Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ANTHONY MICHAEL COLLINS

apresentadas em 24 de fevereiro de 2022 (1)

Processo C673/20

EP

contra

Préfet du Gers et

Institut national de la statistique et des études économiques,

sendo interveniente:

Maire de Thoux

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal judiciaire d’Auch (Tribunal Judicial de Auch, França)]

«Reenvio prejudicial – Cidadania da União – Interpretação e validade do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica – Nacional do Reino Unido residente num Estado‑Membro da União Europeia há mais de 15 anos e privado do direito de voto no Reino Unido – Eliminação dos cadernos eleitorais no Estado‑Membro de residência»






I.      Introdução

1.        Os cidadãos britânicos que tenham beneficiado da cidadania da União podem manter os benefícios inerentes à mesma na sequência da saída do Reino Unido da União Europeia? Esta questão está no cerne das quatro questões submetidas pelo Tribunal judiciaire d'Auch (Tribunal Judicial de Auch, França) no âmbito de um litígio que tem por objeto a questão de saber se EP, de nacionalidade britânica, continua a beneficiar dos direitos de voto e de elegibilidade nas eleições municipais de França. Com as primeira e segunda questões pretende‑se saber se os nacionais britânicos, ou um subconjunto destes, continuam a ser cidadãos da União e a beneficiar desse estatuto. Não sendo esse o caso, as terceira e quarta questões submetidas ao Tribunal de Justiça visam a apreciação por parte deste da validade da Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020, relativa à celebração do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2), nomeadamente à luz do princípio da proporcionalidade.

II.    Quadro jurídico aplicável

A.      Direito da União

1.      Cidadania da União

2.        O artigo 9.° TUE prevê:

«[…] É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.»

3.        O artigo 20.°, n.° 1, TFUE, que institui a cidadania da União, está redigido em termos praticamente idênticos.

4.        Nos termos do artigo 22.°, n.° 1, TFUE, qualquer cidadão da União residente num Estado‑Membro que não seja o da sua nacionalidade goza do direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais do Estado‑Membro de residência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado. O artigo 40.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») consagra esse direito.

2.      Saída do Reino Unido da União Europeia

5.        O artigo 50.° TUE prevê:

«1.      Qualquer Estado‑Membro pode decidir, em conformidade com as respetivas normas constitucionais, retirar‑se da União.

2.      Qualquer Estado‑Membro que decida retirar‑se da União notifica a sua intenção ao Conselho Europeu. Em função das orientações do Conselho Europeu, a União negocia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União. Esse acordo é negociado nos termos do n.° 3 do artigo 218.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. O acordo é celebrado em nome da União pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, após aprovação do Parlamento Europeu.

3.      Os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação referida no n.° 2, a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado‑Membro em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo.

[…].»

6.        A Decisão 2020/135 aprovou o Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (a seguir «Acordo de saída») (3) em nome da União Europeia.

7.        Em conformidade com o artigo 185.°, o Acordo de saída entrou em vigor à meia‑noite (HEC) de 31 de janeiro de 2020.

8.        O artigo 126.° do Acordo de saída previa um período de transição ou de execução, que teve início na data da sua entrada em vigor e terminou em 31 de dezembro de 2020.

9.        O âmbito de aplicação da transição é definido no artigo 127.° do Acordo de saída, cujo n.° 1 prevê que, salvo disposição em contrário, o direito da União é aplicável «ao Reino Unido e no seu território» durante o período de transição. Entre as disposições do Tratado e os atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União Europeia que não eram aplicáveis ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição figuravam os artigos 20.°, n.° 2, alínea b), e 22.° TFUE, o artigo 40.° da Carta e os atos adotados com base nessas disposições. O artigo 127.°, n.° 6, do Acordo de saída dispõe que «[s]alvo disposição em contrário do presente Acordo, durante o período de transição, as referências a Estados‑Membros no direito da União aplicável nos termos do n.° 1, incluindo as disposições transpostas e aplicadas pelos Estados‑Membros, entendem‑se como incluindo o Reino Unido».

B.      Direito francês

10.      O artigo 88‑3 da Constituição de 4 de outubro de 1958, na redação resultante da loi constitutionnelle n.° 93‑952, de 27 de julho de 1993 (a seguir «Lei Constitucional n.° 93‑952»), dispõe:

«O direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais só pode ser atribuído aos cidadãos da União residentes em França, sob reserva de reciprocidade e segundo as modalidades previstas pelo [TUE]. Estes cidadãos não podem exercer as funções de presidente da câmara municipal, nem participar na designação dos eleitores senatoriais ou na eleição dos senadores […]»

11.      O artigo LO 227‑1 do code électoral issu de la loi organique n.° 98‑404 du 25 mai 1998 déterminant les conditions d’application de l’article 88‑3 de la Constitution relatif à l’exercice par les citoyens de l’Union européenne résidant en France, autres que les ressortissants français, du droit de vote et d’éligibilité aux élections municipales, et portant transposition de la directive 94/80/CE du 19 décembre 1994 (JORF n.° 120, de 26 de maio de 1998; Código Eleitoral resultante da Lei Orgânica n.° 98‑404, de 25 de maio de 1998, que estabelece as condições de aplicação do artigo 88‑3 da Constituição relativo ao exercício, pelos cidadãos da União Europeia residentes em França, que não os nacionais franceses, do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais e que transpõe a Diretiva 94/80/CE, de 19 de dezembro de 1994, a seguir «Código Eleitoral») prevê:

«Os cidadãos da União Europeia residentes em França, que não tenham nacionalidade francesa, podem participar nas eleições das câmaras municipais nas mesmas condições que os eleitores franceses, sem prejuízo do disposto na presente secção.

As pessoas mencionadas no primeiro parágrafo são consideradas residentes em França se aí tiverem a sua residência efetiva ou se a sua residência for contínua.

[…]»

12.      O artigo LO 227‑2 do Código Eleitoral prevê:

«Para poderem exercer o direito de voto, as pessoas referidas no artigo LO 227‑1 devem ser inscritas, a seu pedido, num caderno eleitoral complementar.

Podem requerer o seu recenseamento se gozarem de capacidade eleitoral no seu Estado de origem e se preencherem os requisitos legais, com exceção da nacionalidade francesa, para serem eleitores e estarem inscritos num caderno eleitoral em França.»

13.      Por força do artigo L16, III, segundo parágrafo, do Código Eleitoral, o Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Económicos [Institut national de la statistique et des études économiques (INSEE)] é responsável pela eliminação do registo eleitoral dos eleitores falecidos e dos eleitores que já não têm direito de voto.

III. Factos do litígio no processo principal e pedido de decisão prejudicial

14.      EP é residente em França desde 1984 e é casada com um cidadão francês. O despacho de reenvio refere que EP não adquiriu a nacionalidade francesa por efeito do casamento porquanto, na qualidade de antiga funcionária do então Foreign and Commonwealth Office of the United Kingdom (Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth do Reino Unido), jurou lealdade à Rainha de Inglaterra.

15.      Com a entrada em vigor do Acordo de saída, o INSEE eliminou EP do caderno eleitoral do Município de Thoux (França) que ficou, assim, impossibilitada de participar nas eleições municipais realizadas em 15 de março e 28 de junho de 2020.

16.      Em 6 de outubro de 2020, EP formalizou um pedido de reinscrição nos cadernos eleitorais relativos aos cidadãos não franceses da União Europeia. No dia seguinte, o seu pedido foi indeferido pelo presidente da Câmara Municipal de Thoux. Consequentemente, EP submeteu a questão à apreciação da comissão eleitoral municipal. Tendo este organismo respondido indicando que só se devia reunir em março de 2021, EP considerou que esta resposta confirmava implicitamente a Decisão de 7 de outubro de 2020 do presidente da Câmara. Assim, em 9 de novembro de 2020, EP interpôs recurso da referida decisão no Tribunal judiciaire d’Auch (Tribunal Judicial de Auch).

17.      Por Despacho de 17 de novembro de 2020, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 9 de dezembro de 2020, o Tribunal judiciaire d'Auch (Tribunal Judicial de Auch) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem o artigo 50.° do Tratado da União Europeia e o [Acordo de saída] ser interpretados no sentido de que revogam a cidadania [da União] dos nacionais britânicos que, antes do termo do período de transição, tenham exercido o seu direito de livre circulação e a sua liberdade de estabelecimento no território de outro Estado‑Membro, nomeadamente dos que tenham permanecido no território de outro Estado‑Membro durante mais de quinze anos e estejam sujeitos à lei britânica denominada «15 year rule», o que os priva de qualquer direito de voto?

2)      Em caso de resposta afirmativa, deve considerar‑se que a conjugação dos artigos 2.°, 3.°, 10.°, 12.° e 127.° do Acordo de saída, do sexto parágrafo do seu preâmbulo, e dos artigos 18.°, 20.° e 21.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia permitiu aos nacionais britânicos conservar, sem exceção, os direitos de cidadania [da União] de que gozavam antes da saída do seu [Estado] da União Europeia?

3)      Em caso de resposta negativa à segunda questão, não é o Acordo de saída parcialmente inválido por violar princípios que formam a identidade da União Europeia, nomeadamente os artigos 18.°, 20.° e 21.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e os artigos 39.° e [40.°] da [Carta], e não viola o princípio da proporcionalidade, na medida em que não contém uma cláusula que permita aos nacionais britânicos conservar esses direitos sem exceção?

4)      Em qualquer caso, não é o artigo 127.°, n.° 1, alínea b), do Acordo de saída parcialmente inválido por violar os artigos 18.°, 20.° e 21.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e os artigos 39.° e 40.° da [Carta], na medida em que priva os cidadãos da União que tenham exercido o seu direito de livre circulação e a sua liberdade de estabelecimento no Reino Unido do direito de voto e de elegibilidade nas eleições [municipais] desse [Estado], e, se o Tribunal [Geral] e o Tribunal de Justiça tiverem a mesma interpretação que o Conseil d'État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) francês, não é essa violação extensiva aos nacionais do Reino Unido que tenham exercido o seu direito de livre circulação e a sua liberdade de estabelecimento no território de outro Estado‑Membro durante mais de quinze anos e estejam sujeitos à lei britânica denominada «15 year rule», o que os priva de qualquer direito de voto?»

18.      EP, os Governos francês e romeno, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça.

IV.    Apreciação

 Considerações gerais

1.      Cidadania – uma competência dos EstadosMembros

19.      O décimo considerando do preâmbulo do TUE declara a vontade manifestada pelos Estados‑Membros de instituir uma cidadania comum aos seus nacionais. O seu décimo terceiro considerando reforça a vontade de criar uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa.

20.      O artigo 1.°, primeiro parágrafo, TUE dispõe que, nesse Tratado, as Altas Partes Contratantes instituem entre si uma União Europeia, à qual os Estados‑Membros atribuem competências para atingirem objetivos comuns. O segundo parágrafo desse artigo descreve o TUE como assinalando uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa.

21.      É no contexto específico destas disposições que o artigo 9.° TUE e os artigos 20.° a 24.° TFUE instituem a cidadania da União, definem o seu conteúdo e especificam os respetivos beneficiários.

22.      O artigo 9.° TUE e o artigo 20.°, n.° 1, TFUE preveem que os cidadãos da União devem ter a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional atribuída pelos Estados‑Membros e não a substitui. Neste contexto, importa reconhecer que os Estados‑Membros podiam ter decidido repartir as suas competências e conferir à União Europeia o poder de determinar quem tem o direito de se tornar cidadão da União. Esta opção expressa por parte dos Estados‑Membros não é só desprovida do poder de instituir a cidadania da União independentemente da nacionalidade atribuída pelos Estados‑Membros, como constitui um entrave constitucional para que tal poder possa resultar implicitamente do direito da União.

23.      Dada a clareza destas disposições, não surpreende que a jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente os Acórdãos Rottmann (4), Tjebbes (5), e, mais recentemente, Wiener Landesregierung (6), reconheça expressamente que os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar quem é nacional e, por conseguinte, é cidadão da União. Esta repartição de competências não é infirmada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual, em situações abrangidas pelo direito da União, os Estados‑Membros devem exercer a sua competência em matéria de aquisição e perda de nacionalidade, no respeito do direito da União (7).

24.      O Acórdão Rottmann (8) dizia respeito a uma situação em que a perda da nacionalidade de um Estado‑Membro teria tido a consequência de tornar o interessado apátrida (9). O Tribunal de Justiça recordou a sua jurisprudência assente segundo a qual a definição das condições de aquisição e de perda de nacionalidade é da competência de cada Estado‑Membro (10). Todavia, a aplicação das normas nacionais em situações abrangidas pelo direito da União deve respeitar este direito (11). Entre as circunstâncias abrangidas pelo direito da União contam‑se aquelas em que um cidadão da União corre o risco de perder o estatuto conferido pelo artigo 20.° TFUE e os direitos correspondentes por força de uma decisão de revogação da sua naturalização adotada pelas autoridades de um Estado‑Membro, após ter perdido a nacionalidade de outro Estado‑Membro (12). O Tribunal de Justiça declarou que o direito da União não se opõe a que um Estado‑Membro revogue a nacionalidade desse Estado‑Membro que concedera a um cidadão da União quando esta tenha sido obtida de modo fraudulento, mesmo que a decisão de revogação implique a perda do estatuto conferido pelo artigo 20.° TFUE, desde que tal respeite o princípio da proporcionalidade (13).

25.      O Acórdão Tjebbes (14) incidia sobre a aplicação de uma legislação segundo a qual um cidadão com dupla nacionalidade perde a nacionalidade neerlandesa se tiver a sua residência principal durante um período ininterrupto de dez anos, ao longo da sua maioridade e tendo as duas nacionalidades, fora do território dos Estados‑Membros. Uma vez que a perda da nacionalidade neerlandesa tinha como consequência a privação dos cidadãos nessa situação do estatuto e dos benefícios decorrentes da cidadania da União, o Tribunal de Justiça considerou novamente que tal situação era abrangida pelo direito da União, que os Países Baixos devem respeitar (15). No exercício da sua competência para definir as condições de aquisição e perda da nacionalidade, os Estados‑Membros podem legitimamente exigir a existência de um vínculo genuíno com os seus nacionais e, consequentemente, atribuir à ausência ou à cessação desse vínculo a perda de nacionalidade (16). Nestas condições, o direito da União não se opõe a que um Estado‑Membro considere que uma pessoa perdeu a sua nacionalidade, mesmo que esta perda implique a perda do estatuto de cidadão da União (17). No entanto, antes de o fazer, o Estado‑Membro deve proceder a uma apreciação individual da situação da pessoa interessada e da sua família, a fim de avaliar as consequências da perda da nacionalidade à luz do princípio da proporcionalidade (18).

26.      No Acórdão Wiener Landesregierung (19), JY, uma nacional estónia, recebeu das autoridades austríacas garantias de que obteria a nacionalidade desse Estado‑Membro se conseguisse provar, no prazo de dois anos, que renunciara à nacionalidade estónia (20). Decorrente do facto de JY ter cometido certas contraordenações, as autoridades austríacas revogaram a decisão de lhe conceder a nacionalidade austríaca (21). Na sequência da revogação da decisão de concessão da nacionalidade austríaca, JY tornou‑se apátrida e, portanto, perdeu o seu estatuto de cidadão da União (22). O Tribunal de Justiça decidiu que numa situação em que o estatuto de cidadão da União foi provisoriamente perdido pelo facto de, no âmbito de um processo de naturalização, o Estado‑Membro de origem ter retirado a sua nacionalidade à pessoa em causa antes de esta ter efetivamente adquirido a nacionalidade de outro Estado‑Membro, a obrigação de assegurar o efeito útil do artigo 20.° TFUE incumbe, antes de mais, a este último Estado‑Membro. Nestas circunstâncias, uma decisão de revogação de garantias anteriormente dadas deve basear‑se em motivos legítimos e no respeito do princípio da proporcionalidade (23).

2.      Saída do Reino Unido da União Europeia

27.      O artigo 50.°, n.° 1, TUE prevê que um Estado‑Membro pode exercer, de forma soberana e em conformidade com as respetivas normas constitucionais, o direito de se retirar da União (24). Essa disposição visa igualmente salvaguardar o caráter voluntário e unilateral da decisão de retirada (25). Assim que o Conselho Europeu seja notificado da decisão de retirada, a União Europeia enceta negociações com o Estado em questão para chegar a um acordo sobre as modalidades para a sua aplicação. O artigo 50.°, n.° 3, TUE estabelece um prazo para a duração dessas negociações, prevendo que os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado que decidiu sair a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação da decisão de retirada, a menos que o Conselho Europeu e o Estado em questão concordem, por unanimidade, prorrogar esse prazo. A não celebração do acordo previsto no artigo 50.°, n.° 2, TUE não impede, assim, que a saída produza efeitos (26).

28.      Nos termos do artigo 50.°, n.° 3, TUE, os Tratados deixam de ser aplicáveis a um Estado que tenha notificado a sua intenção de se retirar da União a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída. No caso do Reino Unido, o Acordo de saída entrou em vigor à meia‑noite (HEC) de 31 de janeiro de 2020, data em que deixou de ser Estado‑Membro da União Europeia. Consequentemente, o Reino Unido deixou de manifestar a sua vontade no sentido de instituir uma cidadania comum à dos nacionais dos Estados‑Membros da União ou de criar uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa. Uma vez que a existência da cidadania da União depende da aquisição e da posse da nacionalidade de um Estado‑Membro e que o Reino Unido renunciou voluntariamente a esse estatuto nos termos previstos no direito da União, os nacionais britânicos deixaram de ser cidadãos da União.

29.      O artigo 126.° do Acordo de saída estabeleceu um período transitório de aplicação do direito da União «ao Reino Unido e no seu território» até 31 de dezembro de 2020. Durante esse período de transição, o artigo 127.° do Acordo de saída excluiu expressamente a aplicação «ao Reino Unido e no seu território» dos artigos 20.°, n.° 2, alínea b), e 22.°, n.° 1, TFUE e do artigo 40.° da Carta, relativos ao direito dos cidadãos da União de eleger e ser eleitos nas eleições municipais do seu Estado‑Membro de residência. Daqui resulta que, a partir da entrada em vigor do Acordo de saída, um nacional britânico deixou de beneficiar, enquanto cidadão da União, de um direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais do Estado‑Membro de residência.

30.      Daqui decorre que, com a saída do Reino Unido da União Europeia, os nacionais britânicos deixaram de ter o estatuto de cidadãos da União. Embora os termos do Acordo de saída lhes conferissem determinados direitos durante o período de transição, entre estes não figurava o direito de eleger e ser eleitos nas eleições municipais do Estado‑Membro de residência.

3.      O caso de EP

31.      Nas suas observações escritas, EP invoca vários argumentos, que podem ser divididos em dois grupos. Em primeiro lugar defende que, apesar da saída do Reino Unido da União Europeia, continua a ter estatuto de cidadão da União. Em segundo lugar, e a título subsidiário, alega que o Acordo de saída não poderia privá‑la, de forma lícita, do benefício do direito de voto nas eleições municipais. Algumas considerações feitas nessas observações escritas suscitam a seguinte resposta da minha parte.

32.      Resulta do excerto do Acórdão Nottebohm (27), proferido pelo Tribunal Internacional de Justiça e ao qual EP faz referência, que a aquisição da nacionalidade depende da existência de um ato positivo por parte de um Estado. A União Europeia determinou livremente que a aquisição da cidadania de um Estado‑Membro é uma condição prévia para a concessão da cidadania da União. Esta circunstância por si só é suficiente para afastar o argumento de que os vínculos de uma pessoa com um Estado, mesmo quando esses vínculos tenham sido facilitados pelo facto de a pessoa em causa gozar de um estatuto jurídico que entretanto deixou de existir, são em si mesmos suscetíveis de fundamentar um pedido de aquisição da nacionalidade desse Estado.

33.      EP parece afirmar que as ligações que estabeleceu com o Estado francês à data em que era nacional de um Estado‑Membro impedem que seja privada da cidadania da União. Todavia, resulta do despacho de reenvio que, não obstante a sua longa residência em França e o seu casamento com um cidadão francês, EP optou por não adquirir a nacionalidade francesa. Segundo o Governo francês, EP poderia fazê‑lo por ser casada com um cidadão francês. Assim, EP teria apenas que apresentar um pedido de aquisição da nacionalidade francesa às autoridades francesas, o que lhe conferiria automaticamente a cidadania da União. É, no mínimo, paradoxal que, embora EP invoque unicamente os seus laços com a França para corroborar a alegação de que tem o direito de conservar o estatuto de cidadão da União, se recuse simultaneamente a fazer as diligências necessárias que lhe permitiriam conservar a cidadania da União, nomeadamente a apresentação de um pedido de aquisição da nacionalidade francesa. Com efeito, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, a França não pode reconhecer EP como cidadã da União.

34.      O Tribunal de Justiça declarou que os direitos conferidos a um cidadão da União pelo artigo 21.°, n.° 1, TFUE tendem, designadamente, a favorecer a integração progressiva do cidadão da União em causa na sociedade do Estado‑Membro de acolhimento (28). EP parece sustentar que por se ter integrado na sociedade francesa, na sua qualidade de cidadã da União, não pode agora ser privada desse estatuto e do gozo dos direitos que lhe são inerentes. Além da questão de EP, tal como os outros nacionais britânicos, ter deixado de preencher a condição prévia essencial para o gozo do estatuto e dos benefícios decorrentes da cidadania da União, nomeadamente a nacionalidade de um Estado‑Membro, em consequência direta da decisão soberana do Reino Unido de se retirar da União Europeia, pode ainda observar‑se que a integração dos nacionais de países terceiros nas sociedades dos Estados‑Membros não consta dos objetivos da cidadania da União.

35.      Para sustentar o argumento de que a nacionalidade de um Estado‑Membro não é uma condição prévia para ter o estatuto de cidadania da União, EP faz igualmente referência a uma frase do n.° 23 das Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Rottmann (29), segundo a qual «[a] cidadania da União pressupõe a nacionalidade de um Estado‑Membro, mas é também um conceito jurídico e político autónomo relativamente ao de nacionalidade».

36.      Ainda no n.° 23 das referidas conclusões, o advogado‑geral M. Poiares Maduro refere que a nacionalidade do Estado‑Membro dá acesso ao gozo dos direitos conferidos pelo direito da União e torna essas pessoas cidadãs da União. Observou que a cidadania da União é mais que um conjunto de direitos que, em si mesmos, poderiam ser concedidos a quem não a possui. Pressupõe a existência de um vínculo de natureza política entre os cidadãos da União, e decorre do seu compromisso recíproco de abrir as suas comunidades políticas respetivas aos outros cidadãos da União e de construir uma nova forma de solidariedade cívica e política à escala europeia. O advogado‑geral M. Poiares Maduro considera que, ao fazerem da nacionalidade de um Estado‑Membro uma condição para se ser cidadão da União, os Estados‑Membros quiseram frisar que esta nova forma de cidadania não punha em causa a pertença primacial de uma pessoa a uma comunidade política nacional. A cidadania da União é assim obtida através da aquisição da nacionalidade de um Estado‑Membro, e o acesso a esta é regulado pelo direito nacional. Como toda e qualquer forma de cidadania, constitui a base de um novo espaço político de que emergem direitos e deveres consagrados no direito da União. Não é que a aquisição e a perda da nacionalidade (e, com isso, da cidadania da União) sejam, em si mesmas, reguladas pelo direito da União, mas as condições da aquisição e da perda dessa nacionalidade devem ser compatíveis com o direito da União e respeitar os direitos e deveres do cidadão da União.

37.      Assim, longe de sustentar a tese defendida por EP, o n.° 23 das conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Rottmann (30) põem‑na completamente em causa. Com efeito, descreve a razão pela qual a cidadania da União depende da nacionalidade de um Estado‑Membro como o compromisso recíproco dos Estados‑Membros de construir uma nova forma de solidariedade cívica e política à escala europeia. Com a sua decisão soberana de sair da União Europeia, o Reino Unido manifestou claramente a sua vontade de negar esse compromisso. No âmbito deste ato de um Estado soberano, um particular não pode fazer valer a sua nacionalidade britânica para invocar a cidadania da União ou os seus benefícios.

38.      EP alega ainda que o artigo 127.°, n.° 1, alínea b), do Acordo de saída prevê que, uma vez que as disposições aí enumeradas são declaradas inaplicáveis «ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição», essa inaplicabilidade não se aplica aos Estados‑Membros, incluindo França. O artigo 127.°, n.° 6, do Acordo de saída não altera o âmbito territorial desta limitação, uma vez que prevê que o direito da União é aplicável durante esse período a todos os Estados‑Membros, incluindo o Reino Unido.

39.      A leitura do artigo 127.°, n.° 6, do Acordo de saída parece ignorar que esta disposição não se refere ao direito da União enquanto tal, mas ao «direito da União aplicável nos termos do n.° 1». O artigo 127.°, n.° 1, alínea b), do Acordo de saída tem como consequência a exclusão do âmbito do direito da União aplicável das disposições a que faz referência para efeitos da mesma. Daqui resulta que o artigo 127.°, n.° 6, do Acordo de saída tem por efeito exonerar os Estados‑Membros da obrigação de aplicar as disposições previstas na alínea b) do n.° 1 do mesmo artigo durante o período de transição. Assim, o artigo 127.° do Acordo de saída não impunha nenhum requisito ao Estado francês no sentido de este Estado‑Membro manter EP nos cadernos eleitorais para as eleições municipais aí realizadas durante o período de transição.

40.      EP formula também várias acusações segundo as quais a decisão de eliminar o seu nome dos cadernos eleitorais não teve em conta a sua situação específica. Invocando os Acórdãos Rottmann (31) e Tjebbes (32) do Tribunal de Justiça, alega que uma decisão que a prive dos benefícios decorrentes da cidadania da União só pode ser tomada após uma apreciação da sua situação específica à luz dos princípios da proporcionalidade e da confiança legítima e na sequência de um processo equitativo que lhe confira o direito de ser ouvida no âmbito do exercício do contraditório.

41.      Conforme referido nos n.os 23 a 25, supra, os Acórdãos Rottmann (33) e Tjebbes (34) foram proferidos em circunstâncias em que um Estado‑Membro retirou a sua nacionalidade a pessoas singulares, tal implicando também a perda da sua cidadania da União. Foi neste contexto que o Tribunal de Justiça decidiu que, à luz do direito da União e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, o Estado‑Membro em causa devia proceder a uma apreciação individual das consequências dessa perda para a pessoa interessada (35).

42.      Considero que EP não pode invocar os Acórdãos Rottmann (36) e Tjebbes (37) afirmando que, se a sua situação pessoal tivesse sido tomada em consideração, tal apreciação poderia ter conduzido a um resultado diferente no seu caso. O princípio da proporcionalidade exige que uma autoridade competente proceda à ponderação dos direitos e normas antagónicas antes de tomar uma decisão de caráter individual. As circunstâncias do caso em apreço não exigem nenhuma ponderação por parte da autoridade de decisão que tenha em conta a situação pessoal de EP. A consequência direta da decisão soberana do Reino Unido de se retirar da União Europeia foi a perda, por parte de uma pessoa que se encontre na situação de EP, do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais em França, i.e. o seu Estado‑Membro de residência. Foi esta decisão soberana, não a de um Estado‑Membro ou de qualquer autoridade do mesmo, que fez com que EP deixasse de poder exercer esses direitos. Contrariamente às situações constantes dos Acórdãos Rottmann (38) e Tjebbes (39), nem o autor da decisão nem o órgão jurisdicional de reenvio tinham ou têm qualquer poder para deferir os pedidos de EP. Nem a consideração da situação pessoal de EP poderia ter conduzido a outro resultado em conformidade com o direito da União. Pelas mesmas razões, o recente Acórdão Wiener Landesregierung (40) do Tribunal de Justiça é irrelevante para a situação de EP.

43.      Acrescentaria que, na medida em que EP pretende equiparar a sua situação à dos apátridas, que está na base dos Acórdãos Rottmann (41) e Wiener Landesregierung (42), pode observar‑se que é nacional britânica. Assim, pode dirigir‑se às autoridades do Reino Unido para qualquer questão que possa ter em relação ao seu estatuto ou direitos inerentes à nacionalidade britânica. A França ou a União Europeia não podem desempenhar nenhum papel em tal litígio.

44.      Estas observações são igualmente válidas para as tentativas de EP de invocar a confiança legítima contra a União Europeia e/ou as autoridades francesas. Qualquer violação de confiança legítima que EP pretenda comunicar a respeito do seu estatuto de cidadão da União deve ser dirigida ao Reino Unido, que se retirou da União Europeia, e não às autoridades francesas nem à União Europeia.

45.      A tese de EP segundo a qual as autoridades francesas lhe negaram o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais, privando‑a assim do direito de participar no processo democrático, é igualmente equivocada. Qualquer privação do seu direito de participar no processo democrático enquanto nacional britânica resulta exclusivamente do direito do Reino Unido.

46.      EP alega ainda que privar os cidadãos britânicos residentes na União Europeia do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais do Estado‑Membro de residência viola o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, consagrado no artigo 18.° TFUE.

47.      O Tribunal de Justiça indicou que um cidadão da União residente no Reino Unido pode invocar o artigo 18.°, primeiro parágrafo, TFUE durante o período de transição (43). Do mesmo modo, EP pode, em princípio, invocar contra França, durante esse período, a proibição de discriminação em razão da nacionalidade constante do artigo 18.° TFUE.

48.      Todavia, em conformidade com jurisprudência constante, o artigo 18.°, primeiro parágrafo, TFUE se aplica de forma autónoma às situações reguladas pelo direito da União para as quais o TFUE não preveja regras específicas de não discriminação (44).

49.      Para efeitos do presente processo, basta recordar que o princípio da não discriminação no que respeita ao exercício do direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais é expressamente evocado no artigo 20.°, n.° 2, alínea b), TFUE, que o artigo 127.°, n.° 1, do Acordo de saída excluiu explicitamente dos direitos de que os nacionais britânicos continuaram a gozar na União Europeia durante o período de transição.

50.      Além disso, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio geral da não discriminação exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, exceto se esse tratamento for objetivamente justificado (45).

51.      No que respeita ao exercício dos direitos políticos na União Europeia, devido ao seu estatuto jurídico diferente, os nacionais de países terceiros, como é o caso de EP, não se encontram numa situação comparável à dos nacionais dos Estados‑Membros. Assim, o tratamento diferenciado não constitui uma discriminação injustificada em razão da nacionalidade.

52.      Esta última conclusão é, evidentemente, sem prejuízo da possibilidade de os Estados‑Membros concederem aos nacionais de países terceiros o direito de participação nas eleições municipais em conformidade com os requisitos estabelecidos nas respetivas legislações nacionais (46). Por outras palavras, embora o direito da União não obrigue os Estados‑Membros a fazê‑lo, também não se opõe a que estes confiram o direito de voto por ocasião das eleições a nacionais de países terceiros ao abrigo das respetivas legislações nacionais. É incontestável que a lei francesa não confere esse direito a tais pessoas à luz do direito da União.

53.      Atendendo ao que precede, debruçar‑me‑ei sobre as quatro questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio de forma a poder dar‑lhe uma resposta útil.

a)      Primeira questão

54.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 50.° TUE e o Acordo de saída devem ser interpretados no sentido de que revogam a cidadania da União dos nacionais britânicos que, antes do termo do período de transição, tenham exercido o seu direito de livre circulação e a sua liberdade de estabelecimento no território de outro Estado‑Membro, nomeadamente dos que tenham permanecido no território de outro Estado‑Membro durante mais de quinze anos e estejam sujeitos à lei britânica denominada «15 year rule», o que os priva de qualquer direito de voto.

55.      Pelas razões expostas em pormenor nos n.os 19 a 52, supra, em virtude da decisão do Reino Unido de invocar o procedimento do artigo 50.° TUE e do Acordo de saída celebrado entre a União Europeia e o Reino Unido, os nacionais britânicos deixaram de ser nacionais de um Estado‑Membro da União Europeia. Por conseguinte, perderam o seu estatuto de cidadãos da União. As eventuais consequências jurídicas decorrentes da residência de EP fora do Reino Unido para o exercício do direito de voto por ocasião das eleições nesse Estado são uma questão entre esta nacional britânica e o Reino Unido, um Estado terceiro, e escapam, portanto, à competência do Tribunal de Justiça.

56.      Assim, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que o artigo 50.° TUE e o Acordo de saída têm por efeito fazer cessar, a partir da meia‑noite (HEC) de 31 de janeiro de 2020, a cidadania da União dos nacionais britânicos, incluindo dos que tenham exercido, antes do termo do período de transição, o seu direito de livre circulação e a sua liberdade de estabelecimento no território de outro Estado‑Membro.

b)      Segunda questão

57.      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que examine se a conjugação dos artigos 2.°, 3.°, 10.°, 12.° e 127.° do Acordo de saída, do sexto parágrafo do seu preâmbulo, e dos artigos 18.°, 20.° e 21.° TFUE permitiu aos nacionais britânicos conservar, sem exceção, os direitos de cidadania da União de que gozavam antes da saída do Reino Unido da União Europeia.

58.      Esta questão parece ser suscitada com base no facto de que, mesmo que os nacionais britânicos tenham deixado de ser cidadãos da União devido à aplicação do artigo 50.° TUE e do Acordo de saída, o efeito conjugado das disposições supracitadas protege esses nacionais que já tinham obtido a cidadania da União de uma das consequências da saída do Reino Unido da União Europeia, a saber, a perda da cidadania da União por nacionais britânicos.

59.      A tese em que esta questão se fundamenta encontra pelo menos três obstáculos intransponíveis.

60.      Em primeiro lugar, conforme resulta da resposta proposta à primeira questão, o artigo 50.° TUE e o Acordo de saída não preveem nenhuma exceção à regra segundo a qual, com a sua saída da União Europeia, o Reino Unido deixa de ser um Estado‑Membro, com todas as consequências que daí decorrem para os nacionais britânicos.

61.      Em segundo lugar, uma vez que para ser cidadão da União é necessário ter a nacionalidade de um Estado‑Membro, antes da meia‑noite (HEC) de 31 de janeiro de 2020, todos os nacionais britânicos eram cidadãos da União, independentemente de terem exercido ou não algum dos direitos inerentes ao respetivo estatuto. O exercício dos direitos conferidos pelo direito da União não fornece nenhuma base jurídica para determinar o estatuto de cidadão da União.

62.      Em terceiro lugar, conforme referido anteriormente, o artigo 127.°, n.° 1, do Acordo de saída prevê expressamente que o artigo 20.°, n.° 2, alínea b), e o artigo 22.° TFUE, o artigo 40.° da Carta e quaisquer atos adotados com base nessas disposições não se aplicam durante o período de transição.

63.      Por estas razões, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão no sentido de que as referidas disposições do Acordo de saída e do TFUE não permitem que os nacionais britânicos conservem, sem exceção, os direitos de cidadania da União de que gozavam antes da saída do Reino Unido da União Europeia em 31 de janeiro de 2020.

c)      Terceira e quarta questões

64.      As terceira e quarta questões são submetidas no caso de o Tribunal de Justiça dar uma resposta negativa às duas primeiras. Uma vez que suscitam a questão da validade do Acordo de saída de vários ângulos, diferentes mas semelhantes, pode ser conveniente considerá‑los em conjunto.

65.      É pacífico que o Tribunal de Justiça é competente, quer no quadro de um recurso de anulação, quer no quadro no de um pedido de decisão prejudicial, para apreciar se um acordo internacional celebrado pela União é compatível com os Tratados e com as regras de direito internacional que, em conformidade como os Tratados, vinculam a União Europeia (47).

66.      Num caso como o vertente, em que ao Tribunal de Justiça é submetido um pedido de decisão prejudicial relativo à validade de um acordo internacional celebrado pela União, esse pedido deve ser entendido como visando o ato pelo qual a União celebrou esse acordo internacional. O controlo de validade que o Tribunal de Justiça pode realizar nesse contexto é passível de abranger a legalidade desse ato à luz do próprio conteúdo do acordo internacional em causa (48).

67.      Conforme indicado no n.° 6, supra, pela Decisão 2020/135, a União Europeia aprovou a celebração do Acordo de saída.

68.      À luz destas considerações, as terceira e quarta questões prejudiciais poderiam ser reformuladas no sentido de perguntar, em substância, se a Decisão 2020/135 relativa à celebração do Acordo de saída é inválida na medida em que, tendo em conta o conteúdo desse acordo, não confere o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais a nacionais britânicos residentes num Estado‑Membro e que não tenham a nacionalidade de nenhum Estado‑Membro.

69.      Conforme referido anteriormente, desde a meia‑noite (HEC) de 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido deixou de ser um Estado‑Membro da União Europeia. Durante o período de transição, o direito da União foi aplicado ao Reino Unido e aos seus nacionais ao abrigo da derrogação prevista no artigo 127.° do Acordo de saída, que exclui, nomeadamente, o direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais do Estado‑Membro de residência.

70.      Na minha opinião, tendo em conta o estatuto do Reino Unido de país terceiro desde a sua saída da União Europeia, a Decisão 2020/135 não pode ser criticada por não conceder aos nacionais britânicos o direito do voto e de elegibilidade nas eleições municipais do Estado‑Membro da sua residência durante o período de transição ou posteriormente. A perda desses direitos é uma das consequências da decisão soberana do Reino Unido de se retirar da União Europeia. Esta conclusão não é afetada pelo facto de a Decisão 2020/135, em conjugação com o Acordo de saída, prever que certas partes do acervo sejam aplicadas, a título excecional, durante o período de transição de forma a assegurar a saída ordenada do Reino Unido da União Europeia que constitui, em conformidade com o seu preâmbulo, o objetivo do Acordo de saída. Por estes motivos, considero que a Decisão 2020/135 não viola os artigos 20.°, n.° 2, alínea b), e 22.° TFUE ou o artigo 40.° da Carta no que diz respeito ao direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais. A fortiori, pelos mesmos motivos, a Decisão 2020/135 não viola os artigos 18.° e 21.° TFUE para efeitos da questão submetida ao Tribunal de Justiça.

71.      Esta conclusão também não é afetada pelo facto de certos nacionais britânicos, como é o caso de EP, terem exercido determinados direitos de cidadania da União antes da saída do Reino Unido, incluindo o direito de se deslocar e residir noutro Estado‑Membro da União Europeia. Não existe qualquer fundamento jurídico para afirmar que a Decisão 2020/135 era ilegal por não conceder a cidadania da União a pessoas que deixaram de ser cidadãos da União durante o período de transição ou posteriormente, independentemente do seu local de residência.

72.      Importa também observar que a jurisprudência reconhece que as instituições da União Europeia dispõem, na condução das relações externas, de uma grande flexibilidade na tomada de decisões políticas (49). No exercício das suas prerrogativas de política externa, as instituições da União Europeia podem, por conseguinte, celebrar legitimamente acordos internacionais com os seus parceiros com base no princípio da reciprocidade e das vantagens mútuas (50).

73.      O preâmbulo do Acordo de saída reconhece que é necessário assegurar uma proteção recíproca aos cidadãos da União e aos nacionais britânicos, bem como aos respetivos familiares, nos casos em que tenham exercido o seu direito de livre circulação. É neste mesmo contexto que a Comissão Europeia aponta, nomeadamente, para um documento de negociação intitulado «A saída do Reino Unido da União Europeia – Salvaguarda da posição dos cidadãos da UE que vivem no Reino Unido e dos nacionais do Reino Unido que vivem na UE», de junho de 2017. Este documento revela que o Reino Unido não procurou garantir que os nacionais britânicos residentes na União Europeia gozassem de direitos políticos após a sua saída em troca da atribuição de direitos recíprocos aos cidadãos da União residentes no Reino Unido (51).

74.      Assim, não há base jurídica nem factual para sustentar que a União Europeia excedeu os limites do seu poder discricionário na condução das relações externas ao não permitir que os nacionais britânicos residentes na União Europeia continuassem a exercer o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais dos Estados‑Membros após a saída do Reino Unido, quer por decisão unilateral, quer em virtude de negociações com o Reino Unido.

75.      Na medida em que a terceira questão pergunta especificamente se o Acordo de saída viola determinados princípios subjacentes à identidade da União Europeia e é desproporcionado, uma vez que não contém nenhuma exceção à regra de que os nacionais britânicos perdem os direitos inerentes à cidadania da União, faço as seguintes breves observações. Considerando que a decisão soberana do Reino Unido de deixar a União Europeia equivale a uma rejeição dos princípios subjacentes à União, e tendo em conta que o Acordo de saída é um acordo entre a União Europeia e o Reino Unido para facilitar a saída ordenada deste último, a União Europeia não podia insistir que o Reino Unido aderisse plenamente a qualquer um dos princípios fundadores da União. A União também não podia assegurar direitos que, em todo o caso, não tinha obrigação de fazer valer em nome de pessoas que são nacionais de um Estado que saiu da União Europeia e que, portanto, já não têm o estatuto de cidadãos da União. Por último, uma vez que a cidadania da União depende do facto de ser ter a nacionalidade de um Estado‑Membro, não foi possível dar outra resposta, no âmbito dos Tratados, para além da exclusão dos nacionais britânicos da definição de cidadãos da União.

76.      Quanto à quarta questão, no que respeita à validade do artigo 127.°, n.° 1, alínea b), do Acordo de saída, não existe qualquer base jurídica para distinguir entre os nacionais britânicos que exerceram os seus direitos ao abrigo do direito da União e os que não o fizeram. No plano jurídico, todos os nacionais britânicos eram cidadãos da União antes da saída do Reino Unido da União Europeia, independentemente do uso que possam ter feito desse estatuto. Qualquer questão de confiança legítima deve ser tratada com o Estado de que são nacionais, i.e. o Reino Unido.

77.      Tendo em conta o que precede, proponho que a resposta às terceira e quarta questões prejudiciais seja no sentido de que a Decisão 2020/135 relativa à celebração do Acordo de saída não é inválida na medida em que não confere o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais a nacionais britânicos residentes num Estado‑Membro e que não tenham a nacionalidade de nenhum Estado‑Membro.

V.      Conclusão

78.      À luz do que precede, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais do Tribunal judiciaire d'Auch (Tribunal Judicial de Auch, França) da seguinte forma:

1)      O artigo 50.° TUE e a Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020, relativa à celebração do Acordo de saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica têm por efeito fazer cessar, a partir da meia‑noite (HEC) de 31 de janeiro de 2020, a cidadania da União dos nacionais britânicos, incluindo dos que tenham exercido, antes do termo do período de transição, os seus direitos de livre circulação e a sua liberdade de estabelecimento no território de outro Estado‑Membro.

2)      As disposições da Decisão 2020/135 e do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia não permitem que os nacionais britânicos conservem, sem exceção, os direitos de cidadania da União de que gozavam antes da saída do Reino Unido da União Europeia em 31 de janeiro de 2020.

3)      A Decisão 2020/135 do Conselho não é inválida na medida em que não confere o direito de voto e de elegibilidade nas eleições municipais a nacionais britânicos residentes num Estado‑Membro e que não tenham a nacionalidade de nenhum Estado‑Membro.


1      Língua original: inglês.


2      JO 2020, L 29, p. 1.


3      JO 2019, C 384, p. 1.


4      Acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann (C-135/08, EU:C:2010:104).


5      Acórdão de 12 de março de 2019, Tjebbes e o. (C-221/17, EU:C:2019:189).


6      Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Wiener Landesregierung e o. (Revogação das garantias de naturalizar) (C-118/20, EU:C:2022:34).


7      Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann (C-135/08, EU:C:2010:104, n.os 39 e 41), de 12 de março de 2019, Tjebbes e o. (C-221/17, EU:C:2019:189, n.° 30), de 14 de dezembro de 2021, V.М.А. (C-490/20, EU:C:2021:1008, n.° 38) e de 18 de janeiro de 2022, Wiener Landesregierung e o. (Revogação das garantias de naturalizar) (C-118/20, EU:C:2022:34, n.° 37).


8      Acórdão de 2 de março de 2010, Rottmann (C-135/08, EU:C:2010:104).


9      Ibid., n.os 26 a 29.


10      Ibid., n.° 39.


11      Ibid., n.° 41.


12      Ibid., n.° 42.


13      Ibid., n.os 42 e 59.


14      Acórdão de 12 de março de 2019, Tjebbes e o. (C-221/17, EU:C:2019:189).


15      Ibid., n.° 32).


16      Ibid., n.° 35.


17      Ibid., n.° 39.


18      Ibid., n.os 40 a 46.


19      Acórdão de 18 de janeiro de 2022 (C-118/20, EU:C:2022:34).


20      Ibid., n.os 13 e 14.


21      Ibid., n.os 15 a 17.


22      Ibid., n.° 33.


23      Ibid., n.° 51.


24      Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C-621/18, EU:C:2018:999, n.° 50).


25      Ibid., n.° 68.


26      Despacho de 19 de março de 2019, Shindler e o./Conselho (C-755/18 P, não publicado, EU:C:2019:221, n.° 31).


27      Acórdão do Tribunal Internacional de Justiça de 6 de abril de 1955, Processo Nottebohm (Liechtenstein/Guatemala), Coletânea de Jurisprudência, Pareceres Consultivos e Despachos 1955, p. 4.


28      Acórdãos de 14 de novembro de 2017, Lounes (C-165/16, EU:C:2017:862, n.° 56), e de 18 de janeiro de 2022, Wiener Landesregierung e o. (Revogação das garantias de naturalizar) (C-118/20, EU:C:2022:34, n.° 42).


29      Conclusões do advogado-geral M. Poiares Maduro em Rottmann (C-135/08, EU:C:2009:588).


30      Conclusões do advogado-geral M. Poiares Maduro em Rottmann (C-135/08, EU:C:2009:588).


31      Acórdão de 2 de março de 2010 (C-135/08, EU:C:2010:104).


32      Acórdão de 12 de março de 2019 (C-221/17, EU:C:2019:189).


33      Acórdão de 2 de março de 2010 (C-135/08, EU:C:2010:104).


34      Acórdão de 12 de março de 2019 (C-221/17, EU:C:2019:189).


35      Acórdãos de 2 de março de 2010, Rottmann (C-135/08, EU:C:2010:104, n.° 55) e de 12 de março de 2019, Tjebbes e o. (C-221/17, EU:C:2019:189, n.° 41).


36      Acórdão de 2 de março de 2010 (C-135/08, EU:C:2010:104).


37      Acórdão de 12 de março de 2019 (C-221/17, EU:C:2019:189).


38      Acórdão de 2 de março de 2010 (C-135/08, EU:C:2010:104).


39      Acórdão de 12 de março de 2019 (C-221/17, EU:C:2019:189).


40      Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Wiener Landesregierung e o. (Revogação das garantias de naturalizar) (C-118/20, EU:C:2022:34).


41      Acórdão de 2 de março de 2010 (C-135/08, EU:C:2010:104).


42      Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Wiener Landesregierung e o. (Revogação das garantias de naturalizar) (C-118/20, EU:C:2022:34).


43      V., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland (C-709/20, EU:C:2021:602, n.° 64).


44      Ibid., n.° 65.


45      Acórdão de 29 de outubro de 2020, Veselības ministrija (C-243/19, EU:C:2020:872, n.° 37).


46      Segundo a Comissão Europeia, vários Estados-Membros concedem este direito sob certas condições.


47      Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Western Sahara Campaign UK (C-266/16, EU:C:2018:118, n.° 48).


48      Ibid., n.os 50 e 51.


49      Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Swiss International Air Lines (C-272/15, EU:C:2016:993, n.° 24).


50      V., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 1999, Portugal/Conselho (C‑149/96, EU:C:1999:574, n.° 45).


51      Este documento encontra-se disponível em linha em: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/621848/60093_Cm9464_NSS_SDR_Web.pdf.