ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

13 de outubro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Transportes — Regulamento (CEE) n.o 3577/92 — Artigos 1.o e 4.o — Regulamento (CE) n.o 1370/2007 — Artigo 1.o — Adjudicação por ajuste direto de contratos de serviço público — Serviços públicos de transporte marítimo rápido de passageiros — Equiparação a serviços de transporte ferroviário por mar»

No processo C‑437/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 21 de abril de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de julho de 2021, no processo

Liberty Lines SpA

contra

Ministero delle Infrastrutture e dei Trasporti,

sendo intervenientes:

Rete Ferroviaria Italiana SpA,

Bluferries Srl,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: M. Ilešič, exercendo funções de presidente de secção, I. Jarukaitis e Z. Csehi (relator), juízes,

advogado‑geral: L. Medina,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Liberty Lines SpA, por A. Abbamonte, F. Di Gianni, C. Morace, G. Pregno e A. Scalini, avvocati,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por A. Berti Suman, procuratore dello Stato, e F. Sclafani, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por G. Gattinara, P. Ondrůšek, G. von Rintelen e G. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do direito da União relativo à adjudicação de contratos de serviço público que têm por objeto serviços públicos de transporte marítimo rápido de passageiros.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Liberty Lines SpA ao Ministero delle Infrastrutture e dei Trasporti (Ministério das Infraestruturas e dos Transportes, Itália) (a seguir «MIT»), a respeito da adjudicação por ajuste direto do serviço de transporte marítimo rápido de passageiros entre o porto de Messina (Itália) e o de Reggio Calabria (Itália), no Estreito de Messina, à Bluferries Srl, sem que tivesse sido lançado um concurso público específico.

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento (CEE) n.o 3577/92

3

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (CEE) n.o 3577/92 do Conselho, de 7 de dezembro de 1992, relativo à aplicação do princípio da livre prestação de serviços aos transportes marítimos internos nos Estados‑Membros (cabotagem marítima) (JO 1992, L 364, p. 7):

«Com efeitos a partir de 1 de janeiro de 1993, a liberdade de prestação de serviços de transporte marítimo dentro de um Estado‑Membro (cabotagem marítima) aplicar‑se‑á aos armadores comunitários que tenham os seus navios registados num Estado‑Membro e arvorem pavilhão desse Estado‑Membro, desde que esses navios preencham todos os requisitos necessários à sua admissão à cabotagem nesse Estado‑Membro […]»

4

O artigo 2.o deste regulamento dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)

“Serviços de transporte marítimo dentro de um Estado‑Membro (cabotagem marítima)”: os serviços normalmente prestados contra remuneração, neles se incluindo, em especial:

[…]

c)

Cabotagem insular: o transporte por mar de passageiros ou mercadorias entre:

portos do continente e de uma ou mais ilhas de um mesmo Estado‑Membro,

[…]»

5

O artigo 4.o do referido regulamento dispõe:

«1.   Um Estado‑Membro pode celebrar contratos de fornecimento de serviços públicos ou impor obrigações de serviço público, como condição para a prestação de serviços de cabotagem, às companhias de navegação que participem em serviços regulares de, entre e para as ilhas.

Sempre que um Estado‑Membro celebrar contrato de fornecimento de serviços públicos ou impuser obrigações de serviço público, fá‑lo‑á numa base não discriminatória em relação a todos os armadores comunitários.

2.   Ao impor obrigações de serviço público, os Estados‑Membros limitar‑se‑ão aos requisitos relativos aos portos a escalar, à regularidade, à continuidade, à frequência, à capacidade de prestação do serviço, às taxas a cobrar e à tripulação do navio.

Sempre que aplicável, qualquer compensação devida por obrigações de serviço público deve ser disponibilizada para todos os armadores comunitários.

[…]»

Regulamento (CE) n.o 1370/2007

6

O artigo 1.o do Regulamento (CE) n.o 1370/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 1191/69 e (CEE) n.o 1107/70 do Conselho (JO 2007, L 315, p. 1), sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», prevê, no seu n.o 2:

«O presente regulamento é aplicável à exploração nacional e internacional de serviços públicos de transporte de passageiros por caminho‑de‑ferro propriamente dito e outros sistemas guiados e por estrada, com exceção dos serviços explorados essencialmente por razões históricas ou de interesse turístico. Os Estados‑Membros podem aplicar o presente regulamento ao transporte público de passageiros por via navegável interior e, sem prejuízo do Regulamento (CEE) n.o 3577/92 […], por via marítima nacional.»

7

O artigo 2.o, alínea h), do Regulamento n.o 1370/2007 define a «adjudicação por ajuste direto» como sendo a «adjudicação de um contrato de serviço público a um determinado operador de serviços públicos sem qualquer processo prévio de concurso».

8

O artigo 5.o, n.o 6, deste regulamento dispõe:

«Salvo proibição da legislação nacional, as autoridades competentes podem decidir adjudicar por ajuste direto contratos de serviço público relativos ao transporte ferroviário, com exceção de outros sistemas guiados como os metropolitanos e os metropolitanos ligeiros de superfície. […]»

Direito italiano

9

O decreto del Ministero dei Trasporti e della Navigazione, n. 138 T, recante rilascio a Ferrovie dello Stato — Società Trasporti e Servizi per Azioni la concessione ai fini della gestione dell’infrastruttura ferroviaria nazionale (Decreto n.o 138 T do Ministério dos Transportes e da Navegação, de 31 de outubro de 2000, sobre a Concessão à Ferrovie dello Stato — Società Trasporti e Servizi per Azioni da Gestão da Infraestrutura Ferroviária Nacional), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto n.o 138 T/2000»), dispõe, no seu artigo 2.o, n.o 1, alínea e), que o objeto da concessão em causa inclui a ligação ferroviária por mar entre a península italiana e, respetivamente, a Sicília e a Sardenha.

10

O artigo 47.o do decreto‑legge n.o50 — Disposizioni urgenti in materia finanziaria, iniziative a favore degli enti territoriali, ulteriori interventi per le zone colpite da eventi sismici e misure per lo sviluppo (Decreto‑Lei n.o 50, que aprova Disposições Urgentes em Matéria Financeira, Iniciativas de Apoio às Autoridades Regionais ou Locais, Medidas Adicionais de Apoio às Zonas Afetadas por Fenómenos Sísmicos e Medidas para o Desenvolvimento), de 24 de abril de 2017 (GURI n.o 95, de 24 de abril de 2017 — suplemento ordinário n.o 20), convertido em lei, com alterações, pela legge n.o 96 (Lei n.o 96), de 26 de junho de 2017 (GURI n.o 144, de 23 de junho de 2017), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto‑Lei n.o 50/2017»), sob a epígrafe «Intervenções no transporte ferroviário», prevê, no n.o 11‑bis:

«Para melhorar a flexibilidade das ligações ferroviárias de passageiros entre a Sicília e a península italiana, o serviço de exploração da ligação ferroviária por mar previsto no artigo 2.o, n.o 1, alínea e), do [Decreto n.o 138 T/2000] também pode ser efetuado através da utilização de meios navais de alta velocidade cujo modelo de exploração esteja relacionado com o serviço de transporte ferroviário de e para a Sicília, em particular nas rotas de ida e volta, “Messina — Villa San Giovanni” e “Messina — Reggio Calabria”, a executar no âmbito dos recursos, previstos na legislação em vigor, destinados ao Contrato Quadro como parte dos serviços entre o Estado e a Rete ferroviaria italiana Spa e sem prejuízo dos serviços aí previstos.»

11

O decreto legislativo n. 50 — Codice dei contratti pubblici (Decreto Legislativo n.o 50, que institui o Código dos Contratos Públicos), de 18 de abril de 2016 (GURI n.o 91, de 19 de abril de 2016 — suplemento ordinário n.o 10), na versão aplicável ao litígio no processo principal, menciona, no artigo 17.o, n.o 1, alínea i), os serviços públicos de transporte ferroviário de passageiros ou por metropolitano entre as exclusões específicas dos contratos e das concessões de serviços.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

12

Por anúncio publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 31 de janeiro de 2015, o MIT lançou um concurso para a adjudicação de um contrato que tinha por objeto o serviço de transporte marítimo rápido de passageiros no Estreito de Messina, entre o porto de Messina e o porto de Reggio Calabria, durante três anos. O valor estimado deste contrato era de 21025000 euros. O referido contrato foi adjudicado à Ustica Lines SpA, posteriormente Liberty Lines, com base no critério da proposta economicamente mais vantajosa.

13

O contrato correspondente foi celebrado em 24 de junho de 2015 e a prestação do serviço em causa começou em 1 de outubro de 2015. Este contrato previa igualmente a possibilidade de o MIT prorrogar a sua aplicação por doze meses adicionais desde que houvesse disponibilidade dos recursos financeiros necessários e a entidade adjudicante em causa se mantivesse interessada na continuação da prestação desse serviço.

14

Em 14 de setembro de 2018, a Liberty Lines informou o MIT de que o referido contrato terminaria em breve, esclarecendo que, na falta de prorrogação da sua aplicação, deixaria de assegurar a prestação do serviço em causa a partir de 1 de outubro de 2018. O MIT não respondeu a esta comunicação.

15

Todavia, a partir desta última data, o MIT decidiu confiar a prestação do serviço em causa à Bluferries, integralmente detida pela Rete Ferroviaria Italiana (a seguir «RFI»), já concessionária desse serviço na rota «Messina — Villa San Giovanni», também no Estreito de Messina, sem a abertura de um concurso. A Liberty Lines impugnou a adjudicação do contrato em causa no Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália).

16

No decurso do processo nesse órgão jurisdicional, por um lado, verificou‑se que a mencionada adjudicação tinha sido decidida pelo MIT, cuja nota de 26 de setembro de 2018, assinada pelo ministro em causa, referia a necessidade, no termo do contrato celebrado com a Liberty Lines em 1 de outubro de 2018, de assegurar a continuidade do serviço de transporte marítimo em causa e que, para o efeito, a «flexibilidade das ligações ferroviárias entre a Sicília e a península italiana» podia ser assegurada pela «inclusão» do programa em questão no contrato‑programa celebrado entre o Estado Italiano e a RFI. Por outro lado, em 8 de outubro de 2018, a RFI respondeu ao MIT solicitando‑lhe que discutissem «elementos essenciais da adjudicação do serviço […] com vista à sua continuação» e à necessidade de proceder a uma «adaptação» desse contrato‑programa.

17

O referido órgão jurisdicional negou provimento ao recurso interposto pela Liberty Lines, considerando, em substância, que a Diretiva 2014/25/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17/CE (JO 2014, L 94, p. 243), e o Regulamento n.o 1370/2007 permitiam a adjudicação por ajuste direto de contratos de serviço público para o transporte ferroviário por mar, como o que está em causa no processo principal. Com efeito, o serviço em causa deve ser qualificado de serviço de transporte ferroviário, cuja adjudicação não está sujeita à obrigação de lançamento de um concurso público. A possibilidade de qualificar o serviço de transporte marítimo em causa de serviço de transporte ferroviário resulta precisamente do artigo 47.o, n.o 11‑bis, do Decreto‑Lei n.o 50/2017.

18

A Liberty Lines interpôs recurso dessa sentença para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), invocando, nomeadamente, a inexistência de urgência que justificasse o recurso, no caso em apreço, a uma adjudicação por ajuste direto, uma vez que o MIT tinha criado precisamente a situação em causa no processo principal ao não prorrogar o contrato em questão nem lançar um concurso público, acrescendo o facto de o serviço de transporte marítimo em causa não poder ser equiparado a um serviço de transporte ferroviário, uma vez que a Bluferries utiliza hidrópteros, ou seja, navios sem as instalações necessárias para o transporte de vagões de caminhos de ferro.

19

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma disposição como a do artigo 47.o, n.o 11‑bis, do Decreto‑Lei n.o 50/2017 é compatível com o direito da União. Em seu entender, esta disposição exclui, de forma injustificada e sem fundamentação adequada, a adjudicação do serviço de transporte marítimo rápido de passageiros em causa no processo principal, em especial no que respeita à verificação da existência de uma «falha do mercado», do âmbito de aplicação das normas que regem os contratos públicos, em violação do Regulamento n.o 3577/92. Além disso, a referida disposição parece conceder à RFI, enquanto sociedade que gere a infraestrutura ferroviária nacional, um direito especial ou exclusivo para explorar esse serviço de transporte. Esse facto pode dar lugar, sempre a favor da RFI, a uma medida que constitua um auxílio de Estado e que falseie ou ameace falsear a concorrência.

20

Foi nestas circunstâncias que o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional), decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«É contrária ao direito [da União] e, em particular, aos princípios da livre circulação de serviços e da abertura mais ampla à concorrência no âmbito dos contratos públicos de serviços uma norma como [a do] artigo 47.o, n.o 11‑bis, do [Decreto Lei n.o 50/2017], que:

equipara ou, pelo menos, permite equiparar por via legal o transporte marítimo rápido de passageiros entre o porto de Messina e o de Reggio Calabria ao transporte ferroviário assegurado por via marítima entre a península italiana e a Sicília, na aceção do artigo 2.o, alínea e), do [Decreto n.o 138 T/2000];

cria ou é suscetível de criar uma reserva a favor da [RFI] do serviço de exploração da ligação ferroviária por mar também através da utilização de meios navais de alta velocidade entre a Sicília e a península [italiana]?»

Quanto à questão prejudicial

21

A título preliminar, por um lado, há que observar que a segunda parte da questão prejudicial tem por objeto, em substância, os efeitos sobre a concorrência da adjudicação por ajuste direto em causa no processo principal, na medida em que «reserva», ou «é suscetível de reservar», à RFI o serviço de ligação marítima entre a Sicília e a península italiana. Com efeito, no pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio indica com precisão que a disposição nacional em causa no processo principal pode constituir, a favor dessa sociedade, uma «medida de auxílio de Estado, que falseie ou seja suscetível de falsear a concorrência».

22

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio não fornece nenhum elemento relativo ao contrato celebrado no âmbito da adjudicação por ajuste direto do serviço em causa no processo principal, nomeadamente no que respeita à compensação eventualmente concedida pelas autoridades italianas no âmbito da execução desse contrato, apesar de esses elementos serem necessários para que o Tribunal de Justiça possa dar uma resposta útil a esta segunda parte.

23

Nestas condições, não há que examinar a segunda parte da questão prejudicial.

24

Por outro lado, no que respeita à primeira parte da questão submetida, importa salientar que, não obstante o facto de o órgão jurisdicional de reenvio não identificar, na questão submetida, as disposições de direito da União que considera poderem opor‑se à disposição nacional evocada nesta questão, resulta dos fundamentos do pedido de decisão prejudicial que esse órgão jurisdicional considera que os serviços de transporte marítimo rápido de passageiros em causa no processo principal se enquadram no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 3577/92 e que se interroga sobre a questão de saber se esta disposição nacional, na medida em que exclui esta categoria de serviços das normas de adjudicação doa contratos públicos, infringe o direito da União.

25

Todavia, segundo o Governo italiano, os serviços de transporte marítimo como os que estão em causa no processo principal estão igualmente abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1370/2007, pelo que, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 6, deste regulamento, as autoridades competentes podem adjudicar por ajuste direto os contratos de serviço público para este tipo de transporte.

26

A este respeito, importa recordar que, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, primeiro período, do Regulamento n.o 1370/2007, este último é aplicável à exploração nacional e internacional de serviços públicos de transporte de passageiros por caminho de ferro propriamente dito e outros sistemas guiados e por estrada. Além disso, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 2, segundo período, deste regulamento, os Estados‑Membros podem aplicar o presente regulamento ao transporte público de passageiros «por via marítima nacional».

27

É assim possível, em princípio, que o Regulamento n.o 1370/2007 seja aplicável ao transporte marítimo por meios navais de alta velocidade em circunstâncias como as do processo principal, em que o artigo 47.o, n.o 11‑bis, do Decreto‑Lei n.o 50/2017 equipara, sob certas condições, o transporte marítimo por meios navais de alta velocidade ao transporte ferroviário.

28

Todavia, resulta igualmente dos termos do artigo 1.o, n.o 2, segundo período, do Regulamento n.o 1370/2007 que a aplicabilidade deste regulamento ao transporte público de passageiros por via marítima nacional é feita «sem prejuízo» do Regulamento n.o 3577/92, pelo que, em caso de conflito, prevalecem as disposições deste último.

29

Por conseguinte, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o Regulamento n.o 3577/92, e, em especial, o seu artigo 1.o, n.o 1, e o seu artigo 4.o, n.o 1, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição nacional que tem por objeto equiparar os serviços de transporte marítimo aos serviços de transporte ferroviário, quando essa equiparação tenha por efeito subtrair o serviço em causa à aplicação da regulamentação em matéria de contratos públicos que, de outro modo, lhe seria aplicável.

30

A este respeito, há que recordar que o artigo 1.o do Regulamento n.o 3577/92 consagra claramente o princípio da livre prestação de serviços de cabotagem marítima na União Europeia (Acórdãos de 20 de fevereiro de 2001, Analir e o., C‑205/99, EU:C:2001:107, n.o 20, e de 9 de março de 2006, Comissão/Espanha, C‑323/03, EU:C:2006:159, n.o 43).

31

Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 1, primeiro parágrafo, deste regulamento, um Estado‑Membro pode celebrar contratos de fornecimento de serviços públicos ou impor obrigações de serviço público, como condição para a prestação de serviços de cabotagem, às companhias de navegação que participem, nomeadamente, em serviços regulares de e para as ilhas. O segundo parágrafo desta disposição exige que, sempre que um Estado‑Membro celebrar contratos de fornecimento de serviços públicos ou impuser obrigações de serviço público, fá‑lo‑á numa base não discriminatória em relação a todos os armadores da União.

32

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, embora o serviço de ligação marítima rápida de passageiros no Estreito de Messina entre o porto de Messina e o de Reggio Calabria tenha sido adjudicado, para o período compreendido entre 1 de outubro de 2015 e 30 de setembro de 2018, na sequência de um concurso público e com base no critério da proposta economicamente mais vantajosa, o contrato para a prestação do serviço em causa a partir de 1 de outubro de 2018 não foi objeto de concurso.

33

A este respeito, há que salientar que as regras em matéria de contratos públicos não são idênticas consoante se trate, por um lado, de serviços de transporte público de passageiros por via marítima navegável ou, por outro, de serviços de transporte público de passageiros por caminho de ferro.

34

Com efeito, é só para os contratos de serviço público relativos ao transporte ferroviário, com exceção de outros sistemas guiados de transporte ferroviário, como os metropolitanos e os metropolitanos ligeiros de superfície, que o artigo 5.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1370/2007 autoriza, sob certas condições, uma adjudicação por ajuste direto, isto é, como precisado no artigo 2.o, alínea h), deste regulamento, sem abertura de concurso público prévio.

35

Além disso, como é recordado no n.o 31 do presente acórdão, o artigo 4.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 3577/92 prevê que, sempre que um Estado‑Membro celebrar contratos de fornecimento de serviços públicos ou impuser obrigações de serviço público, fá‑lo‑á numa base não discriminatória em relação a todos os armadores da União e, contrariamente ao Regulamento n.o 1370/2007, não prevê a possibilidade de adjudicação por ajuste direto.

36

Assim, dado que os Estados‑Membros só podem aplicar o Regulamento n.o 1370/2007 ao transporte público de passageiros por via navegável sem prejuízo do Regulamento n.o 3577/92, os contratos de transporte público de passageiros por via navegável não podem ser celebrados sem concurso prévio, em conformidade com o que este último regulamento prevê.

37

Daqui resulta não ser admissível que uma medida nacional proceda a uma requalificação de determinados serviços que não tenha em conta a sua natureza real e que leve a subtraí‑los à aplicação das regras que lhes são aplicáveis.

38

Tal conclusão reveste especial importância quando essa requalificação tenha por consequência permitir uma adjudicação por ajuste direto desses serviços, sem concurso público, o qual de outra forma seria exigido.

39

Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o Regulamento n.o 3577/92, e, em especial, o seu artigo 1.o, n.o 1, e o seu artigo 4.o, n.o 1, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que tem por objeto equiparar os serviços de transporte marítimo aos serviços de transporte ferroviário, quando essa equiparação tenha por efeito subtrair o serviço em causa à aplicação da regulamentação em matéria de contratos públicos que lhe é aplicável.

Quanto às despesas

40

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

O Regulamento (CEE) n.o 3577/92 do Conselho, de 7 de dezembro de 1992, relativo à aplicação do princípio da livre prestação de serviços aos transportes marítimos internos nos Estados‑Membros (cabotagem marítima), e, em especial, o seu artigo 1.o, n.o 1, e o seu artigo 4.o, n.o 1,

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

se opõe a uma regulamentação nacional que tem por objeto equiparar os serviços de transporte marítimo aos serviços de transporte ferroviário, quando essa equiparação tenha por efeito subtrair o serviço em causa à aplicação da regulamentação em matéria de contratos públicos que lhe é aplicável.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.