ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

17 de dezembro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos animais no momento da sua occisão — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Artigo 4.o, n.o 1 — Obrigação de atordoamento dos animais antes da sua occisão — Artigo 4.o, n.o 4 — Derrogação no âmbito do abate ritual — Artigo 26.o, n.o 2 — Possibilidade de os Estados‑Membros adotarem disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais em caso de abate ritual — Interpretação — Regulamentação nacional que impõe, em caso de abate ritual, um atordoamento reversível e insuscetível de provocar a morte — Artigo 13.o TFUE — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 10.o — Liberdade de religião — Liberdade de manifestar a sua religião — Restrição — Proporcionalidade — Falta de consenso entre os Estados‑Membros da União Europeia — Margem de apreciação reconhecida aos Estados‑Membros — Princípio da subsidiariedade — Validade — Tratamentos diferenciados do abate ritual e da occisão de animais durante atividades cinegéticas ou de pesca e em manifestações culturais ou desportivas — Inexistência de discriminação — Artigos 20.o, 21.o e 22.o da Carta dos Direitos Fundamentais»

No processo C‑336/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica), por Decisão de 4 de abril de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de abril de 2019, no processo

Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o.,

Unie Moskeeën Antwerpen VZW,

Islamitisch Offerfeest Antwerpen VZW,

JG,

KH,

Executief van de Moslims van België e o.,

Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België — Section belge du Congrès juif mondial et Congrès juif européen VZW e o.,

contra

Vlaamse Regering,

sendo intervenientes:

LI,

Waalse Regering,

Kosher Poultry BVBA e o.,

Global Action in the Interest of Animals VZW (GAIA),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, E. Regan, M. Ilešič, L. Bay Larsen e A. Kumin, presidentes de secção, T. von Danwitz, C. Toader, M. Safjan, D. Šváby (relator), L. S. Rossi, I. Jarukaitis e N. Jääskinen, juízes,

advogado‑geral: G. Hogan,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 8 de julho de 2020,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o. e de Kosher Poultry BVBA e o., por E. Maes e C. Caillet, advocaten, e por E. Jacubowitz, avocat,

em representação da Unie Moskeeën Antwerpen VZW e da Islamitisch Offerfeest Antwerpen VZW, por I. Akrouh, advocaat,

em representação do Executief van de Moslims van België e o., por J. Roets, advocaat,

em representação do Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België — Section belge du Congrès juif mondial et Congrès juif européen VZW e o., por E. Cloots, advocaat,

em representação de LI, pelo próprio,

em representação do Vlaamse Regering, por V. De Schepper e J.‑F. De Bock, advocaten,

representação do Waalse Regering, por X. Drion, advocaat,

em representação de Global Action in the Interest of Animals VZW (GAIA), por A. Godfroid, advocaat,

em representação do Governo dinamarquês, por J. Nymann‑Lindegren e M. P. Jespersen e por P. Ngo e M. Wolff, na qualidade de agentes,

em representação do Governo finlandês, por J. Heliskoski e H. Leppo, na qualidade de agentes,

em representação do Governo sueco, por H. Eklinder, C. Meyer‑Seitz, H. Shev, J. Lundberg e A. Falk, na qualidade de agentes,

em representação do Conselho da União Europeia, por F. Naert e E. Karlsson, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por H. Krämer, A. Bouquet e B. Eggers, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 10 de setembro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão (JO 2009, L 303, p. 1), e a validade desta disposição tendo em conta os artigos 10.o e 20.o, 21.o e 22.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de litígios que opõem o Centraal Israëlitisch Consistorie van België e o. (a seguir, conjuntamente «CICB e o.»), a Unie Moskeeën Antwerpen VZW e a Islamitisch Offerfeest Antwerpen VZW, JG e KH, o Executief van de Moslims van België e o., bem como o Coördinatie Comité van Joodse Organisaties van België — Section belge du Congrès juif mondial et Congrès juif européen VZW e o. ao Vlaamse Regering (Governo flamengo, Bélgica) a respeito da validade do decreet houdende wijziging van de wet van 14 augustus 1986 betreffende de bescherming en het welzijn der dieren, wat de toegelaten methodes voor het slachten van dieren betreft (Decreto que altera a Lei de 14 de agosto de 1986 Relativa à Proteção e ao Bem‑Estar dos Animais, no Que Respeita aos Métodos Autorizados de Abate de Animais), de 7 de julho de 2017 (Belgisch Staatsblad, 18 de julho de 2017, p. 73318).

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 2, 4, 6, 11, 14 a 16, 18, 20, 21, 43, 57 e 58 do Regulamento n.o 1099/2009 enunciam:

«(2)

A occisão de animais pode provocar dor, aflição, medo ou outras formas de sofrimento nos animais, mesmo nas melhores condições técnicas disponíveis. Certas operações associadas à occisão podem provocar stress e todas as técnicas de atordoamento apresentam inconvenientes. Os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais deverão tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão, tendo em conta as melhores práticas neste domínio e os métodos autorizados ao abrigo do presente regulamento. Por conseguinte, a dor, a aflição ou sofrimento deverão ser consideradas como evitáveis sempre que os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais infrinjam uma das disposições do presente regulamento ou utilizem práticas autorizadas sem ter em conta a respetiva evolução técnica, provocando assim dor, aflição ou sofrimento nos animais, por negligência ou intencionalmente.

[…]

(4)

O bem‑estar dos animais é um princípio [da União Europeia] consagrado no Protocolo n.o 33 relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado [CE]. A proteção dos animais no momento do abate ou occisão é um tema que preocupa o público e influencia a atitude dos consumidores em relação aos produtos agrícolas. Por outro lado, reforçar a proteção dos animais no momento do abate contribui para melhorar a qualidade da carne e, indiretamente, tem efeitos positivos ao nível da segurança no trabalho nos matadouros.

[…]

(6)

A Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), criada pelo Regulamento (CE) n.o 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios [(JO 2002, L 31, p. 1)], adotou dois pareceres sobre os aspetos de bem‑estar dos animais dos principais sistemas de atordoamento e occisão de certas espécies de animais: Bem‑estar animal nos principais sistemas de atordoamento e occisão das principais espécies comerciais de animais, em 2004, e bem‑estar animal nos principais sistemas de atordoamento e occisão de cervídeos, caprinos, coelhos, avestruzes, patos, gansos e codornizes criados para fins comerciais, em 2006. A legislação [da União] neste domínio deverá ser atualizada a fim de ter em conta estes pareceres científicos. […] Não foram incluídas no presente regulamento recomendações relativas aos peixes de aquicultura, uma vez que são necessários pareceres científicos complementares e uma avaliação económica neste domínio.

[…]

(11)

Os peixes apresentam grandes diferenças fisiológicas em relação aos animais terrestres e os peixes de aquicultura são abatidos e mortos num contexto muito diferente, em particular no que respeita ao processo de inspeção. Além disso, a investigação sobre o atordoamento dos peixes está muito menos desenvolvida do que para as outras espécies de criação. Deverão, pois, estabelecer‑se normas diferentes para a proteção dos peixes no momento da occisão. Por conseguinte, as disposições aplicáveis aos peixes deverão, de momento, limitar‑se ao princípio de base. Iniciativas posteriores por parte da [União] deverão basear‑se numa avaliação científica dos riscos no abate e occisão dos peixes, realizada pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, e tomando em conta as suas implicações sociais, económicas e administrativas.

[…]

(14)

No contexto das atividades cinegéticas ou de pesca de lazer, as condições de occisão são muito diferentes das utilizadas para os animais de criação, e essas atividades estão sujeitas a legislação específica. É, pois, adequado, excluir do âmbito de aplicação do presente regulamento a occisão de animais durante as atividades cinegéticas ou de pesca de lazer.

(15)

O Protocolo n.o 33 salienta também a necessidade de respeitar as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional ao definir e aplicar as políticas [da União] no domínio da agricultura e do mercado interno, entre outros. Importa, por conseguinte, excluir os eventos culturais do âmbito de aplicação do presente regulamento, quando a observância dos requisitos de bem‑estar dos animais afete negativamente a própria natureza de tais eventos.

(16)

Além disso, as tradições culturais assentam em padrões de pensamento, de ação ou de comportamento herdados, consagrados ou habituais, que têm por base, de facto, a noção de algo transmitido por um antecessor ou com ele aprendido. Tais tradições contribuem para manter elos sociais duradouros entre as gerações. Na medida em que essas atividades não afetem o mercado de produtos de origem animal e não sejam motivadas por objetivos de produção, convém excluir do âmbito do presente regulamento a occisão de animais que tenha lugar durante esses eventos.

[…]

(18)

A Diretiva 93/119/CE [do Conselho, de 22 de dezembro de 1993, relativa à proteção dos animais no abate e/ou occisão (JO 1993, L 340, p. 21)] previa uma derrogação à obrigação de atordoamento no caso de abate religioso realizado em matadouros. Visto que as disposições [da União] aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro. Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da [Carta].

[…]

(20)

Muitos métodos de occisão são dolorosos para os animais. O atordoamento torna‑se, assim, necessário, para provocar nos animais um estado de inconsciência e uma perda de sensibilidade antes ou no momento da occisão. Medir a perda de consciência e de sensibilidade de um animal é uma operação complexa que deverá ser realizada de acordo com métodos aprovados cientificamente. Convém, no entanto, assegurar um acompanhamento mediante indicadores, a fim de avaliar a eficiência do procedimento em condições reais.

(21)

O controlo da eficácia do atordoamento baseia‑se principalmente na avaliação do estado de consciência e da sensibilidade dos animais. O estado de consciência de um animal traduz‑se essencialmente pela sua capacidade de sentir emoções e de controlar os seus movimentos voluntários. Salvo algumas exceções, como a eletroimobilização ou outras paralisias provocadas, pode presumir‑se que um animal está inconsciente quando perde a sua posição natural de pé, não está desperto e não mostra sinais de emoções positivas ou negativas, como medo ou excitação. A sensibilidade dos animais é essencialmente a sua capacidade de sentir dor. Em geral, pode presumir‑se que um animal perdeu a sensibilidade quando não apresenta reflexos ou reações a estímulos como os sons, os odores, a luz ou o contacto físico.

[…]

(43)

No abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento. Além disso, se os animais não forem imobilizados mecanicamente após a incisão, o processo de sangria pode ser mais demorado, o que prolongará desnecessariamente o sofrimento dos animais. Os bovinos, ovinos e caprinos são as espécies mais frequentemente abatidas através deste procedimento. Por conseguinte, os ruminantes abatidos sem atordoamento deverão ser imobilizados individualmente e mecanicamente.

[…]

(57)

Os cidadãos europeus esperam que sejam respeitadas as normas mínimas de bem‑estar dos animais durante o seu abate. Em certas zonas, a atitude em relação aos animais depende também das perceções nacionais e, em alguns Estados‑Membros, verifica‑se a exigência de manter ou adotar regras de bem‑estar dos animais mais amplas do que as acordadas a nível [da União]. No interesse dos animais e desde que tal não afete o funcionamento do mercado interno é adequado dar aos Estados‑Membros uma certa flexibilidade para manter ou, em certos domínios específicos, adotar normas nacionais mais exigentes.

É importante garantir que tais normas nacionais não sejam utilizadas pelos Estados‑Membros de modo a prejudicar o correto funcionamento do mercado interno.

(58)

Em alguns domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, o Conselho necessita de obter mais informações de caráter científico, social e económico antes de estabelecer normas pormenorizadas, em particular no caso dos peixes de aquicultura e no que respeita à imobilização de bovinos por inversão. Por conseguinte, é necessário que a Comissão dê ao Conselho essas informações antes de propor qualquer alteração nestes domínios do regulamento.»

4

Sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», o artigo 1.o deste regulamento dispõe:

«1.   O presente regulamento estabelece regras relativas à occisão dos animais criados ou mantidos para a produção de alimentos, lã, peles, peles com pelo ou outros produtos, bem como à occisão de animais para efeitos de despovoamento e operações complementares.

Porém, no que respeita aos peixes, são aplicáveis unicamente os requisitos estabelecidos no n.o 1 do artigo 3.o

[…]

3.   O presente regulamento não se aplica:

a)

Se os animais forem mortos:

i)

durante experiências científicas efetuadas sob o controlo de uma autoridade competente,

ii)

durante atividades cinegéticas ou de pesca de lazer,

iii)

em manifestações culturais ou desportivas;

b)

Às aves de capoeira, coelhos e lebres abatidos fora de um matadouro pelo proprietário para consumo doméstico.»

5

O artigo 2.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

b)

“Operações complementares”, operações como a manipulação, a estabulação, a imobilização, o atordoamento e a sangria dos animais, que decorram no contexto e no local da occisão;

[…]

f)

“Atordoamento”, qualquer processo intencional que provoque a perda de consciência e sensibilidade sem dor, incluindo qualquer processo de que resulte a morte instantânea;

g)

“Rito religioso”, uma série de atos relacionados com o abate de animais, prescritos por uma religião;

h)

“Manifestações culturais ou desportivas”, manifestações relacionadas essencialmente com tradições culturais de longa data ou com atividades desportivas, incluindo corridas ou outras formas de competição, em que não são produzidas carnes ou outros produtos animais ou em que essa produção é marginal em comparação com a manifestação propriamente dita e não é significativa do ponto de vista económico;

[…]

j)

“Abate”, a occisão de animais destinados ao consumo humano;

[…]».

6

O artigo 3.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Requisitos gerais aplicáveis à occisão e às operações complementares», enuncia, no seu n.o 1:

«Deve poupar‑se aos animais qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante a occisão e as operações complementares.»

7

Consagrado aos «[m]étodos de atordoamento», o artigo 4.o do Regulamento n.o 1099/2009 prevê:

«1.   Os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados com a aplicação desses métodos especificados no anexo I. A perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal.

Os métodos referidos no anexo I que não resultem em morte instantânea […] são seguidos, o mais rapidamente possível, por um processo que assegure a morte, tal como sangria, mielotomia, eletrocussão ou exposição prolongada a anoxia.

[…]

4.   Os requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro.»

8

Sob a epígrafe «Verificações relativas ao atordoamento», o artigo 5.o deste regulamento dispõe, no seu n.o 2:

«Sempre que, para efeitos do n.o 4 do artigo 4.o, os animais sejam mortos sem atordoamento prévio, as pessoas responsáveis pelo abate realizem verificações sistemáticas a fim de assegurar que os animais não apresentem sinais de consciência ou sensibilidade antes de serem libertados da imobilização e não apresentem sinais de vida antes de serem preparados ou escaldados.»

9

Nos termos do artigo 26.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Regras nacionais mais estritas»:

«1.   O presente regulamento não impede os Estados‑Membros de manterem quaisquer disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão, que estejam em vigor no momento da entrada em vigor do presente regulamento.

Antes de 1 de janeiro de 2013, os Estados‑Membros informam a Comissão acerca de tais disposições nacionais. A Comissão transmite essas informações aos outros Estados‑Membros.

2.   Os Estados‑Membros podem adotar disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão do que as previstas no presente regulamento, relativamente aos seguintes domínios:

[…]

c)

Abate e operações complementares nos termos do n.o 4 do artigo 4.o

Os Estados‑Membros notificam a Comissão de todas essas disposições nacionais. A Comissão transmite essas informações aos outros Estados‑Membros.

[…]

4.   Os Estados‑Membros não proíbem nem impedem a circulação nos seus territórios de produtos de origem animal provenientes de animais mortos noutros Estados‑Membros com fundamento no facto de os animais em causa não terem sido mortos em conformidade com as suas disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão.»

10

O artigo 27.o deste regulamento, sob a epígrafe «Relatórios», enuncia, no seu n.o 1:

«Até 8 de dezembro de 2014, a Comissão transmite ao Parlamento Europeu e ao Conselho um relatório sobre a possibilidade de introduzir determinados requisitos de proteção dos peixes no momento da occisão, tendo em conta os aspetos de bem‑estar dos animais, assim como os impactos socioeconómicos e ambientais. Se necessário, o relatório é acompanhado de propostas legislativas destinadas a alterar o regulamento mediante a inclusão de regras específicas para a proteção dos peixes no momento da occisão.

Na pendência da adoção dessas medidas, os Estados‑Membros podem manter ou adotar disposições nacionais de proteção dos peixes no momento do abate ou da occisão, informando a Comissão de tais disposições.»

Direito belga

11

O artigo 16.o, n.o 1, da Wet betreffende de bescherming en het welzijn der dieren (Lei Relativa à Proteção e ao Bem‑Estar dos Animais), de 14 de agosto de 1986 (Belgisch Staatsblad, 3 de dezembro de 1986, p. 16382), na sua versão anterior à adoção do decreto em causa no processo principal, impunha, no primeiro parágrafo, a obrigação de proceder ao abate só após atordoamento do animal ou, em caso de força maior, seguindo o método menos doloroso. Todavia, esta disposição precisava, no seu segundo parágrafo, que, por derrogação, esta obrigação não se aplicava «aos abates prescritos por um rito religioso».

12

O decreto em causa no processo principal, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2019, pôs termo, no que respeita à Região da Flandres, a essa derrogação. Com efeito, o artigo 15.o, n.o 2, da Lei Relativa à Proteção e ao Bem‑Estar dos Animais, na sua versão alterada pelo artigo 3.o deste decreto, prevê que, «[s]e os animais forem abatidos segundo métodos especiais exigidos por ritos religiosos, o atordoamento é reversível e a morte do animal não é provocada pelo atordoamento».

13

Os trabalhos preparatórios do referido decreto especificam o seguinte:

«A Flandres atribui grande importância ao bem‑estar animal. O objetivo é, portanto, banir na Flandres qualquer sofrimento animal evitável. O abate sem atordoamento dos animais é incompatível com este princípio. Embora outras medidas, menos drásticas do que a proibição do abate sem atordoamento prévio, possam limitar um pouco o impacto negativo desse método de abate no bem‑estar dos animais, tais medidas não podem impedir que subsista uma ofensa muito grave a esse bem‑estar. A margem entre a eliminação do sofrimento animal, por um lado, e o abate sem atordoamento prévio, por outro, será sempre muito grande, mesmo que fossem tomadas medidas menos radicais para limitar ao máximo a ofensa ao bem‑estar animal.

Ainda assim, procura‑se um equilíbrio entre a proteção do bem‑estar animal e a liberdade de religião.

Tanto os ritos religiosos judaicos como os islâmicos exigem que o animal seja esvaziado ao máximo do seu sangue. Investigações científicas demonstraram que o receio de que o atordoamento influencia negativamente a sangria não tem fundamento […].

Por outro lado, os dois ritos exigem que o animal esteja intacto e saudável no momento do abate e que morra por hemorragia. […] [A] eletronarcose é um método de atordoamento reversível (não letal) em que o animal, se não for entretanto degolado, recupera a consciência após um breve lapso de tempo e não sente nenhum efeito negativo do atordoamento. Se o animal for degolado imediatamente após o seu atordoamento, a sua morte será exclusivamente devida à hemorragia. Atendendo ao exposto, a conclusão que consta do relatório de P. Vanthemsche pode ser seguida. Segundo esta conclusão, a aplicação do atordoamento reversível, não letal, na prática do abate ritual constitui uma medida proporcionada que respeita o espírito do abate ritual no âmbito da liberdade de religião e tem em máxima consideração o bem‑estar dos animais em causa. Pelo menos, a obrigação de recorrer à eletronarcose para os abates realizados segundo métodos especiais exigidos por ritos religiosos não constitui, portanto, uma ofensa desproporcionada à liberdade de religião.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

Por petições apresentadas em 17 e 18 de janeiro de 2018, os recorrentes no processo principal interpuseram no Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional, Bélgica), que é o órgão jurisdicional de reenvio, recursos de anulação do decreto em causa no processo principal, com o fundamento de que viola, nomeadamente, o artigo 4.o, n.o 4, e o artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1099/2009, na medida em que priva os crentes judeus e muçulmanos da garantia de que os abates rituais não podem estar sujeitos à exigência do atordoamento prévio. Com efeito, o referido decreto impede todos esses crentes, e não apenas uma minoria deles, de praticar a sua religião, ao não lhes permitir obter carne proveniente de animais abatidos conforme os seus preceitos religiosos, uma vez que estes preceitos se opõem à técnica do atordoamento reversível.

15

Como resulta da decisão de reenvio, os recorrentes no processo principal expõem que, por força do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o seu considerando 20, os animais devem, em princípio, ser atordoados antes de serem abatidos, ou seja, mantidos num estado de inconsciência e de insensibilidade até à sua morte.

16

No entanto, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 4, do referido regulamento, a obrigação de atordoamento não se aplica ao abate de animais efetuado segundo métodos especiais prescritos por determinados ritos religiosos. Segundo o considerando 18 do mesmo regulamento, esta exceção é ditada pelo objetivo de respeitar a liberdade de religião, garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta, como salientou o Tribunal de Justiça no Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 56 e 57).

17

O Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) observa a este respeito que, uma vez que o direito garantido no artigo 10.o, n.o 1, da Carta corresponde ao direito garantido no artigo 9.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), o Tribunal de Justiça inferiu daí que o conceito de «religião» pode abranger tanto o forum internum, ou seja, a facto de ter convicções, como o forum externum, ou seja, a manifestação em público da fé religiosa.

18

Os métodos especiais de abate prescritos por determinados ritos religiosos e o respeito de preceitos alimentares religiosos são abrangidos pelo âmbito de aplicação da liberdade de religião e podem ser considerados uma manifestação em público de uma convicção religiosa, na aceção do artigo 9.o da CEDH e do artigo 10.o, n.o 1, da Carta. Especialmente, o abate ritual visa fornecer aos fiéis em causa carne proveniente de animais abatidos em conformidade com as suas convicções religiosas. É certo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou, a este respeito, no Acórdão de 27 de junho de 2000, Cha'are Shalom Ve Tsedek c. França (CE:ECHR:2000:0627JUD 002741795, § 82), que, quando os crentes não são privados da possibilidade de obter e consumir carne proveniente de animais abatidos em conformidade com as suas convicções religiosas, o direito à liberdade de religião não pode ir ao ponto de abranger o direito de proceder pessoalmente a um abate ritual.

19

Assim sendo, os recorrentes no processo principal alegam que os Estados‑Membros não podem usar o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 para esvaziar de sentido a exceção à obrigação de praticar o atordoamento no âmbito do abate ritual, prevista no artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento.

20

Além disso, os recorrentes no processo principal sustentam que o decreto em causa no processo principal restringe de forma desproporcionada a liberdade de religião, tanto mais que a carne de bovinos abatidos em conformidade com preceitos religiosos representa apenas 0,1 % da quantidade total de carne produzida na Bélgica e que os casos em que o atordoamento prévio falha são superiores a essa percentagem. A comunidade judaica não tem, além disso, a garantia de poder obter carne suficiente proveniente de animais abatidos em conformidade com os preceitos da religião judaica. A Secção de Legislação do Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) deduziu daí, aliás, que a proibição do abate sem atordoamento constitui uma ofensa desproporcionada à liberdade de religião.

21

O decreto em causa no processo principal também viola a liberdade de religião, na medida em que impede os seguidores da religião judaica de abater animais de acordo com a shehita, a saber, o rito de abate específico dessa religião. A este respeito, a circunstância de a carne proveniente de animais abatidos conforme os preceitos religiosos poder ser importada do estrangeiro não pode ser tomada em consideração.

22

Por último, os recorrentes no processo principal contestam a premissa do legislador flamengo de que o processo de atordoamento reversível que não resulte na morte do animal é conforme às prescrições religiosas em matéria de abate.

23

Em contrapartida, os Governos flamengo e valão consideram que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 autoriza expressamente os Estados‑Membros a derrogar o artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento.

24

O órgão jurisdicional de reenvio salienta, por um lado, que a derrogação à obrigação de princípio do atordoamento prévio à occisão, prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, tem por finalidade o respeito da liberdade de religião, garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta, e, por outro, que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), deste regulamento, lido em conjugação com os seus considerandos 18 e 57, autoriza os Estados‑Membros, com vista à promoção do bem‑estar animal, a derrogar o referido artigo 4.o, n.o 4, sem, todavia, precisar os limites que os Estados‑Membros devem observar a este respeito.

25

Colocar‑se‑ia, portanto, a questão de saber se o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 pode ser interpretado no sentido de que autoriza os Estados‑Membros a adotar regras nacionais como as que estão em causa no processo principal e, na afirmativa, se esta disposição é compatível com a liberdade de religião garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

26

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o decreto em causa no processo principal pôs termo, a partir de 1 de janeiro de 2019, à exceção à obrigação de atordoamento prévio, em matéria de abate ritual. Decorre igualmente dos trabalhos preparatórios desse decreto que o legislador flamengo partiu do princípio de que o abate sem atordoamento causa ao animal um sofrimento evitável. Procurou, assim, promover o bem‑estar dos animais e alcançar um equilíbrio entre, por um lado, o objetivo de promover o bem‑estar dos animais e, por outro, o de garantir a liberdade religiosa.

27

Nesta perspetiva, para responder tanto quanto possível aos desejos das comunidades religiosas em causa, o artigo 15.o, n.o 2, da Lei de 14 de agosto de 1986, conforme alterada pelo decreto em causa no processo principal, impõe agora, no âmbito do abate ritual, um atordoamento reversível e insuscetível de resultar na morte do animal. Os trabalhos preparatórios desse decreto mostram, assim, que o legislador flamengo considerou que esta disposição vai ao encontro dos desejos das comunidades religiosas em causa, uma vez que, quando é aplicada a técnica do atordoamento reversível, os preceitos religiosos que impõem que o animal não esteja morto no momento do abate e que se esvazie completamente do seu sangue são respeitados.

28

A alteração legislativa verificada não pode, todavia, ser interpretada no sentido de obrigar todas as comunidades religiosas a aceitar a técnica do atordoamento reversível. Além disso, como decorre dos trabalhos preparatórios do decreto em causa no processo principal, este não tem incidência na possibilidade, para os membros dessas comunidades, de obterem carne proveniente de animais abatidos sem atordoamento prévio, dado que nenhuma disposição proíbe a importação dessa carne na Região flamenga. De qualquer modo, tal proibição de importação seria contrária ao artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009.

29

Os recorrentes no processo principal alegam, no entanto, que cada vez mais Estados‑Membros, à semelhança da Região da Flandres, proíbem o abate de animais sem atordoamento ou, pelo menos, a exportação de carne proveniente de animais abatidos em conformidade com preceitos religiosos, o que compromete o abastecimento de carne deste tipo na Região flamenga. Além do mais, a certificação da carne importada não permite saber com certeza se a carne provém efetivamente de animais abatidos em conformidade com os preceitos religiosos.

30

Os Governos flamengo e valão objetam que um determinado número de Estados‑Membros não conhece essa proibição geral de occisão sem atordoamento prévio e que o comércio de carne não se detém nas fronteiras da União.

31

Por último, os recorrentes no processo principal alegam que, se o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 devesse ser interpretado no sentido de que autoriza os Estados‑Membros a adotar medidas como as previstas pelo decreto em causa no processo principal, violaria os princípios da igualdade, da não discriminação e da diversidade religiosa, garantidos, respetivamente, nos artigos 20.o, 21.o e 22.o da Carta. Neste contexto, os recorrentes no processo principal observam que o referido decreto, adotado em aplicação desse regulamento, trata de forma diferente, sem nenhuma justificação razoável, por um lado, as pessoas que matam animais praticando a caça ou a pesca ou no âmbito do combate aos organismos prejudiciais e, por outro, as pessoas que matam animais em conformidade com métodos especiais de abate exigidos pelo rito de um culto.

32

Foi neste contexto que o Grondwettelijk Hof (Tribunal Constitucional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento [n.o 1099/2009] ser interpretado no sentido de que os Estados‑Membros podem, em derrogação [ao] […] artigo 4.o, n.o 4, do referido regulamento e com vista à promoção do bem‑estar animal, adotar regras como as contidas no Decreto [em causa no processo principal], as quais preveem, por um lado, uma proibição de abate sem atordoamento dos animais que também se aplica ao abate realizado durante um rito religioso e, por outro lado, um procedimento de atordoamento alternativo para o abate realizado durante um rito religioso, baseado no atordoamento reversível e na regra de que o atordoamento não pode ter como consequência a morte do animal?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do [Regulamento n.o 1099/2009], na interpretação referida na primeira questão, viola o artigo 10.o, n.o 1, da [Carta]?

3)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), conjugado com o artigo 4.o, n.o 4, do [Regulamento n.o 1099/2009], na interpretação referida na primeira questão, viola os artigos 20.o, 21.o e 22.o da [Carta], porquanto apenas está prevista, para a occisão de animais segundo métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, uma exceção condicional à obrigação de atordoar o animal (artigo 4.o, n.o 4, conjugado com o artigo 26.o, n.o 2[, desse regulamento]), ao passo que estão previstas, para a occisão de animais durante atividades cinegéticas ou de pesca e em manifestações desportivas e culturais, pelos motivos mencionados no preâmbulo do regulamento, disposições que excluem essas atividades do âmbito de aplicação do regulamento, ou não as sujeitam à obrigação de atordoamento do animal no momento da occisão (artigo 1.o, n.o 1, segundo parágrafo, e n.o 3[, do referido regulamento])?»

Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

33

Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 2 de outubro de 2020, o CICB e o. e a Kosher Poultry e o. pediram que fosse ordenada a reabertura da fase oral do processo, nos termos do artigo 83.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

34

Em apoio do seu pedido, o CICB e o. e a Kosher Poultry e o. alegam, em substância, que o Sejm (Parlamento, Polónia) adotou, em 18 de setembro de 2020, um projeto de lei que proíbe a exportação de carne proveniente de animais mortos no âmbito do abate ritual. Ora, na medida em que esse Estado‑Membro é, para a comunidade judaica da Bélgica, o mais importante fornecedor de carne kosher, não existindo uma solução concreta de substituição, a adoção desse projeto de lei demonstra ainda mais o caráter desproporcionado do decreto em causa no processo principal e, consequentemente, constitui um facto novo que pode ter uma influência determinante na decisão do Tribunal de Justiça.

35

Nos termos do artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, designadamente quando, após o encerramento dessa fase, uma parte invocar um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal de Justiça ou quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes interessadas.

36

Não é o caso no presente processo.

37

Com efeito, na audiência, o Tribunal de Justiça, através de uma pergunta feita à Região flamenga e à qual todos os participantes puderam reagir, considerou a situação, que vai além da invocada pelo CICB e o. e pela Kosher Poultry e o. no respetivo pedido de reabertura da fase oral do processo, em que todos os Estados‑Membros adotam uma medida que proíbe, à semelhança do decreto em causa no processo principal, a occisão de animais sem atordoamento prévio no âmbito do abate ritual.

38

Tendo em conta o que precede, uma vez que o projeto de lei mencionado no n.o 34 do presente acórdão não é suscetível de constituir um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal de Justiça nem um facto relativo a um argumento que não foi debatido entre as partes interessadas, na aceção do artigo 83.o do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça considera, ouvido o advogado‑geral, que não deve ser ordenada a reabertura da fase oral.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira e segunda questões

39

Com a sua primeira e segunda questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, lido à luz do artigo 13.o TFUE e do artigo 10.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que impõe, no âmbito do abate ritual, um procedimento de atordoamento reversível e insuscetível de resultar na morte do animal.

40

A título preliminar, importa salientar que o Regulamento n.o 1099/2009, que tem por base legal o artigo 37.o CE (atual artigo 43.o TFUE) e se inscreve no âmbito do Plano de Ação Comunitário Relativo à Proteção e ao Bem‑Estar dos Animais 2006‑2010 [COM (2006) 13 final de 23 de janeiro de 2006], visa definir regras comuns para a proteção do bem‑estar dos animais no momento do abate ou da occisão na União, e se baseia, como enuncia o seu considerando 4, na ideia de que a proteção dos animais no momento do abate é uma questão de interesse geral.

41

A este respeito, importa recordar, antes de mais, que o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o considerando 20 deste regulamento, estabelece o princípio do atordoamento dos animais antes da sua occisão e eleva‑o a uma obrigação, uma vez que estudos científicos demonstraram que o atordoamento constitui a técnica que menos afeta o bem‑estar dos animais no momento do abate (v, neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs, C‑497/17, EU:C:2019:137, n.o 47). Como decorre do considerando 4 do referido regulamento, o princípio do atordoamento prévio previsto nesta disposição traduz esse valor da União que é o bem‑estar dos animais, tal como consagrado agora no artigo 13.o TFUE, por força do qual a União e os Estados‑Membros devem ter plenamente em conta as exigências do bem‑estar dos animais quando formulam e executam a política da União.

42

Este princípio responde ao objetivo principal de proteção do bem‑estar animal prosseguido pelo Regulamento n.o 1099/2009, que resulta do próprio título deste regulamento e do seu considerando 2, e isto em conformidade com o referido artigo 13.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o., C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 63 e 64).

43

Em seguida, o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 dispõe que o princípio do atordoamento prévio não é aplicável aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate prescritos por determinados ritos religiosos e desde que o abate seja feito num matadouro. Embora esta última disposição, lida à luz do considerando 18 do regulamento, admita a prática do abate ritual, em que os animais podem ser mortos sem atordoamento prévio, esta forma de abate só é, no entanto, autorizada a título derrogatório na União e unicamente a fim de assegurar o respeito da liberdade religiosa, uma vez que não atenua a dor, a aflição ou o sofrimento dos animais tão eficazmente como o abate precedido de atordoamento, que, de acordo com o artigo 2.o, alínea f), do referido regulamento, lido à luz do seu considerando 20, é necessário para provocar nos animais um estado de inconsciência e de perda de sensibilidade para reduzir consideravelmente o seu sofrimento (v., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs, C‑497/17, EU:C:2019:137, n.o 48).

44

Esta derrogação assenta, como decorre do considerando 15 do Regulamento n.o 1099/2009, na necessidade de respeitar as disposições legislativas ou administrativas e os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional, ao definir e aplicar as políticas da União no domínio da agricultura e do mercado interno, entre outros. Concretiza, assim, em conformidade com o artigo 10.o, n.o 1, da Carta, o compromisso positivo de o legislador da União garantir o respeito efetivo da liberdade de religião e do direito de manifestar a sua religião ou convicções através de práticas e da celebração de ritos, designadamente a favor dos muçulmanos e dos judeus praticantes (v., neste sentido, Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o., C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 56 e 57).

45

Além disso, resulta do considerando 18 do referido regulamento que, tendo em conta que «as disposições [da União] aplicáveis ao abate religioso[, resultantes da Diretiva 93/119,] foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento», o legislador da União decidiu «manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro». Para o efeito, o artigo 26.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 permite que os Estados‑Membros mantenham quaisquer disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão, que estejam em vigor no momento da entrada em vigor deste regulamento, ao passo que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), desse regulamento dispõe que os Estados‑Membros podem adotar disposições nacionais destinadas a garantir aos animais, no momento da sua occisão, uma proteção mais ampla do que a prevista pelo referido regulamento no domínio, designadamente, do «abate e [das] operações complementares nos termos do n.o 4 do artigo 4.o», sendo especificado que, em conformidade com o artigo 2.o, alínea b), do mesmo regulamento, as operações complementares assim referidas incluem o atordoamento.

46

Por último, o artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 precisa que os Estados‑Membros não proíbem nem impedem a circulação nos seus territórios de produtos de origem animal provenientes de animais mortos noutros Estados‑Membros com fundamento no facto de os animais em causa não terem sido mortos em conformidade com as suas disposições nacionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais no momento da occisão.

47

Assim, o quadro estabelecido pelo Regulamento n.o 1099/2009 reflete o disposto no artigo 13.o TFUE, segundo o qual «a União e os Estados‑Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem‑estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional». Este quadro revela que o regulamento não procede ele mesmo à conciliação necessária entre o bem‑estar dos animais e a liberdade de manifestar a sua religião, mas limita-se a enquadrar a conciliação que incumbe aos Estados‑Membros efetuar entre estes dois valores.

48

Decorre das considerações expostas nos n.os 44 a 47 do presente acórdão que, por um lado, o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 não viola a liberdade de manifestar a sua religião, conforme garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta, e, por outro, no âmbito da possibilidade que lhes é reconhecida, ao abrigo desta disposição, de adotar regras adicionais destinadas a garantir uma proteção mais ampla dos animais do que a prevista pelo regulamento, os Estados‑Membros podem, nomeadamente, impor uma obrigação de atordoamento prévio à occisão dos animais que se aplica igualmente no âmbito do abate prescrito por ritos religiosos, sob reserva, todavia, do respeito dos direitos fundamentais consagrados pela Carta.

49

Com efeito, em conformidade com o artigo 51.o, n.o 1, da Carta, os Estados‑Membros devem respeitar os direitos fundamentais por ela consagrados quando fazem uso dessa possibilidade.

50

No que respeita à compatibilidade de medidas nacionais tomadas ao abrigo do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 com a liberdade de manifestar a sua religião, importa recordar que o artigo 10.o, n.o 1, da Carta prevê que todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião e especifica que este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.

51

A este respeito, uma regulamentação nacional adotada com fundamento no artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do regulamento e que impõe, no âmbito de um abate ritual, um atordoamento reversível e insuscetível de resultar na morte do animal é abrangida pelo âmbito de aplicação da liberdade de manifestar a sua religião, garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

52

Com efeito, a Carta atribui uma aceção lata ao conceito de «religião» previsto nesta disposição, suscetível de abranger quer o forum internum, isto é, o facto de ter convicções, quer o forum externum, ou seja, a manifestação em público da fé religiosa, tendo o Tribunal de Justiça já declarado que o abate ritual é abrangido pela liberdade de manifestar a sua religião, garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta (Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o., C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 44 e 49).

53

Como sustentam os recorrentes no processo principal, ao impor a obrigação de atordoamento prévio do animal no abate ritual, ao prescrever simultaneamente que esse atordoamento seja reversível e não provoque a morte do animal, o decreto em causa no processo principal, adotado com fundamento no artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, afigura‑se incompatível com certos preceitos religiosos judeus e islâmicos.

54

A este respeito, resulta do pedido de decisão prejudicial que, para os recorrentes no processo principal, o abate ritual responde a preceitos religiosos específicos que exigem, em substância, que os crentes consumam apenas carne de animais abatidos sem atordoamento prévio, a fim de garantir que não sejam sujeitos a nenhum procedimento suscetível de resultar na morte antes do abate e que se esvaziem do seu sangue.

55

Por conseguinte, esse decreto constitui uma restrição ao exercício do direito à liberdade dos crentes judeus e muçulmanos de manifestarem a sua religião, tal como garantida no artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

56

A este respeito, há que recordar que o artigo 52.o, n.o 3, da Carta visa garantir a coerência necessária entre os direitos nela contidos e os direitos correspondentes garantidos pela CEDH, sem pôr em causa a autonomia do direito da União e do Tribunal de Justiça da União Europeia. Há, portanto, que ter em conta os direitos correspondentes da CEDH para efeitos de interpretação da Carta, enquanto limiar de proteção mínima [v., neste sentido, Acórdãos de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), C‑235/17, EU:C:2019:432, n.o 72 e jurisprudência referida, e de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 124]. Uma vez que decorre das Anotações relativas ao artigo 10.o da Carta que a liberdade garantida no n.o 1 desta disposição corresponde à liberdade garantida no artigo 9.o da CEDH, há que ter em conta esta liberdade para efeitos de interpretação do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

57

Ora, segundo jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a liberdade de pensamento, de consciência e de religião protegida pelo artigo 9.o da CEDH representa um dos fundamentos de uma «sociedade democrática» na aceção desta convenção, na medida em que o pluralismo, consubstancial a tal sociedade, depende desta liberdade (v., neste sentido, TEDH, 18 de fevereiro de 1999, Buscarini e o. c. Saint‑Marin, CE:ECHR:1999:0218JUD 002464594, § 34 e jurisprudência referida, e de 17 de fevereiro de 2011, Wasmuth c. Alemanha, CE:ECHR:2011:0217JUD 001288403, § 50). Assim, o artigo 9.o, n.o 2, da CEDH dispõe que «[a] liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem».

58

No mesmo sentido, nos termos do artigo 52.o, n.o 1, primeiro período, da Carta, qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos por esta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. No seu segundo período, esta disposição enuncia que, na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas nesses direitos e liberdades se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

59

É à luz destas considerações que importa examinar se uma regulamentação nacional que prevê uma obrigação de atordoamento prévio do animal no abate ritual, ao mesmo tempo que prescreve que esse atordoamento seja reversível e não provoque a morte do animal, preenche os requisitos previstos no artigo 52.o, n.os 1 e 3, da Carta, lidos em conjugação com o artigo 13.o TFUE.

60

Em primeiro lugar, uma vez que decorre do decreto em causa no processo principal, a limitação ao exercício do direito à liberdade de manifestar a sua religião identificada no n.o 55 do presente acórdão está prevista por lei, na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta.

61

Em segundo lugar, uma regulamentação nacional que impõe a obrigação de atordoamento prévio do animal no abate ritual, ao mesmo tempo que prescreve que esse atordoamento seja reversível e não provoque a morte do animal, respeita o conteúdo essencial do artigo 10.o da Carta, uma vez que, segundo as indicações constantes dos autos à disposição do Tribunal de Justiça, enunciadas no n.o 54 do presente acórdão, a ingerência resultante dessa regulamentação se limita a um aspeto do ato ritual específico que o referido abate constitui, não sendo, em contrapartida, este último proibido enquanto tal.

62

Em terceiro lugar, no que respeita à questão de saber se a restrição ao direito garantido no artigo 10.o da Carta resultante de uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal responde a um objetivo de interesse geral, decorre das indicações constantes do pedido de decisão prejudicial que o legislador flamengo pretendeu promover o bem‑estar animal. Assim, nos trabalhos preparatórios do decreto em causa no processo principal, é indicado que «[a] Flandres atribui grande importância ao bem‑estar animal», que «[o] objetivo é, portanto, banir na Flandres qualquer sofrimento animal evitável», que «[o] abate sem atordoamento dos animais é incompatível com este princípio» e que, «[e]mbora outras medidas, menos drásticas do que a proibição do abate sem atordoamento prévio, possam limitar um pouco o impacto negativo desse método de abate no bem‑estar dos animais, tais medidas não podem impedir a subsistência de uma ofensa muito grave a este bem‑estar».

63

Ora, decorre tanto da jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de janeiro de 2008, Viamex Agrar Handel e ZVK, C‑37/06 e C‑58/06, EU:C:2008:18, n.o 22; de 19 de junho de 2008, Nationale Raad van Dierenkwekers en Liefhebbers e Andibel, C‑219/07, EU:C:2008:353, n.o 27; de 10 de setembro de 2009, Comissão/Bélgica, C‑100/08, não publicado, EU:C:2009:537, n.o 91; e de 23 de abril de 2015, Zuchtvieh‑Export, C‑424/13, EU:C:2015:259, n.o 35), como do artigo 13.o TFUE que a proteção do bem‑estar dos animais constitui um objetivo de interesse geral reconhecido pela União.

64

Em quarto lugar, quanto ao respeito do princípio da proporcionalidade, este exige que as restrições à liberdade de manifestar a sua religião introduzidas pelo decreto em causa no processo principal não ultrapassem os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos por essa regulamentação, entendendo‑se que, quando haja uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva e que os inconvenientes causados por esta não devem ser desproporcionados relativamente aos fins pretendidos [v., neste sentido, Acórdãos de 20 de março de 2018, Menci, C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 46 e jurisprudência referida, e de 30 de abril de 2019, Itália/Conselho (Quota de pesca de espadarte do mediterrâneo), C‑611/17, EU:C:2019:332, n.o 55].

65

Quando vários direitos fundamentais e princípios consagrados pelos Tratados estão em causa, como, no caso vertente, o direito garantido no artigo 10.o da Carta e o bem‑estar dos animais consagrado no artigo 13.o TFUE, a apreciação do respeito pelo princípio da proporcionalidade deve ser efetuada respeitando a necessária conciliação das exigências ligadas à proteção dos diferentes direitos e princípios em causa e de um justo equilíbrio entre eles (v., neste sentido, Acórdão de 19 de dezembro de 2019, Deutsche Umwelthilfe, C‑752/18, EU:C:2019:1114, n.o 50 e jurisprudência referida).

66

A este respeito, há que constatar que uma regulamentação nacional que impõe a obrigação de atordoamento prévio do animal no abate ritual, ao mesmo tempo que prescreve que esse atordoamento seja reversível e não provoque a morte do animal, é apta a realizar o objetivo de promoção do bem‑estar animal referido no n.o 62 do presente acórdão.

67

Decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, quando estão em jogo questões de política geral, como a determinação das relações entre o Estado e as religiões, sobre as quais podem razoavelmente existir num Estado democrático profundas divergências, deve atribuir‑se uma importância especial ao papel do decisor nacional. Portanto, há que reconhecer, em princípio, ao Estado, no âmbito de aplicação do artigo 9.o da CEDH, uma ampla margem de apreciação para decidir se e em que medida é «necessária» uma restrição ao direito de manifestar a sua religião ou convicções. A margem de apreciação assim reconhecida aos Estados‑Membros na falta de consenso no âmbito da União deve, no entanto, ser acompanhada de um controlo europeu que consista, nomeadamente, em averiguar se as medidas tomadas no âmbito nacional se justificam no seu princípio e se são proporcionadas (v., neste sentido, TEDH, 1 de julho de 2014, S.A.S. c. França, CE:ECHR:2014:0701JUD 004383511, §§ 129 e 131 e jurisprudência referida).

68

Ora, conforme resulta dos considerandos 18 e 57 do Regulamento n.o 1099/2009, foi precisamente a falta de consenso entre os Estados‑Membros quanto à forma de apreender o abate ritual que inspirou a adoção dos artigos 4.o e 26.o deste regulamento.

69

Com efeito, o considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009 enuncia, como foi recordado no n.o 45 do presente acórdão, que é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro.

70

Quanto ao considerando 57 do Regulamento n.o 1099/2009, este, após ter evocado o facto de os cidadãos europeus esperarem que sejam respeitadas as normas mínimas de bem‑estar dos animais durante o abate, sublinha que, em certas zonas, a atitude em relação aos animais depende também das perceções nacionais e que, em alguns Estados‑Membros, se verifica a exigência de manter ou adotar regras de bem‑estar dos animais mais amplas do que as acordadas no âmbito da União. Assim, ainda segundo o referido considerando, no interesse dos animais e desde que tal não afete o funcionamento do mercado interno, é adequado dar aos Estados‑Membros uma certa flexibilidade para manter ou, em certos domínios específicos, adotar normas nacionais mais exigentes.

71

Por conseguinte, ao fazer referência à existência de «perceções nacionais» diferentes em relação aos animais, bem como à necessidade de deixar «uma certa flexibilidade» ou ainda «um certo nível de subsidiariedade» aos Estados‑Membros, o legislador da União pretendeu preservar o contexto social próprio de cada Estado‑Membro a este respeito e reconhecer a cada um deles uma ampla margem de apreciação no âmbito da conciliação necessária do artigo 13.o TFUE e do artigo 10.o da Carta, a fim de assegurar um justo equilíbrio entre, por um lado, a proteção do bem‑estar dos animais durante a occisão e, por outro, o respeito da liberdade de manifestar a sua religião.

72

No que respeita, mais especificamente, ao caráter necessário da ingerência na liberdade de manifestar a sua religião resultante do decreto em causa no processo principal, importa salientar que decorre dos pareceres científicos da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) referidos no considerando 6 do Regulamento n.o 1099/2009 que um consenso científico se formou quanto ao facto de o atordoamento prévio constituir o meio ótimo para reduzir o sofrimento do animal no momento da occisão.

73

Foi colocando‑se nesta perspetiva que o legislador flamengo indicou, nos trabalhos preparatórios do decreto em causa no processo principal, que «[a] margem entre a eliminação do sofrimento animal, por um lado, e o abate sem atordoamento prévio, por outro, será sempre muito grande, mesmo que fossem tomadas medidas menos radicais para limitar ao máximo a ofensa ao bem‑estar animal».

74

Daqui resulta que o legislador flamengo pôde, sem exceder a margem de apreciação referida no n.o 67 do presente acórdão, considerar que as restrições introduzidas pelo decreto em causa no processo principal à liberdade de manifestar a sua religião, ao impor um atordoamento prévio reversível e insuscetível de resultar na morte do animal, satisfazem o requisito da necessidade.

75

Por último, no que respeita ao caráter proporcionado da ingerência na liberdade de manifestar a sua religião resultante do decreto em causa no processo principal, em primeiro lugar, como resulta dos trabalhos preparatórios deste decreto, conforme referidos no n.o 13 do presente acórdão, o legislador flamengo baseou‑se em investigações científicas que demonstraram que o receio de que o atordoamento afeta negativamente a sangria não tem fundamento. Além disso, decorre desses mesmos trabalhos que a eletronarcose é um método de atordoamento não letal e reversível, pelo que, se o animal for degolado imediatamente após o seu atordoamento, a sua morte será exclusivamente causada pela hemorragia.

76

Por outro lado, ao impor, no âmbito do abate ritual, um atordoamento prévio reversível e insuscetível de resultar na morte do animal, o legislador flamengo pretendeu igualmente se inspirar no considerando 2 do Regulamento n.o 1099/2009, à luz do qual deve ser lido o artigo 4.o deste regulamento, considerado no seu todo, e que enuncia, em substância, que, a fim de poupar os animais de uma dor, uma aflição ou um sofrimento evitáveis durante a occisão, há que privilegiar a prática autorizada de occisão tecnicamente mais evoluída, quando significativos progressos científicos permitem reduzir o sofrimento quando da occisão.

77

Em segundo lugar, à semelhança da CEDH, a Carta é um instrumento vivo a ser interpretado à luz das condições atuais de vida e das conceções que prevalecem hoje em dia nos Estados democráticos (v., por analogia, TEDH, 7 de julho de 2011, Bayatyan c. Arménia [GC], CE:ECHR:2011:0707JUD 002345903, § 102 e jurisprudência referida), pelo que há que ter em conta a evolução dos valores e das conceções, tanto no plano social como no plano normativo, nos Estados‑Membros. Ora, o bem‑estar animal, enquanto valor a que as sociedades democráticas contemporâneas atribuem importância acrescida há vários anos, pode, atendendo à evolução da sociedade, ser tido mais em conta no âmbito do abate ritual e contribuir assim para justificar o caráter proporcionado de uma regulamentação como a que está em causa no processo principal.

78

Em terceiro lugar, em conformidade com a regra prevista no artigo 26.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, o referido decreto não proíbe nem impede a circulação, no território em que é aplicado, de produtos de origem animal provenientes de animais que foram abatidos no âmbito de um ritual e sem atordoamento prévio noutro Estado‑Membro. Aliás, a Comissão sublinhou, a este respeito, nas suas observações escritas apresentadas no Tribunal de Justiça, que a maioria dos Estados‑Membros autoriza, nos termos do artigo 4.o, n.o 4, do regulamento, o abate sem atordoamento prévio. Ademais, como alegam, em substância, os Governos flamengo e valão, uma regulamentação nacional como o decreto em causa no processo principal não proíbe nem impede a circulação de produtos de origem animal provenientes de animais que foram abatidos no âmbito de um ritual quando esses produtos são originários de um Estado terceiro.

79

Assim, num contexto em evolução, tanto no plano social como no plano normativo, que se caracteriza, como foi salientado no n.o 77 do presente acórdão, por uma sensibilização crescente à problemática do bem‑estar animal, o legislador flamengo pôde adotar, na sequência de um vasto debate organizado à escala da Região flamenga, o decreto em causa no processo principal, sem exceder a margem de apreciação que o direito da União confere aos Estados‑Membros quanto à necessária conciliação entre o artigo 10.o, n.o 1, da Carta e o artigo 13.o TFUE.

80

Assim, há que considerar que as medidas previstas no decreto em causa no processo principal permitem garantir um justo equilíbrio entre a importância atribuída ao bem‑estar animal e a liberdade de os crentes judeus e muçulmanos manifestarem a sua religião, e são, por conseguinte, proporcionadas.

81

Nestas condições, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009, lido à luz do artigo 13.o TFUE e do artigo 10.o, n.o 1, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que impõe, no âmbito do abate ritual, um procedimento de atordoamento reversível e insuscetível de resultar na morte do animal.

Quanto à terceira questão

82

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a validade do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009 à luz dos princípios da igualdade, da não discriminação e da diversidade cultural, religiosa e linguística, conforme garantidos, respetivamente, nos artigos 20.o, 21.o e 22.o da Carta. Com efeito, na hipótese de esta disposição autorizar os Estados‑Membros a tomar medidas como o atordoamento obrigatório para a occisão dos animais no âmbito do abate ritual, o referido regulamento não contém nenhuma disposição semelhante para a occisão dos animais no âmbito das atividades cinegéticas e de pesca ou em manifestações culturais ou desportivas.

83

Decorre da redação desta questão que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à conformidade desta disposição do Regulamento n.o 1099/2009 com os artigos 20.o, 21.o e 22.o da Carta, uma vez que, enquanto prevê apenas uma exceção condicional ao atordoamento prévio do animal no âmbito do abate ritual, o regulamento exclui do seu âmbito de aplicação ou isenta da obrigação de atordoamento prévio por ele prevista a occisão de animais que se verifica no âmbito da caça, da pesca e das manifestações culturais e desportivas.

84

A este respeito, em primeiro lugar, há que apreciar o argumento de que o abate ritual é objeto de tratamento discriminatório no Regulamento n.o 1099/2009 em relação à occisão de animais no âmbito de manifestações culturais e desportivas.

85

A título preliminar, há que recordar que a proibição de discriminação é apenas a expressão específica do princípio geral da igualdade que faz parte dos princípios fundamentais do direito da União e que este princípio exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a menos que esse tratamento seja objetivamente justificado (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de outubro de 1977, Ruckdeschel e o., 117/76 e 16/77, EU:C:1977:160, n.o 7, e de 16 de dezembro de 2008, Arcelor Atlantique et Lorraine e o., C‑127/07, EU:C:2008:728, n.o 23).

86

Neste caso, o Regulamento n.o 1099/2009 enuncia, no seu artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, que tem por objeto estabelecer «regras relativas à occisão dos animais criados ou mantidos para a produção de alimentos, lã, peles, com pelo ou outros produtos, bem como à occisão de animais para efeitos de despovoamento e operações complementares», e especifica, no seu artigo 1.o, n.o 3, alínea a), iii), que não se aplica a um determinado número de atividades, de entre as quais consta a occisão de animais em manifestações culturais ou desportivas.

87

Ora, o artigo 2.o, alínea h), deste regulamento define as «manifestações culturais ou desportivas» como «manifestações relacionadas essencialmente com tradições culturais de longa data ou com atividades desportivas, incluindo corridas ou outras formas de competição, em que não são produzidas carnes ou outros produtos animais ou em que essa produção é marginal em comparação com a manifestação propriamente dita e não é significativa do ponto de vista económico».

88

Resulta desta definição que as manifestações culturais e desportivas, na aceção do artigo 2.o, alínea h), do referido regulamento, conduzem, quando muito, a uma produção marginal de carne ou de produtos de origem animal em relação à manifestação propriamente dita e que essa produção não é significativa do ponto de vista económico.

89

Esta interpretação é corroborada pelo considerando 16 do Regulamento n.o 1099/2009, segundo o qual o facto de essas manifestações não afetarem o mercado de produtos de origem animal e não serem motivadas por objetivos de produção justifica a sua exclusão do âmbito de aplicação do regulamento.

90

Nestas condições, uma manifestação cultural ou desportiva não pode razoavelmente ser considerada uma atividade de produção de alimentos, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009. Foi, por conseguinte, tendo em conta esta diferença, sem violar a proibição de discriminação, que o legislador da União não equiparou as manifestações culturais ou desportivas a uma operação de abate que deve, enquanto tal, estar sujeita a atordoamento e que tratou, assim, de maneira diferente essas situações.

91

Em segundo lugar, sob pena de esvaziar da sua substância os conceitos de «atividades cinegéticas» e de «pesca de lazer», não se pode sustentar que essas atividades podem ser praticadas em animais previamente atordoados. Com efeito, como enuncia o considerando 14 do Regulamento n.o 1099/2009, as referidas atividades decorrem num contexto em que as condições de occisão são muito diferentes das utilizadas para os animais de criação.

92

Nestas circunstâncias, foi igualmente sem violar o princípio da não discriminação que o legislador da União excluiu do âmbito de aplicação do regulamento as situações de occisão não comparáveis referidas no número anterior.

93

Em terceiro lugar, quer no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 quer nos seus considerandos 6, 11 e 58, o legislador da União sublinhou reiteradamente que os pareceres científicos relativos aos peixes de aquicultura eram insuficientes e que era também necessário aprofundar a avaliação económica neste domínio, o que justificava tratar separadamente os peixes de aquicultura.

94

Em quarto lugar, tendo em conta as considerações expostas nos n.os 84 a 93 do presente acórdão, há que constatar que o Regulamento n.o 1099/2009 não viola a diversidade cultural, religiosa e linguística garantida no artigo 22.o da Carta, pelo facto de, ao passo que prevê apenas uma exceção condicional ao atordoamento prévio do animal no âmbito do abate ritual, excluir do seu âmbito de aplicação ou isentar da obrigação de atordoamento prévio por ele prevista a occisão de animais que se verifica no âmbito da caça, da pesca e das manifestações culturais e desportivas.

95

Daqui resulta que o exame da terceira questão prejudicial não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009.

Quanto às despesas

96

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão, lido à luz do artigo 13.o TFUE e do artigo 10.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que impõe, no âmbito do abate ritual, um procedimento de atordoamento reversível e insuscetível de resultar na morte do animal.

 

2)

O exame da terceira questão prejudicial não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 26.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea c), do Regulamento n.o 1099/2009.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.