CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

TAMARA ĆAPETA

apresentadas em 7 de abril de 2022 ( 1 )

Processo C‑721/20

DB Station & Service AG

contra

ODEG Ostdeutsche Eisenbahn GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Kammergericht Berlim (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Transportes ferroviários — Artigo 102.o TFUE — Abuso de posição dominante — Diretiva 2001/14/CE — Artigo 30.o — Entidade reguladora do setor ferroviário — Fiscalização das taxas de utilização à luz do direito da concorrência — Articulação das competências dos órgãos jurisdicionais cíveis com as da entidade reguladora»

I. Introdução

1.

O presente processo tem por objeto o conflito entre, por um lado, o culminar da linha jurisprudencial que resulta do Acórdão de 9 de novembro de 2017, CTL Logistics (C‑489/15, a seguir «Acórdão CTL Logistics»EU:C:2017:834), confirmado pelo Acórdão de 8 de julho de 2021, Koleje Mazowieckie (C‑120/20, EU:C:2021:553, a seguir «Acórdão Koleje Mazowieckie»EU:C:2021:553), que estabelece a necessidade, de impugnar as taxas de utilização ferroviárias perante a entidade reguladora instituída pelo artigo 30.o da Diretiva 2001/14/CE ( 2 ) antes de qualquer ação judicial e, por outro lado, a doutrina do efeito direto do artigo 102.o TFUE ( 3 ), segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais têm competência para analisar diretamente qualquer conduta eventualmente abusiva, na aceção dessa disposição, do gestor da infraestrutura na determinação das taxas.

2.

Mais especificamente, o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha) pergunta, em substância, se, e se for caso disso, em que condições, os órgãos jurisdicionais cíveis podem fiscalizar o montante das taxas para acesso à infraestrutura ferroviária nos termos do artigo 102.o TFUE.

3.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a ODEG, Ostdeutsche Eisenbahn GmbH (a seguir «ODEG»), uma empresa ferroviária alemã, e a DB Station & Service, que explora aproximadamente 5400 cais e estações ferroviárias na Alemanha, relativamente ao reembolso das taxas pagas pela primeira pela utilização dos cais e das estações ( 4 ) operados pela segunda no período compreendido entre novembro de 2006 e dezembro de 2010.

II. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

4.

A DB Station & Service, uma filial da Deutsche Bahn AG (operador histórico do setor ferroviário na Alemanha), explora cais e estações ferroviárias nesse Estado‑Membro. As condições de utilização destas instalações são determinadas em contratos‑quadro que celebra com as empresas ferroviárias. Cada utilização concreta destas instalações é então regida por um contrato distinto. O montante das taxas é determinado com base na tabela de preços das estações, estabelecida pela DB Station & Service, por categoria e por Land.

5.

A ODEG é uma empresa ferroviária que utiliza a infraestrutura da DB Station & Service no âmbito da sua atividade de transporte ferroviário de passageiros de pequeno curso ( 5 ). As duas empresas celebraram um acordo‑quadro para o efeito.

6.

Em 1 de janeiro de 2005, a DB Station & Service introduziu uma nova tabela de preços, designada pela sigla «SPS 05». Esta tabela resultou num aumento das taxas de infraestruturas para a ODEG, que pagou sob reserva, por não estar de acordo com este aumento.

7.

Por Decisão de 10 de dezembro de 2009, a Bundesnetzagentur (BNetzA, Agência Federal das Redes, Alemanha), na qualidade de entidade reguladora competente, declarou o SPS 05 inválido, mantendo os seus efeitos até 1 de maio de 2010, a fim de permitir a aplicação de uma nova tarifa a partir dessa data. Na mesma decisão, essa agência convidou os queixosos a intentarem uma ação nos órgãos jurisdicionais cíveis para obterem o reembolso dos excedentes já pagos ( 6 ).

8.

A DB Station & Service recorreu da referida decisão. Em 23 de março de 2010, o Oberverwaltungsgericht Nordrhein‑Westfalen (Tribunal Administrativo Regional Superior do Norte‑Vestefália, Alemanha) reconheceu efeito suspensivo a este recurso. No momento do pedido de decisão prejudicial no presente processo, este tribunal ainda não se tinha pronunciado sobre o mérito.

9.

Em várias ações intentadas no Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha), a ODEG pediu o reembolso do montante das taxas pagas entre novembro de 2006 e dezembro de 2010, na medida em que o montante excede o que seria devido nos termos da tabela anteriormente aplicável, a saber, o SPS 99. O Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim) julgou as ações procedentes por motivos de equidade com fundamento no § 315.o do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão, a seguir «BGB ( 7 )») que permite ao juiz restabelecer o equilíbrio contratual. A DB Station & Service interpôs recurso para o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha) que apensou os diferentes processos por Despacho de 30 de novembro de 2015.

10.

Entretanto, na sequência de um pedido de decisão prejudicial, e no âmbito de um litígio semelhante nos órgãos jurisdicionais cíveis, o Tribunal de Justiça decidiu no Acórdão CTL Logistics que a fiscalização da equidade das taxas dos traçados pelos tribunais comuns não pode ser efetuada independentemente da fiscalização exercida pela entidade reguladora competente, na medida em que a fiscalização dos métodos de cálculo e do montante das taxas à luz da Diretiva 2001/14 é da competência exclusiva da entidade reguladora do setor ferroviário instituída pelo artigo 30.o dessa diretiva ( 8 ).

11.

Na sequência deste acórdão, foram novamente apresentados pedidos de reembolso na Agência Federal das Redes. Por Decisão de 11 de outubro de 2019, foram julgados inadmissíveis os recursos de várias empresas ferroviárias pelos quais estas solicitaram um controlo, a posteriori, da legalidade do SPS 05 com vista ao reembolso do montante excedentário das taxas com o fundamento de que tais pedidos estavam agora prescritos ( 9 ). Esta decisão é objeto de um recurso que, no momento do pedido de decisão prejudicial no presente processo, ainda estava pendente no Verwaltungsgericht Köln (Tribunal Administrativo de Colónia, Alemanha).

12.

O Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim) considera que a resolução do litígio que lhe é submetido depende da interpretação da Diretiva 2001/14 que é temporalmente e materialmente aplicável.

13.

Em particular, este órgão jurisdicional interroga‑se se os ensinamentos do Acórdão CTL Logistics se aplicam mutatis mutandis ao controlo dessas mesmas taxas ao abrigo do artigo 102.o TFUE e da legislação nacional em matéria de concorrência que proíbe os abusos de posição dominante. Com efeito, na sequência do julgamento deste processo, é com base neste fundamento jurídico que o litígio no processo principal é agora suscetível de recurso.

14.

O referido órgão jurisdicional indica que vários tribunais cíveis alemães responderam afirmativamente a esta questão. Com efeito, entenderam que os princípios enunciados no Acórdão CTL Logistics opõem‑se a que se decida sobre ações para reembolso antes de a entidade reguladora competente ter adotado uma decisão final a este respeito. Em contrapartida, num Acórdão de 29 de outubro de 2019, o chamado «Trassenentgelte» (taxas de traçados) ( 10 ), o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) considerou que a aplicação do artigo 102.o TFUE pelos tribunais cíveis é possível sem ser necessária uma decisão final da entidade reguladora.

15.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, existem boas razões para se afastar da posição do supremo tribunal civil alemão.

16.

Antes de mais, se o Acórdão CTL Logistics dizia respeito à incompatibilidade da fiscalização da equidade previsto no direito civil alemão com a Diretiva 2001/14, a sua fundamentação poderia ser transposta para a aplicação do direito da concorrência pelos tribunais cíveis. Com efeito, a intervenção destes últimos, independentemente da entidade reguladora, poderia criar uma situação de desigualdade ao permitir que certas empresas ferroviárias pagassem taxas de infraestruturas mais baixas. Tal vantagem seria contrária ao objetivo principal da Diretiva 2001/14, que é o de assegurar um acesso não discriminatório à infraestrutura ferroviária e assim devem favorecer uma concorrência leal. Além disso, a fiscalização pelos órgãos jurisdicionais cíveis poria em causa a competência exclusiva da entidade reguladora.

17.

Por outro lado, embora, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, os tribunais nacionais estivessem obrigados a aplicar diretamente o artigo 102.o TFUE, o Tribunal de Justiça ainda não apreciou a questão de saber se essa obrigação também se aplica nos casos em que uma entidade reguladora, cujas decisões são sujeitas a fiscalização jurisdicional, é responsável pela fiscalização das taxas.

18.

Finalmente, no seu Acórdão de 1 de setembro de 2020, «Stationspreissystem II» ( 11 ), o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) decidiu que o artigo 30.o, n.o 3, da Diretiva 2001/14 não confere à entidade reguladora competência para se pronunciar sobre as taxas já pagas, e menos ainda de ordenar o seu reembolso. Este tribunal deduziu que a fiscalização dos abusos, nos termos do artigo 102.o TFUE, não interfere com as competências da entidade reguladora, uma vez que esta fiscalização se limita à concessão de indemnizações por danos causados pela conduta das empresas no passado.

19.

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que esta análise do direito da União está errada. Por um lado, nada na Diretiva 2001/14 é suscetível de sustentar a interpretação de que a entidade reguladora decide apenas pro futuro. Por outro lado, o artigo 102.o TFUE permitiria a adoção de decisões que declarassem a nulidade dos atos ou que ordenassem a cessação de um comportamento. Além disso, mesmo o reembolso de taxas cobradas no passado pode conduzir a distorções da concorrência e interferir com os objetivos da Diretiva 2001/14. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, estas considerações demonstram que o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) deveria ter submetido um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça a este respeito.

20.

Foi nestas condições que o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

É compatível com a [Diretiva 2001/14] — especialmente com as suas disposições relativas à independência de gestão da empresa de infraestruturas (artigo 4.o), aos princípios de tarificação (artigos 7.o a 12.o) e às funções da entidade reguladora (artigo 30.o) — que os tribunais cíveis nacionais fiscalizem, caso a caso e independentemente da supervisão exercida pela entidade reguladora, o montante das taxas exigidas, à luz dos critérios do artigo 102.o TFUE e/ou do direito nacional da concorrência?

2.

Em caso de resposta afirmativa à [primeira questão]: é admissível e necessária uma fiscalização dos abusos pelos tribunais cíveis nacionais segundo os critérios do artigo 102.o TFUE e/ou do direito nacional da concorrência, mesmo quando as empresas de transporte ferroviário têm a possibilidade de obter uma fiscalização, pela entidade reguladora competente, do caráter adequado das taxas pagas? Os tribunais cíveis nacionais são obrigados a aguardar a correspondente decisão da entidade reguladora e, se essa decisão for judicialmente contestada, a aguardar que adquira caráter definitivo?»

21.

Apresentaram observações escritas no presente processo DB Station & Service, ODEG e a Comissão Europeia.

III. Análise

22.

Com as suas duas questões, que analisarei em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2001/14 deve ser interpretada no sentido de que, independentemente da supervisão exercida pela entidade reguladora, os tribunais cíveis têm competência para conhecer, à luz do artigo 102.o TFUE, os pedidos formulados por uma empresa de transporte ferroviário relativos ao reembolso das taxas pagas em excesso.

23.

A principal razão pela qual o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a sua competência no processo principal reside na interpretação dada pelo Tribunal de Justiça no processo CTL Logistics e confirmada no processo Koleje Mazowieckie (a seguir «linha jurisprudencial»), segundo a qual a Diretiva 2001/14 confere competência exclusiva à entidade reguladora sobre as taxas fixadas pelo gestor da rede ferroviária, impedindo assim que os tribunais cíveis nacionais se pronunciem sobre a legalidade dessas taxas.

24.

Há várias formas de responder à questão levantada por este processo. A primeira possibilidade consiste em aplicar a linha jurisprudencial à questão da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais para conhecer dos pedidos formulados com base no artigo 102.o TFUE. Esta aplicação levaria à conclusão de que os tribunais nacionais não podem decidir sobre a validade das taxas ferroviárias, uma vez que tal constituiria uma ingerência na competência exclusiva da entidade reguladora. Como explicarei (A), não considero que tal solução esteja de acordo com a jurisprudência relativa às competências dos tribunais resultante do efeito direto do artigo 102.o TFUE.

25.

A segunda possibilidade consiste em considerar que os tribunais nacionais que decidam com base no artigo 102.o TFUE têm competência autónoma para decidir sobre a taxa. Para chegar a tal conclusão, seria necessário poder distinguir a situação no presente caso das que surgiram nos processos CTL Logistics e Koleje Mazowiecke. Como explicarei, sou de opinião que tal distinção não é razoavelmente possível (B). Sugiro, portanto, que o Tribunal de Justiça reconsidere esta linha jurisprudencial (C). Finalmente, debruçar‑me‑ei sobre a segunda parte das perguntas do órgão jurisdicional de reenvio (D).

A.   Transpor a linha jurisprudencial existente em caso de invocação do artigo 102.o TFUE

26.

Em conformidade com a linha jurisprudencial em causa, o Tribunal de Justiça considerou que a entidade reguladora, estabelecida nos termos do artigo 30.o da Diretiva 2001/14, tem competência exclusiva para se pronunciar sobre as taxas impostas pelo gestor da infraestrutura. Concluiu, assim, que a aplicação direta da legislação ferroviária em matéria de taxas pelo juiz nacional interferiria com as competências exclusivas desta entidade reguladora ( 12 ).

27.

A transposição da interpretação resultante desta linha jurisprudencial em caso de invocação do artigo 102.o TFUE leva a concluir que o tribunal cível ao decidir com base neste artigo 102.o TFUE também não pode pronunciar‑se sobre a validade das taxas decididas pelo gestor da infraestrutura. A DB Station & Service parece concordar com esta solução.

28.

A questão de saber se foi efetivamente imposta uma taxa pelo gestor de redes em violação das regras que regem essas taxas, estabelecidas no capítulo II da Diretiva 2001/14, é uma etapa necessária para chegar a uma decisão sobre a compensação de (alegadas) taxas pagas indevidamente. Obrigar um órgão jurisdicional nacional que decide sobre um pedido de indemnização a pedir que a parte do seu silogismo decisório seja resolvida por uma instância diferente parece ir contra a jurisprudência constante relativa ao efeito direto do artigo 102.o TFUE ( 13 ). Segundo essa jurisprudência, que o legislador retomou no artigo 6.o do Regulamento n.o 1/2003 ( 14 ), os órgãos jurisdicionais nacionais estão habilitados a aplicar os artigos 81.o e 82.o do Tratado CE (atualmente artigos 101.o e 102.o TFUE) independentemente e em paralelo com a Comissão e as autoridades nacionais de concorrência.

29.

Seria possível equacionar um sistema em que uma entidade reguladora independente teria poderes para resolver litígios entre gestores de redes e operadores ferroviários relativamente a taxas e a oferecer soluções eficazes ( 15 ). Nesse caso, impor uma obrigação processual de tentar resolver um litígio perante essa instância reguladora antes de recorrer aos órgãos jurisdicionais não seria, a meu ver, necessariamente contrário ao conceito de efeito direto previsto no artigo 102.o TFUE. Tais soluções existem em vários âmbitos dos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros, bem como na União ( 16 ).

30.

No entanto, na maioria destes casos, a autoridade a que o recorrente se deve dirigir antes de recorrer ao tribunal está habilitada a conceder a esse recorrente o direito que reivindica.

31.

Não parece que seja este o caso vertente.

32.

A entidade reguladora tem um controlo limitado, que não abrange uma competência geral de resolução de litígios ( 17 ). Em qualquer caso, parece que este organismo não pode pronunciar‑se sobre pedidos pecuniários, tais como os que têm por objeto um pedido de indemnização ( 18 ).

33.

Esta é a primeira razão pela qual creio que a transposição da linha jurisprudencial não estaria de acordo com o efeito direto do artigo 102.o TFUE.

34.

A segunda razão pela qual não é desejável submeter a fiscalização jurisdicional nos termos do artigo 102.o TFUE à prévia decisão definitiva da entidade reguladora (que inclui também as instâncias de fiscalização jurisdicional dessa decisão) é que poderia, em circunstâncias como as do presente caso, resultar na violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

35.

É certo, o artigo 30.o, n.o 5, da Diretiva 2001/14 dispõe «a entidade reguladora será chamada a decidir de eventuais queixas e a diligenciar no sentido de resolver a situação num prazo máximo de dois meses a contar da data de receção de toda a informação» ( 19 ). Contudo, há que reconhecer que este prazo foi largamente ultrapassado, e que os procedimentos iniciados há mais de 10 anos ainda não foram concluídos.

36.

Compreendo a necessidade de preservar o efeito útil da função de regulação da entidade reguladora. Todavia, os requisitos que decorrem de uma tutela jurisdicional efetiva dentro de um prazo razoável ( 20 ) são igualmente imperiosos, e apelam ao reconhecimento paralelo ( 21 ) da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.

37.

À luz de todas estas considerações, considero que a interpretação da Diretiva 2001/14 decorrente dos Acórdãos CTL Logistics e Koleje Mazowieckie não deve ser transposta para as circunstâncias em causa no processo principal, e que não é desejável alargá‑la.

B.   Distinguir a linha jurisprudencial existente da jurisprudência que consagrou o efeito direto do artigo 102.o TFUE

38.

De acordo com a segunda solução, a Diretiva 2001/14 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma decisão de um órgão jurisdicional nacional com base no artigo 102.o TFUE sobre a validade ou invalidade das taxas ferroviárias.

39.

A ODEG e a Comissão parecem aderir a esta posição.

40.

No entanto, esta solução requer a distinção do presente caso das circunstâncias subjacentes aos processos CTL Logistics e Koleje Mazowieckie.

41.

Com efeito, se um novo processo parece, atendendo aos factos juridicamente relevantes, em substância, semelhante ao processo em que se estabeleceu uma regra, é, em princípio, necessário aplicar essa regra a esse novo processo. Se se pretende, no entanto, evitar a aplicação da referida regra, deve‑se procurar um aspeto diferenciador que justifique distinguir o primeiro processo do segundo ( 22 ).

42.

No presente processo, o operador ferroviário (ODEG) pediu, no âmbito de um processo judicial, uma indemnização pelas taxas que pagou ao gestor da rede, mas que considerava não serem devidas, uma vez que estas taxas tinham sido impostas em violação do direito aplicável. Em primeira instância, o ODEG pediu o reembolso da diferença entre a antiga e a nova taxa, que considerou inválida ( 23 ). O fundamento de tal ação — § 315 do BGB — foi substituído pelo artigo 102.o TFUE em sede de recurso (na sequência do Acórdão CTL e das alterações da legislação alemã) ( 24 ) e o objeto do pedido consiste agora num pedido de indemnização (em vez de um pedido de reembolso). Quanto ao mais, a substância do pedido apresentado pelo recorrente no processo principal não se alterou entre a primeira instância e o recurso, a saber, o reembolso desse excedente. Apenas foi alterada a disposição invocada em apoio desse pedido, tendo, entretanto, o artigo 102.o TFUE substituído o § 315 do BGB.

43.

O pedido apresentado pelo recorrente no processo CTL Logistics também se baseava no § 315 do BGB e dizia respeito ao reembolso da diferença entre a antiga e a nova taxa (de 2005), porque esta última foi considerada injusta. No processo Koleje Mazowieckie, o pedido era de natureza semelhante. A recorrente pediu uma indemnização, tanto do Estado como do gestor de redes, por ter autorizado a imposição do preço alegadamente contrário aos princípios da Diretiva 2001/14. O fundamento deste pedido foi a responsabilidade do Estado por danos resultantes da violação das obrigações que lhe incumbem por força do direito da União nos processos Francovich e o. ( 25 ) e Brasserie du Pêcheur e Factortame ( 26 ). A legislação polaca aplicável no processo Koleje Mazowieckie previa, além disso, uma responsabilidade mais estrita do que o conceito europeu correspondente.

44.

Nos três casos, independentemente do fundamento jurídico da ação, foram submetidos aos órgãos jurisdicionais nacionais pedidos de restituição ou de indemnização que os obrigavam a pronunciar‑se sobre a validade das taxas previstas no contrato para a utilização da rede ferroviária.

45.

Além disso, pouco importa o modo como as taxas foram impugnadas, a regulamentação da concorrência no setor ferroviário era aplicável.

46.

Considero, por essas razões, que o processo principal não se distingue com base nas circunstâncias que foram relevantes para a interpretação da Diretiva 2001/14 na linha jurisprudencial. Porque, quer se aborde o problema numa ou noutra perspetiva, in fine, os três processos referem‑se a um pedido de uma compensação pecuniária por taxas pagas em excesso. Além disso, em todos os processos, o mérito desse pedido dependia de saber se a taxa tinha ou não sido imposta em conformidade com a Diretiva 2001/14.

47.

Dada a semelhança das circunstâncias pertinentes, que outros fatores poderiam justificar a distinção do presente processo a fim de manter a linha jurisprudencial anterior?

48.

O Acórdão CTL Logistics poderia ser justificado por razões específicas desse processo. O órgão jurisdicional nacional tinha o poder, nos termos do § 315 do BGB, de decidir ex equo et bono e de determinar a equidade da taxa propriamente dita.

49.

O Tribunal de Justiça explicou neste acórdão que esta disposição nacional ignora, ao insistir exclusivamente na racionalidade económica do contrato individual, o facto de apenas as taxas fixadas com base em critérios uniformes poderem assegurar a política de preços prescrita pela Diretiva 2001/14 ( 27 ). Por conseguinte, poder‑se‑ia argumentar que este procedimento específico previsto pela legislação nacional punha em causa o efeito útil desta diretiva ao conferir aos órgãos jurisdicionais nacionais o poder de decidir quais seriam os montantes justos das taxas em casos individuais. Tal poder poderia ser considerado incompatível ( 28 ) com o sistema de determinação das taxas de utilização da rede ferroviária previsto pela referida diretiva e colocado sob o controlo da entidade reguladora.

50.

Esse possível excesso dos poderes dos órgãos jurisdicionais nacionais nos termos do § 315 do BGB em relação aos poderes da entidade reguladora nos termos da Diretiva 2001/14 foi, no entanto, eliminado pelo legislador alemão, que excluiu a aplicação do § 315.o do BGB aos acordos entre o gestionário de redes e os operadores do setor ferroviário ( 29 ).

51.

Se, consequentemente, o processo CTL Logistics se limitasse à situação particular dos órgãos jurisdicionais que decidem ex aequo et bono e tivessem o poder de estabelecer uma taxa equitativa em casos particulares, isto poderia permitir distinguir as circunstâncias do processo CTL Logistics das do presente processo.

52.

Contudo, não só os fundamentos do Acórdão CTL Logistics são de molde a sugerir uma aplicação mais geral, como também a limitação da linha jurisprudencial parece‑me ter‑se tornado difícil de conceber depois da prolação do Acórdão Koleje Mazowieckie. Esta última decisão reiterou a posição iniciada pelo Acórdão CTL Logistics de que apenas a entidade reguladora pode invalidar as taxas e alargou‑a ao caso de processos judiciais que envolvem a responsabilidade do Estado por transposição incorreta da Diretiva 2001/14.

53.

No processo Koleje Mazowieckie, o órgão jurisdicional nacional foi confrontado com a necessidade de decidir se a transposição nacional da Diretiva 2001/14, que permitia a fixação da taxa que o recorrente considerava ilegal, estava em conformidade com essa diretiva ( 30 ). Apesar do contexto diferente do Acórdão CTL Logistics, o Tribunal de Justiça considerou que esta jurisprudência era plenamente aplicável no processo em apreço ( 31 ). A razão foi que a primeira justificação principal para negar a competência do órgão jurisdicional nacional para decidir sobre a validade das taxas era a mesma, a saber, a possível divergência das decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais ( 32 ).

54.

Ora, esta possibilidade de divergências na decisão sobre a conformidade das taxas com a Diretiva 2001/14 também existe nos processos que são decididos com base no artigo 102.o TFUE.

55.

A segunda justificação principal na linha jurisprudencial anterior, era que os órgãos jurisdicionais nacionais resolviam casos individuais, o que poderia, portanto, conduzir a uma situação em que o operador que obtivesse ganho de causa obtinha necessariamente uma vantagem sobre os seus concorrentes que não propusessem tal ação ( 33 ).

56.

Neste caso, esta queixa aplica‑se igualmente a litígios em que os tribunais nacionais decidam com base no artigo 102.o TFUE.

57.

Não parece, portanto, possível considerar o presente processo diferente dos processos da linha jurisprudencial anterior, considerando que as principais justificações propostas nesses processos não são aplicáveis ao presente processo.

58.

Por fim, o Acórdão Koleje Mazowieckie restringiu a possibilidade de distinguir o Acórdão CTL Logistics na base de uma lógica de hierarquia de normas. Não obstante ser verdade que o presente processo se distingue na base da superioridade do artigo 102.o TFUE como fundamento jurídico relativamente ao qual o órgão jurisdicional nacional é chamado a pronunciar‑se quanto à validade das taxas, a responsabilidade do Estado‑Membro em causa no processo Koleje Mazowieckie decorre também do direito primário, nomeadamente do efeito direto do direito da União e do dever de cooperação leal.

59.

Afigura‑se, assim, difícil distinguir o presente processo da linha jurisprudencial anterior com base nas circunstâncias em que os diferentes processos ocorreram e nos direitos invocados pelas partes. É também difícil distinguir estes processos com base na inaplicabilidade das mesmas justificações para a interpretação da Diretiva 2001/14, no sentido de que esta confere competência exclusiva à entidade reguladora para decidir sobre a validade das taxas. Por fim, a distinção também não se pode basear na hierarquia das normas que conferem aos órgãos jurisdicionais nacionais o poder de decidir quanto à validade das taxas.

60.

Isto leva‑me a propor uma terceira solução.

C.   Reconsiderar a linha jurisprudencial existente

61.

A linha jurisprudencial decorrente dos Acórdãos CTL Logistics e Koleje Mazowieckie não deve ser transposta para as circunstâncias do presente processo, nem é possível distinguir esta linha das circunstâncias do presente caso.

62.

Tudo considerado, parece‑me, portanto, necessário propor ao Tribunal de Justiça uma terceira solução que consiste em reconsiderar a referida linha jurisprudencial, não só quando é invocado o artigo 102.o TFUE, mas também, por uma questão de homogeneidade, e em conformidade com o artigo 30.o, n.o 2, da Diretiva 2001/14, qualquer que seja o fundamento que serve de base jurídica ao pedido do «candidato» na aceção dessa disposição.

63.

Na minha perspetiva, não há razão alguma para interpretar a Diretiva 2001/14 como concedendo à entidade reguladora um poder exclusivo de apreciação da validade das taxas. Tal acontece porque o direito da União contém mecanismos destinados a prevenir o risco de divergências (1) e porque essa exclusividade de poderes não parece decorrer do sistema previsto pela Diretiva 2001/14 (2).

1. Prevenir o risco de divergências

64.

A principal justificação proposta pelo Tribunal de Justiça no processo CTL Logistics, e repetida no processo Koleje Mazowieckie, era o risco de divergências na interpretação das taxas ferroviárias que poderiam resultar em diferentes decisões dos tribunais cíveis nacionais. Uma possível divergência era considerada contrária ao objetivo da Diretiva 2001/14 e às razões que levaram à criação da entidade reguladora.

65.

Este argumento foi retomado em várias decisões nacionais referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, e que este órgão jurisdicional subscreve, e é também retomado pela DB Station & Service nas suas observações ao Tribunal de Justiça. Todos aceitaram este argumento e aplicaram‑no a situações nas quais as decisões devem ser tomadas com base no artigo 102.o TFUE.

66.

Esse risco de divergências é assim realmente tão importante e tão diferente na situação em que a competência de um tribunal se baseia no § 315.o do BGB, na responsabilidade do Estado‑Membro ou no artigo 102.o TFUE?

67.

Embora não seja possível excluir completamente a ocorrência de tais divergências na interpretação das disposições concretas e na sua aplicação a cada facto do caso em apreço, não deve perder‑se de vista que a ocorrência eventual de divergências faz parte de um processo de integração regional, tal como o da União Europeia.

68.

Não se trata, portanto, de saber se podem surgir divergências, mas se existem mecanismos de controlo ou de coordenação que permitam evitar que estas eventuais divergências persistam e se multipliquem.

69.

A este propósito, a obrigação dos órgãos jurisdicionais nacionais de aplicar o direito da União, em conjugação com a decisão prejudicial estabelecida pelo artigo 267.o TFUE, está prevista nos Tratados para salvaguardar a necessária uniformidade do direito da União. O presente processo e, anteriormente, os Acórdãos CTL Logistics e Koleje Mazowieckie, são o exemplo perfeito da eficácia do mecanismo do artigo 267.o TFUE, uma vez que nesses processos foram apresentados pedidos de decisão prejudicial.

70.

O risco de que a intervenção dos tribunais cíveis fosse a fonte de possíveis divergências parece‑me, portanto, exagerado. Com efeito, estes órgãos jurisdicionais devem aplicar todas as normas de direito da União, incluindo a Diretiva 2001/14.

71.

Além disso, na aplicação das disposições nacionais, mesmo de ramos de direito como o direito civil, estas normas jurídicas nunca são autónomas. As jurisdições nacionais, mesmo as cíveis, devem, portanto, interpretar a legislação nacional em conformidade com as exigências do direito da União.

72.

Quer se trate de se pronunciar sobre a equidade das taxas ( 34 ), ou sobre a transposição errada da Diretiva 2001/14, que permitiu que a taxa fosse contratualmente determinada contrariando as disposições dessa diretiva, ou sobre o abuso de posição dominante que se manifestou na imposição de taxas excessivas, estes órgãos jurisdicionais não podem evitar a aplicação da referida diretiva. Os princípios que regem a determinação da taxa, enunciados no capítulo II da diretiva, não podem ser contornados em qualquer processo em que os órgãos jurisdicionais nacionais (cíveis ou outros) sejam chamados a pronunciar‑se sobre a validade das taxas ( 35 ). Em caso de dúvida quanto à interpretação destes princípios, os órgãos jurisdicionais competentes podem, ou em última instância devem, remeter a questão para o Tribunal de Justiça.

73.

Por conseguinte, o direito da União prevê mecanismos para evitar divergências na interpretação da legislação pertinente, mesmo que esta seja aplicada em paralelo pelos órgãos jurisdicionais nacionais e pela entidade reguladora instituída de acordo com a referida legislação.

2. A existência de competências paralelas

74.

No que respeita à aplicação da regulamentação geral e setorial da concorrência, convém recordar que o artigo 10.o, n.o 7, da Diretiva 91/440/CEE ( 36 ), na sua versão consolidada resultante da Diretiva 2001/12/CE ( 37 ), dispõe que: «[s]em prejuízo das regulamentações comunitária e nacional relativas à política da concorrência e às instituições competentes na matéria, a entidade reguladora instituída nos termos do artigo 30.o da [Diretiva 2001/14...], ou qualquer outra entidade que disponha do mesmo nível de independência, fiscalizará a concorrência nos mercados dos serviços ferroviários» ( 38 ).

75.

Encontramos uma divisão de competências semelhante no artigo 56.o, n.o 2, da Diretiva 2012/34/EU ( 39 ), que precisa que «[s]em prejuízo da competência das autoridades nacionais responsáveis por assegurar a concorrência nos mercados de serviços ferroviários, a entidade reguladora é competente para acompanhar a situação da concorrência nos mercados de serviços ferroviários».

76.

Assim, a competência na aplicação das regras em matéria de concorrência no setor pertence não só a esta entidade reguladora, mas também a quaisquer «instituições competentes na matéria», tais como as autoridades nacionais de concorrência, bem como os órgãos jurisdicionais nacionais. Tal competência destas autoridades não prejudica a competência da Comissão nos termos do artigo 11.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1/2003, que prevê a eventual declinação de competência das primeiras em favor da segunda.

77.

Esta repartição das competências na aplicação das regras setoriais e, das regras mais gerais, em matéria de concorrência, foi várias vezes recordada no setor das telecomunicações ( 40 ), ou no setor aéreo ( 41 ), e também parece ser aceite para o setor postal ( 42 ).

78.

Por conseguinte, a entidade reguladora, na aceção do artigo 30.o, n.o 2, da Diretiva 2001/14 tem, na minha opinião, competências paralelas ( 43 ) e não exclusivas para aplicar as regras do setor ferroviário ou as regras gerais de concorrência, incluindo as regras relativas à formação de taxas.

79.

É, portanto, erróneo, como se afirma no n.o 84 do Acórdão CTL Logistics, que os órgãos jurisdicionais cíveis, ao apreciarem um pedido de reembolso de taxas, não possam aplicar a regulamentação ferroviária ou outras regras sem invadir as competências da entidade reguladora ferroviária ( 44 ).

80.

No domínio da concorrência, a competência paralela e complementar da entidade reguladora e dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros é apoiada pelo artigo 6.o do Regulamento n.o 1/2003, que prevê explicitamente que os órgãos jurisdicionais nacionais estão habilitados a aplicar os artigos 81.o e 82.o CE, atuais artigos 101.o e 102.o TFUE. Na mesma ordem de ideias, a adoção da Diretiva 2014/104 ( 45 ) segue uma lógica semelhante de aplicação efetiva e descentralizada do direito europeu da concorrência, que passa também pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

81.

Por último, mas não menos importante, o próprio texto da Diretiva 2001/14 não sugere qualquer intenção do legislador europeu de atribuir à entidade reguladora ferroviária uma competência exclusiva no que diz respeito às decisões sobre a validade das taxas.

82.

O artigo 30.o, n.o 2, da Diretiva 2001/14 prevê que «qualquer candidato tem o direito de recorrer para esta entidade reguladora, se considerar ter sido tratado de forma injusta ou discriminatória ou de algum outro modo lesado […]» ( 46 ). Esta formulação prevê, assim, apenas uma simples faculdade de recurso à entidade reguladora ( 47 ).

83.

Em comparação com outros setores, deve também notar‑se que no setor das comunicações, o considerando 69 da Diretiva 2018/1972 afirma que, em caso de litígio, «deverá poder» recorrer à autoridade reguladora do setor.

84.

Resulta desta análise que a entidade reguladora do setor ferroviário, tal como decorre da Diretiva 2001/14, e subsequentemente da Diretiva 2012/34, não tem competência exclusiva para decidir sobre a validade das taxas ferroviárias.

D.   Deve o órgão jurisdicional nacional esperar pela decisão final da entidade reguladora?

85.

O órgão jurisdicional de reenvio perguntou também, no caso de os órgãos jurisdicionais nacionais terem competência para se pronunciar sobre o litígio com base no artigo 102.o TFUE, independentemente da entidade reguladora, se deve aguardar a decisão final da entidade reguladora.

86.

Não obstante e sem contrariar o acima exposto, é possível a suspensão da instância nos órgãos jurisdicionais nacionais quando estes tiverem conhecimento de um processo paralelo na entidade reguladora, a fim de preservar a utilidade do referido processo ( 48 ).

87.

No entanto, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, é pacífico que o processo na entidade reguladora já dura há muitos anos ( 49 ). Além disso, é provável, como o órgão jurisdicional de reenvio parece indicar, que este processo, ou o exercício das vias de recurso contra a eventual decisão que dele resultaria, não seja bem‑sucedido num futuro imediato.

88.

Nessas circunstâncias, o órgão jurisdicional nacional a quem foi diretamente submetida uma ação para apreciar o caráter abusivo de um comportamento deve interrogar‑se se essa suspensão não impede o recorrente de obter, num prazo razoável, uma solução para o seu litígio e o seu direito a uma indemnização ( 50 ).

89.

Nesse caso, e a fim de evitar exceder o prazo razoável para o julgamento, o direito à tutela jurisdicional efetiva é suscetível de impedir a suspensão da instância enquanto se aguarda que a entidade reguladora adote uma decisão final e o exercício das vias de recurso disponíveis.

90.

Por conseguinte, considero que, à luz do direito da União, não existe qualquer obrigação para que os órgãos jurisdicionais nacionais a quem foi apresentado um pedido formulado nos termos do artigo 102.o TFUE, aguardem uma decisão da entidade reguladora. Sou também de opinião que estes órgãos jurisdicionais podem decidir suspender a instância a fim de aguardar essa decisão, se tal não colocar em causa o direito a uma tutela jurisdicional efetiva das partes no processo.

IV. Conclusão

91.

Tendo em conta as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha) da seguinte forma:

1)

A Diretiva 2001/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária e à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe, independentemente da supervisão exercida pela entidade reguladora, à competência dos tribunais cíveis nacionais para conhecer, nos termos do artigo 102.o TFUE, dos pedidos formulados por uma empresa ferroviária e relativos ao reembolso das taxas indevidamente pagas em excesso.

2)

O direito da União não impõe nenhuma obrigação aos órgãos jurisdicionais nacionais a quem foi apresentado um pedido formulado nos termos do artigo 102.o TFUE por uma empresa de transporte ferroviário a fim de fiscalizar o caráter adequado do montante das taxas pagas, de aguardar uma decisão da entidade reguladora instituída pelo artigo 30.o da Diretiva 2001/14 e, se essa decisão for impugnada nos tribunais, de aguardar o seu trânsito em julgado. Sob reserva do respeito pelo direito à tutela jurisdicional efetiva, também não obsta a que os órgãos jurisdicionais nacionais decidam aguardar a referida decisão.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária e à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária (JO 2001, L 75, p. 29).

( 3 ) Acórdãos de 30 de janeiro de 1974, BRT e Société belge des auteurs, compositeurs et éditeurs, 127/73, EU:C:1974:6, n.os 14 a 16), e de 28 de março de 2019, Cogeco Communications (C‑637/17, EU:C:2019:263, n.o 38).

( 4 ) O anexo II, n.o 2, da Diretiva 2001/14 inclui o acesso por via‑férrea às instalações de serviços e, portanto, aos serviços prestados, nomeadamente, nas estações de passageiros, seus edifícios e outras instalações.

( 5 ) Decorre do conjunto de informações à disposição do Tribunal de Justiça que os destinos propostos pela ODEG estão limitados à Alemanha. Contudo, isto não exclui necessariamente a aplicação do artigo 102.o TFUE. A este propósito, ver Comunicação da Comissão — Orientações sobre o conceito de afetação do comércio entre os Estados‑Membros previsto nos artigos 81.o e 82.o do Tratado (JO 2004, C 101, p. 81).

( 6 ) Decisão sobre os preços das estações da DB Station & Service AG, Agência Federal de Redes, de 10 de dezembro de 2009, ficheiro n.o 705‑07‑038, p. 22.

( 7 ) § 315 do BGB, sob a epígrafe «Determinação da prestação por uma das partes», prevê, nos seus n.os 1 e 3:

«(1) Se a determinação da prestação for confiada a uma das partes contratantes, há que, em caso de dúvida, partir do pressuposto de que a determinação deve ser feita ex aequo et bono.

[…]

(3) Se a prestação tiver de ser determinada ex aequo et bono, só obriga a outra parte se for conforme à equidade. Caso contrário, a determinação é efetuada por sentença […]»

( 8 ) Acórdão CTL Logistics, n.os 84 e 86.

( 9 ) Decisão n.o BK10‑19‑0011 E, da Agência Federal de Redes de 11 de outubro de 2019.

( 10 ) (KZR 39/19, DE:BGH:2019:291019UKZR39.19.0).

( 11 ) KZR 12/15, DE:BGH:2020:010920UKZR12.15.0.

( 12 ) V., neste sentido, Acórdãos CTL Logistics, n.os 84 e 86, e Koleje Mazowieckie, n.os 53 e 54.

( 13 ) V. nota 3 das presentes conclusões.

( 14 ) Regulamento do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o [CE] (JO 2003, L 1, p. 1).

( 15 ) Nos setores da eletricidade ou das telecomunicações, os respetivos instrumentos preveem que as autoridades reguladoras nacionais são responsáveis por assegurar a resolução de litígios entre empresas [v. artigo 5.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva (UE) 2018/1972 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que estabelece o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (JO 2018, L 321, p. 36) e artigo 59.o, n.os 3, alínea e), 5, alínea b), e 6, alínea c), da Diretiva (UE) 2019/944 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de junho de 2019, relativa a regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que altera a Diretiva 2012/27/UE (JO 2019, L 158, p. 125)].

( 16 ) É o caso do artigo 91.o, n.o 2 do Estatuto dos Funcionários, segundo o qual o recurso para os órgãos jurisdicionais competentes da União só pode ser aceite se tiver sido previamente apresentada uma reclamação à entidade competente para proceder a nomeações. V., a este respeito, as minhas Conclusões no processo Comissão/Missir Mamachi di Lusignano (C‑54/20 P, EU:C:2021:1025).

( 17 ) Os poderes da entidade reguladora são regulados pelo artigo 30.o da Diretiva 2001/14.

( 18 ) V. decisão na nota 6 das presentes conclusões. Assim, a própria entidade reguladora parece conceber nesse sentido as suas faculdades, uma vez que é dado assente que este organismo convidou as empresas ferroviárias a recorrer aos órgãos jurisdicionais cíveis no que toca à parte pecuniária dos seus pedidos.

( 19 ) O sublinhado é meu.

( 20 ) V., neste sentido, Acórdão de 10 de fevereiro de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Prazo de prescrição) (C‑219/20, EU:C:2022:89, n.o 45 e jurisprudência aí referida).

( 21 ) Tal reconhecimento paralelo também permite evitar que a entidade reguladora seja, inversamente, o único recurso.

( 22 ) V. Tridimas, T., «Precedent and the Court of Justice, A Jurisprudence of Doubt»in Dickinson J., Eleftheriadis, P. (ed.), Philosophical Foundations of EU Law, OUP, Oxford, 2012, pp. 307 a 330; Jacobs, M., Precedents and Case‑Based Reasoning in the European Court of Justice, CUP, Cambridge, 2014, pp. 127 e segs.

( 23 ) Convém recordar que a entidade reguladora decidiu que a tarifa 2005 era de facto contrária aos requisitos da Diretiva 2001/14. Contudo, foi interposto recurso desta decisão pela DB Station & Service, e a decisão final ainda está pendente. A este respeito, v. n.o 8 das presentes conclusões.

( 24 ) V., a este respeito, n.o 13 das presentes conclusões.

( 25 ) Acórdão de 19 de novembro de 1991 (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428).

( 26 ) Acórdão de 5 de março de 1996 (C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79).

( 27 ) Acórdão CTL Logistics, n.o 74. No entanto, esta linha argumentativa não é, em minha opinião, convincente, dado que o juiz cível que decidiu sobre o caráter equitativo do preço não podia ter desrespeitado o princípio da fixação dos encargos previsto na Diretiva 2001/14. V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo CTL Logistics (C‑489/15, EU:C:2016:901 n.os 39 a 41).

( 28 ) Ainda que não se deva ignorar que este poder está limitado pela obrigação do juiz nacional aplicar a Diretiva 2001/14. A este respeito, v. n.o 71 das presentes conclusões.

( 29 ) Esta mudança legislativa ocorreu após muita controvérsia académica e política na Alemanha. Decorre do n.o 13 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo CTL Logistics (C‑489/15, EU:C:2016:901) que «[o] debate interno gerado por essa corrente jurisprudencial parece ter adquirido a dimensão de um verdadeiro conflito institucional, como atesta, entre outros, o desacordo manifestado pelo Bundesrat (Conselho federal, Alemanha) com a proposta, contida no projeto de lei que altera a legislação reguladora do transporte ferroviário e que transpõe a Diretiva [2001/14], de excluir expressamente a aplicação do § 315 do BGB no âmbito de aplicação dessa legislação». No fim de contas, parece (uma vez que o Governo alemão não participou neste processo) que o legislador alemão interveio para declarar o § 315 do BGB inaplicável a uma situação como a que está em causa no processo principal (n.o 14 das referidas conclusões).

( 30 ) O órgão jurisdicional nacional deveria decidir sobre a validade da taxa tendo em conta o acórdão do Tribunal de Justiça que declarou que o Estado polaco não tinha transposto a Diretiva 2001/14 (Acórdão de 30 de maio de 2013, Comissão/Polónia (C‑512/10, EU:C:2013:338).

( 31 ) Acórdão Koleje Mazowieckie, n.o 52.

( 32 ) Sobre este argumento, ver n.os 64 e seguintes das presentes conclusões.

( 33 ) Acórdãos CTL Logistics, n.o 95 e Koleje Mazowieckie, n.o 51.

( 34 ) V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo CTL Logistics (C‑489/15, EU:C:2016:901, n.os 39 a 41).

( 35 ) V. também, no que respeita à tomada em consideração da regulamentação setorial na aplicação das regras gerais de concorrência, os Acórdãos de 14 de outubro de 2010Deutsche Telekom/Comissão (C‑280/08 P, EU:C:2010:603, n.o 224), e de 25 de março de 2021Deutsche Telekom/Comissão (C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 57).

( 36 ) Diretiva do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa ao desenvolvimento dos caminhos‑de‑ferro comunitários (JO 1991, L 237, p. 25).

( 37 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, que altera a Diretiva 91/440 (JO 2001, L 75, p. 1).

( 38 ) O sublinhado é meu.

( 39 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de novembro de 2012, que estabelece um espaço ferroviário europeu (JO 2012, L 343, p. 32).

( 40 ) Acórdãos de 10 de julho de 2014, Telefónica e Telefónica de España/Comissão (C‑295/12 P, EU:C:2014:2062), e de 25 de julho de 2018, Orange Polska/Comissão (C‑123/16 P, EU:C:2018:590).

( 41 ) Acórdãos de 30 de abril de 1986, Asjes e o. (209/84 a 213/84, EU:C:1986:188), e de 11 de novembro de 2021, PT Stichting Cartel Compensation e o. (C‑819/19, EU:C:2021:904, n.o 45 e jurisprudência aí referida).

( 42 ) Comunicação da Comissão relativa à aplicação das regras da concorrência ao setor postal e à apreciação de certas medidas estatais referentes aos serviços postais (JO 1998, C 39, p. 2, pp. 6 e seguintes).

( 43 ) V. Idot, L. «Règles de concurrence et régulations sectorielles», dans van Damme, J. et van der Mensbrugghe, F., La régulation des services publics en Europe, ASPE Europe, Paris, 2000, pp. 377 a 415.

( 44 ) Também não pode ser considerado que a aplicação das regras gerais ou setoriais de concorrência por um órgão jurisdicional nacional invada as competências e a margem de atuação da entidade reguladora, que permanecem intactas. Essas regras, no seu conjunto, também não afetam a independência desse organismo, tal como previsto no artigo 30.o da Diretiva 2001/14, uma vez que as suas competências derivam precisamente de um tal quadro jurídico. O mesmo se aplica à independência do gestor da infraestrutura garantida no artigo 4.o desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2013, Comissão/Itália (C‑369/11, EU:C:2013:636, n.o 43 e jurisprudência aí referida).

( 45 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de novembro de 2014 relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados‑Membros e da União Europeia (JO 2014, L 349, p. 1).

( 46 ) O sublinhado é meu.

( 47 ) As versões em língua espanhola e alemã também utilizam o mesmo verbo modal «poder». As versões em língua inglesa, croata e italiana afirmam a existência de um direito. Embora as várias versões linguísticas a que acabei de me referir estabeleçam, de uma forma ou de outra, uma faculdade ou um direito, nenhuma sugere uma competência obrigatória ou exclusiva. Assim, as diferentes versões linguísticas corroboram a conclusão de que a Diretiva 2001/14 confere à entidade reguladora, estabelecida pelo seu artigo 30.o, uma competência facultativa de resolução de litígios. Este entendimento da competência da entidade reguladora para a resolução de litígios reflete‑se na Diretiva 2012/34, que, entretanto, substituiu a Diretiva 2001/14, uma vez que o artigo 56.o, n.o 1, da Diretiva 2012/34, que corresponde ao antigo artigo 30.o da Diretiva 2001/14, está redigido em termos idênticos à disposição que o precedeu.

( 48 ) V., por analogia, artigo 16.o do Regulamento n.o 1/2003.

( 49 ) V. n.os 7 a 11 das presentes conclusões.

( 50 ) V. as referências contidas na nota 20 destas conclusões.