ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

12 de maio de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Convenção de Montreal — Artigo 17.o, n.o 1 — Responsabilidade das transportadoras aéreas em caso de acidente — Conceito de “acidente” — Aterragem dura dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave — Lesão corporal pretensamente sofrida por um passageiro durante essa aterragem — Inexistência de acidente»

No processo C‑70/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria), por Decisão de 30 de janeiro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de fevereiro de 2020, no processo

YL

contra

Altenrhein Luftfahrt GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, N. Piçarra (relator), D. Šváby, S. Rodin e K. Jürimäe, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Altenrhein Luftfahrt GmbH, por H. M. Schaflinger, Rechtsanwältin,

em representação do Governo finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, inicialmente por W. Mölls e N. Yerrell, e em seguida por esta última, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, assinada pela Comunidade Europeia em 9 de dezembro de 1999 e aprovada em seu nome pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001 (JO 2001, L 194, p. 38, a seguir «Convenção de Montreal»), que entrou em vigor, no que respeita à União Europeia, em 28 de junho de 2004.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe YL à Altenrhein Luftfahrt GmbH, uma transportadora aérea, a propósito de um pedido de indemnização apresentado por YL por lesão corporal pretensamente sofrida na aterragem de um voo operado por esta transportadora.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

O terceiro e quinto parágrafos do preâmbulo da Convenção de Montreal enunciam:

«[Os Estados Partes reconhecem] a importância de assegurar a proteção dos interesses dos utilizadores do transporte aéreo internacional, bem como a necessidade de uma indemnização equitativa com base no princípio da restituição;

[…]

[U]ma ação coletiva dos Estados atinente a uma maior harmonização e codificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional através da celebração de uma nova Convenção constitui o meio mais adequado de alcançar um justo equilíbrio de interesses».

4

O artigo 17.o da Convenção de Montreal, sob a epígrafe «Morte e lesão corporal de passageiros — Avaria de bagagens», estipula, no seu n.o 1:

«A transportadora só é responsável pelo dano causado em caso de morte ou lesão corporal de um passageiro se o acidente que causou a morte ou a lesão tiver ocorrido a bordo da aeronave ou durante uma operação de embarque ou desembarque.»

Direito da União

Regulamento (CE) n.o 2027/97

5

Após a assinatura da Convenção de Montreal, o Regulamento (CE) n.o 2027/97 do Conselho, de 9 de outubro de 1997, relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas no transporte de passageiros e respetiva bagagem (JO 1997, L 285, p. 1), foi alterado pelo Regulamento (CE) n.o 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de maio de 2002 (JO 2002, L 140, p. 2) (a seguir «Regulamento n.o 2027/97»).

6

O artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2027/97 prevê:

«Os conceitos constantes do presente regulamento que não se encontrem definidos no n.o 1 terão o significado que lhes é atribuído pela Convenção de Montreal.»

7

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento:

«A responsabilidade das transportadoras aéreas [da União] relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula‑se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.»

Regulamento (CE) n.o 216/2008

8

O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 216/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de fevereiro de 2008, relativo a regras comuns no domínio da aviação civil e que cria a Agência Europeia para a Segurança da Aviação, e que revoga a Diretiva 91/670/CEE do Conselho, o Regulamento (CE) n.o 1592/2002 e a Diretiva 2004/36/CE (JO 2008, L 79, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 1108/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009 (JO 2009, L 309, p. 51) (a seguir «Regulamento n.o 216/2008»), dispõe:

«1.   As aeronaves, incluindo todos os produtos, peças e equipamentos nelas instalados, que sejam:

[…]

b)

Registadas num Estado‑Membro, a menos que a sua supervisão regulamentar de segurança tenha sido delegada a um país terceiro e não sejam utilizadas por um operador [da União]; ou

c)

Registadas num país terceiro e utilizadas por um operador para o qual um Estado‑Membro assegure a supervisão das operações ou utilizadas com destino ao território [da União], nesse território ou a partir dele, por um operador estabelecido ou residente na [União]; ou

[…]

devem obedecer ao disposto no presente regulamento.»

9

O artigo 8.o deste regulamento, sob a epígrafe «Operações aéreas», prevê, no seu n.o 1:

«As operações de aeronaves referidas nas alíneas b) e c) do n.o 1 do artigo 4.o devem cumprir os requisitos essenciais previstos no anexo IV […]»

10

O ponto 1.b do anexo IV do referido regulamento, sob a epígrafe «Requisitos essenciais para as operações aéreas no que se refere ao artigo 8.o», indica:

«Os voos devem ser efetuados de modo a assegurar a observância dos procedimentos operacionais especificados no manual de voo da aeronave ou, quando necessário, no manual de operações, relativamente à preparação e à execução do voo. […]»

11

Sob a epígrafe «Desempenho da aeronave e limitações operacionais», o ponto 4 do anexo IV do mesmo regulamento prevê:

«4.a.

As aeronaves devem ser operadas em conformidade com os documentos que atestam a sua aeronavegabilidade e com todos os procedimentos e limitações operacionais constantes dos seus manuais de voo aprovados ou em documentos equivalentes, consoante os casos. O manual de voo ou os documentos equivalentes, respeitantes a cada aeronave, devem estar à disposição da tripulação e ser constantemente atualizados.

[…]

4.c.

Não se deve iniciar ou prosseguir um voo se o desempenho (performance) da aeronave, considerando todos os fatores que afetam significativamente o seu nível de desempenho, não permitir que todas as fases do voo sejam executadas dentro das distâncias/áreas aplicáveis e margens de segurança em relação aos obstáculos com a massa operacional prevista. Fatores de desempenho (performance) que afetam significativamente a descolagem, o cruzeiro e a aproximação/aterragem são, principalmente:

i)

Os procedimentos operacionais;

[…]

v)

A dimensão, o declive e as condições da área de descolagem/aterragem; […]

[…]

4.c.1.

Tais fatores devem ser tidos em conta diretamente, como parâmetros operacionais, ou indiretamente, por meio de reduções ou margens, que poderão ser previstas na programação dos dados de desempenho, de acordo com o tipo de operação.»

12

O Regulamento n.o 216/2008 foi revogado, com efeitos a partir de 11 de setembro de 2018, pelo Regulamento (UE) 2018/1139 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2018, relativo a regras comuns no domínio da aviação civil que cria a Agência da União Europeia para a Segurança da Aviação, altera os Regulamentos (CE) n.o 2111/2005, (CE) n.o 1008/2008, (UE) n.o 996/2010 e (UE) n.o 376/2014 e as Diretivas 2014/30/UE e 2014/53/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, e revoga os Regulamentos (CE) n.o 552/2004 e n.o 216/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho e o Regulamento (CEE) n.o 3922/91 do Conselho (JO 2018, L 212, p. 1). No entanto, o Regulamento 2018/1139 não é aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

13

Em 20 de março de 2014, YL viajou de Viena (Áustria) para São Galo/Altenrhein (Suíça) num voo operado pela Altenrhein Luftfhart. Alega ter sofrido uma hérnia discal devido à aterragem.

14

Durante essa aterragem, o tacógrafo registou uma carga vertical de 1,8 g. O órgão jurisdicional de reenvio indica a este respeito que, ainda que essa aterragem possa ser subjetivamente percecionada como sendo dura, esse valor, do ponto de vista aeronáutico e tendo igualmente em conta a margem de erro, ainda está dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave em causa. Com efeito, de acordo com as especificações do construtor aeronáutico, a carga máxima que pode ser suportada pelo trem de aterragem e pelas peças estruturais da aeronave em causa é de 2 g. Esse órgão jurisdicional acrescenta que, devido à natureza montanhosa da zona envolvente em que se encontra o aeroporto de São Galo/Altenrhein, as aterragens duras são mais seguras do que as aterragens muito suaves e que, no caso em apreço, não foi constatado nenhum erro por parte do piloto.

15

YL intentou uma ação no Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena, Áustria) contra a Altenrhein Luftfhart destinada a obter a declaração da sua responsabilidade pelo dano que alega ter sofrido, ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, e o pagamento de um montante de 68858 euros, acrescido de juros e despesas. Como fundamento da ação, YL alega que essa aterragem deve ser qualificada de «dura» e, por conseguinte, como constituindo um acidente, na aceção desta disposição.

16

Em contrapartida, a Altenrhein Luftfhart alega que a referida aterragem está dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave e que, portanto, se trata de um acontecimento que ocorre habitualmente durante um voo e não de um acidente, na aceção da referida disposição.

17

Por Sentença de 23 de janeiro de 2019, o Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena) julgou a ação improcedente com o fundamento de que uma aterragem só pode ser qualificada de «acidente» e desencadear a responsabilidade da transportadora aérea, ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, se for excecionalmente dura e que aqui não foi esse o caso. Esse órgão jurisdicional declarou que os acontecimentos que ocorrem habitualmente num voo, como uma aterragem dura ou uma travagem brusca, não justificam a responsabilidade da transportadora aérea, uma vez que um passageiro normalmente informado tem conhecimento deste tipo de acontecimentos e espera que possam ocorrer.

18

Por Acórdão de 29 de abril de 2019, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) confirmou a sentença proferida em primeira instância. Embora não excluindo que uma aterragem dura possa, excecionalmente, constituir um acidente, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, esse órgão jurisdicional declarou que isso pressupõe que os valores‑limite especificados pelo construtor aeronáutico relativos à carga que pode ser suportada pelo trem de aterragem e pelas peças estruturais da aeronave sejam claramente ultrapassados. Segundo o mesmo órgão jurisdicional, uma aterragem normal, como a que está em causa no processo principal, exclui a hipótese de um acidente.

19

Chamado a pronunciar‑se num recurso de «Revision» deste acórdão, interposto por YL, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) considera que uma aterragem dura ainda está dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave quando a carga suportada pelo trem de aterragem e pelas peças estruturais da aeronave se mantém abaixo dos valores‑limite especificados pelo construtor aeronáutico, para lá dos quais é necessário um controlo técnico da aeronave. Segundo esse órgão jurisdicional, uma aterragem é dura quando, contrariamente a uma aterragem suave, não é suficientemente amortecida pelo trem de aterragem da aeronave e é claramente percetível pelos passageiros.

20

Neste contexto, o referido órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se uma aterragem dura, que ainda está dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave em causa, pode ser qualificada de «acontecimento danoso involuntário e imprevisto» e, assim, estar abrangida pelo conceito de «acidente», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Niki Luftfahrt (C‑532/18, EU:C:2019:1127, n.o 35).

21

Segundo uma primeira abordagem, uma aterragem dura que, como a que está em causa no processo principal, ainda está dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave, ocorre de forma súbita e inesperada para o passageiro e acarreta, segundo este, lesões corporais constitui um «acidente», na aceção desta disposição. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se os critérios mencionados no número anterior do presente acórdão devem ser apreciados segundo a perspetiva do passageiro em causa, no sentido de que qualquer acontecimento que tenha ocorrido subitamente e que o passageiro não esperava é imprevisível. Segundo esse órgão jurisdicional, a utilização, no Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Niki Luftfahrt (C‑532/18, EU:C:2019:1127, n.o 35), do termo «imprevisto», em vez do termo «imprevisível», parece indicar que importa determinar se o acontecimento em causa foi previsto pelo passageiro em questão.

22

Em contrapartida, uma segunda abordagem sugere que uma aterragem dura só pode ser qualificada de «acidente», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, se os valores‑limite especificados pelo construtor aeronáutico relativos à carga que pode ser suportada pelo trem de aterragem e pelas peças estruturais da aeronave em causa tiverem sido claramente ultrapassados. Segundo essa abordagem, a responsabilidade da transportadora aérea, por força desta disposição, não pode ser desencadeada em caso de acontecimentos que estejam dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave, mesmo que ocorram de forma súbita e inesperada para o passageiro em causa e lhe causem lesões corporais. Se, nesse caso, um passageiro sofrer uma lesão corporal, esta será geralmente explicada por uma predisposição específica do passageiro em causa, que não é da responsabilidade da transportadora aérea.

23

Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Uma aterragem dura, embora ainda dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave, mas que causou ferimentos a um passageiro, constitui um acidente, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da [Convenção de Montreal]?»

Quanto à questão prejudicial

Quanto à admissibilidade

24

A Altenrhein Luftfhart sustenta que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, uma vez que a jurisprudência nacional mencionada pelo órgão jurisdicional de reenvio e a definição dada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Niki Luftfahrt (C‑532/18, EU:C:2019:1127), se destinam, em substância, a adotar a mesma interpretação do conceito de «acidente», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal. Por conseguinte, existe um ato claro para efeitos da resolução do litígio no processo principal, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio expôs corretamente e aplicou este conceito, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, para chegar à conclusão de que uma aterragem que está dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave não constitui um acidente, na aceção desta disposição.

25

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo principal, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, de que a Convenção de Montreal é parte integrante, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 9 de julho de 2020, Vueling Airlines, C‑86/19, EU:C:2020:538, n.o 20 e jurisprudência referida).

26

Daqui resulta que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 9 de julho de 2020, Vueling Airlines, C‑86/19, EU:C:2020:538, n.o 21 e jurisprudência referida).

27

Além disso, não é de forma alguma proibido a um órgão jurisdicional nacional apresentar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial cuja resposta, no entender de uma das partes no processo principal, não dá azo a nenhuma dúvida razoável. Deste modo, mesmo admitindo que seja esse o caso, esta questão não se torna, por isso, inadmissível (Acórdãos de 1 de dezembro de 2011, Painer, C‑145/10, EU:C:2011:798, n.os 64 e 65, e de 9 de julho de 2020, Vueling Airlines,C‑86/19, EU:C:2020:538, n.o 22).

28

No caso em apreço, não havendo dúvidas quanto à pertinência da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio para a resolução do litígio que lhe foi submetido e tendo esse órgão jurisdicional precisado que não há, na sua opinião, um ato claro e que, por conseguinte, enquanto órgão jurisdicional de última instância, é obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, a questão submetida deve ser declarada admissível.

Quanto ao mérito

29

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «acidente» previsto nesta disposição abrange uma aterragem dura sentida pelo passageiro em causa como um acontecimento imprevisto, embora esteja dentro dos parâmetros normais de operação da aeronave em causa.

30

A título preliminar, importa recordar que, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2027/97, a responsabilidade das transportadoras aéreas da União relativamente aos passageiros e à sua bagagem é regulada por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.

31

Do mesmo modo, é jurisprudência constante que um tratado internacional, como a Convenção de Montreal, deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim, em conformidade com o direito internacional geral, que vinculam a União, como codificado no artigo 31.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331) (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de dezembro de 2019, Niki Luftfahrt, C‑532/18, EU:C:2019:1127, n.o 31, e de 9 de julho de 2020, Vueling Airlines, C‑86/19, EU:C:2020:538, n.o 27 e jurisprudência referida).

32

Resulta da redação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal que, para que a responsabilidade da transportadora aérea seja desencadeada, o acontecimento que causou a morte ou a lesão corporal do passageiro deve ser qualificado de «acidente» e ter ocorrido a bordo da aeronave ou durante uma operação de embarque ou desembarque.

33

No Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Niki Luftfahrt (C‑532/18, EU:C:2019:1127, n.o 35), o Tribunal de Justiça precisou que o sentido comum do conceito de «acidente» é o de um acontecimento danoso, involuntário e imprevisto.

34

Resulta das afirmações do órgão jurisdicional de reenvio, conforme recordadas nos n.os 20 a 22 do presente acórdão, que este se interroga, especialmente, sobre a questão de saber se a qualificação de um acontecimento danoso como «imprevisto», na aceção desta jurisprudência, e, portanto, de «acidente», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, deve ser efetuada tendo em conta a perspetiva do passageiro em causa ou, pelo contrário, os parâmetros normais de operação da aeronave a bordo da qual esse acontecimento ocorreu.

35

Ora, há que rejeitar desde já uma interpretação dos conceitos mencionados no número anterior baseada na perspetiva de cada passageiro. Na medida em que as perspetivas e as expectativas são suscetíveis de variar de um passageiro para outro, tal interpretação poderia conduzir a um resultado paradoxal, se um mesmo acontecimento viesse a ser qualificado de «imprevisto» e, portanto, de «acidente» para certos passageiros, mas não para outros.

36

Além disso, uma interpretação do conceito de «acidente», prevista no artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, no sentido de que a apreciação do caráter imprevisto do acontecimento em causa depende apenas da perceção do passageiro em questão relativamente a esse acontecimento é suscetível de ampliar este conceito de forma irrazoável em detrimento das transportadoras aéreas. Embora seja verdade que, nos termos do terceiro parágrafo do preâmbulo da Convenção de Montreal, os Estados partes na mesma, conscientes da «importância de assegurar a proteção dos interesses dos utilizadores do transporte aéreo internacional, bem como [da] necessidade de uma indemnização equitativa com base no princípio da restituição», decidiram instituir um regime de responsabilidade objetiva das transportadoras aéreas, esse regime implica, todavia, como decorre do quinto parágrafo desse preâmbulo, que seja preservado um «justo equilíbrio de interesses», designadamente os interesses das transportadoras aéreas e dos passageiros (v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Niki Luftfahrt, C‑532/18, EU:C:2019:1127, n.o 36 e jurisprudência referida).

37

Em contrapartida, quanto aos requisitos essenciais para as operações aéreas da aeronave em causa, há que recordar que, nos termos do ponto 1.b. do anexo IV do Regulamento n.o 216/2008, os voos devem ser efetuados de modo a assegurar a observância dos procedimentos operacionais especificados no manual de voo da aeronave ou, quando necessário, no manual de operações, relativamente à preparação e à execução do voo. Além disso, o ponto 4.a. deste anexo dispõe que as aeronaves devem ser operadas em conformidade com os documentos que atestam a sua aeronavegabilidade e com todos os procedimentos e limitações operacionais constantes dos seus manuais de voo aprovados ou em documentos equivalentes, consoante os casos.

38

Por outro lado, resulta do ponto 4.c. do referido anexo que não se deve iniciar ou prosseguir um voo se o desempenho (performance) da aeronave, considerando todos os fatores que afetam significativamente o seu nível de desempenho, não permitir que todas as fases do voo sejam executadas dentro das distâncias/áreas aplicáveis e margens de segurança em relação aos obstáculos com a massa operacional prevista. Entre os fatores de desempenho (performance) que afetam significativamente a aterragem de uma aeronave figuram, particularmente, os procedimentos operacionais e a dimensão, o declive e as condições da área de descolagem/aterragem. Em conformidade com o ponto 4.c.1. do mesmo anexo, tais fatores de desempenho (performance) devem ser tidos em conta diretamente, como parâmetros operacionais, ou indiretamente, por meio de reduções ou margens, que poderão ser previstas na programação dos dados de desempenho da aeronave.

39

O cumprimento das disposições recordadas nos n.os 37 e 38 do presente acórdão visa assegurar uma aterragem realizada em conformidade com os procedimentos e as limitações aplicáveis, indicados no manual de voo da aeronave em causa, ou em documentos equivalentes relativos a este que atestam a sua aeronavegabilidade, e tendo em conta as boas práticas no domínio das operações de aeronaves, mesmo que essa aterragem seja considerada por certos passageiros como sendo mais dura do que esperavam.

40

Por conseguinte, uma aterragem que não ultrapasse os limites previstos pelos procedimentos aplicáveis à aeronave em causa, incluindo as reduções e as margens previstas relativamente aos fatores de desempenho (performance) que afetam significativamente a aterragem, e que se realiza em conformidade com esses procedimentos e tendo em conta as boas práticas no domínio das operações de aeronaves, não pode ser considerada como «imprevista» no âmbito da apreciação do requisito, estabelecido no artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, relativo à ocorrência de um «acidente».

41

No caso em apreço, há que salientar que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, uma aterragem dura no aeroporto de São Galo/Altenrhein, como a que está na origem do litígio no processo principal, é mais segura devido à natureza montanhosa da zona envolvente em que se situa esse aeroporto. Ainda segundo esse órgão jurisdicional, a aterragem em causa no processo principal decorreu sem se ter verificado um erro do piloto, uma vez que a caixa negra do avião revelou uma carga vertical de 1,8 g, um valor inferior ao limite máximo de 2 g que, de acordo com as especificações do construtor aeronáutico, pode ser suportada pelo trem de aterragem e pelas peças estruturais da aeronave em causa.

42

Ora, sem prejuízo das verificações de todas as circunstâncias relativas à ocorrência da aterragem na origem do litígio no processo principal que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, uma aterragem que decorreu nas condições indicadas no número anterior não pode ser considerada um acidente, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, e, portanto, desencadear, com base nesta disposição, a responsabilidade da transportadora aérea, independentemente da perceção subjetiva que um passageiro possa ter dela.

43

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «acidente» previsto nesta disposição não abrange uma aterragem que decorreu em conformidade com os procedimentos e as limitações operacionais aplicáveis à aeronave em causa, incluindo as reduções e as margens previstas relativamente aos fatores de desempenho (performance) que afetam significativamente a aterragem, bem como tendo em conta as boas práticas no domínio das operações de aeronaves, mesmo quando o passageiro em causa tenha uma perceção dessa aterragem como um acontecimento imprevisto.

Quanto às despesas

44

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

O artigo 17.o, n.o 1, da Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, assinada pela Comunidade Europeia em 9 de dezembro de 1999 e aprovada em seu nome pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «acidente» previsto nesta disposição não abrange uma aterragem que decorreu em conformidade com os procedimentos e as limitações operacionais aplicáveis à aeronave em causa, incluindo as reduções e as margens previstas relativamente aos fatores de desempenho (performance) que afetam significativamente a aterragem, bem como tendo em conta as boas práticas no domínio das operações de aeronaves, mesmo quando o passageiro em causa tenha uma perceção dessa aterragem como um acontecimento imprevisto.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.