ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

30 de setembro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Diretiva 2008/115/CE — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Progenitor de um filho maior que sofre de uma doença grave — Decisão de regresso — Recurso judicial — Efeito suspensivo de pleno direito — Garantias enquanto se aguarda o regresso — Necessidades de base — Artigos 7.o, 19.o e 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»

No processo C‑402/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela cour du travail de Liège (Tribunal Superior do Trabalho de Liège, Bélgica), por Decisão de 17 de maio de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de maio de 2019, no processo

LM

contra

Centre public d’action sociale de Seraing,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, M. Safjan, L. Bay Larsen (relator), C. Toader e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo belga, por P. Cottin, M. Jacobs e C. Pochet, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e J. M. Hoogveld, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga e A. Azema, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 4 de março de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 5.o e 13.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe LM, nacional de um país terceiro, ao centre public d’action sociale de Seraing (Centro Público de Ação Social de Seraing, Bélgica) (a seguir «CPAS») a respeito das decisões deste último que retiram a LM o benefício do auxílio social.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 3.o da Diretiva 2008/115 dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

3)

“Regresso”, o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo:

ao país de origem, ou

a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções, ou

a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceite;

4)

“Decisão de regresso”, uma decisão ou ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso;

5)

“Afastamento”, a execução do dever de regresso, ou seja, o transporte físico para fora do Estado‑Membro».

4

O artigo 5.o desta diretiva enuncia:

«Na aplicação da presente diretiva, os Estados‑Membros devem ter em devida conta o seguinte:

[…]

c)

O estado de saúde do nacional de país terceiro em causa,

e respeitar o princípio da não repulsão.»

5

O artigo 8.o, n.o 3, da referida diretiva prevê:

«Os Estados‑Membros podem emitir uma ordem de afastamento por decisão ou ato administrativo ou judicial autónomo.»

6

O artigo 9.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Adiamento do afastamento», prevê, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros adiam o afastamento nos seguintes casos:

a)

O afastamento representa uma violação do princípio da não repulsão; ou

b)

Durante a suspensão concedida nos termos do n.o 2 do artigo 13.o»

7

O artigo 13.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2008/115 enuncia:

«1.   O nacional de país terceiro em causa deve dispor de vias de recurso efetivo contra as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o, ou da possibilidade de requerer a sua reapreciação, perante uma autoridade judicial ou administrativa competente ou um órgão competente composto por membros imparciais que ofereçam garantias de independência.

2.   A autoridade ou o órgão acima mencionados são competentes para reapreciar as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.o 1 do artigo 12.o, incluindo a possibilidade de suspender temporariamente a sua execução, a menos que a suspensão temporária já seja aplicável ao abrigo da legislação nacional.»

8

O artigo 14.o, n.o 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

«À exceção da situação prevista nos artigos 16.o e 17.o, os Estados‑Membros asseguram que sejam tidos em conta, tanto quanto possível, os seguintes princípios em relação aos nacionais de países terceiros durante o prazo para a partida voluntária concedido nos termos do artigo 7.o e durante os períodos de adiamento do afastamento previstos no artigo 9.o:

a)

A manutenção da unidade familiar com os membros da família presentes no seu território;

b)

A prestação de cuidados de saúde urgentes e o tratamento básico de doenças;

c)

A concessão de acesso ao sistema de ensino básico aos menores, consoante a duração da sua permanência;

d)

A consideração das necessidades específicas das pessoas vulneráveis.»

Direito belga

9

O artigo 57.o, n.o 2, da loi organique des centres publics d’action sociale (Lei Orgânica de 8 de julho de 1976 dos Centros Públicos de Ação Social), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, prevê:

«Em derrogação das outras disposições da presente lei, a missão do Centro Público de Ação social limita‑se:

1.o

À concessão de assistência médica urgente aos estrangeiros que permaneçam ilegalmente no Reino;

[…]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

10

Em 20 de agosto de 2012, LM apresentou, para si próprio e para a sua filha R, então menor, pedidos de autorização de residência por razões médicas, com fundamento no facto de que R sofre de várias doenças graves.

11

Tendo esses pedidos sido declarados admissíveis em 6 de março de 2013, LM beneficiou do auxílio social, estando este último a cargo do CPAS.

12

Três decisões de indeferimento dos pedidos de autorização de residência apresentados por LM foram sucessivamente adotadas e posteriormente retiradas pela autoridade competente. Em 8 de fevereiro de 2016, uma quarta decisão de indeferimento destes pedidos foi adotada. Esta decisão era acompanhada de uma ordem para abandonar o território belga.

13

LM interpôs, em 25 de março de 2016, um recurso destinado a obter a anulação e a suspensão da referida decisão de indeferimento dos seus pedidos e da ordem para abandonar o território no Conseil du contentieux des étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica).

14

O CPAS retirou a LM o benefício do auxílio social, a contar de 26 de março de 2016, data do termo do prazo para a partida voluntária que lhe tinha sido concedido pela ordem para abandonar o território belga. Em contrapartida, o CPAS concedeu a LM o benefício da assistência médica urgente, a contar de 22 de março de 2016.

15

Na sequência de um processo de medidas provisórias instaurado por LM no tribunal du travail de Liège (Tribunal do Trabalho de Liège, Bélgica), os direitos do interessado ao auxílio social foram restabelecidos.

16

Por duas Decisões de 16 de maio de 2017, o CPAS retirou esses direitos ao auxílio social, a contar de 11 de abril de 2017, data em que a filha de LM atingiu a maioridade.

17

LM interpôs recurso dessas decisões no tribunal du travail de Liège (Tribunal do Trabalho de Liège). Por Sentença de 16 de abril de 2018, esse órgão jurisdicional considerou que a retirada dos direitos ao auxílio social tinha fundamento legal a contar da data em que R tinha atingido a maioridade.

18

Em 22 de maio de 2018, LM interpôs recurso dessa sentença para a cour du travail de Liège (Tribunal Superior do Trabalho de Liège, Bélgica).

19

Esse órgão jurisdicional constata que a degradação previsível do estado de saúde de R, em caso de regresso ao seu país de origem, parece corresponder em todos os pontos ao limiar de gravidade exigido para que seja considerado que o afastamento da interessada a exporia a tratos desumanos ou degradantes. Além disso, salienta que, atendendo ao estado de saúde de R, a presença do pai desta a seu lado continua a ser tão indispensável como quando era menor.

20

Foi nestas circunstâncias que a cour du travail de Liège (Tribunal Superior do Trabalho de Liège) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 57.o, [n.o] 2, primeiro parágrafo, 1.o, da [Lei Orgânica de 8 de julho de 1976 dos Centros Públicos de Ação Social] é contrário aos artigos 5.o e 13.o da Diretiva [2008/115], lidos à luz dos artigos 19.o, n.o 2, e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 14.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva e dos artigos 7.o e 12.o da Carta dos Direitos Fundamentais […], conforme interpretados pelo Acórdão [de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453)]:

primo, na medida em que tem como consequência privar um estrangeiro nacional de um Estado terceiro, em situação de residência ilegal no território de um Estado‑Membro, da tomada a cargo, na medida do possível, das suas necessidades de base na pendência do recurso de anulação e de suspensão por ele interposto, em seu nome pessoal e [na sua qualidade] de representante do filho, então ainda menor, de uma decisão que lhes ordena que abandonem o território de um Estado‑Membro;

quando, secundo, por um lado, o referido filho, hoje maior, sofre de uma doença grave, que a execução dessa decisão é suscetível de expor a um risco sério de deterioração grave e irreversível do estado de saúde[,] e, por outro, a presença desse progenitor junto do seu filho maior é considerada indispensável pela equipa médica devido à sua vulnerabilidade decorrente do seu estado de saúde (crises de drepanocitose recidivantes e necessidade de uma intervenção cirúrgica para evitar a paralisia)?»

Quanto à questão prejudicial

Quanto à admissibilidade

21

O Governo belga sustenta que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, na medida em que tem por objeto a compatibilidade de uma norma de direito belga com diversas disposições da Diretiva 2008/115 e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), uma vez que não existe, segundo esse Governo, nenhum elo de ligação entre a situação de LM e o direito da União.

22

Este Governo considera, assim, que LM não pode aspirar ao benefício de um auxílio social. Com efeito, não recai sobre ele um afastamento e não se encontra numa das situações previstas no artigo 14.o desta diretiva, uma vez que, por um lado, o prazo para a partida voluntária que lhe foi concedido expirou e, por outro, não se encontra num período durante o qual o afastamento foi adiado.

23

Além disso, uma vez que LM não sofre de uma doença grave, o seu eventual afastamento não pode constituir uma violação do artigo 5.o da referida diretiva, lido à luz do artigo 19.o, n.o 2, da Carta. Assim, a sua situação não é comparável com a que está em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453).

24

A este respeito, importa recordar que o sistema de cooperação instituído pelo artigo 267.o TFUE se baseia numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça. No âmbito de um processo instaurado ao abrigo deste artigo, a interpretação das disposições nacionais cabe aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros e não ao Tribunal de Justiça, e não incumbe a este último pronunciar‑se sobre a compatibilidade das normas de direito interno com as disposições do direito da União. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça é competente para fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito da União que lhe permitam apreciar a compatibilidade de normas de direito interno com a regulamentação da União (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de dezembro de 1981, Frans‑Nederlandse Maatschappij voor Biologische Producten, 272/80, EU:C:1981:312, n.o 9, e de 30 de abril de 2020, CTT — Correios de Portugal, C‑661/18, EU:C:2020:335, n.o 28).

25

Por conseguinte, embora os termos da questão submetida a título prejudicial pelo órgão jurisdicional de reenvio convidem o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se sobre a compatibilidade de uma disposição de direito interno com o direito da União, nada se opõe a que o Tribunal de Justiça dê uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, fornecendo‑lhe os elementos de interpretação do direito da União que lhe permitirão decidir sobre a compatibilidade do direito interno com o direito da União. Consequentemente, na medida em que esta questão tenha por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v., neste sentido, Acórdão de 30 de abril de 2020, CTT — Correios de Portugal, C‑661/18, EU:C:2020:335, n.o 29 e jurisprudência referida).

26

Por outro lado, há que constatar que a questão submetida visa, nomeadamente, determinar se o artigo 14.o da Diretiva 2008/115 é aplicável a um nacional de um país terceiro como o recorrente no processo principal, mesmo que este não sofra de uma doença grave. Portanto, a apreciação da argumentação apresentada pelo Governo belga, segundo a qual a situação de LM é desprovida de qualquer elo de ligação com o direito da União, está indissociavelmente ligada à resposta que deve ser dada à questão submetida e não é, por conseguinte, suscetível de conduzir à inadmissibilidade dessa questão (v., por analogia, Acórdãos de 17 de janeiro de 2019, KPMG Baltics, C‑639/17, EU:C:2019:31, n.o 11, e de 3 de dezembro de 2019, Iccrea Banca, C‑414/18, EU:C:2019:1036, n.o 30).

27

Daqui resulta que a questão submetida é admissível.

Quanto ao mérito

28

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 5.o, 13.o e 14.o da Diretiva 2008/115, lidos à luz do artigo 7.o, do artigo 19.o, n.o 2, bem como dos artigos 21.o e 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que não prevê a tomada a cargo, tanto quanto possível, das necessidades de base de um nacional de um país terceiro quando:

este último recorreu da decisão de regresso tomada a seu respeito;

o filho maior desse nacional de um país terceiro sofre de uma doença grave;

a presença do referido nacional de um país terceiro junto desse filho maior é indispensável a este último; e

foi interposto, por conta do referido filho maior, recurso de uma decisão de regresso tomada a seu respeito, cuja execução seria suscetível de expor este último a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde.

29

O artigo 14.o da Diretiva 2008/115 prevê certas garantias enquanto se aguarda o regresso, nomeadamente nos períodos ao longo dos quais o afastamento foi adiado em conformidade com o artigo 9.o desta diretiva (Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 55).

30

Embora decorra da decisão de reenvio que as autoridades belgas não decidiram formalmente adiar o afastamento do recorrente no processo principal, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a obrigação de adiar o afastamento prevista no artigo 9.o, n.o 1, alínea b), da referida diretiva se aplica em todas as situações em que um Estado‑Membro é obrigado a suspender a execução de uma decisão de regresso na sequência da interposição de um recurso dessa decisão (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 57).

31

Daqui resulta que as garantias enquanto se aguarda o regresso mencionadas no artigo 14.o da Diretiva 2008/115 devem ser asseguradas nas situações em que o Estado‑Membro em causa é obrigado a oferecer a um nacional de um país terceiro um recurso suspensivo de pleno direito da decisão de regresso tomada a seu respeito (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 53 e 58).

32

Por conseguinte, a fim de responder à questão submetida, há que determinar se o pai de um filho maior, gravemente doente, cuja presença junto desse filho maior é indispensável a este último, deve beneficiar, numa situação como a que está em causa no processo principal, desse recurso suspensivo.

33

A este respeito, importa recordar que, por força do artigo 13.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2008/115, um nacional de país terceiro deve dispor de uma via de recurso efetiva para impugnar uma decisão de regresso tomada a seu respeito, mas que esse recurso não tem necessariamente efeito suspensivo (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 43 e 44).

34

Todavia, as características do referido recurso devem ser determinadas em conformidade com o artigo 47.o da Carta, nos termos do qual toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos nesse artigo, e com o princípio da não repulsão, garantido, nomeadamente, no artigo 19.o, n.o 2, da Carta e no artigo 5.o da Diretiva 2008/115 (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 45 e 46, e de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.os 52 e 53).

35

O Tribunal de Justiça deduziu das considerações precedentes que o recurso interposto de uma decisão de regresso deve, a fim de assegurar, relativamente ao nacional de um país terceiro em causa, o respeito das exigências que decorrem do princípio da não repulsão e do artigo 47.o da Carta, revestir um efeito suspensivo de pleno direito, quando a execução dessa decisão seja, nomeadamente, suscetível de expor esse nacional a um risco real de ser submetido a tratos contrários ao artigo 19.o, n.o 2, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi, C‑181/16, EU:C:2018:465, n.o 56).

36

É, designadamente, o que acontece quando a execução de uma decisão de regresso é suscetível de expor um nacional de um país terceiro, que sofre de uma doença grave, a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 53).

37

Em contrapartida, impõe‑se constatar que o progenitor desse nacional de um país terceiro não está, em razão exclusivamente dessa qualidade, diretamente exposto a um risco de sofrer tratos contrários ao artigo 19.o, n.o 2, da Carta em caso de execução de uma decisão de regresso.

38

No entanto, importa sublinhar que a obrigação de assegurar, em certos casos, a um nacional de um país terceiro que sofra de uma doença grave o benefício de um recurso suspensivo de pleno direito da decisão de regresso da qual é objeto visa, finalmente, garantir que essa decisão não será executada antes de a argumentação invocada em apoio desse recurso ser examinada por uma autoridade competente, na medida em que essa execução implicaria um regresso a um país terceiro no qual o referido nacional corre o risco de sofrer tratos desumanos ou degradantes (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 49 e 50).

39

Esta obrigação tem, assim, por objetivo permitir à pessoa em causa manter‑se temporariamente no território do Estado‑Membro que adotou uma decisão de regresso a seu respeito.

40

Ora, quando essa pessoa está, devido ao seu estado de saúde, inteiramente sob a dependência de um progenitor cuja presença a seu lado é indispensável, a execução de uma decisão de regresso adotada em relação a esse progenitor, na medida em que implicaria a partida imediata deste para um país terceiro, poderia impedir, de facto, a referida pessoa de se manter temporariamente no território desse Estado‑Membro.

41

Por conseguinte, autorizar a execução dessa decisão de regresso antes de a argumentação relativa à situação desse filho ter sido examinada por uma autoridade competente poderia privar, na prática, o referido filho da proteção de que deve beneficiar ao abrigo dos artigos 5.o e 13.o da Diretiva 2008/115, lidos à luz do artigo 19.o, n.o 2, e do artigo 47.o da Carta. Por conseguinte, para garantir a efetividade desta proteção, o progenitor do mesmo filho deve, em aplicação dessas disposições, beneficiar de um recurso suspensivo de pleno direito da decisão de regresso tomada a seu respeito.

42

A circunstância de o filho em causa ter atingido a maioridade à data da adoção da decisão de regresso que visava o seu progenitor ou de a ter atingido no decurso do processo é indiferente a este respeito, desde que se demonstre que, não obstante o facto de esse filho ser maior, subsiste a sua dependência em relação ao seu progenitor.

43

Além disso, uma vez que o Governo belga sustenta que só deve ser garantido, de qualquer modo, um recurso suspensivo de pleno direito de uma decisão de afastamento e não de uma decisão de regresso, importa precisar que a proteção jurisdicional assegurada a um nacional de um país terceiro objeto de uma decisão de regresso, cuja execução é suscetível de o expor a um risco real de ser sujeito a tratos contrários ao artigo 19.o, n.o 2, da Carta, seria insuficiente se esse nacional de um país terceiro não dispusesse desse recurso suspensivo dessa decisão, desde a notificação da mesma.

44

Com efeito, por um lado, resulta do artigo 3.o, pontos 3 a 5, da Diretiva 2008/115 que, por definição, uma decisão de regresso impõe ou declara uma obrigação, para o nacional de um país terceiro a que se refere, de regressar a um país terceiro, ao passo que o conceito de «afastamento» designa o transporte físico desse nacional de um país terceiro para fora do Estado‑Membro em causa.

45

Por conseguinte, mesmo num Estado‑Membro no qual, em aplicação do artigo 8.o, n.o 3, desta diretiva, um ato distinto que ordena o afastamento é adotado posteriormente à decisão de regresso, esta decisão tem, por si só, por efeito opor‑se a que seja permitido ao nacional em causa de um país terceiro manter‑se temporariamente no território desse Estado‑Membro enquanto aguarda o exame da argumentação apresentada em apoio do recurso interposto da referida decisão. A realização do objetivo exposto no n.o 39 do presente acórdão impõe, por conseguinte, que seja garantida a suspensão da decisão de regresso, a qual não pode ser validamente substituída por uma suspensão da decisão de afastamento que poderia ser adotada posteriormente.

46

Por outro lado, o elo estabelecido expressamente pelo legislador da União entre o artigo 9.o, n.o 1, alínea b), o artigo 13.o, n.o 2, e o artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115 mostra que esta última disposição tem nomeadamente por objeto oferecer garantias mínimas aos nacionais de países terceiros no decurso de qualquer período ao longo do qual a execução da obrigação de regresso proferida a seu respeito deva imperativamente ser adiada.

47

Ora, a solução sugerida pelo Governo belga permitiria, pelo contrário, que os Estados‑Membros só oferecessem tais garantias nos casos em que, além da decisão de regresso, tivesse sido adotada uma decisão de afastamento. Assim, as autoridades competentes podem diferir, de forma discricionária, a concessão dessas garantias, abstendo‑se de adotar uma decisão de afastamento.

48

O Tribunal de Justiça precisou, além disso, no n.o 56 do Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (C‑181/16, EU:C:2018:465), que a obrigação de prever, em certos casos, um recurso suspensivo de pleno direito de uma decisão de regresso se impunha, por maioria de razão, no que respeita a uma eventual decisão de afastamento, ao declarar, assim, que esta obrigação não se limitava a este último tipo de decisão.

49

Além disso, no que respeita à argumentação do Governo belga destinada a demonstrar que a legislação belga que regula os recursos interpostos das decisões de regresso é conforme com o direito da União, importa recordar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça mencionada no n.o 24 do presente acórdão que, no âmbito de um processo instaurado ao abrigo do artigo 267.o TFUE, não incumbe ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a compatibilidade de normas de direito interno com as disposições do direito da União.

50

Resulta do exposto que um nacional de um país terceiro, progenitor de um filho maior gravemente doente que se encontra sob a sua dependência e que é objeto de uma decisão de regresso cuja execução seja suscetível de expor esse filho maior a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde, deve beneficiar das garantias enquanto se aguarda o regresso, previstas no artigo 14.o da Diretiva 2008/115.

51

A título destas garantias, os Estados‑Membros devem, em aplicação do artigo 14.o, n.o 1, alíneas a), b) e d), dessa diretiva, assegurar que, tanto quanto possível, a unidade familiar com os membros da família presentes no seu território seja mantida, os cuidados de saúde urgentes e o tratamento indispensável de doenças sejam assegurados e as necessidades específicas das pessoas vulneráveis sejam tidas em conta.

52

O respeito desses princípios pressupõe que as necessidades de base de um nacional de um país terceiro como o recorrente no processo principal sejam tomadas a cargo, caso contrário, como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio e como salientou o advogado‑geral no n.o 93 das suas conclusões, este recorrente não está em condições de ficar junto do seu filho maior e de lhe dar o apoio de que este necessita durante o período em que é permitido a este último manter‑se temporariamente no território do Estado‑Membro em causa (v., por analogia, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 60).

53

Todavia, esta obrigação só se impõe se esse nacional de um país terceiro não dispuser de meios que lhe permitam prover, ele próprio, às suas necessidades (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 59).

54

Além disso, cabe aos Estados‑Membros determinar a forma que deve revestir essa tomada a cargo das necessidades de base do nacional em causa de um país terceiro (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Abdida, C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.o 61). Por conseguinte, não se pode excluir que essa tomada a cargo possa assumir a forma de um auxílio social concedido diretamente ao filho maior, desde que este seja adaptado e suficiente para assegurar a referida tomada a cargo das necessidades, bem como para permitir ao progenitor desse filho proporcionar‑lhe o apoio de que este necessita, o que cabe, sendo caso disso, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

55

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que os artigos 5.o, 13.o e 14.o da Diretiva 2008/115, lidos à luz do artigo 7.o, do artigo 19.o, n.o 2, bem como dos artigos 21.o e 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que não prevê a tomada a cargo, tanto quanto possível, das necessidades de base de um nacional de um país terceiro quando:

este interpôs recurso da decisão de regresso tomada a seu respeito;

o filho maior desse nacional de um país terceiro sofre de uma doença grave;

a presença do referido nacional de um país terceiro junto desse filho maior é indispensável;

foi interposto, por conta do referido filho maior, recurso de uma decisão de regresso tomada a seu respeito e cuja execução seria suscetível de expor este último a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde; e

o mesmo nacional de um país terceiro não dispõe de meios que lhe permitam prover, ele próprio, às suas necessidades.

Quanto às despesas

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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

Os artigos 5.o, 13.o e 14.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, lidos à luz do artigo 7.o, do artigo 19.o, n.o 2, bem como dos artigos 21.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que não prevê a tomada a cargo, tanto quanto possível, das necessidades de base de um nacional de um país terceiro quando:

 

este interpôs recurso da decisão de regresso tomada a seu respeito;

o filho maior desse nacional de um país terceiro sofre de uma doença grave;

a presença do referido nacional de um país terceiro junto desse filho maior é indispensável;

foi interposto, por conta do referido filho maior, recurso de uma decisão de regresso tomada a seu respeito e cuja execução seria suscetível de expor este último a um risco sério de deterioração grave e irreversível do seu estado de saúde; e

o mesmo nacional de um país terceiro não dispõe de meios que lhe permitam prover, ele próprio, às suas necessidades.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.