discriminação enunciado, designadamente, no artigo 7.° do Tratado de Roma?"

7 Para mais ampla exposição dos factos do processo principal, da sua tramitação bem como das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida em que tal seja necessário à fundamentação da decisão do Tribunal.

8 A questão prejudicial visa fundamentalmente saber se o princípio da não discriminação, enunciado designadamente no artigo 7.° do Tratado, se opõe a que um Estado-membro, relativamente às pessoas que se encontrem numa situação regulada pelo direito comunitário, sujeite a concessão de um indemnização do Estado, destinada a ressarcir o prejuízo causado neste Estado à vítima de uma agressão causadora de danos corporais, à condição de titular de um cartão de residente ou de nacional de um país que tenha concluído um acordo de reciprocidade com este Estado-membro.

9 Convém desde já recordar que, nos termos do primeiro parágrafo do artigo 7.° do Tratado, "no âmbito de aplicação do presente Tratado, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade". Estes termos definem tanto o conteúdo como o âmbito de aplicação do princípio da não discriminação.

Quanto ao conteúdo do princípio da não discriminação

10 Ao proibir "qualquer discriminação em razão da nacionalidade", o artigo 7.° do Tratado exige uma perfeita igualdade de tratamento de pessoas que se encontrem numa situação regulada pelo direito comunitário, com os nacionais de um Estado-membro. Este princípio opõe-se desde logo, sempre que seja aplicável, a que um Estado-membro sujeite a concessão de um benefício a determinada pessoa à condição de esta residir no seu território, não sendo tal condição imposta aos nacionais.

11 Deve ainda salientar-se que o direito à igualdade de tratamento é directamente conferido pelo direito comunitário, não estando assim sujeito à concessão, para esse fim, de um certificado por parte da administração do Estado-membro em causa (ver, a este propósito, o acórdão de 3 de Julho de 1980, Pieck, 157/79, Recueil p. 2171).

12 Por último, deve recordar-se que, tal como o Tribunal afirmou em primeiro lugar no seu acórdão de 22 de Julho de 1972 (Frilli, 1/72, Recueil p. 457), o direito à igualdade de tratamento consagrado pelo direito comunitário não pode depender da existência de um acordo de reciprocidade concluído entre o Estado-membro em questão e o país de origem do interessado.

13 Em consequência, o princípio da não discriminação, sempre que seja aplicável, opõe-se a que um Estado-membro sujeite a concessão de um benefício a uma pessoa que se encontre numa situação regulada pelo direito comunitário, à condição de ela ser titular de um cartão de residente ou de ser nacional de um país que tenha concluído um acordo de reciprocidade com esse Estado-membro.

Quanto ao âmbito de aplicação do princípio da não discriminação

14 Nos termos do artigo 7.° do Tratado, o princípio da não discriminação produz efeitos "no âmbito de aplicação do... Tratado" e "sem prejuízo das suas disposições especiais". Por esta última expressão, o artigo 7.° remete designadamente para outras disposições do Tratado em que a aplicação do princípio geral por ele enunciado é concretizada relativamente a situações especiais. É o que acontece, nomeadamente, com as disposições relativas à livre circulação de trabalhadores, ao direito de estabelecimento e à livre prestação de serviços.

15 Relativamente a este último ponto, o Tribunal afirmou, no acórdão de 31 de Janeiro de 1984 (Luisi et Carbone, 286/82 e 26/83, Recueil p. 377), que, por um lado, a liberdade de prestação de serviços implica a liberdade de os destinatários destes se deslocarem a outro Estado-membro para aí beneficiarem de um serviço, sem serem afectados por restrições, e que, por outro, os turistas devem ser considerados destinatários de serviços.

16 Perante o Tribunal, o Governo francês alegou que no estádio actual do direito comunitário, os destinatários de serviços não podem invocar o princípio da não discriminação, na medida em que a legislação nacional em questão não estabelece qualquer obstáculo à sua liberdade de circulação. As disposições como a referida no processo principal não impõem qualquer restrição neste domínio. Além disso, essa disposição diz respeito a um direito que constitui uma manifestação do princípio da solidariedade nacional. Tal direito pressupõe uma ligação mais estreita ao Estado que a do destinatário de serviços, podendo, por esse facto, ser reservada às pessoas que sejam, ou nacionais, ou cidadãos estrangeiros residentes no território nacional.

17 Esta argumentação não pode ser ser acolhida. Quando o direito comunitário assegura a uma pessoa singular a liberdade de se deslocar a outro Estado-membro, a protecção da integridade física desta pessoa no Estado-membro em causa, em igualdade de circunstâncias com os nacionais e os residentes, constitui o corolário dessa liberdade de circulação. Donde resulta que o princípio da não discriminação é aplicável aos destinatários de serviços, na acepção do Tratado, relativamente à protecção contra o risco de agressões e ao direito de obter a compensação pecuniária prevista pelo direito nacional quando esse risco se concretiza. O facto de a indemnização em causa ser financiada pela Fazenda Pública não é de molde a alterar o regime da tutela dos direitos garantidos pelo Tratado.

18 O Governo francês alegou igualmente que as indemnizações como a que está em causa no processo principal não são abrangidas pela proibição de discriminação pelo facto de relevarem do direito processual penal, que não se encontra incluído no âmbito de aplicação do Tratado.

19 A este respeito, deve notar-se que se, em princípio, a legislação penal e as normas do processo penal, entre as quais figura a disposição nacional em questão, relevam da competência dos Estados-membros, a jurisprudência constante do Tribunal (ver, designadamente, o acórdão de 11 de Novembro de 1981, Casati, 203/80, Recueil p. 2595) assinala que o direito comunitário impõe limites a tal competência. Tais disposições legislativas não podem, de facto, estabelecer discriminações relativamente às pessoas às quais o direito comunitário confere o direito à igualdade de tratamento, nem restringir as liberdades fundamentais garantidas pelo direito comunitário.

20 Do que fica dito resulta que deve responder-se à questão prejudicial que o princípio da não discriminação, enunciado no artigo 7.° do Tratado, designadamente, deve ser interpretado no sentido de que é vedado a um Estado-membro, relativamente às pessoas a que o direito comunitário garante a liberdade de se dirigirem a esse Estado, especialmente enquanto destinatários de serviços, subordinar a concessão de indemnizações estaduais, destinadas a reparar o prejuízo causado nesse Estado à vítima de uma agressão que provocou danos corporais, à condição de ser titular de um cartão de residente, ou de ser nacional de um país que tenha celebrado um acordo de reciprocidade com esse Estado-membro.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

21 As despesas efectuadas pelo Governo francês e pela Comissão, que submeteram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o tribunal nacional, cabe a este pronunciar-se quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL,

pronunciando-se sobre a questão submetida pela Comissão de indemnização das vítimas de infracções do tribunal de grande instance de Paris, mediante decisão de 5 de Julho de 1987, declara:

O princípio da não discriminação, enunciado, designadamente, no artigo 7.° do Tratado CEE, deve ser interpretado no sentido de que proíbe um Estado-membro, relativamente às pessoas a que o direito comunitário reconhece a liberdade de se dirigirem a esse Estado, especialmente enquanto destinatários de serviços, de sujeitar a concessão de uma indemnização estadual, destinada a reparar o prejuízo causado nesse Estado à vítima de uma agressão que provocou danos corporais, à condição de ser titular de cartão de residente ou de ser nacional de um país que tenha concluído um acordo de reciprocidade com esse Estado-membro.

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