ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
1 de agosto de 2022 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Artigo 101.o TFUE — Ações de indemnização por infração às disposições do direito da concorrência da União — Decisão da Comissão Europeia que declara uma infração — Procedimento de transação — Produtos abrangidos pela infração — Camiões especiais — Camiões de lixo doméstico»
No processo C‑588/20,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Hannover (Tribunal Regional de Hanôver, Alemanha), por Decisão de 19 de outubro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de novembro de 2020, no processo
Landkreis Northeim
contra
Daimler AG,
sendo intervenientes:
Iveco Magirus AG,
Traton SE, enquanto sucessora da MAN SE, da MAN Truck & Bus e da MAN Truck & Bus Deutschland GmbH,
Schönmackers Umweltdienste GmbH & Co. KG,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),
composto por: A. Arabadjiev (relator), presidente de secção, P. G. Xuereb e A. Kumin, juízes,
advogado‑geral: L. Medina,
secretário: D. Dittert, chefe de unidade,
vistos os autos e após a audiência de 17 de novembro de 2021,
vistas as observações apresentadas:
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em representação do Landkreis Northeim, por L. Maritzen e B. Rohlfing, Rechtsanwälte, |
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em representação da Daimler AG, por U. Denzel, L. Schultze‑Moderow e C. von Köckritz, Rechtsanwälte, |
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em representação da Iveco Magirus AG, por A. Boos, M. Buntscheck, T. Mühlbach e H. Stichweh, Rechtsanwälte, |
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em representação da Traton SE, sucessora da MAN SE, MAN Truck & Bus e da MAN Truck & Bus Deutschland GmbH, por C. Jopen, S. Milde e D. J. Zimmer, Rechtsanwälte, |
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em representação da Schönmackers Umweltdienste GmbH & Co. KG, por A. Glöckner, Rechtsanwalt, |
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em representação do Governo austríaco, por A. Posch, E. Samoilova e J. Schmoll, na qualidade de agentes, |
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em representação da Comissão Europeia, por S. Baches Opi, M. Farley e L. Wildpanner, na qualidade de agentes, |
ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 24 de fevereiro de 2022,
profere o presente
Acórdão
1 |
O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Decisão da Comissão Europeia de 19 de julho de 2016, notificada com a referência C(2016) 4673 final, relativa a um processo nos termos do artigo 101.o [TFUE] e do artigo 53.o do Acordo EEE (Processo AT.39824 — Camiões) (JO 2017, C 108, p. 6; a seguir «decisão em causa»). |
2 |
Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Landkreis Northeim (Distrito da Renânia do Norte, Alemanha) à Daimler AG a respeito dos danos que o Distrito da Renânia do Norte alega ter sofrido em consequência da infração ao artigo 101.o TFUE e ao artigo 53.o do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3; a seguir «Acordo EEE») declarada na decisão em causa. |
Quadro jurídico
Direito da União
Regulamento (CE) n.o 1/2003
3 |
O artigo 2.o do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1), sob a epígrafe «Ónus da prova», prevê: «Em todos os processos nacionais e [da União Europeia] de aplicação dos artigos [101.o] e [102.o TFUE], o ónus da prova de uma violação do n.o 1 do artigo [101.o] ou do artigo [102.o TFUE] incumbe à parte ou à autoridade que alega tal violação. Incumbe à empresa ou associação de empresas que invoca o benefício do disposto no n.o 3 do artigo [101.o TFUE] o ónus da prova do preenchimento das condições nele previstas.» |
4 |
Nos termos do artigo 7.o deste regulamento, sob a epígrafe «Verificação e cessação da infração»: «1. Se, na sequência de uma denúncia ou oficiosamente, a Comissão verificar uma infração ao disposto nos artigos [101.o] ou [102.o TFUE], pode, mediante decisão, obrigar as empresas e associações de empresas em causa a porem termo a essa infração. Para o efeito, a Comissão pode impor‑lhes soluções de conduta ou de caráter estrutural proporcionadas à infração cometida e necessárias para pôr efetivamente termo à infração. As soluções de caráter estrutural só podem ser impostas quando não houver qualquer solução de conduta igualmente eficaz ou quando qualquer solução de conduta igualmente eficaz for mais onerosa para a empresa do que a solução de caráter estrutural. Quando exista um interesse legítimo, a Comissão pode também declarar verificada a existência de uma infração que já tenha cessado. 2. Estão habilitados a apresentar uma denúncia na aceção do n.o 1 as pessoas singulares ou coletivas que invoquem um interesse legítimo, bem como os Estados‑Membros.» |
5 |
O artigo 11.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Cooperação entre a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», prevê, no seu n.o 6: «O início por parte da Comissão da tramitação conducente à aprovação de uma decisão nos termos do capítulo III priva as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência da competência para aplicarem os artigos [101.o] e [102.o TFUE] do Tratado. Se a autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência já estiver a instruir um processo, a Comissão só dará início a um processo após ter consultado essa autoridade nacional responsável em matéria de concorrência.» |
6 |
O artigo 16.o deste mesmo regulamento, sob a epígrafe «Aplicação uniforme do direito [da União] da concorrência», dispõe, no seu n.o 1: «Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos [101.o] ou [102.o TFUE] que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, os tribunais nacionais não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão. Devem evitar tomar decisões que entrem em conflito com uma decisão prevista pela Comissão em processos que esta tenha iniciado. Para o efeito, o tribunal nacional pode avaliar se é ou não necessário suster a instância. Esta obrigação não prejudica os direitos e obrigações decorrentes do artigo [267.o TFUE].» |
7 |
O artigo 18.o do Regulamento n.o 1/2003, sob a epígrafe «Pedidos de informações», dispõe, no seu n.o 1: «No cumprimento das funções que lhe são atribuídas pelo presente regulamento, a Comissão pode, mediante simples pedido ou decisão, solicitar às empresas e associações de empresas que forneçam todas as informações necessárias.» |
8 |
O artigo 23.o deste regulamento, sob a epígrafe «Coimas», enuncia, nos seus n.os 2 e 3: «2. A Comissão pode, mediante decisão, aplicar coimas às empresas e associações de empresas sempre que, deliberadamente ou por negligência:
A coima aplicada a cada uma das empresas ou associações de empresas que tenha participado na infração não deve exceder 10 % do respetivo volume de negócios total realizado durante o exercício precedente. Quando a infração cometida por uma associação se referir às atividades dos seus membros, a coima não deve exceder 10 % da soma do volume de negócios total de cada membro ativo no mercado cujas atividades forem afetadas pela infração da associação. 3. Quando se determinar o montante da coima, deve tomar‑se em consideração a gravidade e a duração da infração.» |
Orientações de 2006
9 |
O ponto 6 das Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.o 2, alínea a), do artigo 23.o do Regulamento n.o 1/2003 (JO 2006, C 210, p. 2; a seguir «Orientações de 2006») enuncia: «[…] a combinação do valor das vendas relacionadas com a infração e da sua duração é considerada um valor de substituição adequado para refletir a importância económica da infração, bem como o peso relativo de cada empresa que participa na infração. A referência a estes indicadores dá uma boa indicação da ordem de grandeza da coima e não deverá ser entendida como a base de um método de cálculo automático e aritmético.» |
10 |
Nos termos do ponto 13 destas orientações: «Para determinar o montante de base da coima a aplicar, a Comissão utilizará o valor das vendas de bens ou serviços, realizadas pela empresa, relacionadas direta ou indiretamente […] com a infração, na área geográfica em causa no território do Espaço Económico Europeu (“EEE”). A Comissão utilizará em princípio as vendas realizadas pela empresa durante o último ano completo da sua participação na infração (a seguir “o valor das vendas”).» |
11 |
O ponto 37 das referidas orientações prevê: «Embora as presentes [o]rientações exponham a metodologia geral para a fixação de coimas, as especificidades de um dado processo ou a necessidade de atingir um nível dissuasivo num caso particular podem justificar que a Comissão se afaste desta metodologia ou dos limites fixados no ponto 21.» |
Comunicação relativa à transação
12 |
O ponto 2 da Comunicação da Comissão relativa à condução de procedimentos de transação para efeitos da adoção de decisões nos termos do artigo 7.o e do artigo 23.o do Regulamento n.o 1/2003 nos processos de cartéis (JO 2008, C 167, p. 1) dispõe: «Quando os interessados diretos num processo estão dispostos a reconhecer a sua participação num cartel que constitua uma infração ao artigo [101.o TFUE], bem como a sua responsabilidade no mesmo, podem igualmente contribuir para acelerar o processo que culmina na adoção da decisão correspondente nos termos do artigo 7.o e do artigo 23.o do [Regulamento n.o 1/2003], da forma e com as salvaguardas especificadas na presente comunicação. Embora a Comissão, na sua qualidade de autoridade responsável pela realização de investigações e de guardiã do Tratado com poderes para adotar decisões de aplicação sujeitas ao controlo judicial dos tribunais [da União], não negoceie a questão da existência de uma infração ao direito [da União] nem a sanção adequada, pode recompensar a cooperação descrita na presente comunicação.» |
Direito alemão
13 |
O § 33, n.o 4, da Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkungen (Lei Contra as Restrições da Concorrência), de 26 de junho de 2013 (BGBl. 2013 I, p. 1750), na versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe: «Se for pedida indemnização com fundamento numa violação de uma disposição desta lei ou dos artigos [101] ou [102.o TFUE], o tribunal está vinculado pela declaração dessa violação numa decisão definitiva da autoridade de defesa da concorrência [(Kartellbehörde)], da [Comissão Europeia] ou da autoridade da concorrência [(Wettbewerbsbehörde)] ou de um tribunal que exerça a mesma competência noutro Estado‑Membro da [União]. O mesmo se aplica a declarações equivalentes em decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas na sequência da impugnação das decisões referidas no primeiro período […].» |
Litígio no processo principal e questão prejudicial
14 |
Em 2006 e 2007, o Distrito da Renânia do Norte adquiriu à Daimler dois camiões de lixo doméstico através de um concurso público. |
15 |
Em 19 de julho de 2016, a Comissão adotou a decisão em causa no âmbito de um procedimento de transação. |
16 |
Mediante essa decisão, a Comissão deu como provada a existência de um cartel no qual participaram vários fabricantes internacionais de camiões, entre os quais a Daimler, a MAN SE e a Iveco Magirus AG, que tinha como objeto, por um lado, a fixação de preços e o aumento dos preços brutos dos camiões com um peso entre seis e 16 toneladas («camiões médios») ou de peso superior a 16 toneladas («camiões pesados») no EEE e, por outro, o calendário e a repercussão dos custos relativos para a introdução de tecnologias de emissões exigidas pelas normas EURO 3 a 6, e, por conseguinte, declarou uma infração ao artigo 101.o TFUE e ao artigo 53.o do Acordo EEE. A Comissão considerou que esta infração se prolongou de 17 de janeiro de 1997 até 18 de janeiro de 2011. |
17 |
Na sequência da adoção da referida decisão, o Distrito da Renânia do Norte propôs, no órgão jurisdicional de reenvio, o Landgericht Hannover (Tribunal Regional de Hanôver, Alemanha), uma ação de indemnização contra a Daimler, destinada a obter a reparação dos danos que alega ter sofrido em consequência das práticas anticoncorrenciais da Daimler. |
18 |
O Distrito da Renânia do Norte considera que os camiões de lixo doméstico que adquiriu à Daimler integram os produtos abrangidos pela infração declarada na decisão em causa. Refere‑se, a este respeito, ao teor desta decisão, que não exclui expressamente os camiões especiais dos referidos produtos. |
19 |
Por sua vez, a Daimler alega perante o órgão jurisdicional de reenvio que os camiões de lixo doméstico, que são camiões especiais, não estão abrangidos pela decisão em causa. A este respeito, a Daimler esclareceu que, em 30 de junho de 2015, no âmbito do procedimento que conduziu à adoção dessa decisão, a Comissão lhe dirigiu um pedido de informações que indicava que, para efeitos das questões submetidas, o termo «camiões» não abrangia os camiões usados, os camiões especiais (por exemplo, os camiões para uso militar ou os camiões de bombeiros), as estruturas revendidas (os add‑ons), os serviços pós‑venda ou outros serviços e as garantias. |
20 |
Neste contexto, e atendendo às exigências do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 segundo as quais, quando os tribunais nacionais se pronunciam sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 101.o ou 102.o TFUE que já tenham sido objeto de uma decisão da Comissão, não podem tomar decisões que sejam contrárias a essa decisão, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas a respeito dos produtos abrangidos pelo cartel em questão visado na decisão em causa. Em particular, este órgão jurisdicional pretende saber se, à luz da jurisprudência nacional relativa ao alcance do conceito de «camiões» conforme é utilizado nesta decisão, que não é uniforme, os camiões de lixo doméstico estão ou não excluídos dos produtos abrangidos por este cartel. |
21 |
A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio recorda, antes de mais, que, no considerando 5 da decisão em causa, a Comissão declarou, em primeiro lugar, que «[o]s produtos abrangidos pela infração são camiões com um peso entre [seis] e [dezasseis] toneladas (“camiões médios”) e camiões de peso superior a [dezasseis] toneladas (“camiões pesados”), que tanto podem ser camiões rígidos como camiões tratores», em segundo lugar, que os camiões para uso militar estão excluídos dos produtos abrangidos pelo cartel em causa no processo principal, e, em terceiro lugar, que o procedimento que deu lugar à decisão em causa «não diz[ia] respeito a serviços pós‑venda, outros serviços e garantias para camiões, à venda de camiões usados ou quaisquer outros bens ou serviços». |
22 |
Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a formulação utilizada pela Comissão para descrever os produtos abrangidos pelo cartel em causa no processo principal pode ser entendida no sentido de que abrange, em princípio, apenas os camiões «normais», com exceção dos camiões para uso militar, e que, na falta de uma menção expressa, os camiões especiais, incluindo os camiões de lixo doméstico, estão excluídos do conceito de «camiões» utilizado pela Comissão na decisão em causa, estando abrangidos pelo conceito de «outros bens». |
23 |
Todavia, segundo o referido órgão jurisdicional, esta formulação pode igualmente ser entendida no sentido de que o conceito de «camiões» abrange todos os tipos de camiões, incluindo todos os tipos de camiões especiais, com exceção dos camiões para uso militar. |
24 |
Em seguida, esse mesmo órgão jurisdicional tem dúvidas sobre a relevância do pedido de informações da Comissão de 30 de junho de 2015, mencionado no n.o 19 do presente acórdão, para a determinação dos produtos abrangidos pelo cartel em causa no processo principal. Em particular, o referido órgão jurisdicional pretende saber se o facto de a Comissão ter indicado neste pedido que, para efeitos das questões submetidas, o conceito de «camiões» não abrange nem os camiões usados nem os camiões especiais, «nomeadamente os camiões para uso militar e os camiões de bombeiros», significa que a menção a estes últimos camiões deve ser considerada exemplificativa e não uma enumeração taxativa. |
25 |
Por último, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que a decisão em causa foi adotada no âmbito de um procedimento de transação iniciado pela Comissão, na sequência dos pedidos feitos a esta instituição pelos intervenientes no processo iniciado ao abrigo do artigo 11.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1/2003. Neste contexto, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas sobre a relevância do facto de o alcance do comportamento anticoncorrencial ser determinado no âmbito de um procedimento de transação. |
26 |
Nestas circunstâncias, o Landgericht Hannover (Tribunal Regional de Hanôver) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: «Deve a [d]ecisão [em causa], ser interpretada no sentido de que os veículos especiais ou para fins especiais, em particular os camiões do lixo [doméstico], também estão abrangidos pelas disposições desta decisão da Comissão?» |
Quanto à questão prejudicial
Quanto à admissibilidade
27 |
Em primeiro lugar, partindo da premissa de que o Acórdão de 9 de março de 1994, TWD Textilwerke Deggendorf (C‑188/92, EU:C:1994:90), se aplica por analogia ao processo principal, o Distrito da Renânia do Norte alega que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, uma vez que a Daimler não interpôs recurso de anulação da decisão em causa no Tribunal Geral e que, por conseguinte, esta sociedade já não pode impugnar a legalidade da referida decisão. |
28 |
A este respeito, basta salientar que não resulta de modo nenhum da decisão de reenvio que a Daimler, enquanto demandada no processo principal no âmbito de uma ação de indemnização proposta pelo Distrito da Renânia do Norte na sequência da adoção da decisão em causa, tenha impugnado a validade desta decisão perante o órgão jurisdicional de reenvio. Em contrapartida, resulta com clareza dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a interpretar a referida decisão, e não a pronunciar‑se sobre a sua validade. |
29 |
Em segundo lugar, a Schönmackers Umweltdienste GmbH & Co. KG, interveniente no processo principal em apoio do Distrito da Renânia do Norte, sustenta que não resulta expressamente da decisão de reenvio em que medida é que a resposta à questão submetida é necessária para resolver o litígio no processo principal. |
30 |
A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documentos), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 25]. |
31 |
Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só se pode recusar a pronunciar sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documentos), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 26]. |
32 |
Em especial, como decorre dos próprios termos do artigo 267.o TFUE, a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária ao julgamento da causa» pelo órgão jurisdicional de reenvio. Assim, o processo de reenvio prejudicial pressupõe, nomeadamente, que esteja efetivamente pendente um litígio nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual estes são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração o acórdão prejudicial [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documentos), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 27]. |
33 |
No presente caso, o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a apreciar uma ação de indemnização proposta na sequência da adoção da decisão em causa mediante a qual a Comissão deu como provada a existência de um cartel composto por vários fabricantes internacionais de camiões, entre os quais a Daimler, que tem como objeto, por um lado, os camiões médios e os camiões pesados, que tanto podem ser camiões rígidos como camiões tratores, e, por outro, o calendário e a repercussão dos custos relativos para a introdução de tecnologias de emissões exigidos pelas normas EURO 3 a 6. Ora, no seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio explica que o demandante no processo principal, que adquiriu à Daimler dois camiões de lixo doméstico, considera que estes camiões integram os produtos abrangidos pelo referido cartel. Em contrapartida, a Daimler alega perante este órgão jurisdicional que os referidos camiões, uma vez que são camiões especiais, não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação material da decisão em causa. |
34 |
Assim, resulta claramente da decisão de reenvio que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre o alcance da decisão em causa e pretende, em particular, saber se, no caso em apreço, os referidos camiões de lixo doméstico integram os produtos abrangidos pelo cartel cuja existência foi declarada pela Comissão nesta decisão. |
35 |
Nestas condições, a interpretação solicitada relativa ao alcance da referida decisão afigura‑se necessária para permitir ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, no caso em apreço, a ação de indemnização é ou não procedente. |
36 |
Atendendo a todos estes elementos, há que declarar que o pedido de decisão prejudicial é admissível. |
Quanto ao mérito
37 |
Com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a decisão em causa deve ser interpretada no sentido de que os camiões especiais, nomeadamente os camiões de lixo doméstico, integram os produtos abrangidos pelo cartel cuja existência foi declarada nesta decisão. |
38 |
A este respeito, cumpre, antes de mais, sublinhar que os produtos abrangidos por uma infração ao artigo 101.o TFUE declarada numa decisão da Comissão são determinados em função dos acordos e das atividades realizados pelo cartel. Com efeito, são os membros do cartel que concentram voluntariamente os seus comportamentos anticoncorrenciais nos produtos abrangidos pelo cartel. |
39 |
Daqui resulta que, para determinar se os camiões especiais, em particular os camiões de lixo doméstico, integram os produtos abrangidos pelo cartel cuja existência foi declarada na decisão em causa, há que fazer referência, em primeiro lugar, ao dispositivo e aos fundamentos desta decisão, pelo que as definições dos conceitos de «camião» e de «veículo para fins especiais» que figuram nos diferentes atos de direito derivado da União a que se referem os participantes no presente processo, não são pertinentes. |
40 |
A este respeito, há que salientar que, segundo o artigo 1.o da decisão em causa, o cartel em questão no processo principal tinha como objeto, por um lado, a fixação de preços e o aumento dos preços brutos no EEE dos camiões médios e dos camiões pesados, e, por outro, o calendário e a repercussão dos custos relativos à introdução de tecnologias de emissões exigidas pelas normas EURO 3 a 6. |
41 |
Quanto aos produtos abrangidos pelo cartel em causa no processo principal, a Comissão especificou expressamente, no considerando 5 da decisão em causa, na subsecção intitulada «Produtos», os produtos sobre os quais incidiram os acordos colusórios celebrados pelos membros do cartel no processo principal. |
42 |
Conforme resulta da primeira frase deste considerando, os produtos abrangidos pela infração no processo principal são os camiões com um peso entre seis e 16 toneladas («camiões médios») ou de peso superior a 16 toneladas («camiões pesados»), que tanto podem ser camiões rígidos como camiões tratores. Na nota 5 relativa ao referido considerando, a Comissão só excluiu expressamente dos produtos em causa os camiões para uso militar. |
43 |
A segunda frase desse considerando esclarece que o procedimento que deu lugar à decisão em causa não diz respeito a serviços pós‑venda, outros serviços e garantias para camiões, à venda de camiões usados ou quaisquer outros bens ou serviços. |
44 |
Neste contexto, uma vez que a distinção por categoria de camiões prevista no considerando 5 da decisão em causa é efetuada exclusivamente em função do peso dos camiões, há que considerar, como foi salientado pela advogada‑geral no n.o 74 das suas conclusões, que o critério fixado nesta decisão para determinar se um camião está abrangido pela mesma é o respetivo peso. |
45 |
Daqui resulta que a decisão em causa abrange a venda de todos os camiões médios e camiões pesados, que tanto podem ser camiões rígidos como camiões tratores. |
46 |
Além disso, essa decisão não contém elementos que permitam concluir que os camiões especiais não integram os produtos abrangidos pela infração em causa no processo principal. |
47 |
Em contrapartida, como resulta nomeadamente dos considerandos 46, 48 e 56 da decisão em causa, que figuram na subsecção intitulada «Natureza e alcance da infração», a infração em questão no processo principal abrangia todos os equipamentos e modelos especiais e de base, bem como todas as opções de fábrica oferecidas pelos diferentes fabricantes que participaram no cartel no processo principal. |
48 |
Em especial, resulta, antes de mais, do considerando 46 dessa decisão que a Comissão deu como provado que as empresas em causa trocavam tabelas de preços brutos e configuradores informatizados para camiões que continham todos os modelos e opções possíveis, o que facilitou o cálculo dos preços brutos para todas as configurações de camião. Segundo o considerando 28 da referida decisão, estas tabelas de preços incluíam os preços de todos os modelos de camiões médios e camiões pesados, bem como de todas as opções de fábrica (para equipamento especial) oferecidas pelos diferentes fabricantes. |
49 |
Em seguida, resulta do considerando 48 da decisão em causa que a partilha de configuradores de camiões entre as empresas em causa permitiu determinar quais as opções compatíveis com que camiões e que opções podiam fazer parte dos equipamentos de série ou dos extras. |
50 |
Por último, resulta do considerando 56 dessa decisão que as informações partilhadas entre as empresas em causa incluíam informações relativas aos futuros aumentos previstos dos preços brutos, aos modelos de camiões de base, aos camiões e às opções de configuração disponíveis. |
51 |
Nestas condições, há que considerar que os camiões especiais, incluindo os camiões de lixo doméstico, integram os produtos abrangidos pela infração declarada na decisão em causa. |
52 |
Esta conclusão não é contrariada pelos argumentos invocados, nomeadamente, pela Daimler, pela Traton SE e pela Iveco Magirus, segundo os quais, no âmbito do procedimento de transação, os pedidos de informações que lhes foram dirigidos são necessariamente pertinentes para determinar se os camiões especiais integravam os produtos abrangidos pelo cartel em causa no processo principal. Ora, no seu pedido de informações de 30 de junho de 2015, mencionado no n.o 19 do presente acórdão, destinado a obter informações sobre o volume de negócios realizado pelas empresas em causa com os produtos direta ou indiretamente relacionados com a infração declarada para efeitos da determinação do montante da coima, a Comissão indicou claramente que os camiões especiais como os camiões para uso militar e os camiões de bombeiros não estavam abrangidos pelo conceito de «camiões», por referência ao qual devia ser comunicado o volume de negócios realizado. Neste contexto, seria contraditório não atender ao volume de negócios relativo às vendas de camiões especiais no cálculo da coima, mas incluir estes camiões no conceito de «camiões», na aceção do considerando 5 da decisão em causa. |
53 |
A este respeito, importa realçar, em primeiro lugar, que, como resulta do ponto 2 da comunicação da Comissão referida no n.o 12 do presente acórdão, embora, no âmbito de um procedimento de transação, a Comissão possa recompensar a cooperação das empresas em causa, não negoceia nem a questão da existência de uma infração às regras da União em matéria de concorrência, nem a sanção a aplicar nesse procedimento. Por conseguinte, o facto de a decisão em causa ter sido adotada no âmbito desse procedimento não é relevante para a determinação do alcance do comportamento anticoncorrencial. |
54 |
Em segundo lugar, decorre do artigo 18.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003 que, no cumprimento das funções que lhe são atribuídas por este regulamento, a Comissão pode, mediante simples pedido ou decisão, solicitar às empresas e associações de empresas que forneçam todas as informações necessárias. |
55 |
Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um pedido de informações constitui uma medida de inquérito que tem unicamente por objeto permitir à Comissão recolher as informações e a documentação necessárias para verificar a realidade e o alcance de uma determinada situação de facto e de direito (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2016, HeidelbergCement/Comissão,C‑247/14 P, EU:C:2016:149, n.o 37). |
56 |
Como foi assinalado pela advogada‑geral, em substância, no n.o 83 das suas conclusões, esse pedido de informações não tem por objeto definir ou precisar os produtos abrangidos pelos comportamentos anticoncorrenciais. |
57 |
No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que o pedido de informações de 30 de junho de 2015, mencionado no n.o 19 do presente acórdão, visava apenas obter informações sobre o volume de negócios das empresas em causa, realizado com os produtos direta ou indiretamente ligados à infração declarada para efeitos da determinação do montante da coima. |
58 |
Em terceiro lugar, importa recordar que a Comissão beneficia de um amplo poder de apreciação no que respeita ao método de cálculo das coimas em caso de violação das regras da União em matéria de concorrência. Este método contém diferentes elementos de flexibilidade que permitem à Comissão exercer o seu poder discricionário em conformidade com o disposto no artigo 23.o, n.os 2 e 3, do Regulamento n.o 1/2003 (Acórdão de 3 de setembro de 2009, Papierfabrik August Koehler e o./Comissão, C‑322/07 P, C‑327/07 P e C‑338/07 P, EU:C:2009:500, n.o 112). |
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Embora o artigo 23.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1/2003 atribua à Comissão uma margem de apreciação, limita, no entanto, o seu exercício, instituindo critérios objetivos que esta deve respeitar. Assim, por um lado, o montante da coima suscetível de ser aplicada tem um limite quantificável e absoluto, de forma que o montante máximo da coima aplicável a uma dada empresa seja determinável antecipadamente. Por outro lado, o exercício desse poder de apreciação é igualmente limitado por normas de conduta que a Comissão impôs a si própria (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de julho de 2013, Schindler Holding e o./Comissão, C‑501/11 P, EU:C:2013:522, n.o 58, e de 19 de março de 2015, Dole Food e Dole Fresh Fruit Europe/Comissão, C‑286/13 P, EU:C:2015:184, n.o 146). |
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Neste contexto, há que salientar que o ponto 13 das Orientações prevê que «[p]ara determinar o montante de base da coima a aplicar, a Comissão utilizará o valor das vendas de bens ou serviços, realizadas pela empresa, relacionadas direta ou indiretamente […] com a infração, na área geográfica em causa no território do [EEE]». Estas Orientações precisam, no seu ponto 6, que «a combinação do valor das vendas relacionadas com a infração e da sua duração é considerada um valor de substituição adequado para refletir a importância económica da infração, bem como o peso relativo de cada empresa que participa na infração». |
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Dito isto, em conformidade com o ponto 37 das Orientações de 2006, a Comissão pode afastar‑se da metodologia geral prevista nestas orientações para a fixação de coimas, a fim de ter em conta as especificidades de um dado processo ou de atingir um nível dissuasivo suficiente. |
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Conforme sublinhado pela advogada‑geral, em substância, nos n.os 94 e 95 das suas conclusões, a Comissão não é obrigada, se for caso disso, a ter em conta o valor máximo de todas as vendas abrangidas pelo cartel para assegurar o caráter efetivo e dissuasivo de uma coima. |
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Dito isto, há que salientar que, quando a Comissão decide basear‑se no ponto 37 das referidas Orientações de 2006 e afastar‑se da metodologia geral nelas exposta, deve respeitar o dever de fundamentação que lhe incumbe por força do artigo 296.o TFUE. Com efeito, a Comissão não se pode afastar das referidas orientações, num determinado caso, sem apresentar fundamentos compatíveis com o direito da União. |
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No caso em apreço, resulta do considerando 106 da decisão em causa que as coimas aplicadas foram calculadas por referência aos princípios consagrados nas Orientações de 2006. A Comissão recordou igualmente, nos considerandos 108 e 110 desta decisão, a regra de cálculo das vendas pertinentes enunciada no ponto 13 destas orientações. No considerando 109 da referida decisão, a Comissão salientou que o valor pertinente das vendas incluía as vendas dos camiões médios e dos camiões pesados, que tanto podem ser camiões rígidos como camiões tratores. |
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No entanto, decorre do considerando 112 da decisão em causa que a Comissão aplicou o ponto 37 das Orientações de 2006 para ajustar uniformemente a proporção do valor das vendas de cada empresa para efeitos de cálculo dos montantes variáveis e suplementares das coimas. A Comissão explicou que o fez no âmbito do seu poder de apreciação, entre outros, por «razões de proporcionalidade». Em especial, a Comissão considerou que, atenta a importância do valor das vendas das empresas em causa, os objetivos de dissuasão e de proporcionalidade subjacentes ao artigo 23.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 1/2003 podiam ser alcançados sem recorrer ao valor total das vendas de camiões das empresas em causa. Por conseguinte, e em aplicação deste ponto 37, a Comissão decidiu considerar apenas uma fração do valor total das vendas para efeitos do cálculo da coima. |
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Nestas condições, conforme foi realçado pela advogada‑geral, em substância, nos n.os 90 e 91 das suas conclusões, o facto de os camiões especiais terem sido excluídos do conceito de «camiões» que figura no pedido de informações de 30 de junho de 2015, mencionado no n.o 19 do presente acórdão, destinado a obter informações sobre o volume de negócios das empresas em causa realizados com os produtos direta ou indiretamente ligados à infração declarada e que, no considerando 112 da decisão em causa, o facto de a Comissão ter decidido ter em conta apenas uma fração do valor total das vendas para efeitos do cálculo da coima não permite considerar que os camiões especiais não integram os produtos abrangidos pelo cartel em causa no processo principal. |
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À luz das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que a decisão em causa deve ser interpretada no sentido de que os camiões especiais, incluindo os camiões de lixo doméstico, integram os produtos abrangidos pelo cartel cuja existência foi declarada nessa decisão. |
Quanto às despesas
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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara: |
A Decisão da Comissão Europeia de 19 de julho de 2016, notificada sob a referência C(2016) 4673 final, relativa a um processo nos termos do artigo 101.o [TFUE] e do artigo 53.o do Acordo EEE (Processo AT.39824 — Camiões), deve ser interpretada no sentido de que os camiões especiais, incluindo os camiões de lixo doméstico, integram os produtos abrangidos pelo cartel cuja existência foi declarada nessa decisão. |
Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: alemão.