ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

8 de novembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Ambiente — Convenção de Aarhus — Acesso à justiça — Artigo 9.o, n.o 3 — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.o, primeiro parágrafo — Direito a uma proteção jurisdicional efetiva — Associação de proteção do ambiente — Legitimidade processual dessa associação perante um órgão jurisdicional nacional para impugnar a homologação CE concedida a determinados veículos — Regulamento (CE) n.o 715/2007 — Artigo 5.o, n.o 2, alínea a) — Veículos a motor — Motor diesel — Emissões de poluentes — Válvula para a recirculação dos gases de escape (válvula EGR) — Redução das emissões de óxido de azoto (NOx) limitada por uma “janela térmica” — Dispositivo manipulador — Autorização de instalação desse dispositivo quando a necessidade se justifica em termos de proteção do motor contra danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo — Estado da técnica»

No processo C‑873/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht (Tribunal Administrativo de Schleswig‑Holstein, Alemanha), por Decisão de 20 de novembro de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de novembro de 2019, no processo

Deutsche Umwelthilfe eV

contra

Bundesrepublik Deutschland,

sendo interveniente:

Volkswagen AG,

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Prechal, K. Jürimäe, C. Lycourgos, E. Regan, P. G. Xuereb (relator), presidentes de Secção, M. Ilešič, J.‑C. Bonichot, A. Kumin, N. Jääskinen, N. Wahl e I. Ziemele juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

em representação da Deutsche Umwelthilfe eV, por R. Klinger, Rechtsanwalt,

em representação da Bundesrepublik Deutschland, por F. Liebhart, na qualidade de agente,

em representação da Volkswagen AG, por B. Wolfers e R. B. A. Wollenschläger, Rechtsanwälte,

em representação da Comissão Europeia, por A. C. Becker, G. Gattinara e M. Huttunen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 3 de março de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção sobre acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, assinada em Aarhus (Dinamarca), em 25 de junho de 1998, e aprovada, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de fevereiro de 2005 (JO 2005, L 124, p. 1, a seguir «Convenção de Aarhus»), do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões de veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Deutsche Umwelthilfe eV, uma associação de proteção do ambiente, à Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha), representada pelo Kraftfahrt‑Bundesamt (Organismo Federal dos Veículos a Motor, Alemanha, a seguir «KBA»), a respeito da decisão pela qual este autorizou, para determinados veículos produzidos pela Volkswagen AG, a utilização de um software que reduz a recirculação dos gases poluentes em função da temperatura exterior.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

O décimo oitavo considerando da Convenção de Aarhus enuncia:

«Procurando garantir ao público, bem como às organizações, o acesso a mecanismos judiciais eficazes por forma a proteger os seus interesses legítimos e a garantir a aplicação da lei.»

4

O artigo 2.o desta convenção, sob a epígrafe «Definições», prevê, nos seus n.os 4 e 5:

«4.   “Público”: uma ou mais pessoas singulares ou coletivas, bem como as suas associações, organizações ou agrupamentos de acordo com a legislação ou práticas nacionais;

5.   “Público envolvido”: o público afetado ou suscetível de ser afetado pelo processo de tomada de decisões no domínio do ambiente ou interessado em tais decisões; para efeitos da presente definição, presumem‑se interessadas as Organizações Não Governamentais que promovam a proteção do ambiente e que satisfaçam os requisitos previstos no direito nacional.»

5

O artigo 9.o da referida Convenção, sob a epígrafe «Acesso à justiça», dispõe, nos seus n.os 3 e 4:

«3.   Além disso, e sem prejuízo dos processos de recurso referidos nos n.os 1 e 2 [deste artigo], cada Parte assegurará que os membros do público que satisfaçam os critérios estabelecidos no direito interno tenham acesso aos processos administrativos ou judiciais destinados a impugnar os atos e as omissões de particulares e de autoridades públicas que infrinjam o disposto no respetivo direito interno do domínio do ambiente.

4.   Além disso, e sem prejuízo do disposto no n.o 1, os processos referidos nos n.os 1, 2 e 3 deverão proporcionar soluções eficazes e adequadas, incluindo, se necessário, a reparação injuntiva do direito, ser justos, equitativos, céleres e não exageradamente dispendiosos. As decisões adotadas em aplicação do presente artigo serão apresentadas ou registadas por escrito. As decisões dos tribunais e, quando possível, de outras instâncias, serão acessíveis ao público.»

Direito da União

Regulamento (CE) n.o 1367/2006

6

O artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1367/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de setembro de 2006, relativo à aplicação das disposições da Convenção de Aarhus sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente às instituições e órgãos comunitários (JO 2006, L 264, p. 13), prevê:

«O presente regulamento tem por objetivo contribuir para a aplicação das obrigações decorrentes da [Convenção de Aarhus], estabelecendo regras destinadas a aplicar as disposições da Convenção às instituições e órgãos comunitários, nomeadamente:

[…]

d)

Concedendo acesso à justiça em matéria de ambiente a nível comunitário nas condições estabelecidas no presente regulamento.»

7

O artigo 2.o deste regulamento, sob a epígrafe «Definições», dispõe, no seu n.o 1, alínea f):

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

f)

“Legislação ambiental”, legislação comunitária que, independentemente do seu fundamento legal, contribua para o cumprimento dos objetivos de política comunitária em matéria de ambiente consagrados no Tratado: preservar, proteger e melhorar a qualidade do ambiente, proteger a saúde humana, utilizar prudente e racionalmente os recursos naturais e promover, no plano internacional, medidas destinadas a enfrentar os problemas ambientais à escala regional ou mundial.»

Diretiva‑Quadro

8

A Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (JO 2007, L 263, p. 1), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1060/2008 da Comissão, de 7 de outubro de 2008 (JO 2008, L 292, p. 1) (a seguir «Diretiva‑Quadro»), foi revogada pelo Regulamento (UE) 2018/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativo à homologação e à fiscalização do mercado dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a esses veículos, que alterou os Regulamentos (CE) n.o 715/2007 e (CE) n.o 595/2009 e revogou a Diretiva 2007/46/CE (JO 2018, L 151, p. 1), com efeitos a partir de 1 de setembro de 2020. No entanto, tendo em conta a data dos factos do litígio no processo principal, esta diretiva‑quadro continua a ser‑lhe aplicável.

9

O artigo 1.o da Diretiva‑Quadro previa:

«A presente diretiva estabelece um quadro harmonizado que contém as disposições administrativas e os requisitos técnicos gerais aplicáveis à homologação de todos os veículos novos que sejam abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como à homologação de sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a esses veículos, no intuito de facilitar a respetiva matrícula, venda e entrada em circulação na Comunidade.

[…]

Os requisitos técnicos específicos relativos ao fabrico e ao funcionamento dos veículos devem ser estabelecidos em aplicação da presente diretiva em atos regulamentares, cuja lista exaustiva consta do anexo IV.»

10

O artigo 3.o, ponto 5, desta diretiva‑quadro dispunha:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva e nos atos regulamentares enumerados no anexo IV, salvo disposição em contrário neles prevista, entende‑se por:

[…]

5.

“Homologação CE”, o procedimento através do qual um Estado‑Membro certifica que um modelo de veículo ou tipo de sistema, de componente ou de unidade técnica cumpre as disposições administrativas e os requisitos técnicos aplicáveis constantes da presente diretiva e dos atos regulamentares enumerados nos anexos IV ou XI.»

11

O anexo IV da referida diretiva‑quadro, intitulado «Requisitos para efeitos de homologação CE de veículos», referia‑se, na parte I, intitulada «Atos regulamentares para efeitos de homologação CE de veículos produzidos em séries não‑limitadas», ao Regulamento n.o 715/2007 no que respeita às «[e]missões (Euro 5 e 6) de veículos ligeiros/acesso à informação».

Regulamento n.o 715/2007

12

Nos termos dos considerandos 1, 6, 7 e 12 do Regulamento n.o 715/2007:

«(1)

[…] Os requisitos técnicos para a homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões deverão […] ser harmonizados a fim de evitar que os Estados‑Membros apliquem requisitos divergentes e de assegurar um nível elevado de proteção do ambiente.

[…]

(6)

A fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores‑limite de poluição atmosférica, afigura‑se, sobretudo, necessária uma redução considerável das emissões [de NOx] dos veículos equipados com motor diesel. […]

(7)

Ao estabelecer normas para as emissões, é importante ter em conta as repercussões nos mercados e na competitividade dos fabricantes, os custos diretos e indiretos impostos às empresas e os benefícios que se obtêm em termos de incentivo à inovação, melhoria da qualidade do ar, redução das despesas com a saúde e aumento da esperança de vida, bem como as implicações para o balanço total das emissões de [dióxido de carbono (CO2)].

[…]

(12)

Deverão ser prosseguidos os esforços tendentes à aplicação de limites mais estritos às emissões, incluindo a redução das emissões de [CO2], bem como à garantia de que os limites estejam relacionados com o desempenho real dos veículos durante a sua utilização.»

13

O artigo 1.o, n.o 1, deste regulamento prevê:

«O presente regulamento estabelece requisitos técnicos comuns para a homologação de veículos a motor (“veículos”) e de peças de substituição, tais como dispositivos de controlo da poluição de substituição, no que respeita às respetivas emissões.»

14

O artigo 3.o, ponto 10, do referido regulamento dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento e das respetivas medidas de execução, entende‑se por:

[…]

10)

“Dispositivo manipulador” (defeat device), qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo.»

15

O artigo 4.o, n.os 1 e 2, do mesmo regulamento enuncia:

«1.   Os fabricantes devem demonstrar que todos os novos veículos vendidos, matriculados ou postos em circulação na Comunidade estão homologados em conformidade com o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução. Os fabricantes devem igualmente demonstrar que todos os novos dispositivos de controlo da poluição de substituição sujeitos a homologação e que sejam vendidos ou entrem em circulação na Comunidade estão homologados em conformidade com o disposto no presente regulamento e respetivas medidas de execução.

Estas obrigações abrangem a observância dos limites de emissão definidos no anexo I e das medidas de execução referidas no artigo 5.o

2.   Os fabricantes devem garantir que sejam respeitados os procedimentos de homologação destinados a verificar a conformidade da produção, a durabilidade dos dispositivos de controlo da poluição e a conformidade em circulação.

Além disso, as medidas técnicas adotadas pelos fabricantes deverão ser adequadas para garantir que as emissões do tubo de escape e resultantes da evaporação sejam eficazmente limitadas, nos termos do presente regulamento, ao longo da vida normal dos veículos e em condições de uso normais. […]

[…]»

16

O artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007 prevê:

«1.   O fabricante deve equipar os veículos de forma a que os componentes suscetíveis de afetar as emissões sejam concebidos, construídos e montados de modo a permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução.

2.   A utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. A proibição não se aplica:

a)

Se se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo;

[…]»

17

O anexo I deste regulamento, sob a epígrafe «Limites de emissão», prevê, nomeadamente, os valores‑limite de emissão de NOx.

Direito alemão

18

O § 42 do Verwaltungsgerichtsordnung (Código do Procedimento Administrativo), de 21 de janeiro de 1960 (BGBl. 1960 I, p. 17), na versão aplicável ao litígio no processo principal (BGBl. 1991 I, p. 686) (a seguir «VwGO»), estabelece as condições de admissibilidade dos recursos contenciosos, nos seguintes termos:

«1.   Pode ser pedida, em sede de recurso, a anulação de um ato administrativo (recurso de anulação), bem como a condenação na prática de um ato administrativo recusado ou omitido (recurso visando a prática de um ato omitido ou praticado com desrespeito da lei).

2.   Salvo disposição legal em contrário, o recurso só é admissível quando o recorrente alegar ter sido lesado nos seus direitos através do ato administrativo ou da recusa ou omissão de um ato administrativo ou de outra prestação.»

19

O § 113, n.o 1, primeiro período, do VwGO prevê:

«O tribunal anula o ato administrativo e a eventual decisão que tenha incidido sobre a reclamação sempre que esse ato administrativo seja ilegal e o recorrente seja, por essa razão, lesado nos seus direitos.»

20

O § 1, n.o 1, da Gesetz über ergänzende Vorschriften zu Rechtsbehelfen in Umweltangelegenheiten nach der EG‑Richtlinie 2003/35/EG (Umwelt‑Rechtsbehelfsgesetz — UmwRG) (Lei complementar relativa aos recursos em matéria de ambiente de acordo com a Diretiva 2003/35/CE), de 7 de dezembro de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 2816), na versão aplicável ao litígio no processo principal (BGBl. 2017 I, p. 3290) (a seguir «UmwRG»), dispõe:

«A presente lei é aplicável aos recursos das seguintes decisões:

[…]

5)

atos administrativos ou contratos de direito público que autorizem projetos diferentes dos referidos nos pontos 1 a 2b, em aplicação das disposições relativas ao meio ambiente do direito federal, do direito do Land ou de atos diretamente aplicáveis do direito da União, […]

A presente lei é igualmente aplicável quando, contrariamente às disposições em vigor, não tiver sido adotada a decisão prevista no primeiro período. […]

[…]»

21

O § 2, n.o 1, da UmwRG enuncia:

«Uma associação nacional ou estrangeira homologada em conformidade com o § 3 pode, de acordo com o VwGO, sem que seja necessário invocar a violação dos seus próprios direitos, interpor recurso da decisão prevista no § 1, n.o 1, primeiro período, ou da omissão dessa decisão, sempre que a referida associação

1)

alegue que a decisão prevista no § 1, n.o 1, primeiro período, ou a omissão dessa decisão, é contrária a disposições que possam ser pertinentes para efeitos de adoção da referida decisão;

2)

alegue que a sua atividade estatutária de contribuição para a realização dos objetivos de proteção ambiental é afetada pela decisão prevista no § 1, n.o 1, primeiro período, ou pela omissão dessa decisão, […]

[…]

Em caso de recurso de uma decisão prevista no § 1, n.o 1, primeiro período, pontos 2a a 6, ou da omissão dessa decisão, a associação deve invocar igualmente a violação de disposições relativas ao meio ambiente.»

22

O § 3 da UmwRG estabelece os requisitos que as associações nacionais ou estrangeiras devem preencher para serem homologadas e poderem interpor recursos em aplicação desta lei, bem como o processo de homologação. Segundo o § 3, n.o 1, da UmwRG, tal associação é homologada, mediante pedido, quando, em substância, promova, em conformidade com os seus estatutos, de maneira ideal e não temporária, principalmente os objetivos de proteção do ambiente, exista há pelo menos três anos na data da aprovação e tenha estado ativa durante esse período, ofereça a garantia de uma execução adequada das suas tarefas, nomeadamente de uma participação adequada nos procedimentos decisórios das autoridades, prossiga objetivos de interesse geral e permita que qualquer pessoa que apoie os seus objetivos se torne seu membro.

23

Nos termos do § 25, n.o 2, do Verordnung über die EG‑Genehmigung für Kraftfahrzeuge und ihre Anhänger sowie für Systeme, Bauteile und selbstständige technische Einheiten für diese Fahrzeuge (EG‑Fahrzeuggenehmigungsverordnung — EG‑FGV) [Regulamento Relativo à Homologação CE dos Veículos a Motor e seus Reboques e dos Sistemas, Componentes e Unidades Técnicas destinados a serem Utilizados nesses Veículos (Regulamento Relativo à Homologação CE dos Veículos a Motor)], de 3 de fevereiro de 2011 (BGBl. 2011 I, p. 126), na versão aplicável ao litígio no processo principal:

«1.   Se [o KBA] verificar que veículos, sistemas, componentes ou unidades técnicas não estão em conformidade com o modelo homologado, deve tomar as medidas necessárias ao abrigo das Diretivas [2007/46], 2002/24/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de março de 2002, relativa à homologação dos veículos a motor de duas ou três rodas e que revoga a Diretiva 92/61/CEE do Conselho (JO 2002, L 124, p. 1)] e 2003/37/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de maio de 2003, relativa à homologação de tratores agrícolas ou florestais, seus reboques e máquinas intermutáveis rebocadas, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destes veículos e que revoga a Diretiva 74/150/CEE (JO 2003, L 171, p. 1)], aplicáveis consoante o modelo em causa, para assegurar a conformidade da produção com o modelo homologado.

2.   A fim de suprir as deficiências surgidas e garantir a conformidade dos veículos já colocados em circulação, dos componentes ou das unidades técnicas, o [KBA] pode aprovar posteriormente disposições complementares.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

24

A Volkswagen é um fabricante de automóveis que comercializava veículos a motor, nomeadamente os veículos do modelo VW Golf Plus TDI, que estavam equipados com um motor diesel do tipo EA 189 da geração Euro 5. Estes veículos dispunham de uma válvula de recirculação dos gases de escape (a seguir «válvula EGR»), que é uma das tecnologias utilizadas pelos fabricantes de automóveis, entre os quais a Volkswagen, para controlar e reduzir as emissões de NOx.

25

De acordo com as informações apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses veículos dispunham, originalmente, de um software integrado na calculadora de controlo do motor que acionava o sistema de recirculação dos gases de escape segundo dois modos, a saber, um modo 0, que se ativava durante a circulação desses veículos em estrada, e um modo 1, que funcionava durante o teste de homologação relativo às emissões de poluentes, denominado «New European Driving Cycle» (NEDC), efetuado em laboratório. Quando se aplicava o modo 0, a taxa de recirculação dos gases de escape diminuía. Em condições de utilização normais, os veículos em causa estavam quase exclusivamente em modo 0 e não respeitavam os valores‑limite de emissão de NOx previstos pelo Regulamento n.o 715/2007.

26

No âmbito do procedimento de homologação CE desses veículos, a Volkswagen não declarou ao KBA a presença desse software.

27

Em 15 de outubro de 2015, o KBA adotou uma decisão, nos termos do artigo 25.o, n.o 2, do Regulamento Relativo à Homologação CE dos Veículos a Motor e seus Reboques e dos Sistemas, Componentes e Unidades Técnicas destinados a serem Utilizados nesses Veículos (Regulamento Relativo à Homologação CE dos Veículos a Motor), na versão aplicável ao litígio no processo principal, através da qual considerou que esse software constituía um «dispositivo manipulador», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, que não era conforme com o artigo 5.o deste regulamento e ordenou à Volkswagen que removesse o dispositivo e adotasse as medidas necessárias para garantir a conformidade dos referidos veículos com a regulamentação nacional em causa e com a regulamentação da União Europeia.

28

Na sequência dessa decisão, a Volkswagen procedeu à atualização do referido software. Essa atualização tinha por efeito parametrizar a válvula EGR a fim de regular a taxa de recirculação dos gases de escape, de tal modo que essa taxa de recirculação fosse de 0 % quando a temperatura exterior era inferior a -9 graus Celsius, de 85 % quando esta se situava entre -9 e 11 graus Celsius, e aumentasse para além de 11 graus Celsius para estar operacional a 100 % unicamente a uma temperatura exterior superior a 15 graus Celsius. Assim, a purificação dos gases de escape por este sistema de recirculação só era plenamente eficaz se a temperatura exterior fosse superior a 15 graus Celsius (a seguir «janela térmica»).

29

Por Decisão de 20 de junho de 2016 (a seguir «decisão controvertida»), o KBA autorizou o software em causa no processo principal. A este respeito, considerou que os dispositivos manipuladores ainda presentes nos veículos em causa (a seguir «veículos em causa no processo principal») eram lícitos.

30

Em 15 de novembro de 2016, a Deutsche Umwelthilfe, uma associação com capacidade judiciária nos termos do § 3 da UmwRG, interpôs um recurso administrativo da decisão controvertida, o qual, todavia, ainda não foi objeto de uma decisão.

31

Em 24 de abril de 2018, a Deutsche Umwelthilfe interpôs recurso para o Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht (Tribunal Administrativo de Schleswig‑Holstein, Alemanha), o órgão jurisdicional de reenvio, com vista à anulação da decisão controvertida. Sustenta que os veículos em causa no processo principal continuavam a estar equipados com um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, uma vez que esse dispositivo é ativado quando são alcançadas as temperaturas médias verificadas na Alemanha. Além disso, considera que os fabricantes de automóveis têm a possibilidade de conceber motores que não exigem a redução, por razões técnicas, do desempenho dos sistemas de controlo das emissões a temperaturas médias e que, consequentemente, funcionariam em condições normais de utilização.

32

A República Federal da Alemanha, recorrida no processo principal, alega, por um lado, que a Deutsche Umwelthilfe não tem legitimidade processual para impugnar a decisão controvertida e que, por conseguinte, o seu recurso é inadmissível. Por outro lado, alega que a janela térmica de que dispõem os veículos em causa no processo principal após a atualização do software em causa é compatível com o direito da União.

33

Quanto à admissibilidade do recurso no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio considera, em primeiro lugar, que a Deutsche Umwelthilfe não tem legitimidade processual ao abrigo do § 42, n.o 2, do VwGO, nos termos do qual, salvo disposição em contrário da lei, o recurso só é admissível se o recorrente alegar que foi lesado nos seus direitos pelo ato administrativo em causa. Esta disposição expressa, assim, o facto de o sistema de recursos individuais previsto pelo VwGO se basear nos direitos subjetivos. Ora, não parece que o litígio no processo principal diga respeito a um direito subjetivo que tenha sido afetado pela decisão controvertida. Com efeito, a proibição de utilizar dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, enunciada no artigo 5.o, n.o 2, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007 e invocada pela Deutsche Umwelhilfe, não confere um direito subjetivo a uma pessoa singular, uma vez que esta disposição não visa proteger cidadãos considerados individualmente.

34

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que esta associação não pode basear a sua legitimidade processual no § 2, n.o 1, da UmwRG, em conjugação com o § 1, n.o 1, da mesma lei, que prevê uma derrogação legal à exigência de um direito subjetivo, na aceção do § 42, n.o 2, primeira parte, do VwGO. Este órgão jurisdicional expõe, a esse respeito, que só as decisões enumeradas no referido § 1, n.o 1, são suscetíveis de recurso por uma associação de proteção do ambiente em aplicação da UmwRG. Dessas decisões, apenas são pertinentes, no caso em apreço, as referidas no primeiro parágrafo, ponto 5, desta disposição, a saber, os «atos administrativos ou contratos de direito público que autorizem projetos […] em aplicação das disposições relativas ao meio ambiente do direito federal, do direito do Land ou de atos diretamente aplicáveis do direito da União».

35

Ora, a decisão controvertida não constitui uma decisão, na aceção do § 1, n.o 1, ponto 5, da UmwRG, uma vez que, através desta, não foi autorizado um «projeto» mas um «produto». Com efeito, o conceito de «projeto», na aceção desta disposição, baseia‑se no direito do urbanismo e do ordenamento do território e foi definido com base na Diretiva 85/337/CE do Conselho, de 27 de junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projetos públicos e privados no ambiente (JO 1985, L 175, p. 40), que prevê, no seu artigo 1.o, n.o 2, que o termo «projeto» designa a «a realização de obras de construção ou de outras instalações ou obras» e «outras intervenções no meio natural ou na paisagem, incluindo as intervenções destinadas à exploração dos recursos do solo». A este respeito, resulta da regulamentação nacional em causa no processo principal que o referido conceito se refere unicamente a instalações fixas ou a medidas que constituam uma intervenção direta no meio natural ou na paisagem. Por conseguinte, a homologação CE dos veículos ligeiros de passageiros e a alteração dessa homologação CE que é objeto da decisão controvertida não podem ser consideradas como a autorização de um «projeto», na aceção do direito nacional, dado que não dizem respeito a uma instalação fixa e não implicam nenhuma intervenção direta no meio natural ou na paisagem.

36

Além disso, as disposições da UmwRG não podem ser aplicadas por analogia, uma vez que, nos debates que conduziram à alteração da UmwRG, ocorrida em 2017, especificou‑se expressamente que esta não se refere ao domínio dos produtos, incluindo no que respeita aos veículos a motor.

37

Em terceiro lugar, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a Deutsche Umwelthilfe também não pode basear a sua legitimidade processual no artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, uma vez que, como o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation (C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 45), esta disposição, em si, não tem efeito direto. Por conseguinte, este artigo 9.o não constitui uma derrogação legal à exigência de um direito subjetivo, na aceção do § 42, n.o 2, primeira parte, do VwGO.

38

Nestas condições, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a admissibilidade do recurso no processo principal depende de a Deutsche Umwelthilfe poder basear a sua legitimidade processual diretamente no direito da União. A este respeito, salienta que, à luz do Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation (C‑664/15 EU:C:2017:987, n.o 45), a legitimidade processual da Deutsche Umwelthilfe poderia resultar da aplicação conjugada do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus e do artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta.

39

Este órgão jurisdicional indica que, tendo em conta as divergências de jurisprudência existentes entre os órgãos jurisdicionais nacionais quanto às consequências a retirar desse acórdão, é necessário saber se há que interpretar o artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, em conjugação com o artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, no sentido de que uma associação de proteção do ambiente, para além das possibilidades de recurso já previstas pela UmwRG, tem a possibilidade de impugnar a autorização administrativa de um produto, como a que está em causa no processo principal, caso o recurso interposto por essa associação se destine a garantir o cumprimento das disposições do direito da União em matéria de ambiente que não conferem nenhum direito subjetivo.

40

O órgão jurisdicional de reenvio especifica que as suas dúvidas se referem à interpretação do conceito de «critérios previstos pelo direito interno», na aceção do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus. Com efeito, por um lado, poder‑se‑ia interpretar este conceito no sentido de que abrange unicamente critérios que servem para delimitar o círculo dos titulares de um direito de recurso e de que, por conseguinte, a margem de manobra dos Estados‑Membros se limita apenas à questão de saber a que associações de proteção do ambiente pretendem conferir o direito de defender o interesse geral em matéria de ambiente. Se for seguida esta interpretação, a Deutsche Umwelthilfe dispõe, no âmbito do litígio no processo principal, de legitimidade processual, dado que o legislador alemão estabeleceu esses critérios no § 3 da UmwRG e que a Deutsche Umwelthilfe foi homologada em conformidade com esta disposição.

41

Por outro lado, é possível interpretar o referido conceito no sentido de que os Estados‑Membros têm a faculdade de determinar critérios igualmente em relação ao objeto do recurso e, assim, subtrair determinadas decisões administrativas a qualquer fiscalização judicial por iniciativa das associações de proteção do ambiente. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, tal limitação da legitimidade processual destas associações a determinadas decisões, nomeadamente as que têm consequências graves para o ambiente, pode ser justificada devido ao grande número de decisões administrativas que apresentam uma ligação com o ambiente. No que respeita, mais especificamente, às autorizações de um produto, este órgão jurisdicional salienta que é certo que não se pode considerar que estas nunca têm grande importância para o ambiente. Todavia, tendo em conta a multiplicidade de autorizações individuais de produtos, considerações práticas militam a favor de que os Estados‑Membros, através de uma análise generalista, tenham a possibilidade de excluir determinadas decisões individuais da incerteza de um recurso interposto por terceiros, como as associações de proteção do ambiente.

42

Na hipótese de o Tribunal de Justiça considerar que uma associação de proteção do ambiente tem legitimidade processual para impugnar a decisão controvertida, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta como deve ser interpretado o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007.

43

O órgão jurisdicional de reenvio considera que a janela térmica em causa no processo principal constitui um dispositivo manipulador, na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007. Considera que, ainda que o conceito de «circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo», que figura nesta disposição, não esteja definido no Regulamento n.o 715/2007, deveria entender‑se, tendo em conta os objetivos deste regulamento e nomeadamente os seus considerandos 4 e 6, que só podem ser consideradas condições normais de funcionamento as condições de circulação real na estrada. A este respeito, considera que o objetivo de redução das emissões de NOx só pode ser alcançado se essas emissões forem efetivamente reduzidas no momento da utilização real do veículo e não apenas em condições artificiais. Recorda que, na Europa, as temperaturas inferiores a 15 graus Celsius fazem parte das «condições normais» que «[é] razoável esperar», na aceção da referida disposição. Com efeito, para 2018, a temperatura média anual na Alemanha foi de 10,4 graus Celsius. Assim, a taxa de recirculação dos gases de escape dos veículos em causa no processo principal já estaria reduzida e o sistema de controlo das emissões parcialmente desativado quando as temperaturas se situariam inteiramente na média.

44

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, todavia, se o conceito de «necessidade» do dispositivo manipulador, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007, deve ser interpretado à luz do estado atual da técnica para determinar se um dispositivo manipulador é efetivamente necessário em termos de proteção do motor contra danos ou acidentes e para o funcionamento seguro do veículo. Além disso, pergunta‑se se há que ter em conta outras circunstâncias, como os custos para os construtores e o impacto na competitividade dos mesmos.

45

Nestas condições, o Schleswig‑Holsteinisches Verwaltungsgericht (Tribunal Administrativo de Schleswig‑Holstein) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 9.o, n.o 3, da [Convenção de Aarhus], lido em conjugação com o artigo 47.o da [Carta], ser interpretado no sentido de que, em princípio, as associações ambientalistas devem ter a possibilidade de impugnar judicialmente uma decisão que aprova a produção de veículos ligeiros de passageiros a gasóleo com dispositivos manipuladores — possivelmente em violação do artigo 5.o, n.o 2, do [Regulamento n.o 715/2007]?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a)

Deve o artigo 5.o, n.o 2, do [Regulamento n.o 715/2007], ser interpretado no sentido de que a necessidade do dispositivo manipulador para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo é determinada, principalmente, pelo estado atual da técnica, no sentido do que é tecnicamente viável no momento da concessão da homologação CE?

b)

Além do estado da técnica, devem ser tidas em conta outras circunstâncias que possam conduzir à admissibilidade de um dispositivo manipulador, apesar de este, à luz do estado atual da técnica, não ser por si só “necessário”, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), segunda parte, do [Regulamento n.o 715/2007]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

46

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, em conjugação com o artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma associação de proteção do ambiente, com capacidade judiciária ao abrigo do direito nacional, não possa impugnar num órgão jurisdicional nacional uma decisão administrativa que conceda ou altere uma homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

47

Resulta do pedido de decisão prejudicial que a primeira questão é motivada pelo facto de, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional aplicável não conferir à Deutsche Umwelthilfe legitimidade processual para impugnar uma decisão administrativa que concede ou altera uma homologação CE, como a que está em causa no processo principal.

48

A título preliminar, importa recordar que o Tribunal de Justiça é competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação da Convenção de Aarhus, assinada pela Comunidade e em seguida aprovada pela Decisão 2005/370, cujas disposições passaram a fazer parte integrante da ordem jurídica da União (Acórdãos de 8 de março de 2011, Lesoochranárske zoskupenie, C‑240/09, EU:C:2011:125, n.o 30, e de 15 de março de 2018, North East Pylon Pressure Campaign e Sheehy, C‑470/16, EU:C:2018:185, n.o 46 e jurisprudência referida).

49

Nos termos do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, sem prejuízo dos processos de recurso referidos nos n.os 1 e 2 deste artigo 9.o, cada parte assegurará que os membros do público que satisfaçam os critérios estabelecidos no direito interno tenham acesso aos processos administrativos ou judiciais destinados a impugnar os atos e as omissões de particulares e de autoridades públicas que infrinjam o disposto no respetivo direito interno do domínio do ambiente.

50

Em primeiro lugar, há que observar que uma decisão administrativa que conceda ou altere uma homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007 é abrangida pelo âmbito de aplicação material do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, uma vez que constitui um «ato» de uma autoridade pública que se alega infringir o disposto no «respetivo direito interno do domínio do ambiente».

51

Com efeito, importa, por um lado, recordar que o Tribunal de Justiça declarou, nos Acórdãos de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel) (C‑693/18, EU:C:2020:1040, n.os 67, 86 e 87), de 14 de julho de 2022, GSMB Invest (C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 43), e de 14 de julho de 2022, Volkswagen (C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 50), que o objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 715/2007 consiste, como resulta dos seus considerandos 1 e 6, em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e, mais especificamente, em reduzir consideravelmente as emissões de NOx dos veículos a motor diesel a fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores‑limite de poluição atmosférica.

52

Ora, a constatação de que o Regulamento n.o 715/2007, e nomeadamente o seu artigo 5.o, n.o 2, tem esse objetivo ambiental e faz, portanto, parte do «direito […] do ambiente», na aceção do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, não é, contrariamente ao que sustenta o KBA, de modo algum, infirmada pela circunstância de este regulamento ter sido adotado com base no artigo 95.o CE, atual artigo 114.o TFUE, que diz respeito às medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno.

53

A este respeito, há que recordar que o artigo 114.o, n.o 3, TFUE dispõe que a Comissão, nas suas propostas de medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros previstas em matéria de proteção do ambiente, basear‑se‑á num nível de proteção elevado, tendo nomeadamente em conta qualquer nova evolução baseada em dados científicos. Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral no n.o 50 das suas conclusões, o facto de o Regulamento n.o 715/2007 não ter sido adotado com base num fundamento jurídico específico relativo ao ambiente, como o artigo 175.o CE, atual artigo 192.o TFUE, não é suscetível de excluir o objetivo ambiental deste regulamento nem o facto de pertencer ao «direito […] do ambiente».

54

Esta constatação é corroborada, primeiro, pelo Regulamento n.o 1367/2006 que, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1, alínea d), tem por objetivo contribuir para a aplicação das obrigações decorrentes da Convenção de Aarhus, estabelecendo regras destinadas a aplicá‑la às instituições e órgãos da União, nomeadamente, concedendo acesso à justiça em matéria de ambiente a nível da União. Assim, o artigo 2.o, n.o 1, alínea f), deste regulamento enuncia que a legislação ambiental para efeitos do mesmo se define como qualquer legislação da União que, «independentemente do seu fundamento legal», contribua para o cumprimento dos objetivos de política da União em matéria de ambiente consagrados no Tratado FUE, incluindo a preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente e a proteção da saúde humana.

55

Segundo, a referida constatação é confirmada pelo guia de aplicação da Convenção de Aarhus, ou seja, o documento publicado pela Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas, intitulado «A Convenção de Aarhus, Guia de Aplicação» (segunda edição, 2014), que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, pode ser considerado um documento explicativo, eventualmente suscetível de ser tomado em consideração, entre outros elementos pertinentes, para efeitos da interpretação desta convenção, mesmo que as análises que contém não revistam caráter vinculativo e não tenham o alcance normativo associado às disposições da referida convenção [Acórdão de 20 de janeiro de 2021, Land Baden‑Württemberg (Comunicações internas), C‑619/19, EU:C:2021:35, n.o 51 e jurisprudência referida].

56

Com efeito, este guia confirma a aceção ampla que deve ser dada à expressão «o disposto no respetivo direito interno do domínio do ambiente», conforme figura no artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, na medida em que, na página 197 do referido guia, se indica que «as legislações nacionais em matéria de ambiente não se limitam aos direitos de informação ou à participação do público garantidos pela convenção, nem aos textos jurídicos que mencionam o ambiente na epígrafe do seu título ou rubrica. A questão determinante é antes a de saber se a disposição em questão tem de um modo ou de outro uma relação com o ambiente. Assim, os atos e as omissões que podem violar disposições relativas, nomeadamente, ao urbanismo, às taxas ambientais, ao controlo dos produtos químicos ou dos resíduos, à exploração dos recursos naturais e à poluição por navios são igualmente abrangidos pelo âmbito do n.o 3, quer as disposições constem ou não da legislação relativa ao ordenamento do território, às leis fiscais ou às leis marítimas».

57

Além disso, o caráter pretensamente técnico do artigo 5.o, n.o 2, primeiro período, do Regulamento n.o 715/2007, que prevê que é proibida a utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, em nada altera o facto de esta disposição visar precisamente, através dessa proibição, limitar as emissões de gases poluentes e contribuir assim para o objetivo de proteção do ambiente, prosseguido por este regulamento.

58

Por outro lado, deve considerar‑se que o artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007 enquanto disposição do direito do ambiente que, além disso, é diretamente aplicável em todos os Estados‑Membros, nos termos do artigo 288.o, segundo parágrafo, TFUE, faz parte do «direito interno» na aceção do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus.

59

Em segundo lugar, importa observar que uma associação de proteção do ambiente com capacidade judiciária é abrangida pelo âmbito de aplicação pessoal do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus. A este respeito, há que recordar que, para ser titular dos direitos previstos por esta disposição, um recorrente deve nomeadamente ser «membro do público» e preencher «os critérios estabelecidos [pelo] direito interno».

60

Nos termos do artigo 2.o, n.o 4, da Convenção de Aarhus, o termo «[p]úblico» define uma ou mais pessoas singulares ou coletivas, bem como as suas associações, organizações ou agrupamentos de acordo com a legislação ou práticas nacionais. Resulta, assim, deste artigo 2.o, n.o 4, e do artigo 9.o, n.o 3, desta convenção que as partes podem prever no seu direito interno critérios que uma associação de proteção do ambiente deve satisfazer para poder gozar dos direitos previstos nesta última disposição.

61

Ora, resulta do pedido de decisão prejudicial que, no direito alemão, estes critérios estão estabelecidos no § 3, n.o 1, da UmwRG e que a Deutsche Umwelthilfe, que, nos termos dos seus estatutos, tem por objeto contribuir para a proteção da natureza e do ambiente, bem como para a proteção dos consumidores na medida em que diz respeito ao ambiente e à saúde, preenche os referidos critérios e foi, com efeito, aprovada enquanto associação de proteção do ambiente com capacidade judiciária, em conformidade com o § 3 da UmwRG.

62

Além disso, há que observar que tal associação faz igualmente parte do «[p]úblico envolvido», na aceção do artigo 2.o, n.o 5, da Convenção de Aarhus, que designa o público afetado ou suscetível de ser afetado pelo processo de tomada de decisões no domínio do ambiente ou interessado em tais decisões. Assim, nos termos desta última disposição, presumem‑se interessadas as organizações não governamentais que promovam a proteção do ambiente e que satisfaçam os requisitos previstos no direito interno.

63

Em terceiro lugar, quanto às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio que visam, mais particularmente, determinar se o conceito de «critérios estabelecidos no direito interno», na aceção do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, permitem às partes nesta convenção prever esses critérios não só relativamente ao círculo dos titulares de um direito de recurso mas também quanto ao objeto do recurso, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou que decorre desta disposição e designadamente do facto de, nos termos desta, os recursos aí referidos poderem ser sujeitos a «critérios», que os Estados‑Membros podem, no âmbito do poder de apreciação que lhes é conferido a este respeito, fixar regras de direito processual relativas aos requisitos que devem estar cumpridos para interpor esses recursos (Acórdãos de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 86, e de 14 de janeiro de 2021, Stichting Varkens in Nood e o., C‑826/18, EU:C:2021:7, n.o 49).

64

Todavia, primeiro, importa salientar que, nos próprios termos do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, esses critérios dizem respeito à determinação do círculo de titulares de um direito de recurso, e não à determinação do objeto do recurso na medida em que este visa a violação do disposto no respetivo direito interno do domínio do ambiente. Daqui resulta que os Estados‑Membros não podem reduzir o âmbito de aplicação material desse artigo 9.o, n.o 3, ao excluírem do objeto do recurso certas categorias de disposições do respetivo direito interno do domínio do ambiente.

65

Segundo, um Estado‑Membro, quando define as regras de direito processual aplicáveis aos recursos previstos no artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus e relativos ao exercício dos direitos conferidos às associações de proteção do ambiente pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, para que decisões das autoridades nacionais competentes sejam objeto de uma fiscalização, tendo em conta as obrigações que lhes incumbem por força deste artigo, esse Estado‑Membro aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, e deve, assim, nomeadamente, garantir o respeito do direito à ação, consagrado no artigo 47.o da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.os 44 e 87 e jurisprudência referida).

66

Por conseguinte, embora o artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus não tenha efeito direto em direito da União e não possa, por conseguinte, enquanto tal, ser invocado, no âmbito de um litígio abrangido pelo direito da União, a fim de excluir a aplicação de uma disposição de direito nacional que lhe seja contrária, não é menos verdade que, por um lado, o primado dos acordos internacionais celebrados pela União exige que, na medida do possível, o direito nacional seja interpretado em conformidade com as exigências destes e, por outro, que esta disposição, em conjugação com o artigo 47.o da Carta, impõe aos Estados‑Membros a obrigação de garantir uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos pelo direito da União, nomeadamente das disposições em matéria do direito do ambiente (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 45).

67

Ora, o direito de recurso previsto no artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, que tem por objetivo permitir assegurar uma proteção efetiva do ambiente (Acórdão de 8 de março de 2011, Lesoochranárske zoskupenie, C‑240/09, EU:C:2011:125, n.o 46), seria desprovido de qualquer efeito útil, ou até mesmo da sua essência, se se admitisse que, através da imposição destes critérios, certas categorias de «membros do público», a fortiori de «membros do público envolvido», como as associações de proteção do ambiente que satisfaçam os requisitos previstos no artigo 2.o, n.o 5, da Convenção de Aarhus, não podem exercer nenhum tipo de direito de recurso de atos ou omissões de particulares ou de autoridades públicas que violem determinadas categorias de disposições do respetivo direito interno do domínio do ambiente (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 46).

68

A imposição dos referidos critérios não pode, em especial, privar as associações de proteção do ambiente da possibilidade de solicitar a fiscalização do respeito das regras decorrentes do direito da União em matéria de ambiente, igualmente porque essas regras estão, a maioria das vezes, orientadas para o interesse geral e não apenas para a proteção dos interesses dos particulares considerados individualmente e porque a missão dessas organizações consiste em defender o interesse geral (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 47 e jurisprudência referida).

69

Com efeito, a expressão «critérios estabelecidos no direito interno», que figura no artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, embora implique que os Estados‑Membros conservam uma margem de apreciação na execução desta disposição, não pode permitir que os mesmos imponham critérios tão estritos que se torne efetivamente impossível para as associações de proteção do ambiente impugnar os atos ou omissões referidos nesta disposição (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 48).

70

No caso em apreço, parece resultar dos elementos expostos pelo órgão jurisdicional de reenvio e recordados nos n.os 33 a 35 do presente acórdão que, segundo o direito alemão, ao não dispor de legitimidade processual para impugnar uma decisão de autorização de «um produto», uma associação de proteção do ambiente, ainda que satisfaça os requisitos previstos no § 3, n.o 1, da UmwRG, não pode interpor recurso para um órgão jurisdicional nacional a fim de impugnar uma decisão que concede ou altera uma homologação CE suscetível de ser contrária à proibição de utilização dos dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, prevista no artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

71

Ao excluir, deste modo, as associações de proteção do ambiente de qualquer direito de recurso contra essa decisão que concede ou altera uma homologação CE, o direito processual nacional em causa é contrário aos requisitos decorrentes da leitura conjugada do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus com o artigo 47.o da Carta (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 52).

72

Em especial, a impossibilidade de uma associação de proteção do ambiente, apesar de estar habilitada a instaurar os processos judiciais previstos no artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, aceder à justiça para impugnar uma decisão que concede ou altera a homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007 e, portanto, ao «disposto no respetivo direito interno do domínio do ambiente», na aceção deste artigo 9.o, n.o 3, constitui uma restrição do direito a um recurso efetivo, garantido pelo artigo 47.o da Carta. Tal restrição não pode ser considerada justificada.

73

A este respeito, no que se refere ao argumento segundo o qual essa restrição da legitimidade processual das associações de proteção do ambiente a certas decisões, nomeadamente as que têm graves consequências para o ambiente, pode ser justificada em razão do grande número de decisões administrativas que apresentam uma ligação com o ambiente, há que constatar que, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 71 das suas conclusões, por um lado, não resulta do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus que o direito de recurso que este prevê possa ser limitado apenas a decisões com consequências importantes para o ambiente. Por outro lado, as decisões que concedem ou alteram uma homologação CE podem dizer respeito a vários veículos e não podem, portanto, de qualquer modo, ser consideradas como tendo apenas uma importância menor para o ambiente. A este respeito, importa recordar que resulta do considerando 6 do Regulamento n.o 715/2007 que a fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores‑limite de poluição atmosférica, afigura‑se, sobretudo, necessária uma redução considerável das emissões de NOx dos veículos equipados com motor diesel. Ora, decisões que concedem ou alteram uma homologação CE em violação da proibição de utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, prevista no artigo 5.o, n.o 2, deste regulamento, são suscetíveis de impedir o cumprimento desses objetivos de proteção do ambiente.

74

Além disso, contrariamente ao que alega o KBA, a impossibilidade de uma associação de proteção do ambiente, como a Deutsche Umwelthilfe, interpor recurso das decisões que concedem ou alteram uma homologação CE não é de modo algum necessária para evitar uma actio popularis. Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 73 das suas conclusões, quando uma associação tenha sido homologada em conformidade com os critérios previstos pelo direito nacional e, consequentemente, lhe tenha sido conferida capacidade judiciária em matéria de ambiente, deve considerar‑se que é suficientemente afetada pela violação das disposições do direito da União em matéria de ambiente para poder invocar essa violação perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

75

Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio interpretar, na medida do possível, o direito processual relativo às condições que devem estar preenchidas para interpor um recurso em conformidade tanto com os objetivos do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus como com o objetivo da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos pelo direito da União, a fim de permitir a uma associação de proteção do ambiente, como a Deutsche Umwelthilfe, impugnar num órgão jurisdicional uma decisão que concede ou altera a homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007 (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation, C‑664/15, EU:C:2017:987, n.o 54).

76

A este respeito, importa salientar que o órgão jurisdicional de reenvio mencionou, no seu pedido de decisão prejudicial, uma sentença proferida na Alemanha na sequência do Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Protect Natur‑, Arten‑ und Landschaftsschutz Umweltorganisation (C‑664/15, EU:C:2017:987), que reconheceu, através dessa interpretação conforme do § 42, n.o 2, segunda parte, do VwGO, legitimidade processual a tal associação quando esta última pretenda fazer respeitar disposições baseadas no direito da União em matéria de ambiente. Assim, não parece, a priori, excluído que essa legitimidade processual possa ser reconhecida a uma associação de proteção do ambiente, como a Deutsche Umwelthilfe, com base numa interpretação do direito alemão que respeite os requisitos decorrentes do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, em conjugação com o artigo 47.o da Carta.

77

Se essa interpretação conforme se revelar impossível, importa recordar que qualquer juiz nacional chamado a pronunciar‑se no âmbito da sua competência tem, enquanto órgão de um Estado‑Membro, a obrigação de não aplicar disposições nacionais contrárias a uma disposição de direito da União que tenha efeito direto no litígio que é chamado a decidir [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 161 e jurisprudência referida].

78

Como resulta do n.o 66 do presente acórdão, o artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus não tem, enquanto tal, efeito direto, pelo que esta disposição não pode obrigar o órgão jurisdicional de reenvio a não aplicar uma disposição nacional contrária ao referido artigo.

79

Todavia, a margem de apreciação conferida aos Estados‑Membros para estabelecer regras que regulam o direito de recurso previsto na referida disposição não afeta a sua obrigação de garantir um direito a um recurso efetivo consagrado no artigo 47.o da Carta, como também recordado no artigo 9.o, n.o 4, da Convenção de Aarhus. Ora, o artigo 47.o basta, por si só, e não deve ser precisado por disposições do direito da União ou do direito nacional para conferir aos particulares um direito que pode ser invocado enquanto tal [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 162 e jurisprudência referida]. Assim, este artigo pode ser invocado enquanto limite ao poder de apreciação que é conferido aos Estados‑Membros por força do artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus.

80

Por conseguinte, na hipótese referida no n.o 77 do presente acórdão, incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio não aplicar as disposições do direito nacional que se opõem a que uma associação de proteção do ambiente, como a Deutsche Umwelthilfe, tenha a possibilidade de impugnar uma decisão que conceda ou altere a homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

81

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 9.o, n.o 3, da Convenção de Aarhus, em conjugação com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma associação de proteção do ambiente, com capacidade judiciária ao abrigo do direito nacional, não possa impugnar num órgão jurisdicional nacional uma decisão administrativa que conceda ou altere uma homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

Quanto à segunda questão

82

Com a sua segunda questão, alíneas a) e b), que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que a «necessidade» de um dispositivo manipulador, na aceção desta disposição, deve ser apreciada à luz do estado atual da técnica existente à data da homologação CE e se devem ser tidas em consideração outras circunstâncias para além dessa «necessidade» para examinar a licitude desse dispositivo manipulador.

83

A título preliminar, importa recordar que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 define «[d]ispositivo manipulador (defeat device)» como «qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo».

84

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que o software em causa no processo principal estabeleceu uma janela térmica nos termos da qual a taxa de recirculação dos gases de escape é de 0 % quando a temperatura exterior é inferior a -9 graus Celsius, de 85 % quando esta se situa entre -9 e 11 graus Celsius, e aumenta para além de 11 graus Celsius para ser operacional apenas a 100 % a uma temperatura exterior superior a 15 graus Celsius. Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, a taxa de recirculação dos gases de escape é assim reduzida para 85 % quando são alcançadas as temperaturas médias verificadas na Alemanha, que para 2018 foram de 10,4 graus Celsius.

85

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, no que respeita a uma janela térmica idêntica à que está em causa no processo principal, que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo que só garante o respeito dos valores‑limite de emissões previstos no referido regulamento quando a temperatura exterior se situa entre 15 e 33 graus Celsius e a altitude de circulação é inferior a 1000 metros constitui um «dispositivo manipulador» na aceção deste artigo 3.o, ponto 10 (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 47, e de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 54).

86

Nos termos do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, a utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. No entanto, há três exceções a esta proibição, entre as quais a que figura nesse artigo 5.o, n.o 2, alínea a), designadamente, «[s]e se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo».

87

Na medida em que enuncia uma exceção à proibição de utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, esta disposição deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 50; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 63, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 61).

88

Resulta da própria redação do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 que, para ser abrangida pela exceção prevista nesta disposição, a necessidade de um dispositivo manipulador deve ser justificada não só em termos de proteção do motor contra danos ou acidentes mas também para garantir um funcionamento seguro do veículo. Com efeito, tendo em conta a utilização, na referida disposição, da conjunção coordenativa «e», esta deve ser interpretada no sentido de que os requisitos que prevê são cumulativos (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 61; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 73, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 72).

89

Por conseguinte, e tendo em conta a interpretação estrita que deve ser dada a esta exceção, um dispositivo manipulador como o que está em causa no processo principal só pode ser justificado ao abrigo da referida exceção caso se demonstre que esse dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um componente do sistema de recirculação dos gases de escape, de uma gravidade tal, que gerem um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o referido dispositivo. No entanto, essa verificação é abrangida, no litígio no processo principal, pela apreciação dos factos que incumbe exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 62; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 74, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 73).

90

Além disso, no que respeita a uma janela térmica idêntica à que está em causa no processo principal, o Tribunal de Justiça declarou que, embora seja verdade que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 não impõe formalmente outros requisitos para efeitos da aplicação da exceção prevista nesta disposição, não é menos verdade que um dispositivo manipulador que deva, em condições normais de circulação, funcionar durante a maior parte do ano para que o motor seja protegido contra danos ou um acidente e o funcionamento seguro do veículo seja assegurado seria manifestamente contrário ao objetivo prosseguido por este regulamento, que a referida disposição apenas permite derrogar em circunstâncias muito específicas, e conduziria a uma violação desproporcionada do próprio princípio da limitação das emissões de NOx pelos veículos (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 63; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 75, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 74).

91

O Tribunal de Justiça concluiu assim que, tendo em conta a interpretação estrita que deve ser dada a este artigo 5.o, n.o 2, alínea a), tal dispositivo manipulador não pode ser justificado ao abrigo desta disposição. Com efeito, admitir que tal dispositivo manipulador possa estar abrangido por essa disposição acabaria por tornar esta exceção aplicável durante a maior parte do ano nas condições reais de condução existentes no território da União, de modo que o princípio da proibição desses dispositivos manipuladores, estabelecido neste artigo 5.o, n.o 2, poderia, na prática, ser aplicado menos frequentemente do que a referida exceção (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.os 64 e 65; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.os 76 e 77, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.os 75 e 76).

92

Além disso, o Tribunal de Justiça sublinhou, por um lado, que resulta do considerando 7 do Regulamento n.o 715/2007 que o legislador da União, quando determinou os valores‑limite da emissão de poluentes, teve em conta os interesses económicos dos fabricantes, nomeadamente, os custos impostos às empresas pela necessidade de respeitarem esses valores. Assim, incumbe aos fabricantes adaptarem‑se e aplicarem os dispositivos técnicos adequados para respeitar os referidos valores, sendo que este regulamento não impõe o recurso a uma tecnologia específica (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 67; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 79, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 78).

93

Por outro lado, o objetivo visado pelo Regulamento n.o 715/2007, que consiste em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e melhorar a qualidade do ar na União, implica uma redução efetiva das emissões de NOx ao longo da vida normal dos veículos. Ora, autorizar um dispositivo manipulador ao abrigo do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento apenas porque, por exemplo, as despesas de investigação são elevadas, o dispositivo técnico é dispendioso ou as operações de manutenção do veículo são mais frequentes e mais caras para o utilizador poria em causa esse objetivo (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 68; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 80, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 79).

94

Nestas circunstâncias, tendo em conta o facto de que esta disposição deve ser objeto de uma interpretação estrita, há que considerar que a «necessidade» de um dispositivo manipulador, na aceção da referida disposição, só existe quando, no momento da homologação CE desse dispositivo ou do veículo com ele equipado, nenhuma outra solução técnica permite evitar riscos imediatos de danos ou de acidente no motor geradores de um perigo concreto durante a condução do veículo (Acórdãos de 14 de julho de 2022, GSMB Invest, C‑128/20, EU:C:2022:570, n.o 69; de 14 de julho de 2022, Volkswagen, C‑134/20, EU:C:2022:571, n.o 81, e de 14 de julho de 2022, Porsche Inter Auto e Volkswagen, C‑145/20, EU:C:2022:572, n.o 80).

95

Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador não pode ser justificado, ao abrigo desta disposição, a menos que se demonstre que esse dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um componente do sistema de recirculação dos gases de escape, de uma gravidade tal, que geram um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o referido dispositivo. Além disso, a «necessidade» de um dispositivo manipulador, na aceção da referida disposição, só existe quando, no momento da homologação CE desse dispositivo ou do veículo com ele equipado, nenhuma outra solução técnica permite evitar riscos imediatos de danos ou de acidente no motor geradores de um perigo concreto durante a condução do veículo.

Quanto às despesas

96

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 9.o, n.o 3, da Convenção sobre acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, assinada em Aarhus, em 25 de junho de 1998, e aprovada, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de fevereiro de 2005, em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma associação de proteção do ambiente, com capacidade judiciária ao abrigo do direito nacional, não possa impugnar num órgão jurisdicional nacional uma decisão administrativa que conceda ou altere uma homologação CE suscetível de ser contrária ao artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões de veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos.

 

2)

O artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador não pode ser justificado, ao abrigo desta disposição, a menos que se demonstre que esse dispositivo responde estritamente à necessidade de evitar os riscos imediatos de danos ou de acidente no motor, ocasionados por um mau funcionamento de um componente do sistema de recirculação dos gases de escape, de uma gravidade tal, que geram um perigo concreto durante a condução do veículo equipado com o referido dispositivo. Além disso, a «necessidade» de um dispositivo manipulador, na aceção da referida disposição, só existe quando, no momento da homologação CE desse dispositivo ou do veículo com ele equipado, nenhuma outra solução técnica permite evitar riscos imediatos de danos ou de acidente no motor geradores de um perigo concreto durante a condução do veículo.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.