ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

7 de julho de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 97/81/CE — Acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial — Cláusula 4 — Princípio da não discriminação — Princípio pro rata temporis — Tomada em conta, para efeitos do cálculo da remuneração de um bombeiro profissional contratado a tempo inteiro, da antiguidade por ele adquirida enquanto bombeiro voluntário, segundo o princípio pro rata temporis»

No processo C‑377/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela cour du travail de Mons (Tribunal Superior do Trabalho de Mons, Bélgica), por Decisão de 15 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de junho de 2021, no processo

Ville de Mons,

Zone de secours Hainaut‑Centre

contra

RM,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: J. Passer, presidente de secção, N. Wahl e M. L. Arastey Sahún (relatora), juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da ville de Mons, por N. Fortemps e O. Vanleemputten, avocats,

em representação de RM, por P. Joassart, avocat,

em representação da Comissão Europeia, por D. Martin e D. Recchia, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da cláusula 4 do acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial, celebrado em 6 de junho de 1997 (a seguir «acordo‑quadro»), que figura em anexo à Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES (JO 1998, L 14, p. 9).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe RM, um bombeiro profissional, à ville de Mons (Bélgica) e à Zone de secours Hainaut‑Centre (Bélgica) a respeito da tomada em conta da sua antiguidade, adquirida enquanto bombeiro voluntário, para efeitos do cálculo da sua remuneração.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos da cláusula 1, alínea a), do acordo‑quadro, este tem por objetivo «[g]arantir a eliminação das discriminações em relação aos trabalhadores a tempo parcial e melhorar a qualidade do trabalho a tempo parcial».

4

A cláusula 2 do acordo‑quadro dispõe:

«1.

O presente acordo aplica‑se aos trabalhadores a tempo parcial, com contrato ou relação de trabalho definidos pela legislação, pelas convenções coletivas ou pelas práticas vigentes em cada Estado‑Membro.

2.

Após consulta dos parceiros sociais nos termos da legislação, das convenções coletivas ou das práticas vigentes a nível nacional, os Estados‑Membros e/ou os parceiros sociais ao nível apropriado, conforme a prática nacional relativa às relações laborais, podem, por razões objetivas, excluir total ou parcialmente do âmbito de aplicação do presente acordo os trabalhadores a tempo parcial com atividade ocasional. Tais exclusões devem ser revistas periodicamente, a fim de determinar se se mantêm válidas as razões objetivas que a elas conduziram.»

5

A cláusula 3 do acordo‑quadro enuncia:

«1.

Para efeitos do presente acordo, por “trabalhador a tempo parcial” entende‑se o assalariado cujo tempo normal de trabalho, calculado numa base semanal ou como média ao longo de um período de emprego até um ano, é inferior ao tempo normal de trabalho de um trabalhador comparável a tempo inteiro.

2.

Para efeitos do presente acordo, “trabalhador comparável a tempo inteiro” significa um trabalhador a tempo inteiro do mesmo estabelecimento, com o mesmo contrato ou relação de emprego e que exerça funções iguais ou semelhantes, tendo em devida conta outros fatores, como antiguidade, qualificações, conhecimentos, etc.

Se no estabelecimento não houver qualquer trabalhador comparável a tempo inteiro, a comparação será efetuada em referência à convenção coletiva aplicável ou, na ausência desta, em conformidade com a legislação, as convenções coletivas ou as práticas vigentes a nível nacional.»

6

A cláusula 4 do acordo‑quadro prevê:

«1.

No que respeita às condições de emprego, os trabalhadores a tempo parcial não devem ser tratados em condições menos favoráveis do que os trabalhadores comparáveis a tempo inteiro unicamente pelo facto de trabalharem a tempo parcial, a menos que, por razões objetivas, a diferença de tratamento se justifique.

2.

Sempre que apropriado, aplicar‑se‑á o princípio pro rata temporis.

[…]»

Direito belga

Lei de 5 de março de 2002

7

A Diretiva 97/81 foi transposta para a ordem jurídica belga pela Lei de 5 de março de 2002 relativa ao princípio da não discriminação a favor dos trabalhadores a tempo parcial (Moniteur belge de 13 de março de 2002, p. 10641, a seguir «Lei de 5 de março de 2002»). Esta lei só se aplica, segundo o seu artigo 2.o, ao trabalhador que, nos termos de um contrato de trabalho, fornece prestações de trabalho, mediante remuneração e sob a autoridade de outra pessoa, isto é, ao trabalhador vinculado por um contrato de trabalho.

Decreto Real de 20 de março de 2002, conforme alterado pelo Decreto Real de 2 de junho de 2006

8

Em conformidade com o artigo 1.o do Decreto Real de 20 de março de 2002, que Fixa as Disposições Gerais Relativas à Contabilização para Fins Remuneratórios dos Serviços Anteriores Cumpridos por Membros Voluntários dos Serviços Públicos de Bombeiros Contratados como Membros Profissionais (Moniteur belge de 30 de março de 2002, p. 13592), conforme alterado pelo Decreto Real de 2 de junho de 2006 (Moniteur belge de 22 de junho de 2006, p. 31874):

«Os agentes voluntários dos serviços públicos de bombeiros, recrutados como membros profissionais […], beneficiam da remuneração correspondente ao grau em que foram recrutados.

[…] é concedida ao pessoal profissional dos serviços públicos de bombeiros recrutado a partir de 9 de abril de 2002, para o cálculo dessa remuneração, uma antiguidade equivalente ao número de anos de serviço prestado como voluntário num serviço público de bombeiros.

[…] pode ser concedida uma antiguidade equivalente ao número de anos de serviço que prestou como voluntário num serviço público de bombeiros, para efeitos do cálculo da sua remuneração, ao pessoal profissional dos serviços públicos de bombeiros que entrou ao serviço antes de 9 de abril de 2002. Esta contabilização para fins remuneratórios só é aplicável às prestações efetuadas a partir de 1 de janeiro de 2005.»

9

Resulta dos trabalhos legislativos relativos à alteração deste artigo 1.o pelo Decreto Real de 2 de junho de 2006 que esta «permite aos municípios, sem todavia os obrigar, concederem igualmente aos sapadores‑bombeiros que se tornaram profissionais antes da entrada em vigor do decreto real uma antiguidade que tenha em conta todos os anos prestados enquanto voluntários. Daqui resulta que nem todos os sapadores‑bombeiros beneficiarão automaticamente dessa antiguidade. […] Tendo em conta as suas possibilidades financeiras, cada município pode decidir aplicar ou não a nova regulamentação».

Estatutos administrativo e remuneratório da ville de Mons

10

O artigo 12.o dos estatutos administrativo e remuneratório do pessoal não docente da ville de Mons (a seguir «estatutos administrativo e remuneratório da ville de Mons») dispõe:

«Os serviços admissíveis cumpridos numa função em regime de prestações a tempo inteiro […] podem ser tomados em consideração na sua totalidade.

Os serviços admissíveis cumpridos numa função em regime de prestações a tempo parcial […] podem ser tomados em consideração à razão do número de anos que representariam se tivessem sido prestados numa função em regime de prestações a tempo inteiro, multiplicado por uma fração cujo numerador é o número real de prestações de trabalho semanais e cujo denominador é o número de prestações de trabalho semanais correspondentes a prestações de trabalho a tempo inteiro.»

11

O artigo 13.o bis destes estatutos tem a seguinte redação:

«A partir de 1 de julho de 2007, e em aplicação do [Decreto Real de 20 de março de 2002, conforme alterado pelo Decreto Real de 2 de junho de 2006], é concedida aos membros profissionais do Serviço de Bombeiros, […] para efeitos de cálculo da sua remuneração, uma antiguidade equivalente ao número de anos de serviço prestados como voluntários num serviço público de bombeiros, segundo as seguintes modalidades:

1.

para os agentes contratados antes de 9 de abril de 2002: a antiguidade é proporcional ao trabalho efetivamente prestado (número de horas de atividade efetiva por ano, em conformidade com as disposições do artigo 12.o do estatuto pecuniário);

2.

para os agentes contratados depois de 9 de abril de 2002: sem ter em conta o volume de trabalho prestado. (Em derrogação das disposições que estipulam que os serviços admissíveis são contabilizados proporcionalmente ao volume das prestações efetuadas: artigo 12.o do estatuto remuneratório),

[…]»

12

O artigo 14.o, n.o 1, dos referidos estatutos prevê:

«São igualmente admissíveis, nas mesmas condições, até um máximo de seis anos, para o cálculo do salário, os serviços de prestações a tempo inteiro ou parcial cumpridos no setor privado belga, de outro Estado‑Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que possam ser considerados diretamente úteis, ou seja, tenham proporcionado ao agente uma experiência relevante para o exercício da função desempenhada na Administração […]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

13

Durante o período compreendido entre 1 de janeiro de 1982 e 31 de julho de 2002, RM trabalhou como bombeiro voluntário na cidade de Mouscron (Bélgica).

14

Durante esse período exerceu, ao abrigo de contratos de trabalho no setor privado, as funções de motorista de veículos pesados, de 30 de julho de 1990 a 11 de fevereiro de 1995, e de 23 de março de 1995 a 8 de fevereiro de 1998, bem como de segurança, de 9 de fevereiro de 1998 a 30 de março de 2001.

15

RM foi nomeado sapador‑bombeiro profissional motorista na ville de Mons, como estagiário, com efeitos a partir de 1 de abril de 2001 e, posteriormente, a título definitivo, a partir de 1 de abril de 2002.

16

Para efeitos do cálculo da remuneração dos bombeiros profissionais é tida em conta a «antiguidade para fins remuneratórios» destes, que é determinada em função da contabilização, sob certas condições, dos períodos dos serviços que prestaram nos setores público e privado.

17

Em conformidade com os estatutos administrativo e remuneratório da ville de Mons, esta última reconheceu a RM, no que respeita ao período anterior à sua nomeação como sapador‑bombeiro profissional motorista, a seguinte antiguidade para fins remuneratórios:

para o período compreendido entre 1 de janeiro de 1982 e 29 de julho de 1990: 3 meses e 17 dias, correspondentes à proporção das 811 horas prestadas na qualidade de bombeiro voluntário ao serviço de bombeiros de Mouscron (em conformidade com o artigo 13.o bis desses estatutos), e

para o período compreendido entre 30 de julho de 1990 e 30 de março de 2001: seis anos, correspondentes à duração máxima que pode ser contabilizada para serviços cumpridos no setor privado (conforme previsto no artigo 14.o dos referidos estatutos).

18

Em 1 de janeiro de 2015, os serviços de bombeiros na Bélgica passaram de uma organização municipal para um sistema «zonal», que compreende 34 «zonas de socorro», e os sapadores‑bombeiros profissionais em serviço num município passaram a ser membros do pessoal operacional da zona de socorro de que faz parte esse município.

19

Assim, a partir dessa data, RM tornou‑se sapador‑bombeiro na Zone de secours Hainaut‑Centre (Serviço de Socorro de Hainaut‑Centre), que lhe aplicou a mesma antiguidade para fins remuneratórios que lhe tinha sido reconhecida anteriormente pela ville de Mons.

20

Em 14 de julho de 2015, RM pediu à Zone de secours Hainaut‑Centre que retificasse o montante da sua remuneração, com o fundamento de que a sua antiguidade para fins remuneratórios, adquirida na qualidade de bombeiro voluntário, não tinha sido tomada em consideração corretamente. Pediu que fosse tido em conta integralmente o período durante o qual exerceu a função de bombeiro voluntário, ou seja, de 1 de janeiro de 1982 a 31 de julho de 2002, o que corresponde a um total de 20 anos e 7 meses, sem ter em conta o volume exato das suas prestações. Com efeito, considerava que a contabilização dessas prestações segundo o princípio pro rata temporis acabava por criar uma diferença de tratamento injustificada entre os trabalhadores empregados a tempo inteiro e os que trabalham a tempo parcial. Entendia, assim, ter direito à remuneração anual correspondente ao escalão mais elevado, isto é, o escalão relativo a uma antiguidade de 25 anos ou mais, na medida em que, ao tomar em consideração todos os seus anos de serviço como bombeiro voluntário, a sua antiguidade era, à data de 1 de janeiro de 2015, de 33 anos.

21

Por Decisão de 3 de fevereiro de 2016, a Zone de secours Hainaut‑Centre indeferiu esse pedido de retificação com fundamento no artigo 13.o bis dos Estatutos administrativo e pecuniário da ville de Mons, declarando que, uma vez que RM tinha entrado ao serviço antes de 9 de abril de 2002, a sua antiguidade para fins remuneratórios adquirida enquanto bombeiro voluntário devia ser tida em conta unicamente na proporção das prestações por ele realmente efetuadas.

22

Por outro lado, em 15 de abril de 2016, RM reclamou à ville de Mons retroativos de remuneração devidos a partir da sua entrada ao serviço, invocando argumentos essencialmente idênticos aos invocados em apoio do pedido de retificação apresentado à Zone de secours Hainaut‑Centre.

23

Em 6 de maio de 2016, a ville de Mons indeferiu esta reclamação com base em fundamentos essencialmente idênticos aos invocados pela Zone de secours Hainaut‑Centre e expostos no n.o 21 do presente acórdão, a saber, a obrigação, em conformidade com os estatutos administrativo e remuneratório da ville de Mons, de contabilizar os anos de serviço cumpridos na qualidade de bombeiro voluntário na proporção das prestações realmente efetuadas.

24

Em 23 de maio de 2016, RM interpôs no tribunal du travail du Hainaut, division de Mons (Tribunal do Trabalho de Hainaut, Divisão de Mons, Bélgica), uma ação contra a ville de Mons e a Zone de secours Hainaut‑Centre.

25

Por Sentença de 25 de fevereiro de 2019, esse órgão jurisdicional julgou procedente o pedido de RM e decidiu que os anos de serviço que este tinha cumprido na qualidade de bombeiro voluntário deviam ser integralmente contabilizados no âmbito da determinação da sua antiguidade para fins remuneratórios, sem ter em conta o volume das prestações por si realmente efetuadas.

26

A ville de Mons e a Zone de secours Hainaut‑Centre recorreram dessa sentença para o órgão jurisdicional de reenvio, a cour du travail de Mons (Tribunal Superior do Trabalho de Mons, Bélgica).

27

Este órgão jurisdicional observa que resulta de um Acórdão da Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica), de 9 de julho de 2013, que os bombeiros voluntários e os bombeiros profissionais desempenham missões semelhantes num mesmo corpo e que, portanto, constituem categorias comparáveis. Nos termos desse acórdão, «[o]s bombeiros voluntários dedicam uma parte do seu tempo livre a um serviço de bombeiros perante o qual assumem um compromisso […]; [r]ecebem um subsídio proporcional ao número de horas de intervenção, com base, no mínimo, no salário médio por hora previsto para o pessoal profissional do mesmo grau […], que está sujeito a um regime específico de segurança social». Resulta igualmente do referido acórdão que os bombeiros voluntários exercem, numa base voluntária, uma atividade acessória a uma atividade profissional ou a outro estatuto e estão, a esse título, sujeitos a um regime de trabalho e de duração do trabalho que difere do dos bombeiros profissionais.

28

Por outro lado, os órgãos jurisdicionais belgas, nomeadamente o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), esclareceram que a atividade de bombeiro voluntário é uma atividade acessória que se inscreve numa relação de trabalho de natureza estatutária e extracontratual.

29

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a determinação da antiguidade para fins remuneratórios dos trabalhadores a tempo parcial é abrangida pelo âmbito de aplicação da cláusula 4 do acordo‑quadro, uma vez que a remuneração faz parte das «condições de emprego», na aceção desta cláusula, como decorre do Acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o. (C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329).

30

Neste contexto, esse órgão jurisdicional observa igualmente que, embora a regulamentação nacional que transpôs esse acordo‑quadro para a ordem jurídica belga, ou seja, a Lei de 5 de março de 2002, só se aplique aos trabalhadores vinculados por um contrato de trabalho, considera, no entanto, que os bombeiros voluntários estão abrangidos pelo referido acordo‑quadro, na medida em que a sua relação de trabalho é definida pela legislação nacional, na aceção da cláusula 2, n.o 1, do mesmo.

31

Além disso, a circunstância de as prestações de RM estarem, desde a sua nomeação como bombeiro profissional, sujeitas a um regime de trabalho a tempo inteiro não impede, de modo algum, que este invoque, no que respeita à determinação da sua antiguidade para fins remuneratórios relativa a um período durante o qual trabalhou a tempo parcial, uma legislação relativa aos trabalhadores a tempo parcial.

32

Dito isto, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à interpretação da cláusula 4 do acordo‑quadro, especialmente quanto ao alcance do princípio pro rata temporis, para efeitos da determinação da antiguidade para fins remuneratórios de RM.

33

Nestas condições, a cour du travail de Mons (Tribunal Superior do Trabalho de Mons) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve a cláusula 4 do Acordo‑Quadro […] ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que, para o cálculo do salário dos bombeiros profissionais contratados a tempo inteiro, [contabil]iza, a título de antiguidade para fins [remunerató]rios, os serviços prestados a tempo parcial como bombeiro voluntário, em função do volume de trabalho, isto é, da duração das prestações realmente efetuadas, segundo o princípio pro rata temporis, e não em função do período dentro do qual as prestações foram efetuadas?»

Quanto à questão prejudicial

34

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a cláusula 4 do acordo‑quadro deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, para efeitos do cálculo da remuneração dos bombeiros profissionais contratados a tempo inteiro, contabiliza, a título de antiguidade para fins remuneratórios, os serviços que estes prestaram previamente a tempo parcial, na qualidade de bombeiros voluntários, segundo o princípio pro rata temporis, isto é, em função das prestações que efetivamente efetuaram, e não em função do período durante o qual essas prestações foram efetuadas.

35

Em primeiro lugar, importa determinar se o litígio no processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação do acordo‑quadro.

36

A este respeito, importa recordar, em primeiro lugar, que o âmbito de aplicação ratione personae do acordo‑quadro é definido na cláusula 2, n.o 1, deste acordo (Acórdão de 1 de março de 2012, O’Brien, C‑393/10, EU:C:2012:110, n.o 28). Nos termos desta disposição, o referido acordo aplica‑se «aos trabalhadores a tempo parcial, com contrato ou relação de trabalho definidos pela legislação, pelas convenções coletivas ou pelas práticas vigentes em cada Estado‑Membro».

37

O Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «trabalhadores a tempo parcial com contrato ou relação de trabalho» deve ser interpretado na aceção do direito nacional (Acórdão de 1 de março de 2012, O’Brien, C‑393/10, EU:C:2012:110, n.o 32). Por outro lado, decorre da própria redação da cláusula 2, n.o 1, do acordo‑quadro que o âmbito de aplicação deste é concebido de modo amplo. Além disso, a definição do conceito de «trabalhador a tempo parcial» na aceção deste acordo‑quadro, enunciada na sua cláusula 3, n.o 1, abrange todos os trabalhadores, sem fazer distinção consoante a qualidade pública ou privada da sua entidade patronal (Acórdão de 1 de março de 2012, O’Brien, C‑393/10, EU:C:2012:110, n.o 37 e jurisprudência referida).

38

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio observa que a regulamentação nacional que transpõe o acordo‑quadro para a ordem jurídica belga, isto é, a Lei de 5 de março de 2002, só se aplica aos trabalhadores vinculados por um contrato de trabalho. Ora, os órgãos jurisdicionais belgas precisaram que a atividade dos bombeiros voluntários se inscreve no âmbito de uma relação de trabalho de natureza estatutária e não contratual.

39

No entanto, tendo em conta a jurisprudência referida nos n.os 36 e 37 do presente acórdão, há que constatar que, como salienta esse órgão jurisdicional, os bombeiros voluntários estão abrangidos pelo acordo‑quadro, na medida em que a sua relação de trabalho é definida pela legislação nacional, na aceção da cláusula 2, n.o 1, do mesmo.

40

Em segundo lugar, importa recordar que a cláusula 4, n.o 1, do acordo‑quadro prevê que, no que respeita às condições de emprego, os trabalhadores a tempo parcial não devem ser tratados em condições menos favoráveis do que os trabalhadores comparáveis a tempo inteiro unicamente pelo facto de trabalharem a tempo parcial, a menos que, por razões objetivas, a diferença de tratamento se justifique.

41

Ora, no litígio no processo principal, RM contesta o método utilizado para calcular a remuneração que lhe é devida como bombeiro profissional, ou seja, como trabalhador a tempo inteiro. Dito isto, invoca a existência de uma diferença de tratamento contrária à cláusula 4 do acordo‑quadro, na medida em que a aplicação das regras relativas à tomada em conta da sua antiguidade para fins remuneratórios em relação a um período durante o qual exerceu uma atividade a tempo parcial, enquanto bombeiro voluntário, tem uma incidência negativa no montante dessa remuneração.

42

A este respeito, importa salientar que o Tribunal de Justiça declarou que o acordo‑quadro visa, por um lado, promover o trabalho a tempo parcial e, por outro, eliminar as discriminações entre os trabalhadores a tempo parcial e os trabalhadores a tempo inteiro (Acórdãos de 10 de junho de 2010, Bruno e o., C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 24, e de 5 de maio de 2022, Universiteit Antwerpen e o., C‑265/20, EU:C:2022:361, n.o 41).

43

Tendo em conta estes objetivos, a cláusula 4 do acordo‑quadro deve ser entendida no sentido de que exprime um princípio de direito social da União que não pode ser interpretado restritivamente (Acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o., C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 32 e jurisprudência referida).

44

Ora, o simples facto de um trabalhador ter adquirido a qualidade de trabalhador a tempo inteiro não exclui que possa, em certas circunstâncias, invocar o princípio da não discriminação enunciado na cláusula 4 do acordo‑quadro, quando a discriminação alegada diz respeito a períodos de serviço cumpridos enquanto trabalhador a tempo parcial [v., por analogia, quanto ao acordo‑quadro relativo a contratos de trabalho a termo, celebrado em 18 de março de 1999 (a seguir «acordo‑quadro relativo a contratos de trabalho a termo»), que figura no anexo à Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo‑quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo (JO 1999, L 175, p. 43), Acórdão de 18 de outubro de 2012, Valenza e o., C‑302/11 a C‑305/11, EU:C:2012:646, n.os 34 e 35, e jurisprudência referida].

45

Com efeito, excluir à partida a aplicação do acordo‑quadro numa situação como a que está em causa no processo principal equivaleria a reduzir, contrariando o objetivo atribuído à cláusula 4, o âmbito da proteção contra discriminações concedida aos trabalhadores em causa e conduziria a uma interpretação indevidamente restritiva da referida cláusula, contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., por analogia, quanto ao acordo‑quadro relativo a contratos de trabalho a termo, Acórdão de 18 de outubro de 2012, Valenza e o., C‑302/11 a C‑305/11, EU:C:2012:646, n.o 37 e jurisprudência referida).

46

Por conseguinte, o acordo‑quadro é aplicável ao litígio no processo principal, uma vez que RM, apesar de estar atualmente empregado a tempo inteiro, invoca esse acordo‑quadro no que respeita a um período durante o qual trabalhou a tempo parcial.

47

Em terceiro lugar, nas suas observações escritas, a Comissão sustenta, referindo‑se à cláusula 2, n.o 2, do acordo‑quadro, que RM não está abrangido pelo conceito de «trabalhador a tempo parcial», na aceção deste acordo‑quadro, devido ao caráter ocasional da sua atividade.

48

A este respeito, importa salientar que é certo que a cláusula 2, n.o 2, do acordo‑quadro permite aos Estados‑Membros ou aos parceiros sociais excluir total ou parcialmente do seu âmbito de aplicação os trabalhadores a tempo parcial com atividade ocasional. Todavia, tal exclusão não é em caso algum automática, uma vez que está sujeita, como a Comissão reconhece, a certo número de procedimentos e de condições.

49

Ora, nenhum elemento da decisão de reenvio ou das observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça permite constatar que o Reino da Bélgica fez uso da faculdade prevista nessa disposição. De qualquer modo, não cabe ao Tribunal de justiça, mas ao órgão jurisdicional de reenvio, proceder às averiguações necessárias para apurar se se verifica tal situação no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 12 de outubro de 2004, Wippel, C‑313/02, EU:C:2004:607, n.o 39).

50

Tendo em conta as considerações precedentes, há que concluir que este litígio está abrangido pelo âmbito de aplicação do acordo‑quadro.

51

Seguidamente, para efeitos da interpretação da cláusula 4 do acordo‑quadro, há que examinar, antes de mais, se a antiguidade para fins remuneratórios em causa no processo principal é abrangida pelo conceito de «condições de emprego», na aceção desta cláusula 4, n.o 1.

52

A este propósito, o Tribunal de Justiça já declarou que as condições financeiras, como as relativas às remunerações, estão abrangidas por este conceito (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o., C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 33).

53

Além disso, na determinação tanto dos elementos constitutivos da remuneração como do nível desses elementos, as instâncias nacionais competentes devem aplicar aos trabalhadores a tempo parcial o princípio da não discriminação consagrado pela cláusula 4 do acordo‑quadro (Acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o., C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 40), levando em conta, se for caso disso, o princípio pro rata temporis (Acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o., C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.o 38).

54

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a antiguidade para fins remuneratórios é contabilizada para efeitos do cálculo da remuneração dos bombeiros profissionais, pelo que constitui um elemento que determina o nível dessa remuneração.

55

Por conseguinte, a antiguidade para fins remuneratórios em causa no processo principal está abrangida pelo conceito de «condições de emprego», na aceção da cláusula 4 do acordo‑quadro.

56

Em seguida, para apreciar se as modalidades de tomada em conta da antiguidade para fins remuneratórios em causa no processo principal preenchem as exigências da cláusula 4 do acordo‑quadro, há que recordar que a exigência de equivalência entre trabalhadores a tempo inteiro e trabalhadores a tempo parcial no que respeita às condições de trabalho, que decorre do princípio da não discriminação previsto nesta cláusula 4, n.o 1, é imposta sem prejuízo da aplicação adequada, em conformidade com a referida cláusula 4, n.o 2, do princípio pro rata temporis (v., neste sentido, Despacho de 3 de março de 2021, Fogasa, C‑841/19, EU:C:2021:159, n.os 41 e 42 e jurisprudência referida).

57

Com efeito, a tomada em consideração da quantidade de trabalho efetivamente cumprida por um trabalhador a tempo parcial, comparada com a de um trabalhador a tempo inteiro, constitui uma razão objetiva, na aceção da cláusula 4, n.o 1, do acordo‑quadro, que justifica uma redução proporcional dos direitos e das condições de trabalho de um trabalhador a tempo parcial (Despacho de 3 de março de 2021, Fogasa, C‑841/19, EU:C:2021:159, n.o 43 e jurisprudência referida).

58

Como resulta da decisão de reenvio, a regulamentação em causa no processo principal prevê que, para efeitos do cálculo da remuneração dos bombeiros profissionais que, como RM, foram recrutados antes de 9 de abril de 2002, é atribuída uma antiguidade equivalente ao número de anos de serviço cumpridos por estes como bombeiros voluntários, determinada proporcionalmente às prestações que efetivamente efetuaram.

59

Ora, a aplicação, no que respeita a esses bombeiros profissionais, de um elemento que determina o nível da sua remuneração, como a antiguidade para fins remuneratórios, que corresponde à percentagem do tempo de trabalho que realizaram enquanto trabalhadores a tempo parcial em relação ao tempo de trabalho realizado pelos trabalhadores a tempo inteiro que exercem a mesma atividade, constitui uma aplicação apropriada do princípio pro rata temporis, na aceção da cláusula 4, n.o 2, do acordo‑quadro (v., neste sentido, Despacho de 3 de março de 2021, Fogasa, C‑841/19, EU:C:2021:159, n.o 45).

60

Nestas condições, há que concluir que, no caso em apreço, a aplicação do princípio pro rata temporis, para efeitos da determinação da antiguidade para fins remuneratórios dos bombeiros profissionais que prestaram serviços a tempo parcial como bombeiros voluntários, constitui uma aplicação apropriada deste princípio, na aceção da cláusula 4, n.o 2, do acordo‑quadro.

61

Esta conclusão não é posta em causa pela circunstância, salientada por RM nas suas observações escritas, de que, para os bombeiros profissionais recrutados a partir de 9 de abril de 2002, é tida em conta uma antiguidade para fins remuneratórios equivalente ao número de anos de serviço cumpridos por estes como bombeiros voluntários, sem ter em consideração o volume das prestações que efetivamente efetuaram.

62

Com efeito, a cláusula 4, n.o 2, do acordo‑quadro prevê que o princípio pro rata temporis se aplica «sempre que apropriado». Por conseguinte, esta disposição não impõe a aplicação deste princípio, tal como não impede, a fortiori, a supressão da sua aplicação a um domínio a que anteriormente se aplicava. Sustentar o contrário iria contra os objetivos do acordo‑quadro, que visa, nomeadamente, como enuncia a sua cláusula 1, alínea a), melhorar a qualidade do trabalho a tempo parcial.

63

De qualquer modo, uma eventual diferença de tratamento entre duas categorias de trabalhadores a tempo parcial não é abrangida pelo princípio da não discriminação consagrado pelo acordo‑quadro (v., por analogia, quanto ao acordo‑quadro relativo a contratos de trabalho a termo, Acórdão de 13 de janeiro de 2022, MIUR e Ufficio Scolastico Regionale per la Campania, C‑282/19, EU:C:2022:3, n.o 72 e jurisprudência referida).

64

Por outro lado, no que respeita ao cálculo das prestações realmente efetuadas por RM quando era bombeiro voluntário, importa recordar que, tratando‑se de um bombeiro voluntário da cidade de Nivelles (Bélgica), o Tribunal de Justiça já declarou que uma situação em que um trabalhador está obrigado a passar o período de prevenção no seu domicílio, a estar à disposição da sua entidade patronal e a poder chegar ao seu local de trabalho num prazo de 8 minutos deve ser considerada abrangida pelo conceito de «tempo de trabalho», na aceção do artigo 2.o, da Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho (JO 2003, L 299, p. 9). O mesmo não se passa, no entanto, numa situação em que o trabalhador efetua uma prevenção segundo o sistema de chamada, que exige que este esteja permanentemente acessível, sem com isso exigir a sua presença física no local (v. Acórdão de 21 de fevereiro de 2018, Matzak, C‑518/15, EU:C:2018:82, n.os 60 e 65).

65

Por último, importa igualmente precisar que a conclusão que figura no n.o 60 do presente acórdão, segundo a qual a regulamentação em causa no processo principal constitui uma aplicação apropriada do princípio pro rata temporis, está sujeita à condição de a determinação da antiguidade para fins remuneratórios depender diretamente da quantidade de trabalho efetuada pelo trabalhador em causa, e não exclusivamente da duração da antiguidade por ele adquirida. Com efeito, neste último caso, o princípio pro rata temporis não é aplicável (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2010, Bruno e o., C‑395/08 e C‑396/08, EU:C:2010:329, n.os 65 e 66).

66

No caso em apreço, parece resultar da decisão de reenvio que a determinação da antiguidade para fins remuneratórios de RM depende diretamente da quantidade de trabalho por ele efetuada. Todavia, é ao órgão jurisdicional de reenvio que caberá proceder às verificações necessárias a este respeito.

67

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que a cláusula 4 do acordo‑quadro deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que, para efeitos do cálculo da remuneração dos bombeiros profissionais contratados a tempo inteiro, contabiliza, a título de antiguidade para fins remuneratórios, os serviços previamente prestados a tempo parcial, na qualidade de bombeiro voluntário, segundo o princípio pro rata temporis, ou seja, em função das prestações realmente efetuadas.

Quanto às despesas

68

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

 

A cláusula 4 do Acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial, celebrado em 6 de junho de 1997, que figura no anexo da Diretiva 97/81/CE do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que, para efeitos do cálculo da remuneração dos bombeiros profissionais contratados a tempo inteiro, contabiliza, a título de antiguidade para fins remuneratórios, os serviços previamente prestados a tempo parcial, na qualidade de bombeiro voluntário, segundo o princípio pro rata temporis, ou seja, em função das prestações realmente efetuadas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.