ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

27 de abril de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigos 9.o e 15.o — Prolongamento da competência dos tribunais do Estado‑Membro da antiga residência habitual da criança subsequente à mudança de residência — Conceito de “mudança de residência” — Pedido de alteração de uma decisão relativa ao direito de visita — Cálculo do prazo dentro do qual esse pedido deve ser apresentado — Transferência do processo para um tribunal do Estado‑Membro da nova residência habitual da criança mais bem colocado para apreciar a ação»

No processo C‑372/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo, Luxemburgo), por Decisão de 8 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de junho de 2022, no processo

CM

contra

DN,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: L. S. Rossi (relatora), presidente de secção, J.‑C. Bonichot e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Comissão Europeia, por S. Noë e W. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 9.o, n.o 1, e do artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe CM a DN a respeito do direito de visita dos seus filhos menores.

Regulamento n.o 2201/2003

3

Os considerandos 12, 13 e 33 do Regulamento n.o 2201/2003 têm a seguinte redação:

«(12)

As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

(13)

No interesse da criança, o presente regulamento permite que o tribunal competente possa, a título excecional e em certas condições, remeter o processo a um tribunal de outro Estado‑Membro se este estiver em melhores condições para dele conhecer. Todavia, nesse caso, o segundo tribunal não deverá ser autorizado a remeter o processo a um terceiro tribunal.

[…]

(33)

O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia».

4

O artigo 2.o deste regulamento, intitulado «Definições», enuncia:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

7.

“Responsabilidade parental”, o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita;

[…]

9.

“direito de guarda”, os direitos e obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência;

10.

“direito de visita”, nomeadamente o direito de levar uma criança, por um período limitado, para um lugar diferente do da sua residência habitual;

[…]»

5

O referido regulamento comporta um capítulo II, intitulado «Competência», que contém, na sua secção 2, intitulada «Responsabilidade parental», os artigos 8.o a 15.o do mesmo regulamento.

6

O artigo 8.o do Regulamento n.o 2201/2003, intitulado «Competência geral», prevê:

«1.   Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.   O n.o 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.o, 10.o e 12.o»

7

Nos termos do artigo 9.o deste regulamento, intitulado «Prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança»:

«1.   Quando uma criança se desloca legalmente de um Estado‑Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência, em derrogação do artigo 8.o, durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão, sobre o direito de visita proferida nesse Estado‑Membro antes da deslocação da criança, desde que o titular do direito de visita, por força dessa decisão, continue a residir habitualmente no Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança.

2.   O n.o 1 não é aplicável se o titular do direito de visita referido no n.o 1 tiver aceitado a competência dos tribunais do Estado‑Membro da nova residência habitual da criança, participando no processo instaurado nesses tribunais, sem contestar a sua competência.»

8

O artigo 15.o do referido regulamento, intitulado «Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a ação», dispõe:

«1.   Excecionalmente, os tribunais de um Estado‑Membro competentes para conhecer do mérito podem, se considerarem que um tribunal de outro Estado‑Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspetos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança:

a)

Suspender a instância em relação à totalidade ou a parte do processo em questão e convidar as partes a apresentarem um pedido ao tribunal desse outro Estado‑Membro, nos termos do n.o 4; ou

b)

Pedir ao tribunal de outro Estado‑Membro que se declare competente nos termos do n.o 5.

2.   O n.o 1 é aplicável:

a)

A pedido de uma das partes; ou

b)

Por iniciativa do tribunal; ou

c)

A pedido do tribunal de outro Estado‑Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, nos termos do n.o 3.

Todavia, a transferência só pode ser efetuada por iniciativa do tribunal ou a pedido do tribunal de outro Estado‑Membro, se for aceite pelo menos por uma das partes.

3.   Considera‑se que a criança tem uma ligação particular com um Estado‑Membro, na aceção do n.o [1], se:

a)

Depois de instaurado o processo no tribunal referido no n.o 1, a criança tiver adquirido a sua residência habitual nesse Estado‑Membro; ou

b)

A criança tiver tido a sua residência habitual nesse Estado‑Membro; ou

c)

A criança for nacional desse Estado‑Membro; ou

d)

Um dos titulares da responsabilidade parental tiver a sua residência habitual nesse Estado‑Membro; ou

e)

O litígio se referir às medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, a conservação ou a disposição dos bens na posse da criança, que se encontram no território desse Estado‑Membro.

4.   O tribunal do Estado‑Membro competente para conhecer do mérito deve fixar um prazo para instaurar um processo nos tribunais do outro Estado‑Membro, nos termos do n.o 1.

Se não tiver sido instaurado um processo dentro desse prazo, continua a ser competente o tribunal em que o processo tenha sido instaurado nos termos dos artigos 8.o a 14.o

5.   O tribunal desse outro Estado‑Membro pode, se tal servir o superior interesse da criança, em virtude das circunstâncias específicas do caso, declarar‑se competente no prazo de seis semanas a contar da data em que tiver sido instaurado o processo com base nas alíneas a) ou b) do n.o 1. Nesse caso, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar renuncia à sua competência. No caso contrário, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar continua a ser competente, nos termos dos artigos 8.o a 14.o

6.   Os tribunais devem cooperar para efeitos do presente artigo, quer diretamente, quer através das autoridades centrais designadas nos termos do artigo 53.o»

9

O artigo 19.o do mesmo regulamento, intitulado «Litispendência e ações dependentes», prevê, no seu n.o 2:

«Quando são instauradas em tribunais de Estados‑Membros diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação à uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10

CM e DN são, respetivamente, o pai e a mãe de dois filhos menores nascidos em 2009 e em 2010. A família residiu na região de Paris (França) até ao ano de 2015, durante o qual a família se mudou para o Luxemburgo.

11

Por Sentença de 12 de junho de 2020, o juge aux affaires familiales du tribunal d’arrondissement de Luxembourg (juiz de família do Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo, Luxemburgo) fixou o domicílio legal e a residência habitual dessas duas crianças com a sua mãe, em França, com efeito diferido em 31 de agosto de 2020, a fim, designadamente, de ter em conta o interesse das referidas crianças em terminar o seu ano escolar no Luxemburgo. Por meio dessa sentença, aquele tribunal concedeu ao pai, que continuava a residir no Luxemburgo, um direito de visita e de alojamento relativo às crianças, segundo certas modalidades, igualmente com efeitos a partir de 31 de agosto de 2020.

12

A mãe e os filhos menores em causa mudaram‑se efetivamente para França em 30 de agosto de 2020.

13

Em 14 de outubro de 2020, o pai apresentou um pedido de alteração das modalidades do seu direito de visita e de alojamento no tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo).

14

Tendo a mãe já apresentado um pedido, que tem um objeto análogo, ao juge aux affaires familiales do tribunal judiciaire de Nanterre (juiz de família do Tribunal Judicial de Nanterre, França), seis dias antes do pedido apresentado pelo pai no tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo), este último, por Sentença de 1 de dezembro de 2020, em aplicação do artigo 19.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2201/2003, suspendeu a instância até que aquele tribunal francês se pronunciasse sobre a sua competência internacional.

15

Por Sentença de 17 de setembro de 2021, o tribunal judiciaire de Nanterre (Tribunal Judicial de Nanterre) declarou‑se incompetente para se pronunciar sobre este pedido da mãe, essencialmente com o fundamento de que, em conformidade com o artigo 9.o do Regulamento n.o 2201/2003, o pai, por um lado, tinha apresentado o seu pedido no tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo) no prazo de três meses a contar da mudança legal de residência dos filhos menores em questão e, por outro, não tinha, de modo nenhum, aceitado a competência dos tribunais franceses.

16

Por Acórdão de 3 de março de 2022, a cour d’appel de Versailles (Tribunal de Recurso de Versalhes, França) negou provimento ao recurso dessa sentença, interposto pela mãe.

17

No seu pedido de decisão prejudicial, o tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo) interroga‑se, em primeiro lugar, sobre a sua competência ao abrigo do artigo 9.o do Regulamento n.o 2201/2003. A este respeito, aquele tribunal observa que, embora o pedido do pai destinado a alterar as modalidades do seu direito de visita e de alojamento tenha sido apresentado menos de três meses depois da mudança efetiva dos filhos menores em questão, foi apresentado mais de quatro meses depois de ter sido proferida a Sentença de 12 de junho de 2020, através da qual essa mudança foi decidida, e que, tendo‑se tornado definitiva, está revestida da autoridade do caso julgado. Se essa data fosse tida em conta, o referido tribunal seria, portanto, levado a declinar a sua competência para conhecer desse pedido.

18

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a articulação do artigo 9.o do Regulamento n.o 2201/2003 com o artigo 15.o deste último. Embora considere que, tendo em conta as circunstâncias do litígio no processo principal, duas das condições de aplicação deste artigo 15.o parecem estar preenchidas, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta, no entanto, dúvidas quanto à possibilidade de se declarar incompetente neste litígio a favor dos tribunais franceses, à luz tanto das observações do pai relativas ao caráter prioritário das disposições deste artigo 9.o em relação às do referido artigo 15.o tanto do Acórdão de 4 de outubro de 2018, IQ (C‑478/17, EU:C:2018:812).

19

Nestas condições, o tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 2201/2003] é aplicável:

a)

ao pedido de alteração do direito de visita na aceção do artigo 2.o, n.o 10, [deste] regulamento, apresentado pelo titular desse direito de visita concedido por uma decisão judicial com efeito diferido motivado pelo interesse das crianças, mas definitiva e que adquiriu força de caso julgado, proferida no Estado[-Membro] da anterior residência habitual das crianças mais de quatro meses antes da instauração do processo nos termos do artigo 9.o, n.o 1, [do referido regulamento],

b)

e isso exclusivamente em relação à competência de princípio prevista no artigo 8.o [do mesmo] regulamento,

embora o considerando 12 [do] Regulamento [n.o 2201/2003] especifique que “as regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade [e que], por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual […]”?

2)

Em caso de resposta afirmativa à [primeira] questão, a competência assim existente ao abrigo do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 2201/2003], prevista “em derrogação do artigo 8.o” [deste] regulamento, opõe‑se à aplicação do artigo 15.o do [referido] regulamento, previsto “excecionalmente” e “se tal servir o superior interesse da criança”?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

20

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o período de três meses durante o qual, em derrogação do artigo 8.o, n.o 1, deste regulamento, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança continuam a ser competentes para conhecer de um pedido de alteração de uma decisão definitiva relativa ao direito de visita tem início no dia seguinte ao da deslocação efetiva dessa criança ou no dia seguinte ao da decisão judicial que fixou a data da mudança da residência habitual da referida criança.

21

Importa, a título preliminar, recordar que, como resulta do considerando 12 do Regulamento n.o 2201/2003, este último foi elaborado com o objetivo de responder ao interesse superior da criança e, para esse efeito, privilegia o critério da proximidade. O legislador da União Europeia considerou, com efeito, que o órgão jurisdicional geograficamente próximo da residência habitual da criança é o mais bem colocado para apreciar as medidas a adotar no interesse da criança. Nos termos desse considerando, a competência deverá ser, em primeira linha, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental (Acórdão de 15 de fevereiro de 2017, W e V, C‑499/15, EU:C:2017:118, n.o 51 e jurisprudência referida).

22

O artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 traduz esse objetivo ao estabelecer, em matéria de responsabilidade parental, uma regra de competência geral a favor dos tribunais do Estado‑Membro onde a criança tem a sua residência habitual à data em que o processo é instaurado no tribunal. Com efeito, devido à sua proximidade geográfica, esses tribunais estão geralmente mais bem colocados para apreciar as medidas a adotar no interesse da criança [Acórdão de 14 de julho de 2022, CC (Transferência de residência habitual da criança para um Estado terceiro), C‑572/21, EU:C:2022:562, n.o 27 e jurisprudência referida].

23

Todavia, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 2, deste regulamento, a regra de competência enunciada neste artigo 8.o, n.o 1, aplica‑se sem prejuízo, nomeadamente, do artigo 9.o do referido regulamento.

24

Nos termos do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, quando uma criança se desloca legalmente de um Estado‑Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência, em derrogação do artigo 8.o deste regulamento, durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão sobre o direito de visita proferida nesse Estado‑Membro antes da deslocação da criança, desde que o titular do direito de visita, por força dessa decisão, continue a residir habitualmente no Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança.

25

Este artigo 9.o, n.o 2, especifica que o prolongamento da competência prevista no referido artigo 9.o, n.o 1, não se aplica se o titular do direito de visita tiver aceitado a competência dos tribunais do Estado‑Membro da nova residência habitual da criança, participando num processo instaurado nesses tribunais, sem contestar a sua competência.

26

Assim, atenta a redação do artigo 9.o do Regulamento n.o 2201/2003, este artigo sujeita o prolongamento da competência, em matéria de direito de visita, dos tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança ao respeito de cinco condições cumulativas.

27

A primeira condição exige que a criança em questão se tenha mudado «legalmente» e que adquira uma nova residência habitual no Estado‑Membro para o território do qual se mudou. De acordo com a segunda condição, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual dessa criança devem ter proferido, antes de a referida criança se ter mudado, uma decisão relativa ao direito de visita a respeito desta última. A terceira condição exige que o titular do direito de visita continue a residir habitualmente no Estado‑Membro da anterior residência habitual da mesma criança. Em conformidade com a quarta condição, os tribunais deste último Estado‑Membro devem ter sido chamados a pronunciar‑se, no decurso de um período de três meses «após a deslocação» da criança em questão, sobre um pedido de alteração da primeira decisão relativa ao direito de visita que proferiram antes dessa deslocação. Segundo a quinta e última condição, o titular do direito de visita não deve ter aceitado a competência dos tribunais do Estado‑Membro da nova residência habitual dessa criança.

28

Resulta dos fundamentos do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio tem unicamente dúvidas quanto à interpretação dos termos «após a deslocação», na aceção do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003. Interroga‑se sobre se o período de três meses, previsto nesta disposição, tem início no dia seguinte à data da mudança efetiva das crianças em questão, a saber, no caso em apreço, 30 de agosto de 2020, ou no dia seguinte à data da decisão judicial que fixou, com efeito diferido, a data da mudança da residência habitual dessas crianças, a saber, no caso em apreço, 12 de junho de 2020.

29

Ora, resulta da redação clara deste artigo 9.o, n.o 1, que o legislador da União pretendeu limitar a competência dos tribunais da anterior residência habitual da criança, com fundamento no referido artigo, a um período de três meses que se segue à deslocação física dessa criança de um Estado‑Membro para outro Estado‑Membro, a fim de aí estabelecer a sua nova residência habitual. Nenhuma das disposições do mesmo artigo 9.o, n.o 1, nem, em mais larga medida, do Regulamento n.o 2201/2003 permite considerar que esse período de três meses poderia começar a contar a partir de um acontecimento anterior à deslocação efetiva da criança em questão, como a decisão judicial que fixou, sendo caso disso, com efeito diferido, a data da mudança da residência habitual dessa criança.

30

Por conseguinte, a circunstância, mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual a decisão judicial que fixou inicialmente o direito de visita se ter tornado definitiva à data do pedido de alteração dessa decisão carece de pertinência para efeitos da aplicação da regra de competência enunciada no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003.

31

Com efeito, esse pedido de alteração justifica‑se pela alteração de circunstâncias relativas à deslocação da criança em questão e à transferência da sua residência habitual para outro Estado‑Membro, independentemente da questão de saber em que data a decisão judicial que fixou inicialmente o direito de visita e as suas modalidades foi adotada.

32

Um tribunal nacional não pode, portanto, opor ao titular do direito de visita «a autoridade do caso julgado», que reveste, sendo o caso, a decisão que fixou inicialmente o direito de visita e as suas modalidades, para julgar inadmissível o pedido apresentado por este último com vista a alterar esse direito de visita, sob pena de privar de efeito útil o período de três meses, previsto no artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, durante o qual os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência para se pronunciarem sobre esse pedido, em derrogação do artigo 8.o deste regulamento.

33

Daqui resulta que há que responder à primeira questão que o artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o período de três meses durante o qual, em derrogação ao artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança continuam a ser competentes para conhecer de um pedido de alteração de uma decisão definitiva relativa ao direito de visita tem início no dia seguinte ao da deslocação efetiva dessa criança para o Estado‑Membro da sua nova residência habitual.

Quanto à segunda questão

34

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança, competente para conhecer do mérito ao abrigo do artigo 9.o deste regulamento, pode exercer a faculdade de transferência prevista no artigo 15.o do referido regulamento a favor do tribunal do Estado‑Membro da nova residência habitual dessa criança.

35

O artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 prevê a possibilidade, a título excecional, de um tribunal de um Estado‑Membro, competente para conhecer do mérito de um processo, remeter o processo ou uma parte específica deste para um tribunal de outro Estado‑Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, se este último tribunal se encontrar mais bem colocado para conhecer desse processo, e se tal servir o superior interesse da criança.

36

Os n.os 2 a 6 deste artigo 15.o precisam as condições e as modalidades segundo as quais essa transferência pode ser efetuada.

37

A este respeito, importa observar que, por força do referido artigo 15.o, n.o 4, se as partes não recorrerem aos tribunais do outro Estado‑Membro no prazo que lhes foi fixado para o efeito pelo tribunal do Estado‑Membro competente para conhecer do mérito, «continua a ser competente o tribunal em que o processo tenha sido instaurado nos termos dos artigos 8.o a 14.o» do Regulamento n.o 2201/2003. O referido tribunal continua igualmente a exercer a sua competência em conformidade com os artigos 8.o a 14.o, no caso de, conforme previsto no artigo 15.o, n.o 5, deste regulamento, os tribunais do outro Estado‑Membro não se terem declarado competentes no prazo de seis semanas a contar da data em que tiver sido instaurado o processo.

38

Ao fazê‑lo, o próprio legislador da União previu que a faculdade de transferência enunciada no artigo 15.o, n.o 1, do referido regulamento possa ser exercida por um tribunal de um Estado‑Membro cuja competência assente no artigo 9.o do mesmo regulamento.

39

Há igualmente que observar que nenhuma disposição do Regulamento n.o 2201/2003 permite considerar que o exercício desta faculdade de transferência a favor de um tribunal do Estado‑Membro da nova residência habitual da criança está, em princípio, excluído.

40

A este respeito, importa sublinhar que, como resulta, em substância, do n.o 33 do Acórdão de 4 de outubro de 2018, IQ (C‑478/17, EU:C:2018:812), o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 permite ao tribunal de um Estado‑Membro competente para conhecer do mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental transferir a sua competência, sobre toda ou sobre uma parte específica do processo que lhe foi submetido, para um tribunal que é normalmente incompetente para conhecer do mérito, mas que, na situação em apreço, deve ser considerado «mais bem colocado» para conhecer desse processo.

41

Ora, no caso em apreço, como a Comissão Europeia observou com razão, ao contrário do processo que deu origem a esse acórdão, no qual os tribunais aos quais se recorreu dos dois Estados‑Membros em causa eram ambos competentes para conhecer do mérito desse processo, ao abrigo, respetivamente, do artigo 8.o, n.o 1, e do artigo 12.o do Regulamento n.o 2201/2003, o que levou o Tribunal de Justiça a excluir a possibilidade de aplicar, entre esses tribunais, a faculdade de transferência instituída no artigo 15.o deste regulamento, está demonstrado que, no presente processo, o tribunal judiciaire de Nanterre (Tribunal Judicial de Nanterre) se declarou incompetente para conhecer de um pedido da mãe dos filhos menores em causa, com o fundamento, nomeadamente, de que o pai destes últimos tinha apresentado um pedido de alteração do seu direito de visita e de alojamento no órgão jurisdicional de reenvio no período de três meses após a mudança legal dessas crianças, prevista no artigo 9.o, n.o 1, do referido regulamento.

42

Além disso, não resulta dos elementos dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que a possibilidade de o órgão jurisdicional de reenvio exercer a faculdade de transferência prevista no artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003 seria suscetível de colidir com a aplicação de outras disposições deste regulamento. Em especial, não se afigura que os tribunais franceses sejam competentes para conhecer de um pedido de alteração do direito de visita e das suas modalidades ao abrigo dos artigos 10.o a 14.o do referido regulamento.

43

Importa, porém, recordar que o tribunal nacional que equacione exercer esta faculdade de transferência se deve assegurar, antes de mais, de que a criança mantém uma «ligação particular» com outro Estado‑Membro, em seguida, que o tribunal desse Estado‑Membro está «mais bem colocado» para conhecer do processo e, por último, que a transferência «serve o superior interesse da criança», no respeito da interpretação destas três condições dada pelo Tribunal de Justiça nos n.os 49 a 61 do Acórdão de 27 de outubro de 2016, D. (C‑428/15, EU:C:2016:819), e nos n.os 31 a 34 e 37 a 42 do Despacho de 10 de julho de 2019, EP (Responsabilidade parental e tribunal mais bem colocado) (C‑530/18, EU:C:2019:583).

44

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança, competente para conhecer do mérito ao abrigo do artigo 9.o deste regulamento, pode exercer a faculdade de transferência prevista no artigo 15.o do referido regulamento a favor do tribunal do Estado‑Membro da nova residência habitual dessa criança, desde que as condições previstas neste artigo 15.o estejam preenchidas.

Quanto às despesas

45

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

 

1)

O artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000,

deve ser interpretado no sentido de que:

o período de três meses durante o qual, em derrogação ao artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança continuam a ser competentes para conhecer de um pedido de alteração de uma decisão definitiva relativa ao direito de visita tem início no dia seguinte ao da deslocação efetiva dessa criança para o Estado‑Membro da sua nova residência habitual.

 

2)

O Regulamento n.o 2201/2003

deve ser interpretado no sentido de que:

o tribunal do Estado‑Membro da anterior residência habitual da criança, competente para conhecer do mérito ao abrigo do artigo 9.o deste regulamento, pode exercer a faculdade de transferência prevista no artigo 15.o do referido regulamento a favor do tribunal do Estado‑Membro da nova residência habitual dessa criança, desde que as condições previstas neste artigo 15.o estejam preenchidas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.