PT

TEN/772

Cocriação de serviços de interesse geral
como contributo para uma democracia mais participativa na UE

PARECER

Secção dos Transportes, Energia, Infraestruturas e Sociedade da Informação

Cocriação de serviços de interesse geral como contributo para uma democracia mais participativa na UE

[parecer de iniciativa]

Contacto

agota.bazsik@eesc.europa.eu

Administradora

Ágota Bazsik

Data do documento

12/09/2022

Relator: Krzysztof Balon

Correlator: Thomas Kattnig

Decisão da Plenária

20/01/2022

Base jurídica

Artigo 52.º, n.º 2, do Regimento

Parecer de iniciativa

Competência

Secção dos Transportes, Energia, Infraestruturas e Sociedade da Informação

Adoção em secção

07/09/2022

Resultado da votação

(votos a favor/votos contra/abstenções)

76/0/2

Adoção em plenária

DD/MM/YYYY

Reunião plenária n.º

Resultado da votação
(votos a favor/votos contra/abstenções)

…/…/…



1.Conclusões e recomendações

1.1A cocriação de serviços de interesse geral (SIG) pelas organizações da sociedade civil, bem como diretamente pelos cidadãos, é um dos instrumentos mais eficazes para revitalizar a democracia participativa e, assim, reforçar a integração europeia. Por esta razão, o Comité Económico e Social Europeu (CESE) propõe, no âmbito do presente parecer, medidas específicas para melhorar as condições-quadro da União Europeia neste domínio, a fim de reforçar a proteção dos direitos e benefícios dos cidadãos.

1.2Em especial as situações de crise, como a recente agressão russa contra a Ucrânia e a consequente fuga de milhões de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças, salientam o papel decisivo da sociedade civil em virtude da sua capacidade de ação imediata para interligar e implementar de forma espontânea, mas bem-sucedida, modelos e procedimentos de cocriação, em especial dos SIG sociais e educativos, nos domínios em que já há experiência de uma verdadeira cocriação.

1.3Historicamente, os intervenientes da sociedade civil sempre prestaram serviços sociais e outros serviços de interesse geral, quando o setor público não tinha ainda consciência da necessidade desses serviços ou quando as empresas comerciais consideravam que a prestação desses serviços não era suficientemente rentável. Na maioria dos casos, o Estado entrou mais tarde em cena, seja como prestador ou adjudicante de serviços, seja como entidade reguladora e garante da qualidade dos serviços. Neste contexto, o princípio da subsidiariedade entre os Estados‑Membros e a UE, consagrado no artigo 5.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia (TUE), deve também ser aplicado no que respeita aos SIG. Ainda no que diz respeito aos SIG, o princípio da subsidiariedade deve também ser um princípio orientador na relação entre todos os níveis da administração pública dos Estados-Membros, bem como entre as poderes públicos e as organizações da sociedade civil.

1.4Embora a responsabilidade jurídica e política pela prestação de SIG recaia sobre os dirigentes eleitos nos órgãos representativos competentes e seja avaliada periodicamente pelos cidadãos por ocasião das eleições, a prestação adequada de SIG está sob o controlo das autoridades públicas. O CESE preconiza uma aplicação direcionada da abordagem da cocriação, ou seja, os SIG devem ser concebidos em conjunto com os utilizadores, as comunidades e as organizações da sociedade civil, uma vez que tal pode não só assegurar que satisfazem as necessidades reais, mas também permitir a participação democrática. Isto é particularmente verdade nos casos em que o pessoal assalariado coopera com voluntários ou estruturas de entreajuda.

1.5Por conseguinte, os Estados-Membros são instados a desenvolver e/ou a melhorar instrumentos que assegurem a participação dos cidadãos e das organizações da sociedade civil em todo o processo de prestação de serviços de interesse geral. Este objetivo passa pela criação de condições adequadas às atividades da economia social sem fins lucrativos, tal como definidas no Parecer do CESE – Reforçar as empresas sociais sem fins lucrativos enquanto pilar essencial de uma Europa socialmente equitativa, de 18 de setembro de 2020 1 , e pela aplicação do artigo 77.º da Diretiva 2014/24/UE relativa aos contratos públicos 2 de uma forma que preveja a adjudicação de contratos a organizações sem fins lucrativos para a prestação de serviços de saúde, educação, sociais e culturais visados pelo referido artigo.

1.6O CESE salienta que a prestação de SIG de qualidade elevada no interesse dos cidadãos e da economia depende da disponibilização de recursos suficientes, nomeadamente financeiros e humanos, que cabe assegurar.

1.7Embora o estabelecimento de condições para a prestação e, por conseguinte, para a cocriação de SIG seja essencialmente da competência dos Estados-Membros, das regiões e dos municípios, é também urgente, neste contexto, incentivar os Estados-Membros a desenvolverem conceitos de cocriação através da criação de um conjunto de instrumentos que facilite a utilização de modelos de cocriação. Tais iniciativas devem servir de incentivo para que todos os intervenientes competentes nos Estados-Membros promovam a cocriação e a prestação de SIG pelas organizações da sociedade civil.

1.8O CESE propõe que a Comissão publique um documento de trabalho sobre esta matéria enquanto base para prosseguir o trabalho, com vista à criação de um «conjunto de instrumentos» destinado a orientar e incentivar os órgãos de poder nacional, regional e local a fazerem maior uso dos modelos de cocriação. Tal documento deverá incluir, nomeadamente, uma análise da cocriação à luz do artigo 14.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e do Protocolo n.º 26 anexo ao TUE e ao TFUE, tendo em conta o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, o papel especial da economia social sem fins lucrativos na cocriação e as condições necessárias para a mesma. Além disso, o documento deve igualmente incluir propostas para a promoção, a nível europeu e nacional, de projetos inovadores de cocriação, tendo em conta as componentes de investigação, bem como um conjunto de boas práticas. Com base no conjunto de instrumentos atrás referido, e após uma consulta alargada a nível da UE, poder-se-ia publicar um Livro Verde e, posteriormente, um Livro Branco.

1.9Por seu lado, o CESE criará um fórum para o intercâmbio de ideias e boas práticas neste domínio, com a participação de organizações da sociedade civil, dos parceiros sociais, de universidades e de projetos de investigação, a fim de manter e desenvolver o processo de debate a nível europeu.

2.Contexto

2.1O aprofundamento da democracia participativa na União Europeia constitui um dos principais desafios quando se trata de reforçar a integração europeia contra o populismo e o nacionalismo. A cocriação de SIG pelas organizações da sociedade civil, bem como diretamente pelos cidadãos, é, por sua vez, um dos instrumentos mais eficazes para a revitalização da democracia participativa.

2.2Há vários anos que o CESE colabora com várias partes interessadas da sociedade civil e intervenientes do meio académico e da investigação a fim de modernizar e desenvolver os SIG. O Grupo de Estudo Temático para os Serviços de Interesse Geral é o principal responsável por este trabalho no CESE.

2.3Em 2019, iniciou-se uma colaboração com o consórcio do projeto «Co-creation of Service Innovation in Europe» [Cocriação para a inovação dos serviços na Europa] (CoSIE) 3 , composto por universidades, municípios e organizações da sociedade civil de nove Estados-Membros (Espanha, Estónia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Países Baixos, Polónia e Suécia) e do Reino Unido. O Grupo de Estudo Temático para os Serviços de Interesse Geral deu seguimento às experiências inovadoras e conclusões do projeto CoSIE através de dois seminários intitulados «Cocriação de serviços de interesse geral: papel das organizações da sociedade civil», em 15 de abril de 2021, em Bruxelas, e «Cidadãos ao serviço dos cidadãos: cocriação e prestação de serviços de interesse geral pelas organizações da sociedade civil», em 1 e 2 de dezembro de 2021, em Lublin (Polónia), em cooperação com o município de Lublin e com a participação de parceiros da Ucrânia.

2.4A cocriação está indissociavelmente ligada a debates mais amplos sobre a reforma da administração pública. A abordagem da «New Public Management» (nova gestão pública – NGP) centrava-se no aumento da eficiência, na adoção de modelos de gestão do setor privado e na construção de uma relação fornecedor/cliente no domínio dos serviços públicos, tomando como ponto de partida as necessidades, os requisitos e as opções dos utilizadores destes serviços. Este era um modelo dominante nas décadas de 1990 e 2000, mas foi alvo de críticas por não ser tão eficaz e eficiente como esperado e por apresentar um potencial de inovação limitado 4 . As tendências de inovação dos serviços públicos numa fase pós-NGP («paradigmettes» 5 ) baseiam-se num cidadão ativo, que colabora na produção, e não num consumidor individual passivo motivado apenas pelo seu interesse pessoal, e centram-se na melhoria da integração e da coordenação entre as redes de grupos de utilizadores e de partes interessadas, e não na desintegração. A cocriação é considerada um conceito fundamental nos modelos pós-NGP 6 .

2.5Os resultados do trabalho que o CESE tem vindo a realizar neste domínio demonstram que a cocriação e prestação de SIG pelos cidadãos ou pelas suas organizações conduz ao reforço da democracia participativa na União Europeia e ao desenvolvimento da economia social na UE, sendo estes dois de entre os vários papéis cruciais que os SIG desempenham enquanto facilitadores indispensáveis de todas as outras atividades na sociedade.

3.Serviços de interesse geral

3.1No decorrer da integração europeia, e pela tensão entre «unidade» e «diversidade»que a caracteriza, foi desenvolvido um novo conceito de serviços regulados por regras e normas específicas. O objetivo é assegurar que todos os cidadãos e intervenientes tenham acesso aos serviços essenciais que, no presente e no futuro, constituem a base de uma vida digna e são indispensáveis à participação na sociedade – os serviços de interesse geral (SIG). Os SIG podem ser prestados em diferentes contextos, ou seja, em mercados concorrenciais enquanto serviços de interesse económico geral, bem como enquanto serviços de interesse geral não económicos que estão excluídos desses mercados. A Comissão faz a distinção 7 entre serviços de interesse económico geral, serviços não económicos e serviços sociais de interesse geral (de natureza económica ou não económica). O artigo 106.º do TFUE aplica-se aos serviços de interesse económico geral (SIEG) 8 ou de natureza económica.

3.2O conceito foi gradualmente reforçado e especificado.

3.2.1Os SIG fazem parte dos valores comuns europeus e desempenham um papel na promoção da coesão social e territorial na UE 9 . A este respeito, o CESE remete para os valores comuns da União em matéria de serviços de interesse económico geral na aceção do artigo 14.º do TFUE, conforme estabelecidos no Protocolo n.º 26 relativo aos serviços de interesse geral, anexo ao TFUE e ao TUE. O aprofundamento da definição dos princípios estabelecidos neste âmbito pode levar a uma maior eficiência e corrigir falhas.

3.2.2Estes valores comuns abrangem três dimensões: o poder de apreciação das autoridades nacionais, regionais e locais para atender às necessidades dos utilizadores; o respeito pela diversidade e pelas diferenças nas necessidades, preferências e escolhas democráticas dos utilizadores, bem como pelas diversas situações geográficas, sociais e culturais; um elevado nível de qualidade, de segurança, de acessibilidade, de igualdade de tratamento e promoção do acesso universal e dos direitos dos utilizadores 10 .

3.2.3Estes serviços são uma parte essencial dos sistemas económicos e sociais dos Estados-Membros da UE e, em geral, uma componente constitutiva do modelo europeu de sociedade. Os cidadãos e as empresas na Europa esperam, com razão, uma gama abrangente de serviços de interesse (económico) geral fiáveis, estáveis e eficientes, a preços acessíveis e de qualidade elevada. Estes serviços asseguram o atendimento de necessidades e interesses coletivos, as chamadas missões de interesse geral. O CESE assinala explicitamente que a prestação destes serviços de qualidade elevada, essenciais para os cidadãos e para a economia, depende da disponibilização de recursos suficientes, nomeadamente financeiros e humanos, que cabe assegurar.

3.2.4O acesso aos SIEG faz parte dos direitos fundamentais 11 e do Pilar Europeu dos Direitos Sociais 12 . Enquanto o princípio 20 do Pilar Europeu dos Direitos Sociais menciona explicitamente os SIG como «essenciais», outros princípios deste Pilar abordam domínios importantes dos serviços de interesse geral, como a educação, a habitação e a assistência aos sem-abrigo, os cuidados de longa duração, a inclusão de pessoas com deficiência ou os cuidados de saúde, para citar apenas alguns.

3.2.5Os serviços de interesse geral não económicos estão excluídos das regras do mercado único e em matéria de concorrência, sendo apenas abrangidos pelos princípios gerais da UE (transparência, não discriminação, igualdade de tratamento, proporcionalidade) 13 .

3.2.6A União e os Estados-Membros devem zelar «por que esses serviços funcionem com base em princípios e condições, nomeadamente económicas e financeiras, que lhes permitam cumprir as suas missões» 14 .

3.2.7Os SIEG estão sujeitos às disposições dos Tratados, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada 15 .

3.3Os serviços de interesse geral têm por objetivo satisfazer as necessidades de todos os cidadãos e de todos os intervenientes à medida que evoluem no tempo e no espaço, e são dinâmicos por natureza. Podem dizer respeito, por exemplo, a domínios como a segurança, a saúde, os serviços sociais, nomeadamente a inclusão de pessoas com deficiência, os cuidados de longa duração, a habitação social 16 e a educação, bem como aos domínios de serviços essenciais a que alude explicitamente o princípio 20 do Pilar Europeu dos Direitos Sociais 17 .

3.4No que diz respeito aos SIG, o princípio da subsidiariedade entre os Estados-Membros e a União está consagrado no artigo 5.º, n.º 3, do TUE. A UE estabelece um quadro geral de princípios que visam atender às necessidades de todos os cidadãos e intervenientes económicos e sociais. A definição e a implantação dos SIG, por seu turno, são da responsabilidade dos Estados-Membros e dos órgãos de poder local e regional. Ainda no que diz respeito aos SIG, o princípio da subsidiariedade deve também ser um princípio orientador na relação entre todos os níveis da administração pública dos Estados-Membros, bem como entre as poderes públicos e as organizações da sociedade civil.

3.5Os SIG estão expostos a várias tensões entre, designadamente: a garantia dos direitos fundamentais; os objetivos locais de coesão económica, social e territorial; os objetivos de desenvolvimento sustentável, a proteção do ambiente e a luta contra as alterações climáticas; e a implementação da economia social de mercado, do mercado único e das regras de concorrência. É necessário estabelecer um equilíbrio adequado caso a caso, de forma pragmática, com a participação de todas as partes interessadas, para responder às necessidades de cada indivíduo e da comunidade.

4.Cocriação de serviços de interesse geral

4.1Os intervenientes da sociedade civil sempre prestaram serviços sociais e outros serviços de interesse geral, ora porque o setor público nem sempre teve consciência da necessidade desses serviços, ora porque as empresas comerciais consideravam que a prestação desses serviços não era suficientemente rentável. Na maioria dos casos, o Estado entrou mais tarde em cena como fornecedor ou entidade reguladora e também como garante da qualidade dos serviços.

4.2Os serviços de interesse geral são prestados ou adjudicados pelos próprios órgãos de poder local e regional. Embora a responsabilidade política recaia sobre os representantes eleitos nestes órgãos de poder local e regional e seja avaliada periodicamente pelos cidadãos por ocasião das eleições, a prestação adequada de SIG está sob o controlo das autoridades públicas. Podem ser seguidas duas abordagens diferentes, nomeadamente «do topo para a base» (iniciativas de governos centrais e de órgãos de poder regional ou local) ou da «base para o topo» (cocriação com a participação de cidadãos e/ou organizações da sociedade civil). O presente parecer refere‑se a esta última abordagem. O CESE preconiza uma aplicação alargada da abordagem da cocriação: os SIG devem ser concebidos em conjunto com os utilizadores, as comunidades e as organizações da sociedade civil, uma vez que tal pode assegurar que satisfazem as necessidades reais e, além disso, permitir a participação democrática.

4.3No entanto, os domínios e o nível de aplicação da cocriação dependem do contexto. Nem todos os serviços, comunidades e prestadores de serviços – em particular no domínio das infraestruturas essenciais, como o abastecimento de energia e água – se prestam a uma abordagem radicalmente nova da prestação de serviços e da partilha de responsabilidades, embora cada passo no sentido do reforço do impacto da cocriação e da promoção colaborativa de soluções eficazes se revele compensador. Para maximizar a participação dos utilizadores, poderia recomendar-se a utilização da «escala da cocriação» 18 com diferentes níveis de participação sistemática de intervenientes pertinentes dos setores público e privado, desde um nível de participação mais baixo (quando os organismos públicos procuram capacitar mais os cidadãos para poderem controlar as suas próprias vidas e os encorajam a cocriarem os serviços que lhes são oferecidos pelo setor público) até ao nível mais elevado (quando é facilitada a inovação colaborativa baseada num trabalho conjunto de definição da agenda e de identificação dos problemas, na conceção conjunta e no ensaio de soluções novas e que ainda não foram experimentadas, bem como na execução coordenada a partir da aplicação de soluções dos setores público e privado).

4.4A cocriação implica a adoção de formas de trabalho baseadas em pontos fortes ou em ativos. A abordagem baseada em ativos passa pela mobilização dos recursos (materiais e imateriais), e das capacidades e aspirações dos utilizadores dos serviços, em vez do mero registo e satisfação das suas necessidades. Esta abordagem baseia-se no pressuposto de que todos os cidadãos têm recursos valiosos e amiúde não reconhecidos (cultura, tempo, experiência de vida e de aprendizagem, conhecimentos práticos, redes, competências, ideias) com que podem contribuir para o desenvolvimento e a prestação de serviços. O instrumentário metodológico da cocriação abrange vários métodos, desde inquéritos de satisfação, como os que são utilizados no comércio eletrónico, e sondagens de opinião, às várias formas de expressão de opiniões com recurso à utilização de ferramentas digitais, de grupos e painéis de reflexão, a métodos participativos (por exemplo, hackathons sociais (maratonas criativas para resolução de problemas sociais), tecnologias de espaço aberto, laboratórios vivos, world cafés (conversas e debates informais centrados numa temática a explorar), service blueprints (mapeamento de processos em empresas prestadoras de serviços), design thinking (abordagem colaborativa para resolução de problemas), jornadas do utilizador, e várias ferramentas de participação em linha).

4.5No entanto, a cocriação não é uma solução técnica e não pode ser concretizada através de um único exercício. É uma abordagem que penetra os processos de conceção e prestação dos serviços em diversas fases. Nas suas formas mais radicais, este conjunto de instrumentos abrange formas de cogovernação que promovem uma transferência de poder e, por vezes, uma transferência de propriedade dos serviços para as pessoas e as comunidades. Tal inclui a participação formal de pessoas com experiência concreta em acordos de governação, acordos recíprocos, cooperativas e organizações comunitárias.

4.6Um pré-requisito de um processo de cocriação bem-sucedido é o envolvimento de todos os grupos de potenciais utilizadores, para que possam representar os respetivos interesses. Uma participação que favoreça os cidadãos com mais recursos ou com maior predisposição para participar pode conduzir a processos não democráticos.

4.7Outra condição sine qua non da cocriação é a existência de uma relação de confiança entre os participantes no processo, designadamente entre os prestadores dos serviços e as partes interessadas, que só poderá ser construída se houver transparência no que respeita aos objetivos que o serviço se propõe alcançar através dos processos de cocriação e se o âmbito e o alcance do serviço forem partilhados abertamente com os cocriadores. 19

4.8A cocriação deve sempre ocorrer no contexto do planeamento das necessidades nacionais, regionais e locais. Os conflitos entre as diferentes necessidades devem ser sempre tidos em conta. Uma vez identificadas as necessidades, poder-se-á debater, no âmbito de consultas públicas, propostas para a sua hierarquização, nas quais assentarão as decisões tomadas pelos órgãos de mediação e decisão competentes, a fim de garantir a qualidade elevada, a segurança do aprovisionamento e a acessibilidade, bem como a igualdade de tratamento e o respeito pelos direitos dos utilizadores. O objetivo último dos SIG deve ser a criação de benefícios para a sociedade no seu conjunto. O processo de cocriação não deve de forma alguma conduzir involuntariamente a uma redução da qualidade dos serviços, a aumentos injustificados dos preços ou a uma restrição do acesso aos serviços.

4.9A cocriação consiste numa interação dinâmica entre os prestadores dos serviços, os utilizadores dos serviços e outras partes interessadas que envolve várias etapas potenciais:

4.9.1Coiniciação: definição conjunta dos objetivos e finalidades dos serviços individuais desde o início do processo;

4.9.2Participação das partes interessadas: envolvimento de novos atores (utilizadores, clientes, prestadores de serviços) assegurando um envolvimento contínuo no processo;

4.9.3Coconceção: conceção conjunta do serviço;

4.9.4Coexecução: prestação conjunta de serviços;

4.9.5Cogestão: organização e gestão conjunta dos serviços;

4.9.6Cogovernação: formulação conjunta de políticas;

4.9.7Coavaliação: avaliação conjunta da eficácia e da eficiência dos serviços e das decisões tomadas com base num conjunto de critérios.

4.10Neste contexto, é de referir que já existem, na prática, modelos inovadores em que a prestação de um serviço público não é possível sem a participação ativa dos utilizadores 20 .

4.11É fundamental desenvolver os SIG, no âmbito de um esforço de colaboração com os utilizadores, as comunidades e as organizações da sociedade civil, a fim de assegurar que criam e acrescentam valor à oferta de SIG – isto é, aumento do bem-estar ou do entendimento partilhado do bem comum que possa servir de base ao desenvolvimento de políticas, estratégias e serviços. Num processo de desenvolvimento de serviços através da cocriação, as pessoas que utilizam os serviços colaboram com profissionais na conceção, criação e prestação dos serviços 21 . Por conseguinte, neste processo, os papéis do inovador, do prestador do serviço e do utilizador do serviço convergem.

4.12O valor acrescentado da cocriação reside sempre na cooperação ativa entre os poderes públicos com responsabilidade jurídica/política pela prestação de SIG, os prestadores de serviços e os utilizadores, que devem participar no processo de cocriação democrática. A cocriação melhora, assim, a legitimidade democrática das decisões tomadas pelos dirigentes políticos.

4.13Este valor acrescentado contribui, em particular, para reforçar a participação democrática quando os prestadores de serviços fazem parte das organizações da sociedade civil ou do setor da economia social sem fins lucrativos, em que o pessoal a tempo inteiro coopera com voluntários ou estruturas de entreajuda, ou quando as organizações da sociedade civil que representam os interesses dos utilizadores podem exercer uma influência real sobre os prestadores de serviços, públicos ou privados. Além disso, a cocriação também tem uma dimensão moral, ou seja, reforça as comunidades, a coesão e a confiança entre os intervenientes 22 .

4.14Este aspeto é igualmente visível em situações de crise. Um exemplo atual é a prestação de serviços por organizações da sociedade civil (especialmente nos domínios social e educacional) ao serviço e com a participação de refugiados da guerra na Ucrânia. A capacidade de ação imediata da sociedade civil para implementar de forma espontânea, mas bem-sucedida, os modelos e processos de cocriação revelou-se essencial e possível em territórios que já tinham sido bem-sucedidos em processos de cocriação.

5.Iniciativas políticas a nível europeu

5.1Embora a criação de condições para a prestação e, portanto, a cocriação de SIG sejam principalmente da competência dos Estados-Membros, regiões e municípios, é necessário incentivar os governos centrais e os órgãos de poder regional e local a apoiarem de forma adequada a prestação de SIG de qualidade. Para o efeito, é urgente incentivar os Estados‑Membros a desenvolverem conceitos de coconceção através da criação de um conjunto de instrumentos que facilite a utilização de modelos de coconceção. Tais iniciativas devem servir de incentivo para que todos os intervenientes competentes nos Estados-Membros promovam a cocriação e a prestação de SIG pelas organizações da sociedade civil. Tal decorre, em parte, do facto de a abordagem da cocriação contribuir significativamente para a adaptação dos serviços à mudança das necessidades e para a sua modernização e orientação para o futuro.

5.2Para tal, o CESE insta a Comissão Europeia a adotar uma abordagem transversal, que tenha em conta as suas diversas áreas de competência e todas as partes interessadas, a fim de elaborar um conjunto de instrumentos que integre diferentes formas de cocriação, os projetos-piloto realizados e as conclusões resultantes dos mesmos.

5.3Mais especificamente, o CESE propõe que a Comissão publique um documento de trabalho sobre esta matéria enquanto base para prosseguir o trabalho, com vista à criação de um «conjunto de instrumentos» destinado a orientar e incentivar os órgãos de poder nacional, regional e local a fazerem maior uso dos modelos de cocriação. Tal documento deve incluir, nomeadamente, uma análise da cocriação à luz do artigo 14.º e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e do Protocolo n.º 26 anexo ao TUE e ao TFUE, tendo em conta o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, o papel especial da economia social sem fins lucrativos na cocriação e as condições necessárias para a mesma, tal como estabelecido no Parecer do CESE – Reforçar as empresas sociais sem fins lucrativos enquanto pilar essencial de uma Europa socialmente equitativa, de 18 de setembro de 2020 23 . Além disso, o documento deve ainda fazer referência à aplicação do artigo 77.º da Diretiva 2014/24/UE relativa aos contratos públicos 24 de uma forma que preveja a adjudicação de contratos a organizações sem fins lucrativos para a prestação de serviços de saúde, educação, sociais e culturais visados pelo referido artigo. Além disso, o documento deve igualmente incluir propostas para a promoção, a nível europeu e nacional, de projetos inovadores de cocriação, tendo em conta as componentes de investigação, bem como um conjunto de boas práticas. Com base no conjunto de instrumentos referido, e após uma consulta alargada a nível da UE, poder-se-ia lançar um Livro Verde e, posteriormente, um Livro Branco.

5.4Por seu lado, o CESE criará um fórum para o intercâmbio de ideias e boas práticas neste domínio, com a participação de organizações da sociedade civil, universidades e projetos de investigação, a fim de manter e desenvolver o processo de debate a nível europeu.

Bruxelas, 7 de setembro de 2022

Baiba Miltoviča

Presidente da Secção dos Transportes, Energia, Infraestruturas e Sociedade da Informação

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(1)     JO C 429 de 11.12.2020, p. 131 .
(2)     https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=PT .
(3)     https://cosie.turkuamk.fi .
(4)    Drechsler, W. (2009) Towards a Neo-Weberian European Union? Lisbon agenda and public administration [Rumo a uma União Europeia neo-weberiana? A Estratégia de Lisboa e a administração pública], Halduskultuur – Administrative Culture 2009, 10(1), pp. 6-21.
(5)    Çolak, Ç. D. (2019) Why the new public management is obsolete: an analysis in the context of the post-new public management trends, [Razões da obsolescência da nova gestão pública: uma análise no contexto das tendências pós-nova gestão pública] Croatian and Comparative Public Administration 2019, 19(4), pp. 517-536, https://doi.org/10.31297/hkju.19.4.1 .
(6)    Torfing, J., Sørensen, E., & Røiseland, A. (2019) Transforming the public sector into an arena for co-creation: Barriers, drivers, benefits and ways forward [Transformar o setor público num palco de cocriação: obstáculos, catalisadores, benefícios e vias de progresso]. Administration & Society 2019, 51(5), pp. 795-825, https://doi.org/10.1177/0095399716680057 .
(7)     https://ec.europa.eu/info/topics/single-market/services-general-interest_pt .
(8)    Já consagrados no Tratado de Roma, atualmente no artigo 106.º do TFUE.
(9)    TFUE – Disposições de aplicação geral, artigo 14.º.
(10)    Protocolo n.º 26 do TUE e do TFUE.
(11)    Artigo 36.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
(12)    Princípio 20 do Pilar.
(13)    Protocolo n.º 26 do TUE e do TFUE.
(14)    Artigo 14.° do TFUE.
(15)    Artigo 106.° do TFUE.
(16)    Com o agravamento da crise da habitação em muitos Estados-Membros, a habitação a preços acessíveis está também a tornar-se cada vez mais importante enquanto serviço essencial.
(17)    «Água, saneamento, energia, transportes, serviços financeiros e comunicações digitais».
(18)    Torfing et al., ibid.
(19)     https://cosie.turkuamk.fi/uploads/2021/05/03f68026-toolkit-public.pdf .
(20)    Por exemplo, em França: «Services Publics Partagés» [Serviços Públicos Partilhados]: https://service-public-partage.fr/ .
(21)    Social Care Institute of Excellence (2015) Co-production in social care: what it is and how to do it? [Coprodução na assistência social: o que é e como se faz?] Guia n.º 51 do Social Care Institute for Excellence (SCIE).
(22)    C. Fox et al. (2021) A New Agenda for Co-Creating Public Services [Uma nova estratégia para a cocriação de serviços públicos], Turku University of Applied Sciences, https://julkaisut.turkuamk.fi/isbn9789522167842.pdf .
(23)     JO C 429 de 11.12.2020, p. 131 .
(24)     https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=PT .