PARECER
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Comité Económico e Social Europeu
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Autonomia estratégica e segurança e sustentabilidade alimentares
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Autonomia estratégica e segurança e sustentabilidade alimentares (parecer de iniciativa)
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NAT/822
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Relator: Klaas Johan Osinga
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Decisão da plenária
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25/03/2021
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Base jurídica
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Artigo 32.°, n.º 2, do Regimento
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Parecer de iniciativa
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Competência
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Secção da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Ambiente
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Adoção em secção
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04/10/2021
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Adoção em plenária
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20/10/2021
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Reunião plenária n.º
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564
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Resultado da votação
(votos a favor/votos contra/abstenções)
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128/0/1
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1.Conclusões e recomendações
1.1O Comité Económico Social e Europeu (CESE) propõe uma definição de autonomia estratégica aberta aplicada aos sistemas alimentares, assente na produção alimentar, na mão de obra e no comércio justo, com o objetivo geral de garantir a segurança e a sustentabilidade alimentares para todos os cidadãos da UE através de um abastecimento alimentar justo, saudável, sustentável e resiliente.
1.2Em particular, importa diversificar em maior medida os sistemas alimentares da UE, reforçar a mão de obra agrícola, nomeadamente atraindo os jovens e garantindo condições de trabalho e remuneração dignas, e alinhar as políticas comerciais com as normas de sustentabilidade alimentar da UE e com a competitividade.
1.3A melhor forma de assegurar a autonomia estratégica aberta e a sustentabilidade dos sistemas alimentares é através da criação de um conjunto de ferramentas que inclua medidas de gestão do risco para ajudar as cadeias de abastecimento alimentar a fazer face a situações extremas e as autoridades nacionais e da UE a tomar medidas imediatas.
1.4Os acontecimentos recentes causados pela COVID-19, as condições meteorológicas extremas devido às perturbações do clima e os ciberataques demonstram a necessidade de melhorar a resiliência e a sustentabilidade dos sistemas alimentares. No âmbito da Estratégia do Prado ao Prato, a Comissão Europeia está a elaborar um plano de contingência da UE para o abastecimento e a segurança alimentar e um mecanismo conexo da UE de resposta a situações de crise alimentar. Tal deve ajudar a aumentar a sensibilização para os riscos, devendo também prever a identificação, a avaliação, o registo e o acompanhamento dos principais riscos mediante a realização de testes de resistência dos sistemas críticos a nível da UE e dos Estados‑Membros, e contribuir para a aplicação de medidas que resolvam os problemas enfrentados.
1.5A UE necessita de um sistema para evitar que ocorrências como as falhas de energia e de rede ou os ciberataques degenerem em situações fora de controlo devido a relações de dependência. Por exemplo: uma cidade que tenha de estar várias semanas em confinamento, uma falha de energia que se prolongue por vários dias, um ciberataque dirigido a uma empresa ou retalhista do setor alimentar.
1.6A fim de melhorar os mecanismos de resposta, é necessário desenvolver os sistemas alimentares existentes e, ao mesmo tempo, diversificá-los, incluindo os modelos de negócio das lojas de explorações agrícolas, a agricultura urbana, a agricultura vertical e, de uma forma geral, a abordagem «produção local para consumo local». Tal implica uma aplicação mais vasta de investigação e inovação por parte de agricultores e produtores, devendo contribuir para minimizar os riscos do surgimento de «desertos alimentares» e da especialização da produção. Ao mesmo tempo, devem reforçar-se as vantagens dos sistemas de distribuição eficientes, que partem das explorações agrícolas para as instalações de transformação e os mercados.
1.7A fim de garantir a produção a longo prazo de géneros alimentícios suficientes e saudáveis, e meios de subsistência viáveis, é importante que os recursos naturais sejam utilizados de forma sustentável, preservando o solo e os recursos hídricos, combatendo as alterações climáticas e as perdas de biodiversidade e protegendo o bem-estar animal. A UE deve também reforçar a produção local e regional, a fim de conjugar uma produção e uma transformação alimentares bem equilibradas com uma pegada de carbono reduzida.
1.8A política agrícola comum (PAC) desempenha um papel vital do ponto de vista económico, social e ambiental. Deve estabilizar os mercados durante as crises, assegurando ao mesmo tempo que os agricultores e a indústria transformadora dispõem de uma rede de segurança e protegendo o ambiente, o clima, a mão de obra e o bem-estar animal. A PAC contribui para manter a capacidade estratégica de produção, bem como a segurança dos alimentos e a segurança alimentar.
1.9As explorações agrícolas, os terrenos agrícolas férteis e os recursos hídricos são ativos estratégicos e devem ser protegidos até um certo nível em toda a UE, pois constituem a espinha dorsal da nossa autonomia estratégica aberta no domínio alimentar.
1.10O CESE reitera a sua recomendação de explorar a possibilidade de criar um conselho europeu de política alimentar com várias partes interessadas e a vários níveis. No contexto da autonomia estratégica aberta, esse conselho poderia desempenhar, nomeadamente, um papel de acompanhamento e ajudar a avaliar e a antecipar os riscos na cadeia de abastecimento alimentar.
1.11A UE deve assegurar que as fronteiras se mantêm abertas de forma segura e que a mão de obra e a logística continuam operacionais para a produção e distribuição de géneros alimentícios («corredores verdes»), tanto no interior da UE como para países terceiros, o que implica um forte mecanismo de coordenação entre os Estados-Membros, a Comissão Europeia e os países terceiros.
2.Introdução
2.1O presente parecer de iniciativa tem por objetivo explorar o conceito de «autonomia estratégica aberta» para a Europa em relação à segurança e à sustentabilidade alimentares futuras e apresentar pontos de vista e recomendações políticas da sociedade civil de caráter prospetivo. Em particular, o parecer fornece matéria de reflexão sobre questões decorrentes de acontecimentos recentes como a pandemia de COVID-19, as condições meteorológicas extremas, os ciberataques e as tensões políticas e sociais.
2.2A «autonomia estratégica aberta» deve ser encarada como uma oportunidade para a UE garantir a segurança do abastecimento alimentar e estabelecer normas de sustentabilidade alimentar elevadas, em particular no contexto do Pacto Ecológico Europeu e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. O desafio europeu da sustentabilidade alimentar deve ser abordado tanto a nível interno como externo, e o presente parecer examinará também as possíveis formas de proteger e melhorar a disponibilidade de alimentos sustentáveis para todos os cidadãos da UE, especialmente em tempos de crise.
2.3O parecer baseia-se em várias propostas e ideias concretas já apresentadas pelo CESE em trabalhos anteriores, que podem ser sintetizadas do seguinte modo:
·Promover uma política alimentar global na UE, com o objetivo de favorecer regimes alimentares saudáveis assentes em sistemas alimentares sustentáveis, associar a agricultura à nutrição e aos serviços ecossistémicos e garantir cadeias de abastecimento capazes de proteger a saúde pública em todos os segmentos da sociedade europeia. Essa política, que agora se reflete na Estratégia do Prado ao Prato da Comissão, deverá emprestar maior coerência aos diferentes domínios de ação ligados à alimentação, recuperar o valor dos alimentos e promover uma transição a longo prazo do produtivismo e consumismo alimentares para a cidadania alimentar;
·Reforçar o potencial das cadeias de abastecimento alimentar curtas, da agroecologia e dos sistemas de qualidade dos produtos agrícolas;
·Assegurar preços justos e proibir práticas comerciais desleais;
·Incorporar a Estratégia do Prado ao Prato e a Estratégia de Biodiversidade do Pacto Ecológico como normas globais de sustentabilidade em todos os acordos comerciais futuros da UE;
·Garantir o envolvimento e a participação estruturados da sociedade civil e de todas as partes interessadas em toda a cadeia de abastecimento alimentar, nomeadamente através de um conselho europeu de política alimentar.
2.4Por último, o parecer de iniciativa visa contribuir com informações importantes para o trabalho em curso sobre a Estratégia do Prado ao Prato do Pacto Ecológico, a PAC, a revisão da política comercial e a agenda de prospetiva estratégica, trazendo a segurança e a sustentabilidade alimentares da UE para o centro da análise.
2.5Em setembro de 2021, as Nações Unidas realizaram uma Cimeira sobre Sistemas Alimentares, destinada a ajudar os países a alcançar os 17 ODS, em particular o ODS 2 – Erradicar a Fome. O CESE forneceu um contributo para o debate.
3.Autonomia estratégica aberta, os elementos-chave do sistema alimentar
3.1Segundo a Comissão Europeia, a «autonomia estratégica aberta» consiste na capacidade da UE para fazer as suas próprias escolhas e para moldar o mundo à sua volta através da liderança e do envolvimento, refletindo os seus valores e interesses estratégicos. Permite que a UE seja mais forte, tanto do ponto de vista económico como geopolítico, ao ser:
·aberta ao comércio e ao investimento que ajuda a economia da UE a recuperar de crises e a manter-se competitiva e ligada ao mundo;
·sustentável e responsável, assumindo a liderança internacional para moldar um mundo mais ecológico e justo, reforçando as alianças existentes e interagindo com muitos parceiros;
·assertiva contra práticas desleais e coercivas e disposta a fazer valer os seus direitos, privilegiando sempre a cooperação internacional para a resolução de problemas mundiais.
3.2É necessário definir melhor a «autonomia estratégica aberta» no que diz respeito aos sistemas alimentares. O CESE pretende contribuir para a reflexão sobre a melhor forma de preparar a UE para futuras crises. Este aspeto deve fazer parte do Plano de Recuperação da UE, por exemplo através da utilização dos fundos do Instrumento de Recuperação da União Europeia (Next Generation EU).
3.3O CESE propõe uma definição de autonomia estratégica aberta baseada na produção alimentar, na mão de obra e no comércio justo, com o objetivo geral de garantir a segurança e a sustentabilidade alimentares para os cidadãos da UE através de um abastecimento alimentar justo, sustentável e resiliente.
3.4Produção alimentar
3.4.1A segurança alimentar deve ser abordada de um ponto de vista internacional, nacional e local. As cidades, que produzem poucos alimentos frescos – os chamados «desertos alimentares» – acolhem 55% da população mundial, e as Nações Unidas preveem que esta percentagem aumente, atingindo 68% até 2050. As projeções mostram que a urbanização, combinada com o crescimento geral da população mundial, pode provocar um acréscimo de 2,5 mil milhões de pessoas nas zonas urbanas até 2050. Estima-se que o nível de urbanização da Europa aumente para aproximadamente 83,7% em 2050.
3.4.2No mercado interno da União Europeia, os géneros alimentícios são transportados diariamente, na maior parte dos casos, das zonas rurais e das indústrias transformadoras para os supermercados das zonas urbanas. Nos confinamentos de 2020/21, contudo, as lojas locais, as lojas de explorações agrícolas e as lojas em linha gozaram de uma popularidade crescente entre os consumidores.
3.4.3O desenvolvimento de cadeias de abastecimento curtas contribui para a resiliência da Europa. Os canais de distribuição locais devem estar adaptados às necessidades das populações e às especificidades dos territórios e dos climas. As capacidades de transformação devem ser mais desenvolvidas a nível local.
3.4.4A diversificação da produção também contribuirá para aumentar a resiliência da UE. A Estratégia do Prado ao Prato prevê um aumento das terras agrícolas dedicadas à agricultura biológica, sendo as hortas e a agricultura urbana e vertical opções válidas e cada vez mais populares que permitem reduzir a distância de transporte dos alimentos. Estas iniciativas devem ser associadas a outras formas locais e regionais de produção e transformação de alimentos, a fim de criar uma rede de segurança.
3.4.5A identificação das vulnerabilidades deve estar no topo da agenda da UE. Os Estados-Membros e a Comissão Europeia devem cooperar na deteção de lacunas, na redução do desperdício alimentar, no desenvolvimento de cenários e na coordenação de ações de formação e comunicação específicas.
3.4.6A gestão inteligente das reservas alimentares deve fazer parte da autonomia estratégica aberta da UE no domínio alimentar e deve prever a rotação periódica das reservas estratégicas, evitando a especulação por parte dos comerciantes, nomeadamente a compra de matérias-primas e alimentos abaixo do preço de custo, e reações fortes do mercado ao assegurar a transparência do mesmo.
3.5A mão de obra
3.5.1São poucos os jovens com formação e a intenção de trabalhar no domínio da agricultura. Em 2016, por cada agricultor da UE com menos de 35 anos, havia mais de seis agricultores com idade superior a 65 anos.
3.5.2Além disso, os agricultores continuam a absorver uma parte desproporcionada dos danos e perdas resultantes de catástrofes. O aumento da sua frequência e intensidade, aliado à natureza sistémica do risco, está a afetar a vida das pessoas, a devastar meios de subsistência e a colocar em risco todo o nosso sistema alimentar.
3.5.3É essencial aumentar a mão de obra agrícola na Europa, proteger a agricultura e os terrenos agrícolas férteis e assegurar sistemas de conhecimento e inovação agrícolas adequados. Os jovens e as mulheres devem ser incentivados a participar na atividade agrícola e a trabalhar nas explorações agrícolas a longo prazo.
3.5.4A garantia de condições de trabalho dignas para os trabalhadores da UE e de países terceiros na agricultura, no setor alimentar e em todos os níveis da cadeia de abastecimento é uma condição indispensável para a implementação de um sistema alimentar sustentável e resiliente. Devem ser garantidos financiamentos adequados, salários justos e mais elevados, preços justos, subsídios de adaptação às alterações climáticas e os direitos dos trabalhadores sazonais.
3.5.5Segundo o CESE, uma política alimentar global da UE deve proporcionar sustentabilidade económica, ambiental e sociocultural. Por conseguinte, é indispensável assegurar que a Estratégia do Prado ao Prato redefina fundamentalmente a dinâmica da cadeia de abastecimento e proporcione aos agricultores melhorias duradouras dos rendimentos e dos meios de subsistência. Coloca-se a questão de saber se esta mudança fundamental necessária se concretizará se não forem criados os incentivos políticos e económicos adequados.
3.6Comércio
3.6.1As exportações agroalimentares da UE-27 em 2020 foram avaliadas em 184,3 mil milhões de euros, o que representa um aumento de 1,4% em relação a 2019, ao passo que as importações, num montante de 122,2 mil milhões de euros, registaram um aumento de 0,5% relativamente ao ano anterior. O excedente comercial agroalimentar em 2020 foi de 62 mil milhões de euros, o que representa um aumento de 3% em relação a 2019. Segundo o Centro Comum de Investigação (JRC), mil milhões de euros de exportações agroalimentares criam, em média, 20 000 empregos, dos quais 13 700 no setor primário. Ao mesmo tempo, a agricultura representava cerca de 4,2% do emprego total na UE em 2016.
3.6.2O Reino Unido, os EUA, a China, a Suíça e o Japão foram os maiores mercados agroalimentares da UE, sendo destinatários de mais de 52% de todas as exportações. Entre as maiores fontes de importações agroalimentares da UE em 2020, contam-se o Reino Unido, o Brasil, os EUA, a Ucrânia e a China.
3.6.3A UE desempenha um papel importante no comércio mundial de produtos agroalimentares, e é essencial que as suas políticas comerciais sejam consentâneas com os seus objetivos em matéria de sustentabilidade. Num parecer anterior, o CESE propôs que todos os futuros acordos comerciais da UE incorporassem a Estratégia do Prado ao Prato e a Estratégia de Biodiversidade, do Pacto Ecológico, enquanto normas globais de sustentabilidade. Reconheceu a importância e o valor das atividades comerciais baseadas em regras, em condições de concorrência equitativas, e previu um grande contributo dessas atividades para a recuperação económica após a crise da COVID-19.
3.6.4A fim de reduzir a dependência dos fatores de produção agrícola, a UE deve apoiar práticas de baixo consumo, especialmente em termos de combustíveis fósseis e pesticidas, e fomentar a capacidade de produção de fatores de produção agrícola na Europa.
3.6.5São necessários sistemas inovadores para proteger e melhorar a base de recursos naturais, promovendo ao mesmo tempo uma produção eficiente. As novas tecnologias, os robôs e as vacinas são ativos importantes a desenvolver.
4.Gestão dos riscos e cenário de teste de resistência
4.1De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a humanidade e a nossa segurança alimentar enfrentam uma série de ameaças novas e sem precedentes, como condições meteorológicas extremas devido às perturbações do clima, doenças e pandemias. A agricultura depara-se com uma série de riscos que, num mundo hiperconectado, interagem entre si.
4.2A FAO indica que, em 2020/21, os preços dos alimentos atingiram o nível mais elevado desde 2011. Afirma-se com frequência que a volatilidade dos preços é impulsionada em parte pela especulação. A ONU e a OCDE indicam que, em 2020, entre 720 e 811 milhões de pessoas passaram fome. Quase uma em cada três pessoas no mundo (2,37 mil milhões) não tinha acesso a uma alimentação adequada em 2020, o que corresponde a um aumento de 320 milhões num ano.
4.3A pandemia de COVID-19 demonstra que, mesmo na Europa, a segurança alimentar não deve ser tida como um dado adquirido. Todos os intervenientes e atividades ao longo da cadeia alimentar estão hiperconectados. Durante a pandemia, os países introduziram restrições comerciais. Mesmo no interior da UE, os Estados-Membros adotaram medidas unilaterais fechando fronteiras e colocando em risco o transporte de géneros alimentícios e trabalhadores sazonais. Graças às rápidas adaptações por parte dos agricultores e parceiros da cadeia alimentar, a produção, a transformação e a distribuição não cessaram. A Comissão também tomou medidas para manter o funcionamento do mercado interno. No entanto, muitos empresários foram afetados economicamente pela crise, com a suspensão das viagens, do turismo e da restauração.
4.4Os ciberataques, como os ataques de software de sequestro, provocam crises na vida real, tal é a quantidade dos dados atualmente em linha («Internet das coisas»). Segundo a agência noticiosa AP, o pagamento médio aos cibercriminosos atingiu 310 000 dólares americanos em 2020, o que representa um aumento de 311%. Em média, as vítimas só recuperaram o acesso aos seus dados após 21 dias.
4.5Em abril de 2021, a principal cadeia de supermercados neerlandesa (Albert Heijn) deixou de ter alguns produtos de queijo durante vários dias na sequência de um ciberataque a um grande distribuidor. A maior empresa de transformação de carnes do mundo, a JBS, sofreu recentemente um ciberataque, o que intensificou as preocupações de segurança nos EUA no que diz respeito ao abastecimento nacional de alimentos. Estima-se que muitos ciberataques não são comunicados pelas empresas para evitar reações do mercado como os açambarcamentos e o aumento vertiginoso dos preços. Mesmo não sendo o alvo direto, algumas empresas também sofreram indiretamente os efeitos de ciberataques, como o ataque com software de sequestro ao fornecedor de software Kaseya, dos Estados Unidos, que levou ao encerramento de várias centenas de lojas do grupo Cooperative na Suécia, em julho de 2021.
4.6Igualmente preocupante foi o bloqueio do canal do Suez por um navio porta-contentores de 200 000 toneladas no início de abril de 2021. Estes incidentes revelam a vulnerabilidade das cadeias de abastecimento mundiais. Uma perturbação dessas cadeias durante alguns dias traduz‑se em atrasos que levam muito tempo a recuperar, o que pode causar um aumento dos preços para os consumidores e as empresas.
4.7Em setembro, a Comissão Europeia publicou o seu Relatório de prospetiva estratégica 2021, centrado na autonomia estratégica aberta. A Comissão considera que «garantir sistemas [...] alimentares sustentáveis e resilientes» é um dos domínios estratégicos fundamentais para reforçar a liderança mundial da UE. A este respeito, é mencionada a necessidade de investir na inovação para assegurar sistemas alimentares resilientes e sustentáveis.
4.8Além disso, um documento técnico recente do Centro Comum de Investigação fornece informações de base para os quadros de indicadores de resiliência apresentados no Relatório de prospetiva estratégica de 2020 da Comissão. Essas informações incluem indicadores de vulnerabilidade relacionados com o acesso a serviços locais e a dependência da importação de géneros alimentícios, e demonstra a importância geopolítica dos alimentos. Um quadro de indicadores ajuda a cartografar a vulnerabilidade e desenvolver testes de resistência direcionados. Trata-se, no entanto, de uma abordagem geral, dado não existir um indicador único, e os quadros de indicadores de resiliência estão atualmente a ser revistos.
4.9É necessário que as cadeias de abastecimento passem de um sistema imediato (just in time) para um sistema de antecipação de imprevistos (just in case). A dependência de fornecedores monopolistas no que toca a certos produtos pode estar sujeita à interferência de governos hostis. Em causa está também o abastecimento de fatores de produção aos agricultores e às empresas de transformação de alimentos. O CESE apela, por isso, a uma análise da disponibilidade alimentar da UE do ponto de vista da segurança, que pode ser realizada através de estudos de cenários.
4.10Deve recorrer-se aos testes de resistência para expor vulnerabilidades. Por exemplo: quais são as possíveis consequências de falhas das redes locais, regionais ou nacionais de energia e de telecomunicações que se prolonguem por vários dias? Trata-se, reconhecidamente, de um dos riscos mais imponentes para a infraestrutura crítica de qualquer nação, incluindo o abastecimento de alimentos. Os impactos diretos no abastecimento alimentar são diversos, nomeadamente: falhas no abastecimento de eletricidade, água e gás; a perda de capacidade de refrigeração e congelação; a perda de instalações de cozedura, panificação e transformação/fabrico; a perda de aquecimento e iluminação; a incapacidade de garantir a higiene alimentar básica; a incapacidade de obter combustível para veículos de distribuição ou outros usos na cadeia de abastecimento. No entanto, os impactos indiretos resultantes de impactos noutras infraestruturas críticas também podem ter consequências significativas. Uma ausência prolongada de telecomunicações e comunicações de dados colocaria desafios sérios e imediatos à forma como as empresas comunicam internamente e com agências governamentais, fornecedores, clientes e consumidores para facilitar a disseminação de informações vitais e efetuar novas encomendas e pagamentos, inclusive através de sistemas de ligação bancária.
4.11O CESE recomenda uma investigação mais aprofundada deste cenário.
5.Recomendações sobre a via a seguir
5.1A autonomia estratégica aberta enquanto conceito oferece oportunidades, mas também apresenta riscos. A prosperidade da UE depende igualmente do comércio mundial e, por conseguinte, da existência de regras claras para o comércio e de medidas definidas.
5.2A escassez de alimentos, real ou aparente, pode levar a que os consumidores façam compras por pânico, com menor consideração pelo clima, a biodiversidade ou o bem-estar animal. Por esse motivo, a Europa só se pode tornar mais ecológica se também se tornar mais resiliente.
5.3A COVID-19 mostrou que uma perturbação mais prolongada das cadeias de abastecimento provoca efeitos em cascata em toda a economia, podendo o regresso à normalidade levar vários anos.
5.4A autonomia estratégica aberta no domínio alimentar não pode existir sem uma política comercial aberta e justa. A União Europeia não pode voltar a aplicar políticas protecionistas, porque tal criaria novas vulnerabilidades e poderia causar danos consideráveis. A título de exemplo, a UE fornece cereais ao Norte de África e ao Médio Oriente. Muitas vezes, as cadeias de abastecimento internacionais são mais eficientes e diversificadas, pelo que são mais capazes de se adaptar rapidamente a novos choques do que as cadeias locais.
5.5A UE deve avaliar em que casos e para que produtos a autossuficiência é uma abordagem oportuna. Há que aumentar a sensibilização dos consumidores e do público em geral para o modo de funcionamento das cadeias de abastecimento.
5.6A UE, em conjunto com as Nações Unidas e os seus parceiros comerciais, deve abordar as causas profundas da insegurança alimentar e contribuir para a tão necessária transformação do sistema alimentar, tornando a agricultura mais resiliente aos choques. Os governos têm um papel a desempenhar no apoio às cadeias de abastecimento para que estas se tornem mais sustentáveis, robustas e seguras.
5.7Num recente documento informal conjunto, a França e os Países Baixos apelaram a condições comerciais mais rigorosas na UE, incluindo um plano da UE sobre conduta empresarial responsável. Tal deverá assegurar uma política coerente e harmonizada, mantendo simultaneamente condições de concorrência equitativas no mercado interno da UE. Um plano de ação da UE sobre conduta empresarial responsável deve constituir a estratégia principal da abordagem da UE para promover o comércio justo, a produção responsável e a gestão das cadeias de abastecimento.
5.8A Espanha e os Países Baixos elaboraram recentemente um documento informal conjunto sobre a prossecução de uma autonomia estratégica mantendo, simultaneamente, uma economia aberta. Um dos aspetos referidos nesse documento era o de que a «autonomia estratégica aberta» deveria ser uma das questões debatidas na Conferência sobre o Futuro da Europa.
5.9Neste contexto, é também pertinente o debate da UE sobre o dever de diligência e o código de conduta da Estratégia do Prado ao Prato. A este respeito, as empresas e organizações do setor agroalimentar têm agora a oportunidade de assinar o código de conduta para práticas empresariais e comerciais responsáveis, lançado pela Comissão Europeia no âmbito da Estratégia do Prado ao Prato.
Bruxelas, 20 de outubro de 2021
Christa Schweng
Presidente do Comité Económico e Social Europeu
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