ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

19 de junho de 2025 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Artigo 67.o, n.o 3, e artigo 82.o, n.o 1, TFUE — Cooperação judiciária em matéria penal — Pedido de extradição proveniente de um país terceiro — Cidadão da União — Artigos 18.o e 21.o TFUE — Decisão anterior de outro Estado‑Membro que recusa a extradição por risco sério de violação dos direitos fundamentais — Artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito da pessoa reclamada de não ser extraditada para um Estado onde corra sério risco de ser sujeita a tortura ou a outros tratos desumanos ou degradantes — Artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais — Direito a um processo equitativo — Confiança mútua — Obrigação de tomar em consideração os fundamentos em que se baseou a anterior decisão de recusa de extradição — Inexistência de uma obrigação de reconhecimento mútuo dessa decisão»

No processo C‑219/25 PPU [Kamekris] ( i ),

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela chambre de l’instruction de la cour d’appel de Montpellier (Secção de Instrução Criminal do Tribunal de Recurso de Montpellier, França), por Decisão de 18 de março de 2025, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de março de 2025, no processo relativo à extradição de

KN,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, S. Rodin, N. Piçarra (relator), O. Spineanu‑Matei e N. Fenger, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 8 de maio de 2025,

vistas as observações apresentadas:

em representação de KN, por J.‑C. De Block e M. Poirot, avocats,

em representação do Governo Francês, por B. Dourthe e M. Guiresse, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo Alemão, por J. Möller, M. Hellmann e A. Sahner, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por F. Blanc, J. Hottiaux, H. Leupold e J. Vondung, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 22 de maio de 2025,

profere o presente

Acórdão

1

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 67.o, n.o 3, e do artigo 82.o, n.o 1, TFUE, conjugados com o artigo 19.o e o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um pedido de extradição dirigido pelas autoridades georgianas às autoridades francesas relativamente a KN, cidadão de nacionalidades grega e georgiana, para efeitos da execução, na Geórgia, de uma pena de prisão perpétua.

Quadro jurídico

Convenção Europeia de Extradição

3

A Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris em 13 de dezembro de 1957 (a seguir «Convenção Europeia de Extradição»), na qual são partes, nomeadamente, a República Francesa e a Geórgia, estipula, no seu artigo 1.o, sob a epígrafe «Obrigação de extraditar»:

«As Partes Contratantes comprometem‑se a entregar reciprocamente, segundo as regras e condições determinadas pelos artigos seguintes, as pessoas perseguidas em resultado de uma infração ou procuradas para o cumprimento de uma pena ou medida de segurança pelas autoridades judiciárias da Parte requerente.»

4

Aquando da ratificação desta convenção, a República Francesa formulou, nomeadamente, as duas reservas seguintes:

«A extradição pode ser recusada se a entrega for suscetível de ter consequências excecionalmente graves para a pessoa reclamada, nomeadamente em razão da sua idade ou do seu estado de saúde.

A extradição não será concedida quando a pessoa reclamada for julgada no Estado requerente por um tribunal que não assegure as garantias processuais fundamentais e de proteção do direito de defesa ou por um tribunal instituído para o seu caso específico, ou ainda quando a extradição for pedida para a execução de uma pena ou medida de segurança aplicada por esse tipo de tribunais.»

Direito da União

5

O artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE, dispõe:

«No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.»

6

O artigo 21.o, n.o 1, TFUE prevê:

«Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação.»

7

O artigo 67.o, n.os 1 e 3, TFUE especifica:

«1.   A União [Europeia] constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados‑Membros.

[…]

3.   A União envida esforços para garantir um elevado nível de segurança, através de medidas de prevenção da criminalidade, do racismo e da xenofobia e de combate contra estes fenómenos, através de medidas de coordenação e de cooperação entre autoridades policiais e judiciárias e outras autoridades competentes, bem como através do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal e, se necessário, através da aproximação das legislações penais.»

8

Nos termos do artigo 82.o, n.o 1, TFUE:

«A cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e inclui a aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados‑Membros nos domínios a que se referem o n.o 2 e o artigo 83.o

O Parlamento Europeu e o Conselho [da União Europeia], deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adotam medidas destinadas a:

a)

Definir regras e procedimentos para assegurar o reconhecimento em toda a União de todas as formas de sentenças e decisões judiciais;

[…]»

9

O artigo 19.o da Carta, sob a epígrafe «Proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição», prevê, no seu n.o 2:

«Ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

10

O artigo 47.o da Carta, sob a epígrafe «Direito à ação e a um tribunal imparcial», estabelece, no seu segundo parágrafo:

«Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.»

Direito francês

11

O artigo 696.o‑4 do code de procédure pénale (Código de Processo Penal) prevê:

«Não é autorizada a extradição:

1.o Se a pessoa reclamada tiver a nacionalidade francesa no momento da prática da infração pela qual é pedida a extradição;

[…]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

12

Em 3 de dezembro de 2010, KN, cidadão de nacionalidades grega e georgiana, foi julgado na ausência e condenado numa pena de prisão perpétua pelo Tribunal Municipal de Poti (Geórgia). Esta pena foi confirmada em 3 de junho de 2011 pelo Tribunal de Recurso de Koutaissi (Geórgia), na ausência do arguido. Os factos imputados, cometidos na Geórgia e na Turquia em 2008 e 2009, diziam respeito a tráfico internacional de cocaína em quantidades particularmente elevadas e em associação criminosa, preparação de um homicídio em grupo e à detenção ilegal de armas de fogo.

13

Em 2 de julho de 2021, as autoridades georgianas solicitaram à Interpol a difusão de um «alerta vermelho» a respeito de KN, correspondente a um pedido de detenção para efeitos de extradição, com fundamento no Acórdão do Tribunal de Recurso de Koutaissi de 3 de junho de 2011.

14

Em 4 de outubro de 2021, KN foi detido na Bélgica, onde residia, com base nesse «alerta vermelho». Em 13 de outubro de 2021, a Procuradoria da Geórgia apresentou um pedido de extradição às autoridades belgas. Inicialmente colocado em prisão preventiva para efeitos de extradição, KN foi libertado mas mantido sob vigilância judicial a partir de 29 de outubro de 2021, enquanto era aguardada uma decisão dos órgãos jurisdicionais belgas sobre o pedido de extradição.

15

Em 20 de janeiro de 2025, KN foi detido em França com base no referido «alerta vermelho». No dia seguinte, as autoridades georgianas apresentaram às autoridades francesas um pedido de extradição análogo ao apresentado às autoridades belgas e KN foi colocado em prisão preventiva para efeitos de extradição em França.

16

Por Acórdão de 19 de fevereiro de 2025, a chambre des mises en accusation de la cour d’appel de Bruxelles (Secção de Acusação do Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica), recusou, com fundamento na legislação belga relativa às extradições e no artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), o pedido de extradição apresentado pelas autoridades georgianas, considerando que existiam motivos sérios para recear que a extradição de KN para a Geórgia o exporia a denegação de justiça e a um risco real de tratos desumanos ou degradantes.

17

Em 28 de fevereiro de 2025, no âmbito do processo de extradição iniciado em França, KN compareceu perante o Procurador‑Geral de Montpellier (França) e declarou não consentir na sua extradição.

18

Na sequência desta recusa, em 1 de março de 2025 KN foi apresentado à chambre de l’instruction de la cour d’appel de Montpellier (Secção de Instrução Criminal do Tribunal de Recurso de Montpellier, França), que é o órgão jurisdicional de reenvio. O mesmo sustenta perante esse órgão jurisdicional que o direito da União, em especial os princípios da confiança mútua e do reconhecimento mútuo das decisões judiciais tomadas pelos Estados‑Membros, impõem às autoridades francesas que reconheçam o Acórdão da chambre des mises en accusation da cour d’appel de Bruxelles (Secção de Acusação do Tribunal de Recurso de Bruxelas) de 19 de fevereiro de 2025 e que, por conseguinte, recusem a sua extradição para a Geórgia. Este acórdão, de natureza penal, reconheceu‑lhe um direito garantido pela União, designadamente, o de não ser extraditado para um país terceiro se existir um risco real de aí ser exposto a tratos desumanos ou degradantes ou a denegação de justiça.

19

No órgão jurisdicional de reenvio, o Procurador‑Geral de Montpellier sublinhou que o tratamento deste pedido de extradição pelas autoridades francesas está subordinado ao respeito dos artigos 3.o e 6.o da CEDH e que KN, cidadão de nacionalidades grega e georgiana, tinha invocado a existência de risco sério de ser exposto não só a denegação de justiça, mas também a tratos desumanos ou degradantes devido às condições de detenção na Geórgia. Tendo em conta a instabilidade política nesse país desde novembro de 2024, este magistrado convidou aquele órgão jurisdicional a declarar que não estava em condições de obter garantias fiáveis por parte das autoridades georgianas de respeito dos direitos previstos nesses artigos.

20

O órgão jurisdicional de reenvio recorda que o artigo 1.o da Convenção Europeia de Extradição, da qual a Geórgia é parte enquanto membro do Conselho da Europa, impõe a extradição da pessoa reclamada quando estejam preenchidos os requisitos legais, sem prejuízo das exceções previstas e das reservas formuladas pelas partes contratantes. Esse órgão jurisdicional sublinha que a República Francesa formulou reservas segundo as quais a extradição não é autorizada quando a pessoa reclamada for julgada por um tribunal que não garante os direitos fundamentais de defesa e pode ser recusada se for suscetível de ter consequências excecionalmente graves para essa pessoa.

21

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o Acórdão da chambre des mises en accusation da cour d’appel de Bruxelles (Secção de Acusação do Tribunal de Recurso de Bruxelas) de 19 de fevereiro de 2025, no qual foi declarado que, em caso de extradição para a Geórgia, KN ficaria exposto a um risco sério de denegação de justiça e de ser sujeito a tortura ou a tratos desumanos ou degradantes, não faz caso julgado para os órgãos jurisdicionais franceses, por força dos princípios da confiança mútua e do reconhecimento mútuo. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, só quando esse reconhecimento estiver expressamente previsto no direito da União é que os órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro são obrigados, em conformidade com esses princípios, a reconhecer a força de caso julgado das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro.

22

Nestas circunstâncias, a chambre de l’instruction de la cour d’appel de Montpellier (Secção de Instrução Criminal do Tribunal de Recurso de Montpellier) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem [o] [artigo] 67.o, n.o 3, e [o artigo] 82.o, n.o 1, TFUE, conjugados com os artigos 19.o e 47.o da [Carta], ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro é obrigado a recusar a execução de um pedido de extradição de um cidadão da União Europeia para um [país] terceiro quando outro Estado‑Membro tenha previamente recusado a execução do mesmo pedido de extradição com o fundamento de que a entrega da pessoa em causa comportaria o risco de violar o direito fundamental de não ser sujeito a tortura ou tratos desumanos ou degradantes[,] consagrado no artigo 19.o da [Carta], e o direito a um processo equitativo consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da [Carta]?»

Quanto ao pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente

23

O órgão jurisdicional de reenvio solicitou a aplicação da tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

24

Resulta destas disposições que a aplicação desta tramitação está subordinada a dois requisitos cumulativos. Por um lado, o reenvio prejudicial deve suscitar questões de interpretação relativas ao espaço de liberdade, segurança e justiça, objeto do título V da parte III do Tratado FUE. Por outro lado, as circunstâncias do litígio no processo principal, descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio, devem ser caracterizadas pela presença de uma situação de urgência.

25

Quanto ao primeiro requisito, há que salientar que o presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto, nomeadamente, a interpretação do artigo 67.o, n.o 3, e do artigo 82.o, n.o 1, TFUE, disposições integradas no título V da parte III deste Tratado, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. Por conseguinte, este pedido é suscetível de ser sujeito à tramitação prejudicial urgente.

26

No que respeita ao segundo requisito, relativo à urgência, resulta de jurisprudência constante que este requisito está preenchido quando a pessoa em causa estiver atualmente privada da sua liberdade e a sua permanência em prisão preventiva depender da solução do litígio no processo principal, precisando‑se que a situação dessa pessoa deve ser apreciada tal como se apresenta à data da análise do pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente (v., nomeadamente, Acórdão de 29 de julho de 2024, Breian, C‑318/24 PPU, EU:C:2024:658, n.o 26 e jurisprudência referida).

27

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que KN se encontra detido para efeitos de extradição desde 21 de janeiro de 2025, pelo que está atualmente privado da sua liberdade. Por outro lado, a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio visa determinar se deve recusar a extradição dessa pessoa com fundamento no direito da União. Uma resposta afirmativa a esta questão pelo Tribunal de Justiça levará, portanto, em princípio, à libertação de KN.

28

Nestas circunstâncias, em 3 de abril de 2025, a Terceira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta do juiz‑relator, ouvida a advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio para que o presente reenvio prejudicial seja submetido à tramitação prejudicial urgente.

Quanto à questão prejudicial

29

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 67.o, n.o 3, e o artigo 82.o, n.o 1, TFUE devem ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro é obrigado a recusar a extradição para um país terceiro de um nacional de outro Estado‑Membro quando as autoridades de um terceiro Estado‑Membro tenham previamente recusado executar um pedido de extradição, proveniente desse país terceiro e destinado a dar execução à mesma pena aplicada a esse nacional de outro Estado‑Membro, devido à existência de um risco sério de violação dos direitos fundamentais garantidos pelo artigo 19.o, n.o 2, e pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta.

30

A título preliminar, há que recordar que, não havendo acordo de extradição entre a União e o Estado terceiro em causa, as regras em matéria de extradição são da competência dos Estados‑Membros [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 26, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 28].

31

No entanto, os Estados‑Membros são obrigados a exercer essa competência no respeito pelo direito da União, nomeadamente no que se refere à proibição de discriminação prevista no artigo 18.o TFUE, bem como à liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros, garantida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE [v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Pedido de extradção para a Bósnia‑Herzegovina), C‑237/21, EU:C:2022:1017, n.o 29].

Quanto à interpretação dos artigos 18.o e 21.o TFUE

32

Em primeiro lugar, importa salientar que, em razão da sua qualidade de cidadão da União, o nacional de um Estado‑Membro que circule ou resida legalmente no território de outro Estado‑Membro tem o direito de invocar o artigo 21.o, n.o 1, TFUE e está abrangido pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, que contém o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade [v., neste sentido, Acórdãos de 13 de novembro de 2018, Raugevicius, C‑247/17, EU:C:2018:898, n.o 27, e de 22 de dezembro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Pedido de extradição para a Bósnia‑Herzegovina), C‑237/21, EU:C:2022:1017, n.o 30].

33

A circunstância de o nacional de um Estado‑Membro, que não o Estado‑Membro a quem foi submetido o pedido de extradição que lhe diz respeito, ter igualmente a nacionalidade do país terceiro autor desse pedido não impede esse nacional de invocar os direitos e liberdades conferidos pelo estatuto de cidadão da União, nomeadamente os garantidos pelos artigos 18.o e 21.o, n.o 1, TFUE. Com efeito, a circunstância de a pessoa reclamada ser simultaneamente nacional de um Estado‑Membro e de um país terceiro não a pode privar desses direitos e liberdades [v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Pedido de extradição para a Bósnia‑Herzegovina), C‑237/21, EU:C:2022:1017, n.o 31 e jurisprudência referida].

34

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que KN, que tem nomeadamente a nacionalidade grega, exerceu, enquanto cidadão da União, o seu direito, previsto no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, de circular livremente noutro Estado‑Membro, pelo que a sua situação está abrangida pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, que proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade, apesar de ter igualmente a nacionalidade do país terceiro que emitiu o pedido para a sua extradição.

35

Por outro lado, a circunstância de KN não residir de modo permanente no território da República Francesa no momento em que foi submetido às autoridades deste Estado‑Membro o pedido de extradição que é objeto do processo principal, mas no território do Reino da Bélgica, não é suscetível de infirmar esta conclusão. Com efeito, o caráter transitório da residência no território do Estado‑Membro requerido não é suscetível de excluir a situação do nacional de outro Estado‑Membro, visado por esse pedido, do âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2018, Pisciotti, C‑191/16, EU:C:2018:222, n.o 34).

36

Em segundo lugar, o Governo Francês esclareceu que, em conformidade com o artigo 696.o‑4, 1.o, do code de procédure pénale (Código de Processo Penal), a República Francesa não procede à extradição dos seus próprios nacionais para um país terceiro, não se opondo esta disposição a que esse Estado‑Membro proceda, em contrapartida, à extradição para um país terceiro dos nacionais dos outros Estados‑Membros, com vista à execução de uma pena aplicada nesse país.

37

Ora, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que uma regra nacional que proíbe a extradição apenas dos nacionais do Estado‑Membro em causa introduz uma diferença de tratamento consoante a pessoa reclamada seja nacional desse Estado‑Membro ou nacional de outro Estado‑Membro e cria, assim, uma desigualdade de tratamento suscetível de afetar a liberdade destes últimos de circular e de residir na União (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 32, e de 13 de novembro de 2018, Raugevicius, C‑247/17, EU:C:2018:898, n.o 28).

38

Daqui resulta que, numa situação como a que está em causa no processo principal, a desigualdade de tratamento consistente em permitir a extradição de um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, como KN, se traduz numa restrição à liberdade de circulação, na aceção do artigo 21.o TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 33, e de 13 de novembro de 2018, Raugevicius, C‑247/17, EU:C:2018:898, n.o 30).

39

No caso em apreço, embora o órgão jurisdicional de reenvio não interrogue o Tribunal de Justiça sobre a justificação dessa restrição havendo uma razão imperiosa de interesse geral, pergunta, todavia, se certos direitos fundamentais previstos pela Carta podem obstar a uma extradição como a que está em causa no processo principal.

Quanto à análise de um risco sério de violação dos direitos fundamentais

40

Quando uma legislação nacional for suscetível de limitar o exercício de uma ou de várias liberdades fundamentais garantidas pelos Tratados, no caso em apreço o direito de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros previsto no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, essa legislação só pode ser justificada à luz do direito da União se for conforme com os direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 18 de junho de 1991, ERT, C‑260/89, EU:C:1991:254, n.os 42 e 43). Além disso, segundo jurisprudência constante, deve considerar‑se que tal legislação «aplica o direito da União», na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de setembro de 2023, Bezirkshauptmannschaft Feldkirch, C‑55/22, EU:C:2023:670, n.o 29, e de 12 de dezembro de 2024, Nemzeti Földügyi Központ, C‑419/23, EU:C:2024:1016, n.o 60 e jurisprudência referida).

41

Daqui resulta que o Estado‑Membro requerido, que não extradita os seus próprios nacionais, é obrigado a analisar, antes de decidir extraditar o nacional de outro Estado‑Membro, nos termos nomeadamente da Convenção Europeia de Extradição, se essa decisão, que constitui uma aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, pode violar os direitos fundamentais garantidos por esta, nomeadamente no seu artigo 47.o, segundo parágrafo, que consagra o direito fundamental a um processo equitativo, ou o seu artigo 19.o, n.o 2, nos termos do qual ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes [v., neste sentido, Acórdãos de 13 de novembro de 2018, Raugevicius, C‑247/17, EU:C:2018:898, n.o 49, e de 22 de dezembro de 2022, Generalstaatsanwaltschaft München (Pedido de extradição para a Bósnia‑Herzegovina), C‑237/21, EU:C:2022:1017, n.o 55].

42

Para este efeito, a autoridade competente do Estado‑Membro requerido tem de se basear em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados. Estes elementos podem resultar, nomeadamente, de decisões judiciais internacionais, como acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, decisões judiciais do país terceiro requerente, bem como decisões, relatórios e outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou no âmbito do sistema das Nações Unidas. A existência de declarações e a aceitação de tratados internacionais que garantem, em princípio, o respeito dos direitos fundamentais não são suficientes, por si só, para garantir uma proteção adequada da pessoa reclamada contra o risco de tratos desumanos ou degradantes, quando fontes fidedignas derem conta de práticas das autoridades desse país terceiro — ou por estas toleradas — que são manifestamente contrárias aos princípios da CEDH (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.os 57 e 59).

43

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o artigo 67.o, n.o 3, e o artigo 82.o, n.o 1, TFUE lhe impõem que reconheça o Acórdão da chambre des mises en accusation da cour d’appel de Bruxelles (Secção de Acusação do Tribunal de Recurso de Bruxelas) de 19 de fevereiro de 2025, referido no n.o 16 do presente acórdão, no qual esse órgão jurisdicional recusou a extradição de KN com o fundamento de que a mesma o exporia a um risco sério de violação do direito fundamental a não ser sujeito a tortura ou a tratos desumanos ou degradantes, consagrado no artigo 19.o, n.o 2, da Carta, bem como do direito fundamental a um processo equitativo, previsto no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta.

44

A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que nem o artigo 67.o, n.o 3, nem o artigo 82.o, n.o 1, TFUE podem servir de base a uma obrigação de reconhecimento mútuo de decisões de recusa, adotadas pelos Estados‑Membros, de um pedido de extradição proveniente de um país terceiro.

45

Com efeito, por um lado, o artigo 67.o, n.o 3, TFUE dispõe que «[a] União envida esforços para garantir um elevado nível de segurança, através de medidas de prevenção da criminalidade, do racismo e da xenofobia e de combate contra estes fenómenos», nomeadamente «através do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal» e, «se necessário, através da aproximação das legislações penais» dos Estados‑Membros. Por outro lado, o artigo 82.o, n.o 1, primeiro parágrafo, TFUE prevê que «a cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e inclui a aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados‑Membros», nomeadamente as referidas no segundo parágrafo, alínea a), deste artigo 82.o, n.o 1, nos termos do qual «o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adotam as medidas destinadas a definir regras e procedimentos para assegurar o reconhecimento em toda a União de todas as formas de sentenças e decisões judiciais».

46

Resulta da redação destas disposições que estas não estabelecem, enquanto tais, uma obrigação de reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais em matéria penal adotadas nos Estados‑Membros, limitando‑se a prever que a cooperação judiciária em matéria penal na União se baseia no princípio desse reconhecimento. O artigo 82.o, n.o 1, segundo parágrafo, alínea a), TFUE limita‑se, assim, a prever que o Parlamento e o Conselho adotam as medidas destinadas a definir regras e procedimentos para assegurar o reconhecimento de todas as formas de sentenças e decisões judiciais.

47

Em segundo lugar, embora o direito da União inclua vários instrumentos de direito derivado que preveem uma obrigação de reconhecimento mútuo de certas sentenças e decisões judiciais em matéria penal, nomeadamente a Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), bem como a Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27), impõe‑se constatar que nenhum ato de direito da União prevê uma obrigação de reconhecimento mútuo das decisões adotadas pelos Estados‑Membros relativamente a pedidos de extradição provenientes de um país terceiro.

48

Por conseguinte, o princípio do reconhecimento mútuo não se aplica às decisões de recusa de pedidos de extradição proferidas pelos Estados‑Membros.

49

Em contrapartida, o princípio da confiança mútua impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que cada Estado‑Membro considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, muito em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por este direito (Acórdão de 29 de julho de 2024, Alchaster, C‑202/24, EU:C:2024:649, n.o 57, e de 29 de julho de 2024, Breian, C‑318/24 PPU, EU:C:2024:658, n.o 36).

50

No que se refere ao mandado de detenção europeu regido pela Decisão‑Quadro 2002/584, o Tribunal de Justiça declarou que este princípio exige, perante uma decisão de não execução desse mandado proferida noutro Estado‑Membro em razão da existência de um risco de violação do direito fundamental a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que a autoridade de execução de um Estado‑Membro a quem foi apresentado um novo pedido de entrega da pessoa em causa tenha devidamente em conta os motivos subjacentes a essa decisão, no âmbito da sua própria verificação da existência de um motivo de não execução (Acórdão de 29 de julho de 2024, Breian, C‑318/24 PPU, EU:C:2024:658, n.o 46).

51

Pelas mesmas razões, deve considerar‑se que o princípio da confiança mútua exige, perante uma decisão de recusa de extradição da pessoa reclamada para um país terceiro, adotada por um Estado‑Membro em razão de um risco sério incorrido por esta de violação do direito fundamental a não ser sujeita a tortura ou a tratos desumanos ou degradantes, consagrado no artigo 19.o, n.o 2, da Carta, bem como do direito fundamental a um processo equitativo, previsto no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que a autoridade competente de outro Estado‑Membro, à qual foi submetido um novo pedido de extradição proveniente do mesmo país terceiro e que visa a mesma pessoa, tenha devidamente em conta os motivos subjacentes a essa decisão de recusa, no âmbito da sua própria análise da existência de um risco de violação dos direitos fundamentais garantidos pela Carta.

52

Com efeito, como sublinhou a advogada‑geral no n.o 49 das conclusões, uma decisão anterior de recusa de extradição, adotada noutro Estado‑Membro com base na existência de um risco sério de violação dos direitos fundamentais garantidos pela Carta, faz parte dos elementos, referidos pela jurisprudência recordada no n.o 42 do presente acórdão, que o Estado‑Membro que recebeu um novo pedido de extradição deve ter em conta no âmbito da sua própria análise.

53

Tendo em conta todos os fundamentos precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 67.o, n.o 3, e o artigo 82.o, n.o 1, TFUE devem ser interpretados no sentido de que um Estado‑Membro não é obrigado a recusar a extradição para um país terceiro de um nacional de outro Estado‑Membro quando as autoridades de um terceiro Estado‑Membro tenham previamente recusado executar um pedido de extradição, proveniente desse país terceiro e destinado a dar execução à mesma pena aplicada a esse nacional de outro Estado‑Membro, devido à existência de um risco sério de violação dos direitos fundamentais garantidos pelo artigo 19.o, n.o 2, e pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta.

Quanto às despesas

54

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O artigo 67.o, n.o 3, e o artigo 82.o, n.o 1, TFUE

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

um Estado‑Membro não é obrigado a recusar a extradição para um país terceiro de um nacional de outro Estado‑Membro quando as autoridades de um terceiro Estado‑Membro tenham previamente recusado executar um pedido de extradição, proveniente desse país terceiro e destinado a dar execução à mesma pena aplicada a esse nacional de outro Estado‑Membro, devido à existência de um risco sério de violação dos direitos fundamentais garantidos pelo artigo 19.o, n.o 2, e pelo artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

( i ) O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.