CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 10 de maio de 2016 ( 1 )

Processo C‑182/15

Aleksei Petruhhin

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Augstākā tiesa (Supremo Tribunal, Letónia)]

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União Europeia — Artigo 18.o, primeiro parágrafo, e artigo 21.o, n.o 1, TFUE — Pedido de extradição para a Rússia de um nacional de um Estado‑Membro que se encontra no território de outro Estado‑Membro — Recusa de um Estado‑Membro de extraditar os seus próprios nacionais — Diferença de tratamento em razão da nacionalidade — Justificação — Luta contra a impunidade — Verificação das garantias previstas no artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

1. 

A extradição pode ser definida como um procedimento de auxílio mútuo repressivo internacional pelo qual um Estado pede a outro Estado a entrega de uma pessoa que se encontra no território do segundo para efeitos de ação penal contra essa pessoa, para a julgar ou, se já tiver sido condenada, para a obrigar a cumprir a pena que lhe foi aplicada.

2. 

O presente processo diz respeito a um pedido de extradição dirigido pela Federação da Rússia à República da Letónia relativamente a um nacional estónio que foi detido no território deste Estado‑Membro.

3. 

Pede‑se, em substância, que o Tribunal de Justiça declare se a proteção contra a extradição de que beneficiam os nacionais letões ao abrigo do seu direito nacional e de um acordo bilateral celebrado com a Federação da Rússia deve, nos termos das regras do Tratado FUE relativas à cidadania da União, ser alargada aos nacionais de outros Estados‑Membros.

4. 

Alguns Estados‑Membros, entre os quais a República da Letónia, preveem, no seu direito nacional e nas convenções internacionais de que são partes, o princípio da recusa de extradição dos seus nacionais. Sempre que é dirigido a um Estado‑Membro um pedido de extradição relativo a um cidadão da União que não é nacional desse Estado, esse princípio introduz uma diferença de tratamento entre os nacionais do referido Estado e os dos outros Estados‑Membros. No entanto, em nosso entender, essa diferença de tratamento não constitui uma discriminação em razão da nacionalidade contrária ao artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE, desde que se demonstre que essas duas categorias de nacionais não se encontram numa situação comparável à luz do objetivo que consiste em lutar contra a impunidade das pessoas suspeitas de terem cometido uma infração num Estado terceiro.

I – Quadro jurídico

A – Direito da União

5.

O artigo 19.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ( 2 ), intitulado «Proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição», dispõe, no seu n.o 2:

«Ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

B – Direito letão

6.

A Constituição letã dispõe, no artigo 98.o, terceira frase:

«A extradição de cidadãos letões para outros países não é concedida, a não ser nos casos previstos em acordos internacionais ratificados pelo Saeima (Parlamento), e desde que a extradição não viole os direitos fundamentais consagrados na Constituição.»

7.

Nos termos do artigo 4.o do Krimināllikums (Lei penal, a seguir «Lei penal letã»):

«1.   Os cidadãos e os não‑cidadãos letões [ ( 3 )], bem como os estrangeiros titulares de uma autorização de residência permanente na Letónia devem ser considerados responsáveis no território letão, a título da presente lei, por atos cometidos no território de outro Estado ou fora de qualquer território nacional, quer esse ato seja considerado ou não como uma infração e punível no local onde foi cometido.

[...]

3.   Os estrangeiros não titulares de uma autorização de residência permanente na Letónia que tenham cometido, no território de outro Estado, infrações graves ou muito graves atentórias dos interesses da República da Letónia ou dos seus habitantes devem, independentemente da legislação do Estado no território do qual a infração foi cometida, ser considerados criminalmente responsáveis a título da presente lei, se não forem considerados criminalmente responsáveis ou julgados em aplicação da legislação do Estado do local onde a infração foi cometida.

4.   Os estrangeiros não titulares de uma autorização de residência permanente na Letónia que tenham cometido uma infração no território de outro Estado ou fora de qualquer território nacional devem, independentemente da legislação do Estado no território do qual a infração foi cometida, ser considerados responsáveis a título da presente lei nos casos previstos pelos acordos internacionais que vinculam a República da Letónia, se não forem considerados criminalmente responsáveis pela referida infração ou julgados por causa desta no território de outro Estado.»

8.

O capítulo 66 do Latvijas Kriminālprocesa likums (Código de Processo Penal, a seguir «Código de Processo Penal letão»), intitulado «Da extradição para outros países» dispõe, no seu artigo 696.o, n.os 1 e 2:

«1.   Pode ser concedida a extradição de uma pessoa que se encontre em território da Letónia para efeitos de procedimento penal, de julgamento ou de execução de uma sentença, se tiver sido recebido um pedido para lhe ser aplicada a prisão preventiva ou se outro país tiver requerido a sua extradição baseada em factos tipificados como crime na legislação letã e na de esse outro país.

2.   Pode ser concedida a extradição de uma pessoa para efeitos de procedimento penal ou julgamento por atos cuja prática seja punida com pena privativa de liberdade, cuja duração máxima não seja inferior a um ano, ou com uma pena mais grave, salvo disposição em contrário de um acordo internacional.»

9.

O artigo 697.o, n.o 2, do Código de Processo Penal letão tem a seguinte redação:

«A extradição não é concedida nos seguintes casos:

1)

quando a pessoa seja cidadão da Letónia;

2)

quando o pedido de extradição da pessoa em causa tenha por objetivo perseguir criminalmente ou punir essa pessoa em razão da raça, religião, nacionalidade ou opiniões políticas, ou quando haja fundados motivos para crer que os direitos da pessoa possam ser violados por essas razões;

[...]

7)

quando exista a possibilidade de a pessoa ser submetida a tortura no Estado estrangeiro.»

10.

O Acordo de 3 de fevereiro de 1993 entre a República da Letónia e a Federação da Rússia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias em matéria de direito civil, da família e penal, dispõe, nos seus artigos 1.° e 62.°:

«Artigo 1.o Proteção jurídica

1.   Os nacionais de uma Parte Contratante gozam, no território da outra Parte Contratante, da mesma proteção jurídica dos seus direitos pessoais e patrimoniais que os nacionais da outra Parte Contratante.

2.   Os nacionais de uma Parte Contratante têm o direito de aceder livremente e sem qualquer restrição aos tribunais da outra Parte Contratante, ao Ministério Público, aos notários [...] e a outras instituições competentes em matéria de direito civil, da família e penal, perante os quais podem agir, apresentar pedidos, interpor recursos e proceder a outros atos processuais nas mesmas condições que os nacionais.

[...]

Artigo 62.o Recusa de extradição

1.   A extradição não é concedida quando:

1)

a pessoa cuja extradição é requerida for nacional da Parte Contratante à qual o pedido foi apresentado ou se a pessoa tiver o estatuto de refugiado nesse país.

[...]»

11.

O Acordo entre a República da Lituânia, a República da Estónia e a República da Letónia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias, assinado em Tallinn, em 11 de novembro de 1992, prevê, no seu artigo 1.o, n.o 1:

«Os nacionais de uma Parte Contratante gozam, no território da outra Parte Contratante, da mesma proteção jurídica dos seus direitos pessoais e patrimoniais que os nacionais desta outra Parte Contratante.»

II – Matéria de facto do processo principal e questões prejudiciais

12.

Aleksei Petruhhin, nacional estónio, foi objeto de um mandado de captura prioritário publicado no sítio Internet da Interpol, em 22 de julho de 2010.

13.

A. Petruhhin foi detido em 30 de setembro de 2014, na cidade de Bauska (Letónia), e foi colocado em prisão preventiva.

14.

Em 21 de outubro de 2014, as autoridades letãs receberam um pedido de extradição da Procuradoria‑Geral da Federação da Rússia. Resulta desse pedido que foram intentados processos penais contra A. Petruhhin por decisão de 9 de fevereiro de 2009, e que lhe foi aplicada uma medida de segurança privativa da liberdade. Segundo essa decisão, A. Petruhhin era acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes em grande escala mediante associação criminosa, na forma tentada. Segundo a legislação russa, esta infração é punível com uma pena de privação da liberdade de 8 a 20 anos.

15.

A Procuradoria‑Geral da República da Letónia autorizou a extradição de A. Petruhhin para a Rússia. Todavia, em 4 de dezembro de 2014, A. Petruhhin pediu a anulação da decisão de extradição com fundamento em que, nos termos do artigo 1.o do Acordo entre a República da Lituânia, a República da Estónia e a República da Letónia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias, gozava, na Letónia, dos mesmos direitos que um nacional letão e que, por conseguinte, a República da Letónia tinha a obrigação de o proteger face a uma extradição injustificada.

16.

O Augstākā tiesa (Supremo Tribunal, Letónia) sublinha que nem o direito letão nem nenhum dos acordos internacionais assinados pela República da Letónia, designadamente com a Federação da Rússia e com os outros países bálticos, preveem limitações à extradição de um nacional estónio para a Rússia. Nos termos do artigo 62.o do Acordo de 3 de fevereiro de 1993 entre a República da Letónia e a Federação da Rússia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias em matéria de direito civil, da família e penal, a proteção contra essa extradição só está prevista relativamente aos nacionais letões.

17.

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que a Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros ( 4 ), autoriza a os Estados‑Membros a entregarem os respetivos nacionais, mas em contrapartida não foi instituído nenhum mecanismo de consulta mútua entre os Estados‑Membros para obter o consentimento do Estado‑Membro de que a pessoa em causa é nacional no que respeita à sua extradição para um Estado terceiro.

18.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta das considerações precedentes que a proteção concedida por um Estado‑Membro aos seus próprios nacionais contra a extradição para um Estado terceiro só produz efeitos no território desse Estado‑Membro. Na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, esta situação é, contudo, contrária à essência da cidadania da União Europeia, ou seja, o direito a uma proteção equivalente. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que essa situação cria nos cidadãos da União Europeia uma incerteza quanto à liberdade de circulação na União Europeia.

19.

O órgão jurisdicional de reenvio é de opinião que, por força do direito da União, em caso de pedido de extradição de um nacional de um Estado‑Membro da União Europeia para um Estado terceiro, o Estado‑Membro requerido deve garantir aos cidadãos da União o mesmo nível de proteção que confere aos seus próprios nacionais.

20.

No entanto, por ter dúvidas sobre a interpretação do direito da União, o Augstākā tiesa (Supremo Tribunal) decidiu, em 26 de março de 2015, anular a detenção de A. Petruhhin, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem os artigos 18.°, primeiro parágrafo, e 21.°, n.o 1, [TFUE] ser interpretados no sentido de que, para efeitos da aplicação de um acordo de extradição celebrado entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro, em caso de extradição de um cidadão de qualquer Estado‑Membro da União Europeia para um Estado terceiro, deve ser garantido a esse cidadão o mesmo nível de proteção que o conferido aos cidadãos do Estado‑Membro em questão?

2)

Nesse caso, deve o órgão jurisdicional do Estado‑Membro [ao qual foi apresentado o pedido de extradição] aplicar os requisitos de extradição do Estado [da nacionalidade ou da residência habitual do interessado]?

3)

Nos casos em que se deva proceder à extradição sem ter em consideração o nível de proteção especial previsto para os cidadãos do Estado requerido, deve esse Estado‑Membro verificar a observância das garantias previstas no artigo 19.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, isto é, que ninguém pode ser extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes? Pode esta verificação limitar‑se a comprovar que o Estado requerente é parte contratante na Convenção contra a Tortura ou há que analisar a situação concreta, tendo em conta a avaliação desse Estado efetuada pelo Conselho da Europa?»

III – Análise

A – Observações preliminares

1. Quanto à aplicação eventual do artigo 1.o, n.o 1, do Acordo entre a República da Lituânia, a República da Estónia e a República da Letónia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias, para resolver o litígio no processo principal

21.

A. Petruhhin, no recurso que interpôs contra a decisão da Procuradoria‑Geral da República da Letónia que autoriza a sua extradição, apoia‑se, designadamente, no artigo 1.o, n.o 1, do Acordo entre a República da Lituânia, a República da Estónia e a República da Letónia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias. Alega, com base nesta disposição, que deveria beneficiar, na República da Letónia, da mesma proteção que este Estado‑Membro assegura aos seus nacionais em caso de ações penais. Daqui decorre que o referido Estado‑Membro tem a obrigação de defender A. Petruhhin contra um pedido de extradição injustificado e que este último tem a legítima expectativa de que a República da Letónia envide todos os esforços para obter as provas da sua culpa ou da sua inocência. Ora, na sua opinião, resulta da posição adotada pela Procuradoria‑Geral da República da Letónia que não será tomada nenhuma medida para verificar da forma mais exaustiva e precisa possível as infrações de que é acusado no território russo.

22.

Na audiência, o Governo letão foi interrogado sobre a questão de saber se o artigo 1.o, n.o 1, do Acordo entre a República da Lituânia, a República da Estónia e a República da Letónia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias, pode ser interpretado no sentido de que confere aos nacionais estónios e lituanos a mesma proteção contra a extradição de que beneficiam os nacionais letões. A este respeito, o Governo letão indicou que, até ao presente, a jurisprudência letã não interpretou essa disposição no sentido de conceder garantias adicionais aos nacionais estónios e lituanos de não serem extraditados pela República da Letónia.

23.

Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se pode solucionar o litígio no processo principal interpretando o artigo 1.o, n.o 1, do Acordo entre a República da Lituânia, a República da Estónia e a República da Letónia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias. Cabe‑lhe, em especial, analisar se a expressão «direitos pessoais», constante dessa disposição, abrange o direito de beneficiar de uma proteção jurídica contra a extradição.

2. Quanto à admissibilidade do reenvio prejudicial

24.

Na audiência, o Governo letão deu a entender que A. Petruhhin já não se encontrava no seu território, mas que tinha regressado à Estónia, após a anulação da sua detenção ocorrida em 26 de março de 2015. Os governos dos Estados‑Membros que apresentaram observações na audiência deduziram daí que o presente reenvio prejudicial deveria ser declarado inadmissível.

25.

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o processo previsto no artigo 267.o TFUE constitui um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a decisão das causas que lhes são submetidas ( 5 ).

26.

No quadro desta cooperação, compete apenas ao juiz nacional, ao qual o litígio foi submetido e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se ( 6 ).

27.

Daqui resulta que as questões relativas à interpretação do direito da União, colocadas pelo juiz nacional no quadro factual e normativo que define sob sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar a responder a uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando é manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema é hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas ( 7 ).

28.

Assim, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, resulta simultaneamente dos termos e da economia do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe que um litígio esteja efetivamente pendente nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual eles são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão prejudicial ( 8 ).

29.

É esse o caso no presente processo. Com efeito, o Governo letão confirmou, na audiência, que o processo ainda está pendente no órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, independentemente da incerteza quanto ao lugar onde se encontra atualmente A. Petruhhin, o órgão jurisdicional de reenvio deve pronunciar‑se sobre a legalidade da decisão tomada pela Procuradoria‑Geral da República da Letónia de o extraditar. Nos termos do artigo 707.o do Código de Processo Penal letão, o órgão jurisdicional de reenvio pode decidir que a decisão do Procurador se mantenha, ou que seja anulada e que a extradição não deve ser autorizada, ou ainda que o pedido de extradição seja submetido a um exame complementar. Na perspetiva da decisão que o órgão jurisdicional de reenvio deve tomar, a resposta do Tribunal de Justiça às questões prejudiciais apresentadas mantém toda a sua utilidade. Como acontece no caso de uma condenação seguida de uma fuga da pessoa condenada, tal decisão poderá ser executada posteriormente a qualquer momento, se for caso disso, após nova detenção de A. Petruhhin no território letão.

30.

Por conseguinte, à luz destes elementos, consideramos que o presente reenvio prejudicial é admissível.

B – Quanto à primeira e segunda questões

31.

Na sua primeira questão e na segunda, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que declare se o artigo 18.o, primeiro parágrafo, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE devem ser interpretados no sentido de que um nacional de um Estado‑Membro que se encontra no território de outro Estado‑Membro e cuja extradição é requerida por um Estado terceiro deve beneficiar da mesma regra que protege os nacionais desse outro Estado‑Membro contra a extradição.

32.

A título liminar, importa verificar se a situação de A. Petruhhin se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União, em especial das disposições do Tratado FUE relativas à cidadania da União.

33.

Todos os governos que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, à exceção do Governo do Reino Unido, sustentam que as regras relativas à extradição, numa situação em que a União não celebrou nenhum acordo nessa matéria com um Estado terceiro, são da competência dos Estados‑Membros e estão fora do âmbito de aplicação do direito da União.

34.

Não somos dessa opinião. Em contrapartida, partilhamos da posição expressa pelo Governo do Reino Unido na audiência, a saber, que o artigo 18.o, primeiro parágrafo, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE são aplicáveis na medida em que A. Petruhhin exerceu o seu direito de livre circulação ou de residência ao abrigo do direito da União e que portanto tem, em princípio, direito a um tratamento idêntico ao que recebem os nacionais do Estado‑Membro de acolhimento.

35.

Com efeito, há que sublinhar que, enquanto nacionais estónios, A. Petruhhin goza do estatuto de cidadão da União nos termos do artigo 20.o, n.o 1, TFUE e, portanto, pode beneficiar dos direitos inerentes a esse estatuto, quer relativamente ao seu Estado‑Membro de origem quer relativamente ao Estado‑Membro no qual se encontra.

36.

Como o Tribunal de Justiça já afirmou reiteradamente, o estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros, permitindo aos que, de entre estes últimos, se encontrem na mesma situação obter, no domínio de aplicação ratione materiae do Tratado FUE, independentemente da sua nacionalidade e sem prejuízo das exceções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico ( 9 ).

37.

Além disso, dado que a cidadania da União prevista no artigo 20.o TFUE não tem por objetivo alargar o âmbito de aplicação material do Tratado FUE a situações internas sem qualquer conexão com o direito da União ( 10 ), há que verificar se esses elementos de conexão existem.

38.

Sobre este aspeto, os governos dos Estados‑Membros reiteraram, no quadro do presente processo, a posição clássica neste tipo de casos, a saber, que é necessário, para que as regras do Tratado FUE relativas à cidadania da União sejam aplicáveis, que os factos do litígio no processo principal respeitem a uma matéria regulada pelo direito da União, e que não é suficiente que o cidadão da União em questão tenha exercido a sua liberdade de circulação.

39.

No entanto, há que insistir que resulta de jurisprudência constante que, entre as situações abrangidas pelo domínio de aplicação do direito da União, figuram as relativas ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE, nomeadamente as que se enquadram no exercício da liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros, tal como conferida pelo artigo 21.o TFUE ( 11 ). Assim, em matérias da competência dos Estados‑Membros, o exercício por um nacional de um Estado‑Membro do seu direito de circular e de permanecer no território de outro Estado‑Membro pode constituir um elemento pertinente de conexão com o direito da União ( 12 ). Em contrapartida, quando o Tribunal de Justiça é confrontado com uma situação na qual, por um lado, a matéria em causa é da competência dos Estados‑Membros e, por outro, a pessoa que invoca o direito da União não exerceu o seu direito de livre circulação previsto no artigo 21.o TFUE, o Tribunal de Justiça declara‑se incompetente para decidir sobre o reenvio prejudicial que lhe é submetido ( 13 ).

40.

Ora, é incontroverso que A. Petruhhin, que foi detido na Letónia, exerceu a sua liberdade de circular e de permanecer noutro Estado‑Membro, garantida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

41.

Há também que precisar que, na falta de regras do direito da União em matéria de extradição de nacionais dos Estados‑Membros para a Rússia ( 14 ), esses Estados mantêm a sua competência para adotar essas regras e para celebrar convenções nessa matéria com a Federação da Rússia.

42.

Assim sendo, os Estados‑Membros são obrigados a exercer essa competência no respeito pelo direito da União, designadamente pelas disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros, tal como conferida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE a qualquer cidadão da União. Trata‑se aqui da aplicação, em matéria de extradição, de jurisprudência constante segundo a qual os Estados‑Membros estão obrigados, no exercício das suas competências, ao respeito do direito da União, em especial das disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de circular e de permanecer no território da União que é reconhecida a qualquer cidadão ( 15 ).

43.

Assim, mesmo nos domínios que são da competência dos Estados‑Membros, quando uma dada situação apresenta um elemento de conexão suficiente com o direito da União, o que é o caso de um cidadão da União que exerceu a sua liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros, esses Estados estão obrigados a justificar por razões objetivas uma diferença de tratamento entre os seus nacionais e os dos outros Estados‑Membros ( 16 ).

44.

Há que analisar agora se a regra segundo a qual a República da Letónia não extradita os seus próprios nacionais constitui uma discriminação em razão da nacionalidade contrária ao artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE.

45.

A. Petruhhin foi detido na Letónia e aí colocado em prisão preventiva até 26 de março de 2015. O pedido de extradição do Procurador‑Geral da Federação da Rússia foi recebido em 21 de outubro de 2014 pela Procuradoria‑Geral da República da Letónia. Por conseguinte as disposições aplicáveis são as do direito letão, bem como as que decorrem do Acordo de 3 de fevereiro de 1993 entre a República da Letónia e a Federação da Rússia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias em matéria de direito civil, da família e penal.

46.

No quadro do presente processo, a regra segundo a qual os nacionais letões não podem ser extraditados da Letónia para um Estado terceiro consta do artigo 98.o, terceira frase, da Constituição letã, do artigo 697.o, n.o 2, ponto 1, do Código de Processo Penal letão, bem como do artigo 62.o, n.o 1, ponto 1, do Acordo de 3 de fevereiro de 1993 entre a República da Letónia e a Federação da Rússia, relativo à assistência judiciária e às relações judiciárias em matéria de direito civil, da família e penal.

47.

Na medida em que, por força dessa regra, só os nacionais letões beneficiam dessa proteção contra a extradição, resulta da mesma uma diferença de tratamento em relação aos nacionais dos outros Estados‑Membros que se encontram em território letão e que são objeto de um pedido de extradição por um Estado terceiro.

48.

Tendo A. Petruhhin exercido a sua liberdade de circular e de permanecer nesse território tal como conferida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, é à luz do artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE que há que analisar se a regra segundo a qual a República da Letónia não extradita os seus próprios nacionais para a Rússia é compatível com o princípio que proíbe toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.

49.

A este respeito, importa recordar que é jurisprudência constante que o princípio da não‑discriminação impõe que situações idênticas não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de igual maneira. Tal tratamento só poderia ter justificação se se baseasse em considerações objetivas, independentes da nacionalidade das pessoas envolvidas e proporcionadas ao objetivo legitimamente prosseguido ( 17 ).

50.

Portanto, há que comparar, num contexto como o do litígio no processo principal, a situação dos cidadãos da União que não são nacionais letões e que permanecem na Letónia com a situação dos nacionais letões.

51.

O princípio de não‑extradição dos nacionais constitui um princípio tradicional do direito da extradição. Tem origem na soberania dos Estados sobre os seus nacionais, nas obrigações recíprocas que os unem e na falta de confiança nos sistemas jurídicos dos outros Estados. Assim, entre os motivos que são invocados como justificação deste princípio consta, designadamente, o dever do Estado de proteger os seus nacionais contra a aplicação de um sistema penal estrangeiro, cujo processo e cuja língua eles não conhecem e no âmbito do qual dificilmente podem defender‑se ( 18 ).

52.

Analisados à luz do direito da União e da igualdade de tratamento que este postula, os fundamentos do princípio da não‑extradição dos nacionais parecem relativamente frágeis. É assim quanto ao dever de proteção que um Estado‑Membro deve ter relativamente aos seus cidadãos. Não vemos por que razão tal dever não deva ser tornado extensivo aos nacionais dos outros Estados‑Membros. Aliás, o artigo 20.o, n.o 2, alínea c), TFUE milita nesse sentido, na medida em que prevê que os cidadãos da União têm «[o] direito de, no território de países terceiros em que o Estado‑Membro de que são nacionais não se encontre representado, beneficiar da proteção das autoridades diplomáticas e consulares de qualquer Estado‑Membro, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado».

53.

O mesmo se diga do argumento segundo o qual o princípio de não‑extradição dos nacionais se baseia na desconfiança dos Estados relativamente aos sistemas judiciários estrangeiros. Observou‑se quanto a este ponto, com razão, que «[e]sta desconfiança constitui sem dúvida um dos fundamentos essenciais do modo como a extradição é praticada — e sobretudo recusada — nos dias de hoje. Mas se pode justificar que um Estado não responda favoravelmente a um pedido de extradição, dificilmente explica por que é que essa recusa só se opõe ao pedido de extradição de um nacional em razão da sua nacionalidade. Se a desconfiança justifica uma recusa de extradição, justifica‑a relativamente a todos, não apenas relativamente aos nacionais» ( 19 ).

54.

Por conseguinte, embora os fundamentos da regra segundo a qual um Estado não extradita os seus próprios nacionais mereçam pouca confiança quando avaliados à luz do princípio da não‑discriminação em razão da nacionalidade, existe contudo, em nossa opinião, uma razão objetiva para distinguir a situação na qual se encontram os nacionais do Estado‑Membro requerido e aquela em que se encontram os nacionais dos outros Estados‑Membros relativamente a um pedido de extradição formulado par um Estado terceiro.

55.

Com efeito, há que comparar, num contexto como o do litígio no processo principal, a situação dos cidadãos da União que não são de nacionalidade letã que permanecem na Letónia com a dos nacionais letões em relação ao objetivo que foi sublinhado por vários Estados‑Membros e pela Comissão Europeia no quadro do presente processo, a saber, o objetivo de lutar contra a impunidade das pessoas suspeitas de terem cometido uma infração. Tal objetivo é seguramente legítimo no âmbito do direito da União ( 20 ).

56.

Quanto a este aspeto, observamos que a extradição é um processo que permite o julgamento por uma infração ou a execução de uma pena. Por outras palavras, trata‑se de um processo que visa intrinsecamente lutar contra a impunidade de uma pessoa que se encontra num território diferente daquele em que a infração foi cometida ( 21 ).

57.

À luz de tal objetivo, a situação em que se encontram as duas categorias de cidadãos da União mencionadas anteriormente só pode ser considerada comparável se ambas puderem ser julgadas na Letónia por infrações cometidas num Estado terceiro.

58.

Por outras palavras, a análise da comparabilidade das situações em que se encontram os nacionais do Estado‑Membro requerido e os dos outros Estados‑Membros implica verificar se, em conformidade com o adágio aut dedere aut judicare (extraditar ou julgar), os cidadãos da União que não fossem extraditados para um Estado terceiro poderiam ser julgados no Estado‑Membro requerido por infrações cometidas nesse Estado terceiro. Por conseguinte, trata‑se de verificar se, no caso concreto, é respeitado o princípio tradicional de direito internacional da extradição segundo o qual o Estado requerido que se recusa a extraditar os seus nacionais deve poder julgá‑los.

59.

Hugo Grócio definiu o princípio aut dedere aut punire (extraditar ou punir) do seguinte modo: «[q]uando é requerido, um Estado deve punir o culpado como ele merece, ou entregá‑lo nas mãos do Estado requerente» ( 22 ). O termo «punir» é atualmente substituído pelo termo «julgar» como segunda parte da alternativa à extradição a fim de ter em conta a presunção de inocência das pessoas suspeitas de terem cometido uma infração.

60.

O adágio aut dedere aut judicare encontra expressão em numerosas convenções bilaterais ou multilaterais de extradição ( 23 ). A obrigação de extraditar ou de julgar encontra, por exemplo, expressão no artigo 6.o da Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris em 13 de dezembro de 1957. Assim, o artigo 6.o, n.o 1, alínea a), desta convenção prevê que «[a]s Partes Contratantes terão a faculdade de recusar a extradição dos seus nacionais». O artigo 6.o, n.o 2, da referida convenção completa essa disposição na medida em que dispõe que, «[s]e a Parte requerida não extraditar o seu nacional, deverá, a pedido da Parte requerente, submeter o assunto às autoridades competentes, a fim de que, se for caso disso, o procedimento criminal possa ser instaurado».

61.

Como indica o relatório final das Nações Unidas de 2014, intitulado «Obrigação de extraditar ou de julgar (aut dedere aut judicare)», estas convenções baseiam‑se no compromisso geral recíproco dos Estados partes de entregar qualquer pessoa contra a qual as autoridades competentes do Estado requerente instauraram processos ou que seja procurada para a execução de uma pena ou de uma medida de segurança. Todavia, esta obrigação de extraditar tem algumas exceções, em especial quando o indivíduo cuja extradição é pedida é um nacional do Estado requerido. A fim de evitar a impunidade, as referidas convenções impõem ao Estado requerido o segundo termo da alternativa, a saber, a obrigação de julgar o autor da infração se a extradição for recusada ( 24 ).

62.

Assim, por força da obrigação de extraditar ou de julgar, se o Estado requerido não der seguimento a um pedido de extradição, deve julgar ( 25 ) o suspeito a fim de assegurar a efetividade da cooperação internacional entre os Estados e evitar que este fique impune.

63.

Ora, é precisamente à luz deste último elemento que, no contexto do presente processo, os nacionais letões e os nacionais dos outros Estados‑Membros não se encontram numa situação comparável.

64.

O risco de impunidade da pessoa abrangida por um pedido de extradição pode existir se o Estado‑Membro requerido não previu no seu direito interno uma competência jurisdicional que lhe permita julgar um nacional de outro Estado‑Membro suspeito de ter cometido uma infração no território de um Estado terceiro.

65.

A este respeito, salientamos, como a Comissão, que, por força do artigo 4.o, n.o 1, da Lei penal letã, «[o]s cidadãos e os não‑cidadãos letões [ ( 26 )], bem como os estrangeiros titulares de uma autorização de residência permanente na Letónia devem ser considerados responsáveis em território letão, a título da presente lei, por atos cometidos no território de outro Estado ou fora de qualquer território nacional, quer esse ato seja considerado ou não como uma infração e punível no local onde foi cometido».

66.

Decorre desta disposição que os nacionais letões que tenham cometido uma infração num Estado terceiro podem ser julgados na Letónia. Esse é também é caso dos estrangeiros titulares de uma autorização de residência permanente no território letão.

67.

Em contrapartida, no que se refere aos estrangeiros não titulares de tal autorização, o exercício pelos tribunais criminais letões da sua competência relativamente a infrações cometidas no território de outro Estado é limitado, por força do artigo 4.o, n.o 3, da Lei penal letã, aos casos de «infrações graves ou muito graves atentatórias dos interesses da República da Letónia ou dos seus habitantes».

68.

Por conseguinte, parece resultar destas disposições da Lei penal letã que um nacional de um Estado‑Membro diferente da República da Letónia, como A. Petruhhin, que, não se contesta, não dispõe de uma autorização de residência permanente no território letão, não pode ser julgado na Letónia por uma infração que é suspeito de ter cometido na Rússia. Daqui se conclui que, à luz do objetivo de evitar a impunidade das pessoas suspeitas de terem cometido uma infração num Estado terceiro, este nacional não se encontra numa situação comparável à dos nacionais letões.

69.

Consequentemente, a diferença de tratamento entre os cidadãos da União que não são de nacionalidade letã e que permanecem na Letónia e os nacionais letões não constitui uma discriminação proibida pelo artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE, na medida em que é justificada pelo objetivo de lutar contra a impunidade das pessoas suspeitas de terem cometido uma infração num Estado terceiro.

70.

Por conseguinte, em circunstâncias como as do litígio no processo principal, o artigo 18.o, primeiro parágrafo, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE devem ser interpretados no sentido de que não exigem que um nacional de um Estado‑Membro, que se encontra no território de outro Estado‑Membro e que é objeto de um pedido de extradição por um Estado terceiro, beneficie da mesma regra que protege os nacionais desse outro Estado‑Membro contra a extradição.

C – Quanto à terceira questão

71.

Na sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, que o Tribunal de Justiça declare, por um lado, se um Estado‑Membro que decide extraditar um cidadão da União para um Estado terceiro é obrigado a proceder à verificação das garantias previstas no artigo 19.o, n.o 2, da Carta e, por outro, em que deve consistir essa verificação.

72.

Resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que esta questão parece ter origem nas alegações de A. Petruhhin de que poderia ser ameaçado de tortura se fosse extraditado para a Rússia.

73.

Segundo o artigo 19.o, n.o 2, da Carta, «[n]inguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes».

74.

As Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais ( 27 ) indicam que esta disposição «incorpora a jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos de Homem relativa ao artigo 3.o da [Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 ( 28 )]» ( 29 ).

75.

Uma vez que a situação de um nacional de um Estado‑Membro que, como é o caso de A. Petruhhin, exerceu a sua liberdade de circular e de permanecer no território de outro Estado‑Membro entra, como já vimos anteriormente, no âmbito de aplicação do direito da União, somos de opinião que o artigo 19.o, n.o 2, da Carta é aplicável a tal situação.

76.

Assim, um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro ao qual é submetido um pedido relativo à extradição de um nacional de outro Estado‑Membro que exerceu os direitos conferidos pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE é obrigado a proceder à verificação das garantias previstas no artigo 19.o, n.o 2, da Carta.

77.

Quanto à questão de saber em que deve consistir essa verificação, há que remeter, em conformidade com as Anotações relativas ao artigo 19.o, n.o 2, da Carta, para a jurisprudência relevante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 3.o da CEDH.

78.

Resulta de jurisprudência constante desse Tribunal que a proteção contra os tratamentos proibidos pelo artigo 3.o da CEDH é absoluta e que, por conseguinte, o afastamento de uma pessoa do território por um Estado contratante pode suscitar um problema à luz desta disposição, e portanto implicar a responsabilidade do Estado em causa nos termos da CEDH, quando há motivos sérios e comprovados para considerar que a pessoa em causa, se for afastada para o país de destino, correrá aí um risco real de ser sujeita a um tratamento contrário à referida disposição ( 30 ). Nesse caso, o artigo 3.o da CEDH «implica a obrigação de não afastar a pessoa em questão para esse país, ainda que seja um Estado terceiro» ( 31 ). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem precisa que «não faz distinção consoante a base legal do afastamento; quer se trate de uma expulsão ou de uma extradição, o Tribunal adota o mesmo raciocínio» ( 32 ).

79.

Quando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem analisa a questão de saber se um requerente fica exposto a um risco real de maus tratos no país terceiro de destino, aprecia «por um lado, a situação geral em matéria de direitos humanos no país e, por outro, os elementos próprios do caso do requerente. Quando o Estado de acolhimento forneceu garantias, estas constituem um fator adicional pertinente que será tido em conta» ( 33 ). Por conseguinte, para além da situação geral no país de destino, deve ser individualizado o risco real de sofrer tratamentos proibidos pelo artigo 3.o da CEDH.

80.

A fim de determinar se existem motivos sérios e comprovados para considerar um risco real de tratamentos incompatíveis com o artigo 3.o da CEDH, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem apoia‑se no conjunto dos elementos que lhe são fornecidos ou, se necessário, que obtém oficiosamente ( 34 ). No que respeita à situação geral de um país, atribuiu frequentemente importância às informações contidas nos relatórios recentes de associações internacionais independentes de defesa dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional, ou de fontes governamentais ( 35 ).

81.

Além desta descrição da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e na linha da mesma, há que ter igualmente em conta o que o Tribunal de Justiça declarou recentemente no seu acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198), no âmbito da aplicação da Decisão‑Quadro 2002/584, na versão alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299.

82.

Com efeito, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou designadamente, a propósito do artigo 4.o da Carta, que, «para garantir o respeito [deste artigo] no caso individual da pessoa que é objeto do mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária de execução, que é confrontada com elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que atestem a existência [de deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas], deve verificar se, nas circunstâncias do caso em apreço, existem motivos sérios e comprovados para considerar que, no seguimento da sua entrega ao Estado‑Membro de emissão, essa pessoa correrá um risco real de ser sujeita, nesse Estado‑Membro, a um trato desumano ou degradante, na aceção [do referido] artigo» ( 36 ).

83.

A metodologia assim definida pelo Tribunal de Justiça parece‑nos poder ser transposta para a situação na qual, na sequência de um pedido de extradição de um cidadão da União emanado de um Estado terceiro, a autoridade judiciária do Estado‑Membro requerido verifica se as garantias previstas no artigo 19.o, n.o 2, da Carta são respeitadas.

IV – Conclusão

84.

À luz das considerações precedentes, propomos responder do seguinte modo às questões submetidas pelo Augstākā tiesa (Supremo Tribunal, Letónia):

Em circunstâncias como as do litígio no processo principal, o artigo 18.o, primeiro parágrafo, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE devem ser interpretados no sentido de que não exigem que um nacional de um Estado‑Membro que se encontra no território de outro Estado‑Membro e que é objeto de um pedido de extradição por um Estado terceiro beneficie da mesma regra que protege os nacionais desse outro Estado‑Membro contra a extradição.

Para garantir o respeito do artigo 19.o, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia no caso individual de um cidadão da União que é objeto de um pedido de extradição, a autoridade judiciária do Estado‑Membro requerido, que é confrontada com elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que atestem a existência de deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas, deve verificar se, nas circunstâncias do caso em apreço, existem motivos sérios e comprovados para considerar que, no seguimento da sua extradição para o Estado terceiro requerente, esse cidadão da União correrá um risco real de ser sujeito, nesse Estado, a um tratamento desumano ou degradante, na aceção desta disposição.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) A seguir «Carta».

( 3 ) Interrogado, na audiência, sobre o significado desta expressão, o Governo letão precisou que os «não‑cidadãos letões» são os antigos cidadãos soviéticos que chegaram à Letónia antes da independência deste Estado. Essas pessoas não optaram pela nacionalidade letã nem pela nacionalidade russa e têm a possibilidade de se fazer naturalizar.

( 4 ) JO 2002, L 190, p. 1, na versão alterada pela Decisão‑quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24).

( 5 ) V., designadamente, acórdão de 6 de outubro de 2015, Capoda Import‑Export (C‑354/14, EU:C:2015:658, n.o 23 e jurisprudência referida).

( 6 ) V., designadamente, acórdão de 6 de outubro de 2015, Capoda Import‑Export (C‑354/14, EU:C:2015:658, n.o 24 e jurisprudência referida).

( 7 ) V., designadamente, acórdão de 6 de outubro de 2015, Capoda Import‑Export (C‑354/14, EU:C:2015:658, n.o 25 e jurisprudência referida).

( 8 ) V., designadamente, despacho de 5 de junho de 2014, Antonio Gramsci Shipping e o. (C‑350/13, EU:C:2014:1516, n.o 10 e jurisprudência referida).

( 9 ) V., designadamente, acórdão de 26 de fevereiro de 2015, Martens (C‑359/13, EU:C:2015:118, n.o 21 e jurisprudência referida).

( 10 ) V., designadamente, acórdão de 26 de outubro de 2006, Tas‑Hagen e Tas (C‑192/05, EU:C:2006:676, n.o 23 e jurisprudência referida).

( 11 ) V., designadamente, acórdãos de 11 de julho de 2002, D'Hoop (C‑224/98, EU:C:2002:432, n.o 29 e jurisprudência referida); de 16 de dezembro de 2008, Huber (C‑524/06, EU:C:2008:724, n.o 71 e jurisprudência referida); de 4 de outubro de 2012, Comissão/Áustria (C‑75/11, EU:C:2012:605, n.o 39 e jurisprudência referida); e de 26 de fevereiro de 2015, Martens (C‑359/13, EU:C:2015:118, n.o 22 e jurisprudência referida).

( 12 ) V. Iliopoulou, A., «Entrave et citoyenneté de l'Union», L’entrave dans le droit du marché intérieur, Bruylant, Bruxelles, 2011, p. 191. Segundo este autor, «[n]enhuma regra nacional é a priori suscetível de ser excluída da qualificação de entrave no contexto da cidadania. A existência de um elemento transfronteiriço basta para incluir a situação no âmbito de aplicação do direito comunitário e desencadear um controlo da compatibilidade com as exigências do Tratado» (p. 202). V. igualmente, a esse propósito, conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Tas‑Hagen e Tas (C‑192/05, EU:C:2006:223, n.os 25 a 43).

( 13 ) V., designadamente, despacho de 19 de junho de 2014, Teisseyre (C‑370/13, não publicado, EU:C:2014:2033, n.os 33 a 35).

( 14 ) Em contrapartida, existe um Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América em matéria de extradição (JO 2003, L 181, p. 27) [v. decisão 2009/820/PESC do Conselho, de 23 de outubro de 2009, relativa à celebração, em nome da União Europeia, do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre extradição e do Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre auxílio judiciário mútuo (JO 2009, L 291, p. 40)].

( 15 ) V., designadamente, sobre as disposições nacionais que preveem a indemnização das vítimas de agressões cometidas no território nacional, acórdão de 2 de fevereiro de 1989, Cowan (186/87, EU:C:1989:47, n.o 19); quanto a uma regulamentação nacional em matéria penal e de processo penal, acórdão de 24 de novembro de 1998, Bickel e Franz (C‑274/96, EU:C:1998:563, n.o 17); a propósito de regras nacionais sobre o apelido de uma pessoa, acórdãos de 2 de outubro de 2003, Garcia Avello (C‑148/02, EU:C:2003:539, n.o 25), e de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn (C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 63 e jurisprudência referida); relativamente a um processo de execução para pagamento de dívidas, acórdão de 29 de abril de 2004, Pusa (C‑224/02, EU:C:2004:273, n.o 22); no que respeita a disposições nacionais relativas à fiscalidade direta, acórdão de 12 de julho de 2005, Schempp (C‑403/03, EU:C:2005:446, n.o 19); a propósito de disposições nacionais que determinam os titulares do direito de voto e a eligibilidade para as eleições ao Parlamento Europeu, acórdão de 12 de setembro de 2006, Espanha/Reino Unido (C‑145/04, EU:C:2006:543, n.o 78); relativamente à definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade, acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann (C‑135/08, EU:C:2010:104, n.os 39 e 41); no que se refere à competência dos Estados‑Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social, acórdãos de 19 de julho de 2012, Reichel‑Albert (C‑522/10, EU:C:2012:475, n.o 38 e jurisprudência referida), e de 4 de outubro de 2012, Comissão/Áustria (C‑75/11, EU:C:2012:605, n.o 47 e jurisprudência referida); e, a propósito do conteúdo do ensino e da organização dos sistemas educativos dos Estados‑Membros, acórdão de 26 de fevereiro de 2015, Martens (C‑359/13, EU:C:2015:118, n.o 23 e jurisprudência referida).

( 16 ) V. Iliopoulou, A., op. cit. Segundo este autor, «[o] direito de cidadania da União obriga o direito da cidadania nacional a justificar‑se, a demonstrar a sua pertinência e a sua proporcionalidade. O Estado deve rever à luz dos padrões europeus as suas relações não só com o ‘estrangeiro’ comunitário mas também com os seus nacionais» (p. 196).

( 17 ) V., designadamente, acórdão de 16 de dezembro de 2008, Huber (C‑524/06, EU:C:2008:724, n.o 75 e jurisprudência referida).

( 18 ) V. Deen‑Racsmány, Z., e Blekxtoon, R., «The Decline of the Nationality Exception in European Extradition?», European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, vol. 13/3, Koninklijke Brill NV, Países Baixos, 2005, p. 317.

( 19 ) V. Thouvenin, J.‑M., «Le principe de non extradition des nationaux», Droit international et nationalité, Colloque de Poitiers de la Société française pour le droit international, Pedone, Paris, 2012, p. 127, em especial p. 133.

( 20 ) Este objetivo de luta contra a impunidade foi tido em conta pelo Tribunal de Justiça designadamente no seu acórdão de 27 de maio de 2014, Spasic (C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586, n.os 58 e 72).

( 21 ) V., designadamente, TEDH, 4 de setembro de 2014, Trabelsi c. Bélgica (CE:ECHR:2014:0904JUD000014010, § 117 e jurisprudência referida), no qual o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem indica que «não perde de vista os fundamentos da extradição, que consistem em impedir que os delinquentes em fuga se subtraiam à justiça, nem o objetivo benéfico que prossegue para todos os Estados num contexto de externalização da criminalidade».

( 22 ) V. Grotius, H., De jure belli ac pacis, livro II, cap. XXI, secç. IV. Le droit de la guerre et de la paix: tradução francesa por Barbeyrac, J., Amesterdão, Pierre de Coud, 1724, vol. 1, p. 639, especialmente p. 640.

( 23 ) V., por exemplo, convenções multilaterais citadas na página 15 do relatório final das Nações Unidas de 2014, intitulado «Obrigação de extraditar ou de julgar (aut dedere aut judicare)», a saber, a Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris em 13 de dezembro de 1957, a Convenção Geral de Cooperação em Matéria de Justiça, assinada em Tananarive em 12 de setembro de 1961, a Convenção Interamericana sobre a Extradição de 1981, a Convenção de Extradição da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, adotada em Abuja em 6 de agosto de 1994, e o Dispositivo de Londres para a Extradição entre países da Commonwealth.

( 24 ) V. p. 15 deste relatório final.

( 25 ) Embora a expressão «obrigação de julgar» seja utilizada com mais frequência, seria mais justo falar de uma obrigação de submeter o processo às autoridades competentes para o exercício da ação penal. Em função dos elementos de prova, a execução dessa obrigação pode acarretar ou não o compromisso de julgar.

( 26 ) Quanto ao significado desta expressão, v. nota 3 das presentes conclusões.

( 27 ) JO 2007, C 303, p. 17.

( 28 ) A seguir «CEDH».

( 29 ) Faz‑se referência aos acórdãos TEDH de 7 de julho de 1989, Soering c. Reino Unido (CE:ECHR:1989:0707JUD001403888), e de 17 de dezembro de 1996, Ahmed c. Áustria (CE:ECHR:1996:1217JUD002596494).

( 30 ) V., designadamente, TEDH, 4 de fevereiro de 2005, Mamatkoulov e Askarov c. Turquia (CE:ECHR:2005:0204JUD004682799, § 67); 28 de fevereiro de 2008, Saadi c. Itália (CE:ECHR:2008:0228JUD003720106, § 125 e jurisprudência referida); e 4 de setembro de 2014, Trabelsi c. Bélgica (CE:ECHR:2014:0904JUD000014010, § 116 e jurisprudência referida).

( 31 ) TEDH, 4 de setembro de 2014 Trabelsi c. Bélgica (CE:ECHR:2014:0904JUD000014010, § 116).

( 32 ) TEDH, 4 de setembro de 2014, Trabelsi c. Bélgica (CE:ECHR:2014:0904JUD000014010, § 116 e jurisprudência referida).

( 33 ) V., designadamente, TEDH, 17 de janeiro de 2012, Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido (CE:ECHR:2012:0117JUD000813909, § 187).

( 34 ) V., designadamente, TEDH, 30 de outubro de 1991, Vilvarajah e outros c. Reino Unido (CE:ECHR:1991:1030JUD001316387, § 107); 4 de fevereiro de 2005, Mamatkoulov e Askarov c. Turquia (CE:ECHR:2005:0204JUD004682799, § 69); e 28 de fevereiro de 2008, Saadi c. Itália (CE:ECHR:2008:0228JUD003720106, § 128 e jurisprudência referida).

( 35 ) V., designadamente, TEDH, 4 de fevereiro de 2005, Mamatkoulov e Askarov c. Turquia (CE:ECHR:2005:0204JUD004682799, § 72), e 28 de fevereiro de 2008, Saadi c. Itália (CE:ECHR:2008:0228JUD003720106, § 131 e jurisprudência referida).

( 36 ) Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 94).