ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

14 de outubro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Regras comuns para o mercado interno da eletricidade — Diretiva 2009/72/CE — Artigo 3.o, n.os 2 e 6 — Imposição de obrigações de serviço público — Financiamento de uma tarifa social com vista à proteção dos consumidores vulneráveis — Obrigações de transparência e de não discriminação»

No processo C‑683/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), por Decisão de 9 de julho de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de setembro de 2019, no processo

Viesgo Infraestructuras Energéticas SL, anteriormente E.ON España SLU,

contra

Administración General del Estado,

Iberdrola SA,

Naturgy Energy Group SA, anteriormente Gas Natural SDG SA,

EDP España SAU, anteriormente Hidroeléctrica del Cantábrico SA,

CIDE Asociación de Distribuidores de Energía Eléctrica,

Endesa SA,

Agri‑Energía SA,

Navarro Generación SA,

Electra del Cardener SA,

Serviliano García SA,

Energías de Benasque SL,

Candín Energía SL,

Cooperativa Eléctrica Benéfica Catralense,

Cooperativa Valenciana,

Eléctrica Vaquer SA,

Hijos de José Bassols SA,

Electra Aduriz SA,

El Gas SA,

Estabanell y Pahisa SA,

Electra Caldense SA,

Cooperativa Popular de Fluid Electric Camprodón SCCL,

Fuciños Rivas SL,

Electra del Maestrazgo SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, C. Lycourgos (relator), presidente da Quarta Secção, e M. Ilešič, juiz,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Viesgo Infraestructuras Energéticas SL, anteriormente E.ON España SLU, por N. Encinar Arroyo, G. Rubio Hernández‑Sampelayo, abogados, e M. J. Gutiérrez Aceves, procuradora,

em representação da Iberdrola SA, por J. Giménez Cervantes, M. García García e C. A. F. Lowhagen, abogados,

em representação da Naturgy Energy Group SA, por F. González Díaz e B. Martos Stevenson, abogados,

em representação da EDP España SAU, por J. Expósito Blanco e J. Fernández García, abogados,

em representação da Endesa SA, por A. J. Sánchez Rodríguez e J. J. Lavilla Rubira, abogados,

em representação da Agri‑Energía SA, da Navarro Generación SA, da Electra del Cardener SA, da Serviliano García SA, da Energías de Benasque SL, da Cooperativa Eléctrica Benéfica Catralense, da Cooperativa Valenciana, da Eléctrica Vaquer SA, da Hijos de José Bassols SA, da Electra Aduriz SA, da El Gas SA, da Estabanell y Pahisa SA, da Electra Caldense SA, da Cooperativa Popular de Fluid Electric Camprodón, SCCL, da Fuciños Rivas SL e da Electra del Maestrazgo SA, por I. Bartol Mir, abogada,

em representação do Governo espanhol, por M. J. Ruiz Sánchez e S. Centeno Huerta, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por O. Beynet e M. Jáuregui Gómez, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de abril de 2021,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54/CE (JO 2009, L 211, p. 55).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Viesgo Infraestructuras Energéticas SL (a seguir «Viesgo»), anteriormente E.ON España SLU (a seguir «E.ON»), à Administración General del Estado (Administração Geral do Estado, Espanha) e a sociedades espanholas que exercem a sua atividade no setor da eletricidade, a respeito da legalidade do regime de financiamento de uma obrigação de serviço público relativa a uma redução do preço da eletricidade de que beneficiam determinados consumidores vulneráveis.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos dos considerandos 7, 45, 50 e 53 da Diretiva 2009/72:

«(7)

A Comunicação da Comissão de 10 de janeiro de 2007, intitulada “Uma política energética para a Europa”, destacou a importância da plena realização do mercado interno da eletricidade e da criação de igualdade de condições para todas as empresas de eletricidade estabelecidas na [União]. As Comunicações da Comissão, de 10 de janeiro de 2007, intituladas “Perspetivas para o mercado interno do gás e da eletricidade” e “Inquérito nos termos do artigo 17.o do Regulamento (CE) n.o 1/2003 sobre os setores europeus do gás e da eletricidade (relatório final)” revelaram que as atuais regras e medidas não proporcionam o quadro necessário para alcançar o objetivo de um mercado interno em bom funcionamento.

[…]

(45)

[…] Os Estados‑Membros deverão tomar as medidas necessárias para proteger os clientes vulneráveis no contexto do mercado interno da eletricidade. Essas medidas podem diferir de acordo com as circunstâncias particulares de cada Estado‑Membro e podem incluir medidas específicas a nível do pagamento das contas de eletricidade ou medidas mais gerais tomadas no âmbito do sistema de segurança social. […]

[…]

(50)

As obrigações de serviço público, incluindo as que dizem respeito ao serviço universal, e as normas mínimas comuns daí decorrentes têm de ser reforçadas, para garantir a todos os consumidores, em particular aos consumidores vulneráveis, os benefícios da concorrência e de preços mais justos. Os requisitos de serviço público deverão ser definidos a nível nacional, tendo em conta as circunstâncias nacionais. A legislação [da União] deverá ser, todavia, respeitada pelos Estados‑Membros. Os cidadãos da União e, sempre que os Estados‑Membros considerem adequado, as pequenas empresas deverão poder beneficiar das obrigações de serviço público, designadamente em matéria de segurança de fornecimento e de manutenção de preços razoáveis. […]

[…]

(53)

A pobreza energética é um problema crescente na [União]. Os Estados‑Membros afetados que ainda não o fizeram, deverão, por conseguinte, desenvolver planos de ação nacionais ou outros enquadramentos adequados para lutar contra a pobreza energética, a fim de reduzir o número de pessoas afetadas por esta situação. Em todo o caso, os Estados‑Membros deverão assegurar o fornecimento energético necessário aos consumidores vulneráveis. Para esse efeito, poderá ser utilizada uma abordagem integrada, designadamente no âmbito da política social, e as medidas poderão incluir políticas sociais ou melhorias da eficiência energética das habitações. No mínimo, a presente diretiva deverá permitir políticas nacionais a favor dos clientes vulneráveis.»

4

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», previa:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

21.

“Empresa verticalmente integrada”, uma empresa de eletricidade ou um grupo de empresas de eletricidade em que a mesma pessoa ou as mesmas pessoas têm direito, direta ou indiretamente, a exercer controlo e em que a empresa ou grupo de empresas exerce, pelo menos, uma das atividades de entre o transporte ou a distribuição e, pelo menos, uma das atividades de entre a produção ou comercialização de eletricidade;

[…]»

5

O artigo 3.o, n.os 2, 6 e 7, da referida diretiva dispunha:

«2.   Tendo plenamente em conta as disposições aplicáveis do [Tratado FUE], nomeadamente o artigo [106.o], os Estados‑Membros podem impor às empresas do setor da eletricidade, no interesse económico geral, obrigações de serviço público, nomeadamente em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, de qualidade e de preço dos fornecimentos, assim como de proteção do ambiente, incluindo a eficiência energética, a energia a partir de fontes renováveis e a proteção do clima. Essas obrigações devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, verificáveis e garantir a igualdade de acesso das empresas do setor da energia elétrica da [União Europeia] aos consumidores nacionais. […]

[…]

6.   Sempre que existam compensações de natureza financeira ou outra e direitos exclusivos concedidos pelos Estados‑Membros para o cumprimento das obrigações previstas nos n.os 2 e 3, estes devem ser atribuídos de forma transparente e não discriminatória.

7.   Os Estados‑Membros devem aprovar medidas adequadas para proteger os clientes finais e devem, em especial, garantir a existência de salvaguardas adequadas para proteger os clientes vulneráveis. Neste contexto, cada Estado‑Membro define o conceito de clientes vulneráveis, que poderá referir‑se à pobreza energética e, entre outros, à proibição do corte da ligação desses clientes em momentos críticos. Os Estados‑Membros devem garantir o respeito dos direitos e obrigações relacionados com os clientes vulneráveis. […]»

Direito espanhol

6

Sob a epígrafe «Consumidores vulneráveis», o artigo 45.o da Ley 24/2013 del Setor Elétrico (Lei 24/2013, relativa ao setor da energia elétrica), de 26 de dezembro de 2013, na versão aplicável ao processo principal (a seguir «Lei 24/2013»), previa:

«1.   Consideram‑se consumidores vulneráveis os consumidores de eletricidade que preencham as características sociais, de consumo e de poder de compra a determinar. Em todo o caso, a medida limita‑se às pessoas singulares na sua habitação habitual.

A definição de consumidores vulneráveis e os requisitos que devem satisfazer, bem como as medidas a adotar para esse grupo, são determinados por via legislativa pelo governo.

2.   A tarifa social é aplicável aos consumidores vulneráveis que preencham as características sociais, de consumo e de poder de compra previstas por Decreto real do Conselho de Ministros. Para este efeito, é fixado um limiar relativo a um indicador de rendimento per capita da família. Em todo o caso, a medida limita‑se às pessoas singulares na sua habitação habitual.

3.   A tarifa social cobrirá a diferença entre o valor do preço voluntário destinado ao pequeno consumidor e um valor base, denominada “tarifa de último recurso”, e será aplicada pelo correspondente comercializador de referência às faturas dos consumidores que dela possam beneficiar.

O Ministro de Industria, de Energía y de Turismo [(Ministro da Indústria, Energia e Turismo)], após obtenção do acordo da Comisión Delegada del Gobierno para Asuntos Económicos [(Comissão Delegada do Governo para os Assuntos Económicos)], fixa a tarifa de último recurso.

4.   A tarifa social será considerada obrigação de serviço público segundo o disposto na Diretiva [2009/72] e será assumida pelas sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for caso disso, sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica.

A percentagem de repartição das quantias a financiar será calculada, para cada grupo de sociedades, como a relação entre um termo igual à soma das médias anuais do número de fornecimentos ligados às redes de distribuição das empresas distribuidoras e do número de clientes das empresas comercializadoras participadas pelo grupo, e outro termo que corresponderá à soma de todos os valores médios anuais de fornecimentos e clientes de todos os grupos de sociedades a considerar para efeitos desta repartição.

Esta percentagem de repartição será calculada anualmente pela Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia [(Comissão Nacional dos Mercados e da Concorrência)], de acordo com o procedimento e condições estabelecidas por via legislativa. Para este efeito, esta mesma Comissão publica na sua página Internet, no mês de novembro de cada ano, a informação referida ao ano homólogo anterior e relativa às médias anuais do número de fornecimentos ligados às redes de distribuição das empresas distribuidoras e do número de clientes das empresas comercializadoras, bem como a lista de grupos de sociedades ou, se for o caso, sociedades, que preencham o requisito previsto no primeiro parágrafo do presente número.

A Comissão acima referida apresenta, antes de 1 de dezembro de cada ano, uma proposta de fixação das percentagens de financiamento que caberão a cada uma das sociedades‑mãe, que incumbe ao Ministro da Indústria, da Energia e do Turismo aprovar por decreto publicado no “Boletín Oficial del Estado”.

Em qualquer caso, as contribuições a realizar por cada uma destas sociedades serão depositadas numa conta especificamente criada para esse efeito pela entidade administrativa responsável pela sua gestão.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7

Em 18 de dezembro de 2014, a E.ON, em cujos direitos sucede a Viesgo, propôs uma ação no Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) destinada à anulação do Real Decreto 968/2014, por el que se desarrolla la metodología para la fijación de los porcentajes de reparto de las cantidades a financiar relativas al bono social (Real Decreto 968/2014, relativo ao desenvolvimento da metodologia para a fixação das percentagens de repartição das quantias a financiar relativas à tarifa social), de 21 de novembro de 2014 (a seguir «Real Decreto 968/2014»).

8

A E.ON alegou a incompatibilidade com a Diretiva 2009/72 do regime de financiamento da tarifa social, previsto no artigo 45.o, n.o 4, da Lei 24/2013 e executado pelos artigos 2.o e 3.o do Real Decreto 968/2014.

9

Por Acórdão de 24 de outubro de 2016, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) julgou procedente a ação administrativa proposta pela E.ON e declarou inaplicável esse regime de financiamento, com fundamento na incompatibilidade do mesmo com o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72. Esse órgão jurisdicional refere que se baseou nos Acórdãos do Tribunal de Justiça de 20 de abril de 2010, Federutility e o. (C‑265/08, EU:C:2010:205), e de 7 de setembro de 2016, ANODE (C‑121/15, EU:C:2016:637). Em especial, considerou que os fundamentos que figuram neste último acórdão, que diz respeito a uma legislação nacional relativa aos preços do gás, eram plenamente transponíveis para o setor da energia elétrica, uma vez que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO 2009, L 211, p. 94), e o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 são comparáveis. Por conseguinte, ao abrigo da doutrina do «acte éclairé», decidiu não submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial.

10

A Administração Geral do Estado interpôs no Tribunal Constitucional (Tribunal Constitucional, Espanha) um recurso desse acórdão, destinado a garantir a proteção dos direitos e liberdades fundamentais (recurso de amparo).

11

Em 26 de março de 2019, este último deu provimento ao recurso. Por conseguinte, anulou o referido acórdão, declarando que o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) tinha violado o direito a um processo com todas as garantias, previsto no artigo 24.o, n.o 2, da Constituição espanhola, ao afastar a aplicação da legislação interna por ser incompatível com o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 sem ter previamente submetido um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Ordenou igualmente que o processo contencioso fosse retomado na fase anterior à prolação do acórdão, para que o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) se pronunciasse de novo. Resulta da decisão de reenvio que o Tribunal Constitucional considerou que os requisitos de aplicação da doutrina do «acte éclairé» não estavam preenchidos no caso em apreço e que, por conseguinte, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) não estava isento da obrigação de submeter uma questão prejudicial.

12

Em execução desse acórdão, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu submeter ao Tribunal de Justiça o presente pedido de decisão prejudicial, expondo sob a forma de interrogações as razões que o levaram a declarar que a legislação espanhola era incompatível com a Diretiva 2009/72.

13

O Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) salienta que a tarifa social, prevista no artigo 45.o da Lei 24/2013, foi concebida como uma prestação com um vincado caráter social e que tem a natureza de uma obrigação de serviço público, destinada a proteger determinados consumidores de eletricidade que beneficiam da tarifa de último recurso e que tenham determinadas características sociais, de consumo e de poder de compra, no que respeita ao custo da energia elétrica da sua habitação habitual.

14

Esse órgão jurisdicional indica que resulta da exposição de motivos do Real decreto‑ley 9/2013, por el que se adoptan medidas urgentes para garantir a estabilidad financiera del sistema elétrico (Real Decreto‑Lei 9/2013, que estabelece medidas urgentes para garantir a estabilidade financeira do setor da energia elétrica), de 12 de julho de 2013, que precedeu a Lei 24/2013, que o regime de financiamento da tarifa social, previsto no artigo 45.o, n.o 4, desta lei, obedece ao objetivo que consiste em contribuir para a necessária e urgente redução dos custos do setor, impondo, como obrigação de serviço público, que o custo da tarifa social seja suportado pelas sociedades‑mãe das sociedades ou grupos de sociedades que desenvolvem atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica e que tenham o caráter de grupos verticalmente integrados. Segundo o legislador nacional, o facto de impor essa obrigação a essas sociedades‑mãe permite, ainda que indiretamente, repartir o referido ónus entre as principais atividades comerciais intervenientes no setor da energia elétrica.

15

O órgão jurisdicional de reenvio salienta, a este respeito, que a questão que se coloca no caso em apreço é a de saber se essas justificações respeitam os requisitos previstos no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72, segundo os quais as obrigações de serviço público devem, por um lado, ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias e verificáveis e, por outro, garantir a igualdade de acesso das empresas do setor da energia elétrica da União aos consumidores nacionais.

16

Sublinha que o legislador nacional é acusado de ter decidido que, entre os agentes que intervêm em três setores da rede elétrica — produção, distribuição e comercialização — só as sociedades ou os grupos de sociedades que desenvolvem simultaneamente essas três atividades e que constituam grupos verticalmente integrados assumem o custo do financiamento dessa obrigação de serviço público, quando estão isentas desse encargo todas as sociedades ou grupos de sociedades cuja atividade é limitada a um ou mesmo dois desses setores.

17

Resulta da Orden IET/350/2014, por la que se fijan los porcentajes de reparto de las cantidades a financiar relativas al bono social correspondientes a 2014 (Decreto IET/350/2014, que fixa as percentagens de repartição das quantias a financiar relativas à tarifa social correspondentes a 2014), de 7 de março de 2014, que identificou as entidades abrangidas e fixou as percentagens de repartição das quantias a financiar relativas à tarifa social correspondentes a 2014, que apenas cinco sociedades ou grupos de sociedades recebem coeficientes ou percentagens significativas, que, além disso, apresentam diferenças significativas [Endesa SA (41,612696 %), Iberdrola SA (38,474516 %), Gas Natural SDG SA (14,185142 %), Hidroeléctrica del Cantábrico (2,649114 %) e E.ON (2,368956 %)]. Daqui resulta que, por si só, estas cinco sociedades contribuem em 99,290424 % para o financiamento da tarifa social, ao passo que às restantes 23 sociedades identificadas foram atribuídos coeficientes sensivelmente reduzidos, todos nitidamente inferiores a 1 %.

18

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a eventual violação do princípio da proporcionalidade pela legislação nacional em causa no processo principal, uma vez que a obrigação de financiar a tarifa social é instituída, não a título excecional ou com um alcance temporal limitado, mas sim de forma indefinida e sem contrapartidas nem nenhuma medida de compensação.

19

Foi nestas circunstâncias que o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Segundo a jurisprudência estabelecida pelo Tribunal de Justiça, designadamente, nos seus Acórdãos de 20 de abril de 2010 (processo C‑265/08, Federutility) e de 7 de setembro de 2016 (processo C‑121/15, ANODE), é compatível com as exigências fixadas no artigo 3.o, n.o 2, da [Diretiva 2009/72] uma regulamentação nacional, como a prevista no artigo 45.o, n.o 4, da Lei 24/2013, de 26 de dezembro, regulamentado pelos artigos 2.o e 3.o do [Real Decreto 968/2014], que determina que o financiamento da tarifa social recaia sobre determinados agentes do setor da energia elétrica — as sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for o caso, sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica —, quando alguns dos sujeitos dessa obrigação têm um peso específico muito reduzido no conjunto do setor, ficando em contrapartida dispensadas desse encargo outras sociedades ou grupos de sociedades que possam estar em melhores condições para assumir esse custo, quer devido ao seu volume de negócios, quer à sua importância relativa em algum dos setores de atividade ou porque desenvolvem simultaneamente e de forma integrada duas dessas atividades?

2)

É ou não compatível com a exigência de proporcionalidade prevista no referido artigo 3.o, n.o 2, da [Diretiva 2009/72], uma regulamentação nacional da qual resulta que a obrigação de financiamento da tarifa social não está prevista com caráter excecional nem com alcance temporário limitado, mas sim de forma indefinida e sem contrapartidas nem qualquer medida nenhuma de compensação?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça e à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

20

A Viesgo, a Iberdrola e a Endesa consideram, em substância, que, tendo em conta as circunstâncias que deram origem ao pedido de decisão prejudicial e as indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve declarar‑se incompetente ou considerar esse pedido inadmissível. Consideram, em especial, que as razões que levaram o órgão jurisdicional de reenvio a apresentar esse pedido não estão abrangidas pelo direito da União, uma vez que esse órgão jurisdicional se considerou obrigado, por força de um processo e da jurisprudência nacionais, a submeter uma questão prejudicial embora, no caso em apreço, não tivesse dúvidas sobre a interpretação, o que viola o primado e a eficácia do direito da União.

21

O órgão jurisdicional de reenvio indica que o Tribunal Constitucional anulou o Acórdão que este proferiu em 24 de outubro de 2016, considerando que tinha exposto de forma insuficiente as razões pelas quais tinha recorrido à doutrina do «acte éclairé». Todavia, considera que a verdadeira razão dessa anulação consiste no facto de o Tribunal Constitucional aplicar às decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais um critério de fiscalização diferente, e mais rigoroso, em matéria de interpretação e de aplicação do direito da União, quando esses órgãos jurisdicionais afastam a aplicação de uma lei nacional por a considerarem contrária ao direito da União, do que quando decidem que a regulamentação nacional está em conformidade com esse direito.

22

Não sendo necessário examinar a conformidade com o direito da União da prática judicial do Tribunal Constitucional evocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, importa constatar, em primeiro lugar, que o pedido de decisão prejudicial tem por objeto uma regra do direito da União, a saber, o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72, para cuja interpretação o Tribunal de Justiça é competente.

23

Em segundo lugar, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se. Daqui se conclui que as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais gozam de uma presunção de pertinência.
O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se se afigurar que a interpretação solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, se o problema for hipotético ou ainda se o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às referidas questões (Acórdão de 16 de julho de 2020, Facebook Ireland e Schrems, C‑311/18, EU:C:2020:559, n.o 73 e jurisprudência referida).

24

No caso em apreço, antes de mais, as questões prejudiciais apresentam uma relação evidente com o objeto do litígio no processo principal, uma vez que, com estas, o órgão jurisdicional de reenvio procura determinar se as disposições nacionais cuja legalidade é contestada perante si são compatíveis com as obrigações que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 impõe aos Estados‑Membros no setor da energia elétrica. Em seguida, não se afigura que o problema que suscita seja hipotético. Por último, este órgão jurisdicional expôs no pedido de decisão prejudicial elementos suficientes de facto e de direito para permitir ao Tribunal de Justiça dar uma resposta útil a essas questões.

25

A este respeito, importa acrescentar que, contrariamente ao processo que deu origem ao Acórdão de 16 de dezembro de 1981, Foglia (244/80, EU:C:1981:302), invocado por algumas das partes no processo principal, esse pedido responde a uma necessidade objetiva inerente à resolução de um litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

26

Em terceiro lugar, importa recordar que o órgão jurisdicional de reenvio não está de forma alguma proibido de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça cuja resposta, no entender de uma das partes no processo principal, não deixa margem para nenhuma dúvida razoável. Assim, mesmo admitindo que seja esse o caso, o pedido de decisão prejudicial que comporta tais questões não se torna, por isso, inadmissível (v., neste sentido, Acórdão de 30 de abril de 2020, Оvergas Mrezhi e Balgarska gazova asotsiatsia, C‑5/19, EU:C:2020:343, n.o 45 e jurisprudência referida).

27

Por conseguinte, resulta das considerações precedentes que o Tribunal de Justiça é competente para responder ao pedido de decisão prejudicial e que este é admissível.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

28

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o custo de uma obrigação de serviço público, que consiste no fornecimento de energia elétrica a uma tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, recaia unicamente sobre as sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for caso disso, sobre as sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica.

29

A este respeito, importa especificar que a medida em causa no processo principal consiste na obrigação de pagar uma contribuição financeira que permite cobrir o custo da tarifa social, que consiste numa redução regulamentada da fatura de consumo de eletricidade que as empresas de comercialização são obrigadas a aplicar a determinados consumidores qualificados de «vulneráveis». O montante desta redução corresponde à diferença entre o valor do preço voluntário da eletricidade destinado aos pequenos consumidores e uma tarifa reduzida, denominada «tarifa de último recurso», fixada por uma autoridade pública.

30

Em primeiro lugar, importa examinar se essa contribuição financeira obrigatória constitui uma obrigação de serviço público, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 e se é, assim, abrangida pelo âmbito de aplicação desta disposição.

31

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «obrigações de serviço público», na aceção desta disposição, corresponde a medidas de intervenção pública no funcionamento do mercado da eletricidade, que impõem às empresas do setor da energia elétrica, para efeitos da prossecução de um interesse económico geral, que atuem nesse mercado com base em critérios impostos pelas autoridades públicas. A liberdade dessas empresas de atuar no referido mercado é assim limitada, no sentido de que, à luz apenas do seu interesse comercial, essas empresas não teriam fornecido determinados bens ou serviços, ou não os teriam fornecido na mesma medida ou nas mesmas condições (Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Engie Cartagena, C‑523/18, EU:C:2019:1129, n.o 45).

32

Tendo em conta esta definição, importa constatar que a obrigação que recai, no caso em apreço, sobre as empresas de comercialização, de fornecer eletricidade a tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, corresponde a uma obrigação de serviço público, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

33

Com efeito, por um lado, essas empresas têm a obrigação de atuar elas próprias para alcançar o objetivo de interesse económico geral de proteção dos consumidores vulneráveis, que é prosseguido pelo legislador nacional que impôs a tarifa social e que reflete o objetivo prosseguido pelo legislador da União, como resulta dos considerandos 45, 50 e 53 da Diretiva 2009/72. Por outro lado, a liberdade dessas empresas para atuar no mercado de energia elétrica é limitada, uma vez que, à luz apenas do seu interesse comercial, não teriam fornecido energia elétrica aos consumidores em questão ou não a teriam fornecido ao mesmo preço.

34

Em segundo lugar, resulta do artigo 45.o, n.o 4, primeiro parágrafo, da Lei 24/2013 que o custo da tarifa social é assumido pelas sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for casso disso, pelas sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica.

35

Em conformidade com o segundo parágrafo deste artigo 45.o, n.o 4, a percentagem de repartição das quantias a financiar será calculada, para cada grupo de sociedades, com base na relação entre um termo igual à soma das médias anuais do número de fornecimentos ligados às redes de distribuição das empresas distribuidoras e do número de clientes das empresas comercializadoras participadas pelo grupo, e outro termo que corresponderá à soma de todos os valores médios anuais de fornecimentos e clientes de todos os grupos de sociedades a considerar para efeitos desta repartição.

36

Como resulta da decisão de reenvio, a percentagem de repartição das quantias a financiar varia, por conseguinte, tanto em função do número de fornecimentos ligados às redes de distribuição das sociedades em causa como do número de clientes aos quais a atividade de comercialização é fornecida por essas sociedades.

37

Decorre, assim, do artigo 45.o, n.o 4, primeiro e segundo parágrafos, da Lei 24/2013 que todas as sociedades‑mãe dos grupos de sociedades e todas as sociedades visadas por esta disposição, sobre as quais recai o encargo de financiar a tarifa social, exercem, diretamente ou por intermédio de uma sociedade pertencente a esse grupo de sociedades, a atividade de comercialização de energia elétrica e são, portanto, obrigadas a aplicar a redução do preço da eletricidade aos consumidores vulneráveis decorrentes da referida tarifa social. Assim, o sistema previsto pelo legislador espanhol impõe, portanto, uma obrigação de serviço público cujo custo é repercutido numa parte das sociedades e dos grupos de sociedades encarregados de prestar esse serviço.

38

Em terceiro lugar, resulta do artigo 45.o, n.o 4, quinto parágrafo, da Lei 24/2013 que as contribuições a realizar por cada uma destas sociedades serão depositadas numa conta especificamente criada para esse efeito pela entidade administrativa responsável pela sua gestão. A este respeito, como indicou o Governo espanhol na sua resposta às questões escritas do Tribunal de Justiça, essa obrigação tem por único objetivo financiar a tarifa social.

39

Assim, resulta destes elementos que o produto dessas contribuições é exclusivamente destinado ao financiamento da tarifa social. O custo desta última determina o montante total que terá de ser cobrado, através desta contribuição financeira, às empresas de eletricidade que a devem assumir. Daqui resulta que a análise da conformidade com as regras da Diretiva 2009/72 da obrigação de serviço público constituída pela tarifa social não pode ser distinguida da análise da contribuição financeira que constitui o seu modo de financiamento (v., por analogia, Acórdão de 10 de novembro de 2016, DTS Distribuidora de Televisión Digital/Comissão, C‑449/14 P, EU:C:2016:848, n.os 67 e 68).

40

Daqui decorre que a obrigação de serviço público imposta pela tarifa social é composta por dois elementos que estão indissociavelmente ligados, a saber, por um lado, a redução do preço da energia elétrica fornecida a determinados consumidores vulneráveis e, por outro, a contribuição financeira destinada a cobrir o custo dessa redução de preço.

41

Por conseguinte, importa considerar que a contribuição financeira obrigatória em causa no processo principal, na medida em que é parte integrante da obrigação de serviço público relativa à tarifa social, é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

42

Em segundo lugar, importa recordar que, por força desta disposição, tendo plenamente em conta as disposições aplicáveis do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), em especial o artigo 106.o TFUE, os Estados‑Membros podem impor às empresas do setor da energia elétrica, no interesse económico geral, obrigações de serviço público, nomeadamente em matéria de segurança, incluindo a segurança do fornecimento, de regularidade, de qualidade e de preço dos fornecimentos, assim como de proteção do ambiente. Essas obrigações devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias, bem como verificáveis e devem garantir a igualdade de acesso das empresas do setor da energia elétrica da União aos consumidores nacionais.

43

A este respeito, importa salientar, a título preliminar, que, uma vez que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 e o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/73 são, em substância, idênticos e que estas duas diretivas têm como objetivo principal, conforme indica a Comissão Europeia, harmonizar o quadro jurídico do respetivo setor económico regulamentado a fim de garantir um mercado interno plenamente aberto e concorrencial, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a esta última disposição é transponível para o referido artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

44

Dito isto, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, embora uma intervenção estatal na fixação do preço da eletricidade constitua um entrave à realização de um mercado da energia elétrica concorrencial, essa intervenção pode, no entanto, ser admitida no âmbito da Diretiva 2009/72 se estiverem preenchidos três requisitos. Em primeiro lugar, a referida intervenção deve prosseguir um objetivo de interesse económico geral; em segundo lugar, deve respeitar o princípio da proporcionalidade e, em terceiro lugar, as obrigações de serviço público que prevê devem ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias e verificáveis e garantir às empresas do setor da energia elétrica da União um acesso igual aos consumidores (v., por analogia, Acórdãos de 7 de setembro de 2016, ANODE, C‑121/15, EU:C:2016:637, n.o 36, e de 30 de abril de 2020, Оvergas Mrezhi e Balgarska gazova asotsiatsia, C‑5/19, EU:C:2020:343, n.o 56).

45

No que respeita a este último requisito, em especial ao requisito segundo o qual as obrigações de serviço público não devem ser discriminatórias, o único em causa no âmbito da primeira questão submetida, o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 permite impor obrigações de serviço público «às empresas do setor da energia elétrica» em geral e não a determinadas empresas em particular. Neste âmbito, o sistema de designação das empresas encarregadas de obrigações de serviço público não pode excluir a priori nenhuma das empresas do setor da distribuição de eletricidade. Por conseguinte, qualquer eventual diferença de tratamento deve ser objetivamente justificada (v., por analogia, Acórdãos de 7 de setembro de 2016, ANODE, C‑121/15, EU:C:2016:637, n.o 71, e de 30 de abril de 2020, Оvergas Mrezhi e Balgarska gazova asotsiatsia, C‑5/19, EU:C:2020:343, n.o 80).

46

Assim, na medida em que, embora a obrigação de serviço público relativa à tarifa social seja imposta a todas as empresas de eletricidade que comercializam a energia elétrica no mercado espanhol, o encargo financeiro desta obrigação, que visa cobrir os custos da redução do preço da eletricidade prevista pela tarifa social, não afeta todas essas empresas de eletricidade, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a diferenciação operada entre as empresas que devem suportar o peso desse encargo e as que dele estão isentas é objetivamente justificada (v., neste sentido, Acórdão de 30 de abril de 2020, Оvergas Mrezhi e Balgarska gazova asotsiatsia, C‑5/19, EU:C:2020:343, n.o 82 e jurisprudência referida).

47

A este respeito, resulta da decisão de reenvio que o legislador nacional considerou que o facto de esse custo ser suportado pelas sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for caso disso, pelas sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica permite, ainda que indiretamente, repartir o referido ónus entre as principais atividades comerciais intervenientes no setor da energia elétrica e minimizar, assim, as consequências económicas do custo que representa a obrigação de serviço público relativa à tarifa social.

48

Ora, à luz do objetivo assim prosseguido de repartição do referido encargo, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a contribuição financeira em causa no processo principal é discriminatória, violando assim as prescrições do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72.

49

Com efeito, segundo o referido órgão jurisdicional, algumas das sociedades abrangidas por esta contribuição têm um peso específico muito reduzido no conjunto do setor espanhol da energia elétrica, ficando em contrapartida dispensadas do referido encargo outras sociedades ou grupos de sociedades que possam estar em melhores condições para o assumir, quer devido ao seu volume de negócios, quer à sua importância relativa em algum dos setores de atividade ou porque desenvolvem simultaneamente e de forma integrada duas das atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica.

50

A este respeito, importa salientar que o critério de diferenciação escolhido pelo legislador nacional não é objetivamente justificado na medida em que, em princípio, à luz do objetivo prosseguido por este legislador, que consiste em repartir o custo da tarifa social entre as principais atividades comerciais do setor da energia elétrica, todas as empresas que desenvolvem pelo menos uma dessas atividades principais devem contribuir para financiar esse custo.

51

Em especial, à luz de tal objetivo, a diferença entre as sociedades que desenvolvem as três atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica e aquelas que apenas exercem esta última atividade e uma das duas outras atividades, no que respeita à sua respetiva capacidade de assumir o custo financeiro induzido pela tarifa social, não é clara. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, no âmbito do processo principal, o representante da Administración del Estado (Administração do Estado, Espanha) reconheceu que a integração das atividades de produção e comercialização de energia elétrica também favorece as sinergias e as economias de escala.

52

Nestas condições, se, como indica o Governo espanhol, o regime do encargo financeiro da tarifa social equivale a impor entre 98 % e 99 % deste último sobre os cinco maiores operadores do mercado espanhol da eletricidade, não é menos verdade que o critério escolhido pelo legislador nacional para distinguir entre as sociedades que devem assumir, a um nível mais ou menos importante, esse custo e as que estão totalmente isentas, conduz a uma diferença de tratamento que não é objetivamente justificada entre as diferentes sociedades que operam nesse mercado.

53

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o custo de uma obrigação de serviço público, que consiste no fornecimento de energia elétrica a uma tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, recaia unicamente sobre as sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for caso disso, sobre as sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica, uma vez que esse critério, escolhido pelo legislador nacional para distinguir entre as sociedades que devem assumir esse custo e as que dele estão totalmente isentas, conduz a uma diferença de tratamento que não é objetivamente justificada entre as diferentes sociedades que operam nesse mercado.

Quanto à segunda questão

54

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o regime de financiamento de uma obrigação de serviço público, que consiste no fornecimento de energia elétrica a uma tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, seja instaurado sem limite temporal e sem medidas de compensação.

55

Em primeiro lugar, importa determinar se a ausência de limitação temporal do regime de financiamento dessa obrigação de serviço público viola o princípio da proporcionalidade. Como recordado no n.o 44 do presente acórdão, o respeito desse princípio é um dos requisitos para permitir uma intervenção estatal na fixação dos preços da eletricidade no âmbito da Diretiva 2009/72. O Tribunal de Justiça decidiu que essa intervenção apenas pode afetar a livre fixação do preço na medida do estritamente necessário para alcançar o objetivo prosseguido de interesse económico geral e, consequentemente, por um período limitado no tempo. Isso implica o reexame periódico da necessidade da referida intervenção (v., por analogia, Acórdão de 20 de abril de 2010, Federutility e o., C‑265/08, EU:C:2010:205, n.os 33 e 35).

56

A este respeito, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais examinar se e em que medida a administração está sujeita, por força do direito nacional, a uma obrigação de reexame periódico e suficientemente frequente da necessidade e das modalidades da sua intervenção sobre o preço da eletricidade, em função da evolução do setor da energia elétrica (v., por analogia, Acórdão de 30 de abril de 2020, Оvergas Mrezhi e Balgarska gazova asotsiatsia, C‑5/19, EU:C:2020:343, n.o 71).

57

Todavia, esta obrigação de reexame periódico apenas diz respeito ao caráter necessário da intervenção sobre os preços da eletricidade, bem como às modalidades dessa intervenção. Em contrapartida, não incide sobre o regime de financiamento desta medida de intervenção sobre os preços, a saber, no caso em apreço, a tarifa social. Com efeito, é certo que esse regime de financiamento constitui um elemento indissociavelmente ligado à medida de intervenção sobre os preços, mas que não afeta de forma autónoma os preços da eletricidade. Além disso, é a medida de intervenção sobre os preços, e não o referido regime de financiamento, que visa alcançar o objetivo de interesse económico geral à luz do qual importa verificar o respeito pelo princípio da proporcionalidade em função da evolução do setor da energia elétrica.

58

Por conseguinte, embora resulte da resposta à primeira questão que o regime de financiamento de uma obrigação de serviço público, que consiste numa obrigação de fornecimento de energia elétrica a preço reduzido, deve respeitar o princípio da não discriminação, previsto no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72, o requisito relativo ao respeito pelo princípio da proporcionalidade, que decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a esta disposição, não pode, em contrapartida, ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros são obrigados a reexaminar de forma periódica e frequente esse regime de financiamento.

59

Em segundo lugar, quanto à ausência de medidas de compensação, importa, por um lado, constatar que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 não contém nenhuma menção a uma eventual obrigação de compensação quando os Estados‑Membros impõem às empresas do setor da energia elétrica obrigações de serviço público nos termos desta disposição. Por outro lado, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 6, da Diretiva 2009/72, sempre que existam compensações de natureza financeira ou outra e direitos exclusivos concedidos pelos Estados‑Membros para o cumprimento das obrigações previstas nos n.os 2 e 3 desse artigo 3.o, estes devem ser atribuídos de forma transparente e não discriminatória.

60

Assim, decorre do artigo 3.o, n.os 2 e 6, da Diretiva 2009/72 que os Estados‑Membros não são obrigados a conceder compensações de natureza financeira quando decidem impor obrigações de serviço público ao abrigo desse artigo 3.o, n.o 2. O mesmo se aplica necessariamente no que se refere ao regime de financiamento destas obrigações, que, assim como resulta da análise da primeira questão, faz parte das mesmas. Por conseguinte, a ausência de tal compensação no âmbito do regime de financiamento de uma obrigação de serviço público não é, por si só, contrária a esta última disposição.

61

Resulta das considerações precedentes que o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que o regime de financiamento de uma obrigação de serviço público, que consiste no fornecimento de energia elétrica a uma tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, seja instaurado sem limite temporal e sem medidas de compensação.

Quanto às despesas

62

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

1)

O artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54/CE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o custo de uma obrigação de serviço público, que consiste no fornecimento de energia elétrica a uma tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, recaia unicamente sobre as sociedades‑mãe dos grupos de sociedades ou, se for caso disso, sobre as sociedades que desenvolvem simultaneamente as atividades de produção, distribuição e comercialização de energia elétrica, uma vez que esse critério, escolhido pelo legislador nacional para distinguir entre as sociedades que devem assumir esse custo e as que dele estão totalmente isentas, conduz a uma diferença de tratamento que não é objetivamente justificada entre as diferentes sociedades que operam nesse mercado.

 

2)

O artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2009/72 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que o regime de financiamento de uma obrigação de serviço público, que consiste no fornecimento de energia elétrica a uma tarifa reduzida a determinados consumidores vulneráveis, seja instaurado sem limite temporal e sem medidas de compensação.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.