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Document 61988CJ0220

Acórdão do Tribunal (Sexta Secção) de 11 de Janeiro de 1990.
Dumez France SA e Tracoba SARL contra Hessische Landesbank e outros.
Pedido de decisão prejudicial: Cour de cassation - França.
Convenção de Bruxelas - Responsabilidade extracontratual - Interpretação do n.º 3 do artigo 5.º - Lesado indirecto - Dano resultante para a sociedade-mãe das perdas financeiras sofridas pela filial.
Processo C-220/88.

European Court Reports 1990 I-00049

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1990:8

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-220/88 ( *1 )

I — Matéria de facto e fase escrita do processo

1.

As sociedades de direito francês Sceper e Tracoba, a que pertencem, respectivamente, as sociedades Dumez Bâtiment ( 1 ) e Oth Infrastructure, assinaram, em 24 de Dezembro de 1971, um contrato com o Sr. Hoffmann, promotor alemão, representante da sociedade de direito alemão Immosecur, com vista à construção de imóveis num terreno de que esta última era proprietária na República Federal da Alemanha.

2.

A fim de facilitar a execução deste contrato, as sociedades Sceper e Tracoba celebraram, em 3 de Fevereiro de 1972, um contrato de consórcio, tendo, em consequência, transferido os direitos e obrigações resultantes do contrato para duas filiais de direito alemão, sociedades Sceper Bau GmbH e Tracoba IB GmbH, associadas numa «Arbeitsgemeinschaft».

3.

O financiamento da operação devia ser garantido através de empréstimos hipotecários concedidos ao promotor Hoffmann por bancos alemães, designadamente pelo Süddeutsche Bodenkreditbank e pelo Hessische Landesbank, bem como por um crédito «relais» concedido pelo Gebrüder Röchling Bank ( 2 ).

4.

Durante a construção, o plano de financiamento foi posto em causa, os créditos suspensos e os trabalhos interrompidos.

5.

As sociedades Dumez Bâtiment e Tracoba, considerando que tinham sofrido um prejuízo financeiro cuja responsabilidade imputavam aos organnismos de crédito, requereram ao tribunal de commerce de Paris a condenação dos bancos alemães no pagamento de indemnizaçãoes por perdas e danos, invocando a responsabilidade extracontratual destes.

6.

Em sentença de 14 de Maio de 1985, este tribunal julgou procedente a excepção de incompetência invocada pelos bancos alemães, pelo facto de o prejuízo inicial ter sido sofrido na República Federal da Alemana, e de apenas reflexamente terem as sociedades-mãe, ora demandantes, sofrido em seguida um prejuízo financeiro.

7.

Em acórdão de 13 de Dezembro de 1985, a cour d'appel de Paris negou provimento ao recurso interposto pelas sociedades Dumez Bâtiment e Tracoba e confirmou a sentença recorrida, declarando terem sido as filiais que, em primeiro lugar, foram afectadas pelas perdas financeiras, cujas repercussões as sociedades-mãe alegam ter sofrido; os efeitos contabilizáveis que estas últimas referiram ter sentido na respectiva sede em França não podem ter o efeito de deslocar a localização do prejuízo, transferindo-o para a respectiva sede social e, eventualmente, para os diversos lugares em que esta possa eventualmente ser localizada.

8.

As sociedades Dumez Bâtiment e Oth Infrastructure interpuseram recurso de cassação deste acórdão. Como fundamentos alegaram que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal (acórdão de 30 de Novembro de 1976, G. J. Bier BV/Mines de potasse d'Alsace, 21/76, Recueil p. 1735, adiante «acórdão Mines de potasse d'Alsace»), a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» utilizada no n.° 3 do artigo 5.° da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (adiante «convenção») deve entender-se no sentido de que se refere tanto ao lugar em que se verificou o dano como ao do facto causador, de modo que o réu pode ser demandado, à escolha do demandante, perante os tribunais de qualquer um destes lugares. Tratando-se de um prejuízo derivado, o lugar em que ocorreu o facto danoso é, para o lesado indirecto, aquele em que os seus interesses foram afectados; tratando-se, no caso em apreço, de sociedades francesas, o prejuízo financeiro por elas sofrido de forma reflexa encontra-se assim localizado nas respectivas sedes em França.

9.

O tribunal de reenvio colocou a questão de saber se a faculdade de escolha do demandante, reconhecida pelo Tribual no acórdão Mines de potasse d'Alsace, é aplicável nas situações de prejuízo derivado.

10.

Considerando que o litígio suscita uma questão de interpretação do direito comunitário, a Cour de cassation francesa decidiu, em acórdão de 21 de Junho de 1988, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971, relativo à interpretação, pelo Tribunal de Justiça, da convenção, suspender a instância até que este Tribunal se pronuncie, a título prejudicial, sobre a seguinte questão:

«A regra de competência jurisdicional que concede ao demandante, em aplicação do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, a opção entre o tribunal do lugar do evento causal e o do lugar onde o prejuízo ocorreu, deve ser alargada ao caso em que o dano invocado é apenas a consequência do prejuízo sofrido pelas pessoas que foram directamente lesadas pelo dano materializado num lugar diferente, o que, em caso de resposta afirmativa, permitiria ao lesado indirecto, recorrer ao tribunal do seu domicílio?»

11.

O acórdão da Cour de cassation deu entrada na Secretaria do Tribunal em 4 de Agosto de 1988.

12.

Nos termos do artigo 20.° do protocolo sobre o estatuto do Tribunal de Justiça das CE, foram apresentadas observações escritas, em 26 de Outubro de 1988, por Jean-Denise Barbey, advogado do foro de Paris, em representação das sociedades Dumez Bâtiment e Tracoba, recorrrentes no processo principal, e por Georgios Kremlis, membro do Serviço Jurídico da Comissão, assistido por Giorgio Cherubini, funcionário italiano da Comissão ao abrigo do regime de intercambio com os funcionarios nacionais, em representação das Comunidades Europeias, em 28 de Outubro de 1988, por Richard Neuer, advogado do foro de Paris, em representação da sociedade Salvatorplatz-Grundstücksgesellschaft mbH & Co. oHG Saarland, recorrida no processo principal, em 31 de Outubro de 1988, por Edwige Belliard, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistida por Claude Chavance, attaché prinncipal d'administration centrale na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em representação do Governo da República Francesa, e pelo Dr. Christof Böhmer, Ministerialrat no Bundesministerium der Justiz, em representação do Governo da República Federal da Alemanha, em 3 de Novembro de 1988, por Michel Wolfer, advogado do foro de Paris, em representação da sociedade Hessische Landesbank, recorrida no processo principal, e, em 15 de Novembro de 1988, por J. A. Gensmantel, do Treasury Solicitor's Department, Queen Anne's Chamber, assistida por C. L. Carpenter, do Lord Chancellor's Department, em representação do Governo do Reino Unido.

13.

Com base no relatório do juiz relator, e ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu dar inicio à fase oral sem instrução.

14.

Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 95.° do Regulamento Processual, o Tribunal, em despacho de 23 de Fevereiro de 1989, deferiu o processo à Sexta Secção.

II — Observações escritas apresentadas no Tribunal

1.

As sociedades Dumez e Tracoba (adiante «Dumez e Tracoba») observam que o Tribunal (ver acórdão Mines de potasse d'Alsace), ao examinar o significado da expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, na hipótese de o lugar onde ocorreu o facto susceptível de gerar responsabilidade extracontratual e o lugar onde se verificou o prejuízo causado não serem idênticos, não fez qualquer distinção entre lesado directo e indirecto. Daqui resulta que, sempre que o lesado invocar um dano pessoal directamente causado no seu património, será territorialmente competente o tribunal do lugar em que o lesado sofreu esse dano.

Deste modo, Droz, ao comentar o referido acórdão, salientou que, no caso dos danos indirectos, a jurisprudência do Tribunal permite aos lesados indirectos de um prejuízo a propositura de acção de indemnização não apenas no lugar do domicílio do lesante ou no do acidente, como ainda no lugar onde aqueles sofreram pessoalmente o prejuízo.

A Dumez e Tracoba alegam ainda que o facto de esta interpretação poder dar origem à multiplicação das competências territoriais não escapou de modo algum ao Tribunal, não respeitando aliás apenas à hipótese dos prejuízos indirectos, valendo ainda para os lesados directos, designadamente em caso de dano causado no meio ambiente.

Por ultimo, e contrariamente ao que dá a entender a parte final da questão colocada pelo tribunal de reenvio, a interpretação defendida pelas recorrentes no processo principal não tem necessariamente por consequência permitir ao lesado indirecto recorrer, invariavelmente, ao foro do seu domicílio, dado que este lugar nem sempre coincide com o do prejuízo sofrido.

A Dumez e a Tracoba concluem que a questão colocada pelo tribunal de reenvio deve ser respondida afirmativamente. Em consequência, propõem que o Tribunal declare que:

«A regra de competência resultante do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, que designa o lugar onde ocorreu o facto danoso, deve ser aplicada (e não “alargada”) ao prejuízo pessoal sofrido pelos lesados indirectos.»

2.

a)

A Salvatorphtz Grundstücksgesellschaft mbH & Co. oHG Saarland, anteriormente denominada Gebrüder Röchling Bank (adiante «Röchling Bank»), começa por afirmar que a denùncia dos contratos de crédito pelos bancos alemães foi lícita face ao direito alemão. Tendo em conta as divergências das legislações dos Estados-membros em matéria de responsabilidade civil, a extensão das regras de competência ao lugar em que se repercutiram certas consequências indirectas de um acto inicialmente lícito conduziria a uma situação jurídica insolúvel, caracterizada pela prática do forum shopping e pelo risco de julgamentos contraditórios.

O Röchling Bank refere que uma boa administração da justiça exige que sejam restringidas, tanto quanto possível, as possibilidades de escolha facultadas ao lesado por um acto considerado ilícito para demandar o autor deste. O acórdão Mines de potasse d'Alsace não contradiz de modo algum o princípio de que, em matéria de responsabilidade extracontratual, apenas é de reconhecer, além da competência dos tribunais do lugar em que o prejuízo foi causado, a dos tribunais do lugar onde o prejuízo se verificou. Em contrapartida, tanto a jurisprudência do Tribunal como a dos tribunais dos Estados-membros excluem sistematicamente a competência dos tribunais dos lugares em que as consequências indirectas e mediatas, designadamente pecuniárias, desse prejuízo se tenham verificado.

Para mais amplos desenvolvimentos sobre a questão, o Röchling Bank remete para o parecer jurídico, integrado nas observações da recorrida no processo principal, da autoria do professor Hans Stoli.

Em conclusão, o Röchling Bank sugere que se responda negativamente à questão colocada pelo tribunal de reenvio, declarando-se que:

«A possibilidade de escolha facultada ao demandante pelo n.° 3 do artigo 5.° da convenção não deve ser alargada aos casos em que o prejuízo invocado apenas é consequência do dano sofrido pelas pessoas directamente lesadas pelo dano concretizado num outro lugar.»

b)

No seu parecer, redigido a pedido do Röchling Bank, o professor Stoll refere que o objectivo da convenção reclama critérios de localização definidos com clareza, pelo que não é compatível com a possibilidade de o demandante escolher livremente entre diversos tribunais competentes. No entanto, no caso de tal possibilidade de escolha existir, esta deve ser circunscrita dentro de apertados limites, sob pena de permitir a competência dos tribunais do domicílio do demandante (forum actoris).

Se a jurisprudência do Tribunal (acórdão Mines de potasse d'Alsace) tinha defendido a possibilidade de optar entre o tribunal do lugar da verificação do dano e o do lugar do facto danoso, o Tribunal considerou, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso em apreço (poluição transfromeiras), que estes factores de conexão eram de igual importância e constituíam ambos uma conexão significativa do ponto de vista da competência jurisdicional.

No entanto, segundo o professor Stoll, esta jurisprudência deve ser interpretada restritivamente, não sendo aplicável a situações que não apresentem as características supra-referidas. Donde resulta que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» apenas se refere ao lugar do primeiro dano directo, com exclusão daquele em que se verificaram outras consequências indirectas do acto, tanto mais que o número e a importancia dessas connsequências, bem como o lugar em que se verificaram, são, em grande parte, fortuitos, não estando ligados ao próprio acto por qualquer nexo de causalidade significativo.

O professor Stoll acrescenta que a doutrina e a jurisprudência na República Federal da Alemanha e em França estabelecem, em matéria de direito internacional privado, uma nítida distinção entre o lugar do prejuízo imediato e o das consequências mediatas do prejuízo, sendo, de um modo geral, excluída a competência do tribunal do lugar em que estas últimas se manifestaram, em benefício da do tribunal do lugar em que o prejuízo directo se verificou. É esta igualmente a solução actual do direito interno francês. Por outro lado, o parecer dá conta de diversas decisões judiciais noutros Estados-membros (Itália, Países Baixos) que se manifestaram no mesmo sentido. Para o professor Stoll, um outro argumento a favor desta tese pode deduzir-se da jurisprudência francesa e alemã em matéria de responsabilidade extracontratual resultante da violação de interesses e de direitos sem conexão territorial (por exemplo, as violações dos direitos da personalidade ou da propriedade industrial ou intelectual, tal como os actos de concorrência desleal). Nestas hipóteses, os tribunais procuram saber a que lugar o acto ilícito se encontra principalmente ligado (por exemplo, o lugar da publicação ou da difusão de um escrito ofensivo da honra, aquele em que se defrontam os interesses dos concorrentes, ou ainda o da produção de um objecto que viola um direito da propriedade industrial); ao invés, nenhuma importância é, em princípio, de atribuir ao lugar onde o facto danoso gerou outras consequências, sendo a competência do tribunal do domicílio ou da sede do interessado em geral excluída, dado que nesse lugar se verificam necessariamente determinadas consequências do dano.

O mesmo tipo de argumentação deve ser aplicado ao litígio pendente no tribunal de reenvio. Na verdade, no caso em apreço, tanto o abuso do direito invocado pelas recorrentes no processo principal, como o primeiro prejuízo causado às filiais das sociedades francesas, verificaram-se na República Federal da Alemanha. Deste modo, os tribunais deste país são internacionalmente competentes para conhecer do litígio, independentemente da verificação de outras consequências danosas em França.

O professor Stoll conclui que as repercussões do facto danoso sobre as vítimas indirectas não devem determinar a multiplicação e o fraccionamento da competência internacional e do direito aplicável.

É o que acontece, de qualquer modo, nas situações de mera deslocação do dano, sempre que o lesado em primeiro lugar sofra o dano indirectamente através de um terceiro, e até quando coincida com este, como acontecerá no caso das relações entre as sociedades de construção francesas com as respectivas filiais alemãs.

3.

a)

O Hessische Landesbank (adiante «Helaba») começa por salientar que, no caso em apreço, a operação imobiliária em causa foi inteiramente efectuada na República Federal da Alemanha, não apresentando qualquer factor de conexão com a França.

Em seguida, alega que o princípio da boa administração da justiça, um dos objectivos principais da convenção, milita claramente em favor da competência exclusiva dos tribunais alemães para conhecerem por inteiro do processo principal. De facto, uma vez que o prejuízo directo e o indirecto resultam de um mesmo facto causal, não devem ser dissociados do ponto de vista da competência jurisdicional.

Segundo o Helaba, admitir a tese das recorrentes no processo principal equivaleria a consagrar o princípio do forum actons, solução contrária à letra e ao espírito da convenção.

Por último, o Helaba alega não ser possível aplicar a jurisprudência do Tribunal (acórdão Mines de potasse d'Alsace) a uma hipótese como a do caso em apreço, por serem diferentes os dados do problema. Assim, no referido processo, estava-se, desde o início, perante uma dissociação do facto causal e da primeira concretização do prejuízo, enquanto que, no caso em apreço, houve, num primeiro momento, coincidência na localização do facto ilícito e dos seus efeitos imediatos. E por esta razão que a doutrina autorizada (Bischoff, Gothot e Holleaux), bem como o advogado-geral Warner nas conclusões apresentadas no processo em que foi proferido o acórdão de 16 de Dezembro de 1980 (Rüffer, 814/79, Recueil p. 3807) consideraram que o acórdão Mines de potasse d'Alsace não pode aplicar-se à hipótese do prejuízo indirecto.

Em consequência, o Helaba pede que o Tribunal declare que:

«—

na hipótese dos lugares do facto gerador e do prejuízo imediato dele resultante não coincidirem com aquele em que um lesado indirecto sofreu as consequências desse prejuízo, a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, referida no n.° 3 do artigo 5.° da convenção, tal como a expressão “lugar onde se verificou o prejuízo”, referida no acórdão Mines de potasse d'Alsace, devem ser entendidas no sentido de que se referem apenas ao lugar onde o prejuízo imediato se concretizou (quer coincida ou não, aliás, com o lugar do facto causal);

esta conclusão geral, formulada para a hipótese de um prejuízo indirecto, única visada pela Cour de cassation na questão por ela submetida ao Tribunal, é igualmente aplicável aos casos em que um facto ilícito gera um prejuízo cujas consequências são sofridas pelo lesado (directo) em lugares diferentes;

em todos os casos em que o prejuízo verificado num lugar gera consequências noutros (tanto para o lesado directo como para o indirecto), o demandante apenas poderá, caso opte pelo tribunal do lugar do dano, recorrer ao tribunal do lugar em que o prejuízo inicial ou imediato se verificou».

Para uma fundamentação completa em apoio dos pedidos formulados, o Helaba remete para o parecer do professor Pierre Bourel, junto às suas observações escritas.

b)

O professor Bourel inicia a sua exposição com duas observações prévias.

Em primeiro lugar, observa que, embora a questão do tribunal de reenvio se refira apenas ao prejuízo indirecto (isto é, o prejuízo que, sendo sofrido por uma pessoa, constitui mero reflexo do sofrido por outra), esta hipótese não pode ser desligada daqueloutra em que um prejuízo inicialmente verificado em determinado lugar se alarga ou tem consequências num outro lugar, sendo no entanto suportado pela mesma pessoa. Dado que, de acordo com o n.° 3 do artigo 5.° da convenção, os termos do problema são os mesmos, convém que o Tribunal forneça uma resposta global que abranja os dois referidos casos.

Seguidamente, o professor Bourel sublinha que o Tribunal (acórdão de 16 de Dezembro de 1980, supracitado) tinha já sido solicitado a interpretar o n.o 3 do artigo 5.° da convenção numa hipótese em que o demandante constituía, ao contrário do que acontece no processo principal em apreço, o lesado directo, invocando no entanto, como no presente caso, um prejuízo financeiro sofrido no lugar do domicílio, em consequência de facto danoso ocorrido noutro lugar. Embora o Tribunal ainda não tenha tido ocasião de se pronunciar sobre este problema, dado que decidiu, prejudicialmente, que o caso sub judice escapava ao âmbito material da convenção, as observações da Comissão e as conclusões do advogado-geral no processo pronunciaram-se nitidamente a favor de uma interpretação restritiva do n.° 3 do artigo 5.°, pelo facto de o elemento sistemático da convenção e o perigo da multiplicação de competências desaconselhar a admissão de uma competência baseada no domicílio do demandante ou no lugar de verificação indirecta do prejuízo. Em conclusão, deve ser excluída a consideração de qualquer competência jurisdicional baseada noutro factor de conexão que não seja o território em que o prejuízo inicial ocorreu.

Esta conclusão decorre, segundo o professor Bourel, antes de mais, do próprio acórdão Mines de potasse d'Alsace.

Por um lado, esta decisão foi proferida numa hipótese de dissociação geográfica, desde o início do facto causal e do prejuízo, enquanto que a questão agora submetida pela Cour de cassation francesa respeita a uma situação diversa em que, após a ocorrência do facto ilícito, se verificarem danos em cadeia ou em cascata, cada um deles localizado num lugar distinto. Donde resulta que não é possível transpor esta jurisprudência para um caso que apresenta características distintas.

Por outro lado, a análise da formulação visada por este acórdão leva a conclusão idêntica. Com efeito, ao referir-se expressamente ao tribunal do lugar onde «se verificou» o dano, o Tribunal tinha em vista apenas a hipótese do dano concretizado ao mesmo tempo que o facto gerador.

Seguidamente, o professor Bourel defende que a tese das demandantes no processo principal contraria a sistematização e os objectivos da convenção.

Em primeiro lugar, deve afastar-se a ideia de protecção do lesado, tal como fez, aliás, o Tribunal no acórdão Mines de potasse d'Alsace, por ser demasiado inconsistente para, por si só, servir de base a urna competencia jurisdicional e pelo facto de a faculdade de o lesado recorrer ao tribunal do lugar do dano indirecto levar ao estabelecimento de nova competência jurisdicional baseada no domicílio do demandante, em contradição flagrante com a convenção.

Em segundo lugar, o professor Bourel alega que a convenção visa antes de mais a boa administração da justiça. Se, deste ponto de vista, a proximidade entre o juiz e o fundo da questão é desejável, o objectivo do funcionamento racional da justiça seria afectado por qualquer solução que conduzisse a uma multiplicação excessiva dos critérios da competência. Ora, a extensão da regra de competência do n.° 3 do artigo 5.° ao conhecimento do prejuízo indirecto conduziria inevitavelmente a resultados incoerentes, dado que teria por efeito autorizar o juiz do lugar do dano a decidir a sua indemnização, independemente do prejuízo imediato, quando se sabe que o dano indirecto constitui uma consequência necessária do dano directo. Donde resulta que as exigências da boa administração da justiça implicam que o tribunal do lugar do dano inicial seja considerado exclusivamente competente para conhecer ao mesmo tempo deste prejuízo e das consequências que dele possam advir ulteriormente. Por outro lado, a concentração das competências constitui um outro aspecto da boa administração da justiça. Ora, o reconhecimento de competência ao tribunal do lugar do dano indirecto determinaria a multiplicação das competências e um risco de decisões contraditórias de tribunais chamados a conhecer, em separado, de aspectos parcelares de uma mesma questão de responsabilidade civil. Dado que os intrumentos processuais da convenção não permitem eliminar este tipo de conflito, dever-se-á concluir que a hipótese que dá origem a este conflito não se enquadra no sistema da convenção.

Quanto ao mais, a interpretação restritiva preconizada pelas recorrentes no processo principal está de acordo com as soluções prevalecentes na maior parte dos sistemas jurídicos nacionais. Assim, a legislação e jurisprudência francesas recusam-se, nas relações de direito interno, a erigir o lugar das consequências de um facto danoso em critério de competência territorial autónomo, distinto do lugar do facto danoso em si mesmo. Nas relações internacionais, a jurisprudência francesa não teve ainda ocasião de se pronunciar correctamente sobre a questão em causa, mas as decisões proferidas em hipóteses semelhantes demonstram um certo desfavor relativamente ao forum actons; de qualquer modo, os tribunais franceses tendem a aplicar ao direito internacional as regras de competência territorial interna. Por outro lado, em vários outros Estados-membros, os tribunais têm negado expressamente a competência do foro do domicílio ou da sede do demandante (que coincidem com o lugar onde se verificaram as consequências de ordem financeira do prejuízo inicialmente verificado noutro lugar). É o que acontece nos Países Baixos, na República Federal da Alemanha e em Itália, pronunciando-se a doutrina britânica no mesmo sentido.

O professor Bourel extrai do conjunto desta argumentação conclusões literalmente idênticas às já referidas pelo Helaba.

4.

O Governo da República Francesa afirma que a solução do Tribunal no acórdão Mines de potasse d'Alsace se justifica por se tratar de um único acto danoso susceptível de provocar danos distintos em diversos lugares, e cada um dos dois critérios de conexão em causa (lugar onde se verificou o dano e lugar do facto danoso) poder fornecer uma indicação útil do ponto de vista da prova e da organização do processo, de forma que não era conveniente optar por apenas um deles, e, por último, não ser de recear qualquer risco de disparidade de decisões judiciárias dado que cada um dos órgãos jurisdicionais designados seria chamado a pronunciar-se sobre factos distintos.

Por outro lado, no caso em apreço, as circunstâncias são outras: tratando-se de responsabilidades em cascata, ligadas por um mesmo facto gerador, o nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido pelo lesado indirecto e o facto danoso é apenas indirecto. Deste modo, a responsabilidade indirecta estará dependente do apuramento de uma responsabilidade directa. Este nexo entre os dois danos implica que a competência jurisdicional do tribunal chamado a pronunciar-se sobre o dano indirecto deva coincidir com a do tribunal competente para conhecer do prejuízo inicial. Esta interpretação encontra a sua justificação nos n.os 21 a 23 do próprio acórdão Mines de potasse d'Alsace.

O Governo da República Francesa alega ainda que o seu direito interno e a sua jurisprudência consideram igualmente que o prejuízo dos lesados indirectos é sofrido no próprio lugar do facto danoso, e não no domicílio da vítima. A solução contrária pode, aliás, dar lugar a decisões contraditórias, encorajando ainda o «forum shopping».

Em conclusão, o Governo da República Francesa sugere que se responda à questão submetida pelo tribunal de reenvio da seguinte forma:

«A regra de competência jurisdicional que concede ao demandante, nos termos do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, a possibilidade de escolher entre o tribunal do lugar do facto danoso e o do lugar em que ocorreu o dano não é aplicável à hipótese em que o dano invocado constitui apenas a consequência do dano sofrido pelas pessoas directamente lesadas concretizado num lugar diferente.

Neste caso, a faculdade de escolha do tribunal oferecida ao lesado indirecto coincide com aquela de que beneficia o lesado directo.

O tribunal designado para se pronunciar, ou que se pronunciou, sobre o prejuízo inicial pode ser competente para conhecer do prejuízo indirecto, mas o lesado por este tem sempre a possibilidade de recorrer a um dos tribunais competentes para o lesado do dano inicial, diferente daquele a que este último recorreu.»

5.

O Governo da República Federal da Alemanha sugere igualmente que se responda de forma negativa à questão apresentada. Considera que apenas a interpretação restritiva do n.° 3 do artigo 5.°, enquanto excepção ao princípio geral do artigo 2.° da convenção, é compatível com o sistema e os objectivos desta. Importa não pôr em causa a protecção concedida ao demandado, sobretudo na hipótese do caso em apreço, em que o prejuízo invocado constitui apenas a repercussão nas sociedades-mãe de um prejuízo sofrido pelas respectivas filiais.

Para o Governo da República Federal da Alemanha, o acórdão Mines de potasse d'Alsace visa apenas o prejuízo directo e imediato, com exclusão do prejuízo indirecto ou repercutido. Contra um entendimento mais extensivo milita sobretudo o facto de que o lugar do dano indirecto é frequentemente fortuito, de forma que não existem ligações significativas e particularmente estreitas entre a contestação e o tribunal, tal como exige o Tribunal no referido acórdão.

No caso em apreço, a interpretação restritiva justifica-se, de resto, pelo facto de que, caso se admitisse a tese das sociedades recorrentes do processo principal, as multinacionais poderem, através dos livros de contabilidade, criar uma competência jurisdicional à sua escolha, o que equivaleria à consagração do «forum actoris».

O Governo da República Federal da Alemanha conclui propondo que a questão prejudicial seja respondida da seguinte forma:

«A regra de competência jurisdicional, que concede ao demandante, nos termos do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, a faculdade de optar entre o tribunal do lugar do facto danoso e o do lugar em que se verificou o dano, não deve aplicar-se às hipóteses em que o dano invocado constitui apenas a consequência do prejuízo sofrido pelas pessoas directamente lesadas pelo dano concretizado num lugar diferente.»

6.

O Governo do Reino Unido começa por alegar que o acórdão Mines de potasse d'Alsace em nada conforta a tese das recorrentes demandantes no processo principal. Com efeito, nesta jurisprudência, que respeita ao caso de os elementos constitutivos do facto danoso terem ocorrido no território de diferentes Estados-membros, o Tribunal salientou que o direito de opção baseado no artigo 5.° da convenção se explica pela existência, em certas hipóteses bem determinadas, de uma conexão particularmente estreita entre a contestação e o tribunal que pode ser chamado a pronunciar-se sobre ela, e pelo facto de, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, tanto o lugar do facto danoso como o da concretização do dano poderem constituir uma conexão significativa do ponto de vista da competência judiciária.

No entanto, na opinião do Governo do Reino Unido, esta jurisprudência não é aplicável a todas as hipóteses em que um prejuízo, mesmo que bastante afastado do acto ilícito, é sofrido pelo demandante, sob pena de generalizar o forum actoris, dado que uma parte do prejuízo se manifesta sempre no domicílio do demandante. Além disso, é inaceitável que uma mudança de domicílio implique automaticamente a competência de tribunais diferentes, mesmo na falta de uma ligação especial com o litígio.

O Governo do Reino Unido invoca as conclusões do advogado-geral Warner no processo Rüffer (supracitado), segundo as quais não resulta minimamente do acórdão Mines de potasse d'Alsace que o lugar em que ocorreu o facto danoso possa ser o lugar da sede da sociedade demandante, para salientar que, nos raros casos em que a convenção toma em consideração o forum actoris, o faz sempre numa perspectiva de protecção da parte mais fraca (credor de alimentos, segurado, consumidor). Ora, este objectivo não pode ser invocado no âmbito do n.° 3 do artigo 5.° Por outro lado, a interpretação extensiva defendida pelas recorrentes no processo principal pode representar um obstáculo ao funcionamento da convenção e dar origem a inconvenientes para os recorridos, dado que o disposto no n.° 2 do artigo 3.° da convenção pode, em determinados casos, ser invocado contra as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante.

Quanto ao mais, a remissão, no caso concreto, para a localização dos interesses das sociedades-mães recorrentes destina-se a fazer depender a competência jurisdicional de aspectos ligados ao demandante, em vez de factores objectivos relacionados com a natureza do litígio.

Por último, a tese das recorrentes no processo principal baseia-se na ideia inexacta de que o acórdão Mines de potasse d'Alsace tomou em consideração o lugar em que o prejuízo foi sofrido, em vez daquele em que o prejuízo se verificou.

O Governo do Reino Unido acrescenta que os seus tribunais fazem sempre a distinção entre o facto danoso e as consequências prejudiciais que dele podem resultar, considerando que os tribunais do lugar onde a perda financeira é sofrida não são competentes, nos termos do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, excepto se forem os lugares em que se verificou o dano.

Em resumo, o Governo do Reino Unido sugere que se responda à questão submetida da seguinte forma:

«A regra de competência jurisdicional enunciada no acórdão Mines de potasse d'Alsace, que concede ao demandante, nos termos do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, a possibilidade de optar entre o tribunal do facto danoso e o do lugar em que o prejuízo se verificou, não pode interpretar-se extensivamente a ponto de atribuir competência aos tribunais do lugar em que o dano é sofrido, não permitindo aos lesados indirectos recorrerem ao tribunal do Estado de residência.»

7.

A Comissão defende que o prejuízo indirecto, como aquele a que se refere o tribunal de reenvio, não é abrangido pelo n.° 3 do artigo 5.° da convenção.

Com efeito, o prejuízo indirecto não apresenta uma ligação especialmente estreita entre a contestação e o tribunal chamado a pronunciar-se sobre esta, condição que no entanto é exigida pelo acórdão Mines de potasse d'Alsace. Seguidamente, facultar aos lesados indirectos a opção permitida pelo referido acórdão teria por efeito multiplicar os processos, contrariamente ao objectivo da convenção, e de concentrar num mesmo tribunal os processos relativos a factos idênticos, de modo a evitar o risco de decisões judiciais contraditórias e proscrever o «forum shopping».

Por outro lado, o acórdão citado constitui já uma excepção que, enquanto tal, deve ser interpretada restritivamente.

A Comissão acrescenta que, no seu entender, o prejuízo indirecto alegadamente sofrido por uma sociedade-mãe, resultante de perdas financeiras da sua filial, não constitui um prejuízo cuja reparação esta possa exigir com base no n.° 3 do artigo 5.° da convenção. Partindo do princípio, no entanto, de que se trata de um dano abrangido por esta disposição, torna-se ainda necessário apurar em que lugar o prejuízo se verificou. A este respeito, a Comissão defende que o lugar em que o prejuízo se verificou é principalmente aquele em que esse prejuízo se materializou, sendo apenas quando tal materialização não exista que o dano pode considerar-se verificado na sede da sociedade. A Comissão considera que, no caso em apreço, o prejuízo se verificou na República Federal da Alemanha.

Com base nestas considerações, a Comissão propõe que se responda à questão submetida da seguinte forma: «A regra de competência jurisdicional que concede ao demandante, nos termos do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, a faculdade de optar entre o tribunal do lugar do facto danoso e o do lugar em que o prejuízo se verificou não é aplicável às hipóteses em que o prejuízo invocado constitui apenas a consequência do dano sofrido pelas pessoas que foram directamente lesadas pelo dano materializado num outro lugar, o que acontece no caso da sociedade-mãe que alega ter sofrido um prejuízo directamente sofrido pela sua filial no exercício das suas actividades num Estado contratante diferente do da sociedade-mãe.»

F. A. Schockweiler

Juiz relator


( *1 ) Língua do processo: francés.

( 1 ) Actualmente denominada «Dumez France».

( 2 ) Actualmente denominado «Salvatorplatz-Gnindstücksgesellschaft mbH & Co. oHG Saarland».

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RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA (Sexta Secção)

11 de Janeiro de 1990 ( *1 )

No processo C-220/88,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação, pelo Tribunal, da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pela Cour de cassation francesa, destinado a obter, no litígio pendente nesse órgão jurisdicional entre

1) Dumez France, anteriormente designada por Dumez Bâtiment, sociedade anónima, com sede em Nanterre (França),

2) Tracoba, sociedade de responsabilidade limitada, com sede em Paris (França), dominada pela sociedade Oth Infrastructure, com o mesmo endereço, por um lado,

e

1) Hessische Landesbank (Helaba), sociedade com sede em Frankfurt-am-Main (República Federal da Alemanha),

2) Salvatorplatz-Grundstücksgesellschaft mbH & Co. oHG Saarland, sociedade com sede em Munique (República Federal da Alemanha), anteriormente denominada Gebrüder Röchling Bank,

3) Lübecker Hypothekenbank, sociedade com sede em Lübeck (República Federal da Alemanha), por outro,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do n.° 3 do artigo 5.° da convenção de 27 de Setembro de 1968,

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

constituído pelos Srs. C. N. Kakouris e F. A. Schockweiler, presidentes de secção, T. Koopmans, G. F. Mancini e M. Diez de Velasco, juízes,

advogado-geral : M. Darmon

secretario: H. A. Rühi, administrador principal

vistas as observações apresentadas:

em representação das sociedades Dumez France e Tracoba, demandantes no processo principal, por Jean-Denys Barbey, advogado do foro de Paris,

em representação da sociedade Hessische Landesbank, demandada no processo principal, por Michel Wolfer, advogado do foro de Paris,

em representação da sociedade Salvatorplatz-Grundstücksgesellschaft mbH & Co. oHG Saarland, demandada no processo principal, por Richard Neuer, advogado do foro de Paris,

em representação do Governo da República Federal da Alemanha, pelo Dr. Christof Böhmer, Ministerialrat no Bundesministerium der Justiz (Ministério Federal da Justiça), exclusivamente na fase escrita do processo,

em representação do Governo da República Francesa, por Edwige Belliard, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistida por Claude Chavance, attaché principal da administração central na Direcção dos Assuntos Jurídicos do mesmo ministério, exclusivamente na fase escrita do processo,

em representação do Reino Unido, por J. A. Gensmantel, do Treasury Solicitor's Department, Queen Anne's Chamber, assistida por C. L. Carpenter, do Lord Chancellor's Department, exclusivamente na fase escrita do processo,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Georgios Kremlis, membro do Serviço Jurídico, assistido por Giorgio Cherubini, funcionário italiano destacado na Comissão, nos termos do regime de intercâmbio com os funcionários nacionais;

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 14 de Junho de 1989,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na.audiência de 23 de Novembro de 1989,

profere o presente

Acórdão

1

Por acórdão de 21 de Junho de 1988, entrado na Secretaria do Tribunal em 4 de Agosto do mesmo ano, a Cour de cassation francesa submeteu, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971, relativo à interpretação, pelo Tribunal, da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (adiante «convenção»), uma questão prejudicial relativa à interpretação do n.° 3 do artigo 5.° da convenção.

2

Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio que tem por objecto uma acção de responsabilidade extracontratual intentada perante os tribunais franceses pelas sociedades francesas Sceper e Tracoba, que têm o controlo das sociedades Dumez France e Oth Infrastructure (adiante «sociedades Dumez e Tracoba»), contra as sociedades Hessische Landesbank, Salvatorplatz-Grundstücksgesellschaft mbH & Co. oHG Saarland e Lübecker Hypothekenbank, com sede na República Federal da Alemanha (adiante «bancos alemães»).

3

Resulta do processo principal que as sociedades Dumez e Tracoba requerem a indemnização do prejuízo que alegam ter sofrido em resultado da cessação de pagamentos das suas filiais, estabelecidas na República Federal da Alemanha, provocada pela suspensão de um programa de construção de imóveis a realizar na República Federal da Alemanha para um dono da obra alemão, e que constituía a consequência de denúncia de contratos relativos ao crédito concedido a este último.

4

Por decisão de 14 de Maio de 1985, o tribunal de commerce de Paris considerou procedente a excepção de incompetência invocada pelos bancos alemães, pelo facto de o prejuízo inicial ter sido sofrido pelas filiais das sociedades Dumez e Tracoba na República Federal da Alemanha, pelo que seria apenas de forma indirecta que as sociedades-mãe francesas sofreram depois um prejuízo financeiro.

5

Em acórdão de 13 de Dezembro de 1985, a cour d'appel de Paris confirmou esta decisão, declarando que os efeitos contabilísticos que as sociedades Dumez e Tracoba indicavam ter registado na sua sede em França não eram susceptíveis de alterar a localização do prejuízo inicialmente sofrido pelas filiais na República Federal da Alemanha.

6

Como fundamentos do recurso de cassação interposto deste acórdão, as sociedades Dumez e Tracoba alegaram que a jurisprudência do Tribunal (acórdão de 30 de Novembro de 1976, G. J. Bier BV/Mines de potasse d'Alsace SA, 21/76, Recueil p. 1735) nos termos da qual a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», constante do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, deve ser entendida no sentido de que se refere tanto ao lugar onde se verificou o dano como ao do evento causal, podendo, assim, o demandado ser accionado, segundo o critério do demandante, no tribunal de qualquer destes lugares, é aplicável igualmente nas hipóteses de dano indirecto. Nestes casos, o lugar onde o facto danoso ocorreu é, para o lesado que sofreu o prejuízo em consequência do dano causado ao lesado inicial, aquele em que os seus interesses foram afectados; tratando-se, neste caso, de sociedades francesas, o prejuízo financeiro que para elas resultou da cessação de pagamento das respectivas filiais na República Federal da Alemanha encontra-se assim localizado em França, na sede das sociedades Dumez e Tracoba.

7

Considerando que o litígio suscita um problema de interpretação do direito comunitário, a Cour de cassation francesa suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:

«A regra de competência jurisdicional que concede ao demandante, em aplicação do n.° 3 do artigo 5.° da convenção, a opção entre o tribunal do lugar do evento causal e o do lugar onde o prejuízo se verificou, deve ser alargada ao caso em que o dano invocado é apenas a consequência do prejuízo sofrido pelas pessoas que foram directamente lesadas pelo dano materializado num lugar diferente, o que, em caso de resposta afirmativa, permitiria ao lesado indirecto, recorrer ao tribunal do seu domicílio?»

8

Para mais ampla exposição dos factos do processo principal, da tramitação deste e das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos do processo apenas serão adiante retomados na medida em que sejam necessários à fundamentação do Tribunal.

9

A fim de responder à questão colocada, deve antes de mais notar-se que, nos termos do artigo 5.° da convenção,

«o réu com domicílio no território de um Estado-membro contratante pode ser demandado num outro Estado contratante: ...

3)

em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso».

10

Deve em seguida salientar-se que, no acórdão de 30 de Novembro de 1976, já citado, o Tribunal declarou que, quando o lugar do facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um prejuízo não forem idênticos, a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», que figura no n.° 3 do artigo 5.° da convenção, deve ser entendida no sentido de que se refere tanto ao lugar onde o prejuízo se verificou como ao do evento causal, pelo que o demandado pode ser accionado, segundo o critério do demandante, quer perante o tribunal do lugar onde o dano se verificou, quer perante o do lugar do facto causador desse dano.

11

As sociedades Dumez e Tracoba salientam que, neste acórdão, o Tribunal interpretou o n.° 3 do artigo 5.° da convenção sem fazer qualquer distinção entre lesado directo e indirecto. Donde resulta que para conhecer dos casos de lesados indirectos que invoquem um prejuízo pessoal será competente o tribunal do lugar onde o lesado foi atingido pelo prejuízo.

12

A este respeito, deve, antes de mais, salientar-se que o acórdão de 30 de Novembro de 1976, já referido, foi proferido no quadro de uma situação em que o prejuízo (no caso em apreço, prejuízos causados às culturas nos Países Baixos) se verificou a uma determinada distância do lugar do facto danoso (no presente caso, o lançamento de resíduos salinos no Reno por pane de uma empresa estabelecida em França), mas como consequência imediata do evento causal, ou seja, da deslocação física dos resíduos salinos.

13

Em compensação, no actual processo principal, o dano alegadamente causado às sociedades Dumez e Tracoba pela denúncia, por parte dos bancos alemães, dos contratos de crédito concluídos com o promotor, com vista ao financiamento dos trabalhos, teve a sua origem e as suas consequências imediatas num mesmo Es-tado-membro, no qual se encontravam estabelecidos tanto os bancos credores como o dono da obra e as filiais das sociedades Dumez e Tracoba, encarregadas dos trabalhos de construção. Os prejuízos invocados pelas sociedades-mãe Dumez e Tracoba constituem apenas a consequência indirecta das perdas financeiras sofridas anteriormente pelas respectivas filiais na sequência da denúncia dos contratos de crédito e da consequente suspensão dos trabalhos.

14

Donde resulta que, num caso como o do processo principal, o prejuízo invocado constitui apenas a consequência indirecta do prejuízo inicialmente sofrido por outras pessoas colectivas que foram directamente atingidas pelo prejuízo concretizado num lugar diferente daquele onde o lesado indirecto veio depois a sofrer o prejuízo.

15

Deste modo, há que verificar se a noção de «lugar onde se verificou o dano», na acepção do supracitado acórdão de 30 de Novembro de 1976, pode ser entendida como referida ao lugar em que as pessoas indirectamente lesadas se inteiram dos efeitos danosos sofridos no seu património.

16

A este respeito, a convenção, ao estabelecer, no título II, um sistema de atribuição de competências, adoptou, no artigo 2.°, como regra geral, a competência do tribunal do Estado do domicílio do demandado. Por outro lado, a convenção manifestou-se contrária à competência dos tribunais do domicílio do demandante, ao excluir, no segundo parágrafo do artigo 3.°, a aplicação de disposições nacionais que prevêem tais critérios de competência relativamente aos demandados domiciliados no território de um Estado contratante.

17

Ê apenas a título de excepção ao princípio geral da competência do tribunal do Estado do domicílio do demandado que a secção 2 do título II prevê um determinado número de atribuições especiais de competência, entre as quais figura a do n.° 3 do artigo 5.° da convenção. Tal como o Tribunal já referiu (acórdão de 30 de Novembro de 1976, n.os 10 e 11), estas competências especiais, cuja escolha depende da vontade do demandante, baseiam-se na existência de uma conexão particularmente estreita entre a contestação e um foro diferente do do Estado do domicílio do demandado, a qual justifica a atribuição de competência a esse tribunal por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo.

18

Para alcançar este objectivo, de importância fundamental para uma convenção que deve essencialmente favorecer o reconhecimento e a execução de decisões judiciais fora do Estado em que foram proferidas, é indispensável evitar a multiplicação dos foros competentes, que aumenta os riscos de incompatibilidade de decisões, fundamento da recusa do reconhecimento ou de exequatur, nos termos do n.° 3 do artigo 27.° da convenção.

19

Este objectivo opõe-se, além disso, a qualquer interpretação da convenção que, fora dos casos expressamente previstos, conduza a reconhecer a competência do foro do domicílio do demandante e que, desse modo, permita a este, através da escolha do seu domicílio, determinar o tribunal competente.

20

Das considerações precedentes resulta que se, de acordo com a jurisprudência do Tribunal (acórdão de 30 de Novembro de 1976), a noção de «lugar onde ocorreu o facto danoso» a que se refere o n.° 3 do artigo 5.° da convenção, pode abranger o lugar de verificação do dano, este último apenas pode ser entendido como referido ao lugar onde o evento causal, gerador de responsabilidade extracontratual, produziu directamente os seus efeitos danosos relativamente ao lesado directo.

21

O lugar onde se verificou o dano inicial apresenta ainda, de uma forma geral, uma relação estreita com os outros pressupostos da responsabilidade civil, o que nem sempre acontece com o domicílio do lesado indirecto.

22

Deve, assim, responder-se à questão submetida pelo tribunal de reenvio que a regra de competência jurisdicional enunciada no n.° 3 do artigo 5.° da convenção não pode ser interpretada no sentido de que autoriza o demandante que invoque um prejuízo que diz ser a consequência do dano sofrido por outras pessoas directamente lesadas pelo facto danoso a accionar o autor deste nos tribunais do lugar onde ele próprio verificou a existência do dano no seu património.

Quanto às despesas

23

As despesas efectuadas pelo Governo da República Federal da Alemanha, pelo Governo da República Francesa, pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações no Tribunal, não são susceptíveis de reembolso. Revestindo o processo, relativamente às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o tribunal nacional, cabe a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

pronunciando-se sobre a questão submetida pela Cour de cassation francesa, através de acórdão de 21 de Junho de 1988, declara:

 

A regra de competência jurisdicional enunciada no n.° 3 do artigo 5.° da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, não pode interpretar-se no sentido de que autoriza o demandante que invoca um prejuízo que diz ser a consequência do dano sofrido por outras pessoas directamente lesadas pelo facto danoso a accionar o autor deste nos tribunais do lugar onde ele próprio verificou a existência do dano no seu património.

 

Kakouris

Schockweiler

Koopmans

Mancini

Diez de Velasco

Proferido em audiencia pública no Luxemburgo, a 11 de Janeiro de 1990.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Sexta Secção

C. N. Kakouris


( *1 ) Língua do processo: francês.

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