ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

18 de novembro de 2020 ( *1 ) ( i )

[Texto retificado por Despacho de 13 de janeiro de 2021]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Contrato de transporte aéreo — Cláusula atributiva de jurisdição contratada pelo passageiro que tem a qualidade de consumidor — Crédito desse passageiro contra a transportadora aérea — Cessão desse crédito a uma sociedade de cobrança de créditos — Oponibilidade da cláusula atributiva de jurisdição pela transportadora aérea à sociedade cessionária do crédito do referido passageiro — Diretiva 93/13/CEE»

No processo C‑519/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Warszawie XXIII Wydział Gospodarczy Odwoławczy (Tribunal Regional de Varsóvia, 23.a Secção Comercial de Recurso, Polónia), por Decisão de 13 de junho de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de julho de 2019, no processo

Ryanair DAC

contra

DelayFix, anteriormente Passenger Rights sp. z o.o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, L. Bay Larsen, C. Toader (relatora), M. Safjan e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Ryanair DAC, por A. Kasnowska, adwokat, e M. Jóźwiak, radca prawny,

em representação da DelayFix, anteriormente Passenger Rights sp. z o.o., por M. Misiaszek, K. Żbikowska e I. Wieczorek, adwokaci,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

[Conforme retificado por Despacho de 13 de janeiro de 2020] em representação da Comissão Europeia, por M. Heller, A. Szmytkowska, e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), e da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe, por um lado, a Passenger Rights sp. z o.o., atual DelayFix, com sede em Varsóvia (Polónia), sociedade especializada na cobrança de créditos e à qual um passageiro aéreo cedeu os seus direitos, à transportadora aérea Ryanair DAC, por outro, com sede em Dublim (Irlanda), a respeito do pagamento de um montante de 250 euros a título de indemnização pelo cancelamento de um voo, com fundamento no Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (JO 2004, L 46, p. 1).

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 93/13

3

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, esta última tem por objetivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.

4

O artigo 2.o desta diretiva dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

b)

“Consumidor”, qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue com fins que não pertençam ao âmbito da sua atividade profissional;

[…]»

5

O artigo 3.o da referida diretiva prevê:

«1.   Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

2.   Considera‑se que uma cláusula não foi objeto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.

O facto de alguns elementos de uma cláusula ou uma cláusula isolada terem sido objeto de negociação individual não exclui a aplicação do presente artigo ao resto de um contrato se a apreciação global revelar que, apesar disso, se trata de um contrato de adesão.

Se o profissional sustar que uma cláusula normalizada foi objeto de negociação individual, caber‑lhe‑á o ónus da prova.

3.   O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»

6

O artigo 4.o, n.o 1, da mesma diretiva enuncia:

«[…] o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.»

7

Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

8

O ponto 1, alínea q), do anexo da referida diretiva visa as «[c]láusulas que têm como objetivo ou como efeito […] [s]uprimir ou entravar a possibilidade de intentar ações judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor […]».

Regulamento n.o 1215/2012

9

O capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, sob a epígrafe «Competência», contém dez secções. A secção 1, sob a epígrafe «Disposições gerais», inclui o artigo 4.o deste regulamento, que dispõe, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»

10

A secção 2 deste capítulo II, sob a epígrafe «Competências especiais», inclui o artigo 7.o do referido regulamento, que prevê:

«As pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro:

1)

a)

Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b)

Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

[…]

no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

[…]»

11

A secção 4 do referido capítulo II, sob a epígrafe «Competência em matéria de contratos de consumo», inclui o artigo 17.o do mesmo regulamento, que dispõe:

«[…]

3.   A presente secção não se aplica ao contrato de transporte, com exceção dos contratos de fornecimento de uma combinação de viagem e alojamento por um preço global.»

12

Nos termos do artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012, que figura na secção 7 do mesmo capítulo II, sob a epígrafe «Extensão de competência»:

«1.   Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a)

Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

b)

De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou

c)

No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.

[…]»

Direito polaco

13

Segundo o artigo 509.o do Kodeks cywilny (Código Civil), na sua versão aplicável ao processo principal:

«§ 1.   Um credor pode, sem o consentimento do devedor, ceder o crédito a terceiros (cessão do crédito), a menos que a lei, o contrato ou a natureza da obrigação o impeçam.

§ 2.   A cessão do crédito abrange a cessão de todos os direitos com ele conexos, nomeadamente, o direito aos juros de mora.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

14

A Passenger Rights, sociedade especializada na cobrança de créditos de passageiros aéreos, atual DelayFix, pediu ao Sąd Rejonowy dla m. st. Warszawy w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância da Cidade de Varsóvia, Polónia) que condenasse a transportadora aérea Ryanair, com base no Regulamento n.o 261/2004, no pagamento de um montante de 250 euros a título de indemnização pelo cancelamento de um voo entre Milão (Itália) e Varsóvia, cujo crédito contra essa transportadora aérea lhe foi atribuído por um passageiro.

15

A Ryanair deduziu uma exceção de incompetência dos órgãos jurisdicionais polacos, com o fundamento de que a cláusula 2.4 das suas condições gerais de transporte, contratadas por esse passageiro no momento da compra do seu bilhete em linha, estipula uma competência a favor dos órgãos jurisdicionais irlandeses. Segundo a Ryanair, a DelayFix, enquanto cessionária do crédito do referido passageiro, está vinculada por esta cláusula.

16

Por Despacho de 15 de fevereiro de 2019, o Sąd Rejonowy dla m. st. Warszawy w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância da Cidade de Varsóvia) julgou improcedente esta exceção de incompetência, considerando que, por um lado, a cláusula atributiva de jurisdição constante do contrato de transporte que vincula o mesmo passageiro e a transportadora aérea era abusiva, na aceção da Diretiva 93/13, e, por outro, a DelayFix, enquanto cessionária do crédito deste após o cancelamento do voo, não podia estar vinculada por essa cláusula.

17

A Ryanair interpôs recurso desse despacho para o órgão jurisdicional de reenvio. Alegou que a DelayFix não é um consumidor, e como tal esta última não pode beneficiar da proteção jurisdicional prevista para os contratos com consumidores.

18

O órgão jurisdicional de reenvio precisa que, segundo as disposições nacionais e no estado atual da jurisprudência do Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia), o caráter abusivo de uma cláusula contratual pode ser declarado no âmbito do exame de uma ação para pagamento intentada contra um devedor por um profissional que adquiriu o crédito de um consumidor.

19

No entanto, em primeiro lugar, esse órgão jurisdicional pergunta se, atendendo ao artigo 3.o, n.o 1, e ao artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, o cessionário do crédito de um consumidor pode igualmente ser considerado um consumidor. Mais especificamente, tem dúvidas quanto à questão de saber se a cessão pelo consumidor do seu crédito a um profissional tem por efeito sub‑rogá‑lo nos seus direitos, permitindo‑lhe invocar o regime favorável da União em matéria de proteção dos consumidores que decorre nomeadamente desta diretiva.

20

Em segundo lugar, as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito à jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à aplicação do Regulamento n.o 1215/2012, no que respeita ao regime jurídico das cláusulas atributivas de jurisdição, previsto no artigo 25.o deste regulamento, bem como ao regime especial previsto na secção 4 do capítulo II do referido regulamento, relativa à «competência em matéria de contratos de consumo», e, especialmente, ao conceito de «consumidor» que figura nesta secção.

21

No que respeita, por um lado, às cláusulas previstas no artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012, esse órgão jurisdicional sublinha que resulta do Acórdão de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp (C‑543/10, EU:C:2013:62), que este tipo de cláusula que figura num contrato só pode, em princípio, produzir os seus efeitos na esfera das relações entre as partes que concordaram em celebrar esse contrato. Com efeito, tal cláusula procede de um acordo entre as partes e, para que possa ser oponível a um terceiro, é, em princípio, necessário que este tenha dado o seu consentimento para esse efeito.

22

No que respeita, por outro lado, ao conceito de «consumidor», na aceção da secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, o referido órgão jurisdicional sublinha que, uma vez que o regime especial instituído nos artigos 17.o e seguintes deste regulamento é inspirado pela preocupação de proteger o consumidor enquanto parte no contrato considerada economicamente mais fraca e juridicamente menos experiente do que o seu cocontratante, o consumidor só é protegido na medida em que for pessoalmente demandante ou demandado num processo judicial. Por conseguinte, se o próprio demandante não for parte no contrato de consumo em causa, não pode beneficiar do foro do consumidor. Tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o mesmo órgão jurisdicional pergunta se, para determinar a competência do juiz e a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição, há que ter em conta a natureza «inicial» da obrigação ou se o profissional cessionário do crédito em causa pode contestar essa cláusula devido ao seu caráter abusivo com base no regime de proteção dos consumidores previsto, nomeadamente, na Diretiva 93/13.

23

Nestas condições, o Sąd Okręgowy w Warszawie XXIII Wydział Gospodarczy Odwoławczy (Tribunal Regional de Varsóvia, 23.a Secção Comercial de Recurso, Polónia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 2.o, alínea b), 3.o, [n.os] 1 e 2, e o artigo 6.o[,] n.o 1[,] da Diretiva 93/13 […] e o artigo 25.o do Regulamento [n.o 1215/2012] — no que diz respeito à apreciação da validade de um pacto de jurisdição — ser interpretados no sentido de que o adquirente final de um crédito cedido por um consumidor, mas que não é ele próprio um consumidor, também pode invocar a falta de negociação individual das condições do contrato e o caráter abusivo das cláusulas decorrentes de um pacto de jurisdição?»

Quanto ao pedido da Ryanair de abertura da fase oral do processo

24

Por pedido de 4 de novembro de 2020, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça no mesmo dia, a Ryanair pediu, com fundamento no artigo 83.o do Regulamento de Processo, a abertura da fase oral do processo alegando que as circunstâncias visadas pela decisão de reenvio não foram suficientemente explicadas, que um debate um debate aprofundado seria necessário e que a resolução do presente processo poderia exercer uma influência decisiva na interpretação das disposições pertinentes do direito da União.

25

Importa recordar que, em conformidade com esta disposição, o Tribunal pode, oficiosamente ou sob proposta do advogado‑geral, ou ainda a pedido das partes, ordenar a abertura da fase oral se considerar, designadamente, que está suficientemente esclarecido ou que o processo deve ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes.

26

No caso vertente, as condições estabelecidas pela referida disposição não se encontram preenchidas.

27

Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio expôs suficientemente as circunstâncias de facto assim como o quadro regulamentar nacional. Do mesmo modo, a fase escrita do processo pendente no Tribunal já permitiu às partes exprimir as suas posições. Além disso, o pedido de decisão prejudicial não necessita de modo nenhum de ser resolvido com base em argumentos que não tenham sido debatidos entre as partes.

28

Por conseguinte, ouvido o advogado‑geral, deve ser indeferido o pedido da Ryanair de abrir a fase oral do processo.

Quanto à questão prejudicial

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

29

Na fase escrita do processo, a Ryanair indicou ter pagado o montante reclamado que está na origem do litígio que foi submetido ao órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial ficou sem objeto.

30

Questionado a este respeito pelo Tribunal de Justiça, esse órgão jurisdicional indica que o processo principal foi apensado a dois outros processos, que implicam as partes no processo principal e que têm por objeto pedidos de indemnização igualmente apresentados com base no Regulamento n.o 261/2004, pelo que um litígio continua nele pendente.

31

Resulta simultaneamente dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe que esteja efetivamente pendente um litígio nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual estes são chamados a proferir uma decisão suscetível de ter em consideração a decisão prejudicial. Com efeito, a justificação do reenvio prejudicial não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio (v., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť, C‑470/12, EU:C:2014:101, n.os 28, 29 e jurisprudência referida).

32

No caso em apreço, há que salientar que o processo principal foi apensado a dois outros processos, em relação aos quais não está demonstrado perante o Tribunal de Justiça que os pedidos de indemnização foram regularizados, pelo que há que considerar que o litígio no processo principal ainda está pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

33

Ora, na medida em que o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes foi submetido, tal indicação de um órgão jurisdicional nacional vincula o Tribunal de Justiça e não pode, em princípio, ser posta em causa pelas partes no processo principal (Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť, C‑470/12, EU:C:2014:101, n.o 30 e jurisprudência referida).

34

Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto ao mérito

35

Com a questão submetida, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012 e o artigo 2.o, alínea b), o artigo 3.o, n.os 1 e 2, e o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que, para contestar a competência de um órgão jurisdicional para conhecer de uma ação de indemnização intentada com base no Regulamento n.o 261/2004 e dirigida contra uma transportadora aérea, uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num contrato de transporte entre um passageiro e essa transportadora aérea pode ser oposta por esta última a uma sociedade de cobrança à qual o passageiro cedeu o crédito.

36

A resposta a esta questão implica determinar em que condições essa cláusula atributiva de jurisdição pode vincular a sociedade de cobrança à qual o passageiro cedeu o seu crédito.

37

Embora as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio relativas à cláusula atributiva de jurisdição em causa no processo principal visem simultaneamente a Diretiva 93/13 e o Regulamento n.o 1215/2012, uma vez que o regime jurídico deste tipo de cláusula é determinado pelo artigo 25.o deste regulamento, importa começar por examinar a questão submetida atendendo a este artigo.

38

Segundo jurisprudência constante, o conceito de cláusula atributiva de jurisdição deve ser interpretado como um conceito autónomo do direito da União e dar ao princípio da autonomia da vontade, no qual se fundamenta o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, a sua plena aplicação (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de março de 1992, Powell Duffryn, C‑214/89, EU:C:1992:115, n.o 14; de 9 de dezembro de 2003, Gasser, C‑116/02, EU:C:2003:657, n.o 51 e jurisprudência referida; e de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp, C‑543/10, EU:C:2013:62, n.os 22, 40 e jurisprudência referida).

39

Em especial, a circunstância de o contrato em causa ter sido celebrado em linha não é suscetível, por si só, de invalidar essa cláusula, sob reserva do respeito das condições enunciadas na jurisprudência do Tribunal de Justiça, relativas, nomeadamente, à conservação do texto em que essa cláusula está estipulada (v., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.o 40).

40

Além disso, o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento 1215/2012 não esclarece se uma cláusula atributiva de jurisdição pode ser cedida, para além do círculo das partes num contrato, a um terceiro, parte num contrato ulterior e que sucede, total ou parcialmente, nos direitos e nas obrigações de uma das partes no contrato inicial (Acórdãos de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp, C‑543/10, EU:C:2013:62, n.o 25, e de 20 de abril de 2016, Profit Investment SIM, C‑366/13, EU:C:2016:282, n.o 23).

41

Assim, o juiz chamado a pronunciar‑se tem a obrigação de analisar, in limine litis, se a cláusula atributiva de jurisdição foi efetivamente objeto de consentimento entre as partes, que se deve manifestar de forma clara e precisa, uma vez que as exigências de forma estabelecidas no artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012 têm por função, a este respeito, assegurar que o consentimento seja efetivamente provado (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp, C‑543/10, EU:C:2013:62, n.o 27 e jurisprudência referida, e de 8 de março de 2018, Saey Home & Garden, C‑64/17, EU:C:2018:173, n.o 25 e jurisprudência referida).

42

Daqui resulta que, em princípio, uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num contrato só pode produzir efeitos nas relações entre as partes que concordaram em celebrar esse contrato (Acórdãos de 7 de fevereiro de 2013, C‑543/10, EU:C:2013:62, n.o 29, e de 28 de junho de 2017, Leventis e Vafeias, C‑436/16, EU:C:2017:497, n.o 35 e jurisprudência referida).

43

No caso em apreço, a cláusula atributiva de jurisdição no processo principal é oposta não a uma parte que figura no contrato, mas a um terceiro a este contrato.

44

Ora, embora nem a Passenger Rights nem a DelayFix, que sucedeu a esta, tenha consentido ficar vinculada à Ryanair por uma cláusula atributiva de jurisdição, esta transportadora aérea também não consentiu em ficar vinculada a essa sociedade de cobrança por tal cláusula.

45

Além disso, nem as partes no processo principal nem o órgão jurisdicional de reenvio apresentam elementos ou indícios que permitam considerar que as partes tenham, sob uma das formas previstas no artigo 25.o, n.o 1, alíneas b) e c), do Regulamento n.o 1215/2012, celebrado um pacto atributivo de jurisdição que inclua uma cláusula de extensão de competência, como no processo principal.

46

Por conseguinte, resulta do exposto que, para contestar a competência de um órgão jurisdicional para conhecer de uma ação de indemnização intentada com base no Regulamento n.o 261/2004 e dirigida contra uma transportadora aérea, uma cláusula atributiva de jurisdição inserida no contrato de transporte entre um passageiro e essa transportadora aérea não pode, em princípio, ser oposta por esta última a uma sociedade de cobrança à qual o passageiro cedeu o seu crédito.

47

Unicamente no caso de, em conformidade com o direito nacional substantivo aplicável, o terceiro suceder ao contratante originário em todos os direitos e obrigações é que uma cláusula atributiva de jurisdição a que este terceiro não deu o seu consentimento poderia, no entanto, ser‑lhe aplicável (v., neste sentido, Acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 65 e jurisprudência referida).

48

A questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio pressupõe igualmente a determinação das condições de validade de tal cláusula.

49

Segundo o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012, os tribunais designados no pacto atributivo de jurisdição terão competência, a menos que o pacto seja, «nos termos da lei desse Estado‑Membro», substantivamente nulo. O legislador da União introduziu assim a regra segundo a qual a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição é apreciada por força da legislação do Estado em que os órgãos jurisdicionais são designados nessa cláusula.

50

No caso em apreço, se o órgão jurisdicional de reenvio examinar a validade da cláusula atributiva de jurisdição, cabe‑lhe, por conseguinte, fazê‑lo à luz da legislação do Estado cujos órgãos jurisdicionais são designados nessa cláusula, ou seja, à luz do direito irlandês.

51

Além disso, incumbe ao órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se sobre um litígio, como o que está em causa no processo principal, aplicar a legislação do Estado cujos órgãos jurisdicionais são designados na referida cláusula, interpretando essa legislação em conformidade com o direito da União, e nomeadamente com a Diretiva 93/13 (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de abril de 2016, Radlinger e Radlingerová, C‑377/14, EU:C:2016:283, n.o 79, e de 17 de maio de 2018, Karel de Grote — Hogeschool Katholieke Hogeschool Antwerpen, C‑147/16, EU:C:2018:320, n.o 41).

52

A este respeito, em primeiro lugar, importa sublinhar que, no que respeita às relações entre a Diretiva 93/13 e os direitos dos passageiros aéreos como os que resultam do Regulamento n.o 261/2004, o Tribunal de Justiça declarou que a Diretiva 93/13 constitui uma regulamentação geral de proteção dos consumidores, aplicável em todos os setores da atividade económica, incluindo o do transporte aéreo (v., neste sentido, Acórdão de 6 de julho de 2017, Air Berlin, C‑290/16, EU:C:2017:523, n.o 44 e jurisprudência referida).

53

Em segundo lugar, importa salientar que, em circunstâncias análogas às do processo principal de cessão de créditos a uma sociedade de cobrança, o Tribunal de Justiça declarou, no que respeita à Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO 2008, L 133, p. 66), que o facto de os litígios em causa nesses processos oporem unicamente profissionais não obsta à aplicação de um instrumento de direito do consumo da União, na medida em que o âmbito de aplicação desta diretiva não depende da identidade das partes no litígio em causa, mas da qualidade das partes no contrato (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2019, Lexitor, C‑383/18, EU:C:2019:702, n.o 20).

54

Há que transpor esta jurisprudência no que respeita à aplicação da Diretiva 93/13.

55

Com efeito, segundo o artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, esta última aplica‑se às cláusulas dos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor que não tenham sido objeto de negociação individual [Acórdãos de 7 de novembro de 2019, Profi Credit Polska, C‑419/18 e C‑483/18, EU:C:2019:930, n.o 51 e jurisprudência referida, e de 10 de setembro de 2020, A (Subarrendamento de uma habitação social),C‑738/19, EU:C:2020:687, n.o 34].

56

No caso em apreço, o contrato de transporte, no qual se baseia o crédito invocado pela DelayFix, foi inicialmente celebrado entre um profissional, a saber, a transportadora aérea, e um passageiro, e nada indica que este último tenha comprado o seu bilhete de avião para fins não privados.

57

Em terceiro lugar, importa recordar que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, uma cláusula é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato em causa.

58

A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que uma cláusula atributiva de jurisdição, inserida num contrato celebrado entre um consumidor e um profissional sem ter sido objeto de negociação individual e que confere competência exclusiva ao órgão jurisdicional do foro da sede do profissional, deve ser considerada abusiva na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, na medida em que, a despeito da exigência de boa‑fé, cria, em detrimento do consumidor em causa, um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes que decorrem desse contrato (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores, C‑240/98 a C‑244/98, EU:C:2000:346, n.o 24; de 4 de junho de 2009, Pannon GSM, C‑243/08, EU:C:2009:350, n.o 40; e de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing, C‑137/08, EU:C:2010:659, n.o 53).

59

Com efeito, essa cláusula insere‑se na categoria das que têm por objetivo ou efeito suprimir ou entravar a possibilidade de instaurar ações judiciais, categoria referida no n.o 1, alínea q), do anexo desta diretiva (Acórdãos de 27 de junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores, C‑240/98 a C‑244/98, EU:C:2000:346, n.o 22; de 4 de junho de 2009, Pannon GSM, C‑243/08, EU:C:2009:350, n.o 41; e de 9 de novembro de 2010, VB Pénzügyi Lízing, C‑137/08, EU:C:2010:659, n.o 54).

60

Neste contexto, o caráter abusivo de uma cláusula contratual poderá ser avaliado em função da natureza dos serviços que sejam objeto do contrato em causa e mediante consideração de todas as circunstâncias que rodearam a sua celebração, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13.

61

Assim, incumbe ao órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio como o do processo principal, em aplicação da legislação do Estado cujos órgãos jurisdicionais são designados numa cláusula atributiva de jurisdição, e interpretando essa legislação em conformidade com as exigências da Diretiva 93/13, retirar as consequências jurídicas do eventual caráter abusivo dessa cláusula, uma vez que decorre da redação do artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva que os juízes nacionais são obrigados a afastar a aplicação de uma cláusula contratual abusiva para que não produza efeitos vinculativos.

62

Por último, há que sublinhar que, segundo jurisprudência constante, nos termos do artigo 7.o, ponto 1, alínea b), do Regulamento n.o 1215/2012, e no caso de voos diretos, quer o lugar de partida quer o lugar de chegada do avião devem ser considerados, ao mesmo título, os lugares da prestação principal dos serviços que são objeto de um contrato de transporte aéreo, conferindo, desse modo, ao autor de uma ação de indemnização proposta com base no Regulamento n.o 261/2004 a escolha de propor a ação no tribunal em cuja jurisdição se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são acordados no referido contrato (v., neste sentido, Acórdão de 9 de julho de 2009, Rehder, C‑204/08, EU:C:2009:439, n.o 47, e Despacho de 13 de fevereiro de 2020, flightright, C‑606/19, EU:C:2020:101, n.o 26).

63

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 25.o do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, para contestar a competência de um órgão jurisdicional para conhecer de uma ação de indemnização intentada com base no Regulamento n.o 261/2004 e dirigida contra uma transportadora aérea, uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num contrato de transporte celebrado entre um passageiro e essa transportadora aérea não pode ser oposta por esta última a uma sociedade de cobrança à qual o passageiro cedeu o seu crédito, a menos que, segundo a legislação do Estado cujos órgãos jurisdicionais são designados nessa cláusula, essa sociedade de cobrança tenha sucedido ao contratante original em todos os seus direitos e obrigações, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Se for caso disso, essa cláusula, que é inserida sem ter sido objeto de negociação individual num contrato celebrado entre um consumidor, a saber, o passageiro aéreo, e um profissional, a saber, a referida transportadora aérea, e que confere competência exclusiva ao órgão jurisdicional em cuja jurisdição se situa a sua sede, deve ser considerada abusiva, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13.

Quanto às despesas

64

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 25.o do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, para contestar a competência de um órgão jurisdicional para conhecer de uma ação de indemnização intentada com base no Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91, e dirigida contra uma transportadora aérea, uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num contrato de transporte celebrado entre um passageiro e essa transportadora aérea não pode ser oposta por esta última a uma sociedade de cobrança à qual o passageiro cedeu o seu crédito, a menos que, segundo a legislação do Estado cujos órgãos jurisdicionais são designados nessa cláusula, essa sociedade de cobrança tenha sucedido ao contratante original em todos os seus direitos e obrigações, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Se for caso disso, essa cláusula, que é inserida sem ter sido objeto de negociação individual num contrato celebrado entre um consumidor, a saber, o passageiro aéreo, e um profissional, a saber, a referida transportadora aérea, e que confere competência exclusiva ao órgão jurisdicional em cuja jurisdição se situa a sua sede, deve ser considerada abusiva, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: polaco.

( i ) Na sequência de uma verificação de texto por parte da Unidade Portuguesa, houve necessidade de corrigir o texto no ponto n.o 63 e no Dispositivo.