ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

20 de janeiro de 2021 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2004/83/CE — Normas mínimas relativas às condições para a concessão do estatuto de refugiado ou do estatuto conferido pela proteção subsidiária — Qualidade de refugiado — Artigo 2.o, alínea c) — Cessação do estatuto de refugiado — Artigo 11.o — Alteração das circunstâncias — Artigo 11.o, n.o 1, alínea e) — Possibilidade de pedir a proteção do país de origem — Critérios de apreciação — Artigo 7.o, n.o 2 — Apoio financeiro e social — Falta de pertinência»

No processo C‑255/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Upper Tribunal (Immigration and Asylum Chamber) [Tribunal Superior (Secção da Imigração e do Asilo), Reino Unido], por Decisão de 22 de março de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 26 de março de 2019, no processo

Secretary of State for the Home Department

contra

OA,

sendo intervenientes:

United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Segunda Secção, A. Kumin, T. von Danwitz (relator) e P. G. Xuereb, juízes,

advogado‑geral: G. Hogan,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 27 de fevereiro de 2020,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo do Reino Unido, por Z. Lavery e J. Simpson, na qualidade de agentes, assistidas por D. Blundell, barrister,

em representação do Governo francês, inicialmente por A.‑L. Desjonquères, A. Daniel, D. Colas e D. Dubois e, em seguida, por A.‑L. Desjonquères, A. Daniel e D. Dubois, na qualidade de agentes,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, inicialmente por A. Azema, M. Condou‑Durande e J. Tomkin e, em seguida, por A. Azema e J. Tomkin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de abril de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, alínea c), do artigo 7.o e do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO 2004, L 304, p. 12; retificação no JO 2005, L 204, p. 24).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Secretary of State for the Home Department (Ministro do Interior, Reino Unido) a OA, nacional somali, a respeito da revogação do estatuto de refugiado deste.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, concluído em Nova Iorque em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»).

4

Nos termos do artigo 1.o, secção A, n.o 2, primeiro parágrafo, da Convenção de Genebra, o termo «refugiado» aplica‑se a qualquer pessoa que, «receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual […], não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar».

5

O artigo 1.o, secção C, n.o 5, da referida convenção dispõe:

«Esta Convenção, nos casos mencionados a seguir, deixará de ser aplicável a qualquer pessoa abrangida pelas disposições da secção A acima:

[…]

5. Se, tendo deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais foi considerada refugiada, já não puder continuar a recusar pedir a proteção do país de que tem a nacionalidade;

Entendendo‑se, contudo, que as disposições do presente parágrafo não se aplicarão a nenhum refugiado abrangido pelo parágrafo (1) da secção A do presente artigo que possa invocar, para se recusar a pedir a proteção do país de que tem a nacionalidade, razões imperiosas relacionadas com perseguições anteriores.»

Direito da União

6

O considerando 3 da Diretiva 2004/83 enuncia que «[a] Convenção de Genebra e o seu protocolo constituem a pedra angular do regime jurídico internacional relativo à proteção dos refugiados».

7

O artigo 1.o desta diretiva dispõe:

«A presente diretiva tem por objetivo estabelecer normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional e ao conteúdo da proteção concedida.»

8

Nos termos do artigo 2.o, alíneas c) a e), da referida diretiva:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

c)

“Refugiado”, o nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país, ou o apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o artigo 12.o;

d)

“Estatuto de refugiado”, o reconhecimento por parte de um Estado‑Membro de um nacional de um país terceiro ou de um apátrida como refugiado;

e)

“Pessoa elegível para proteção subsidiária”, o nacional de um país terceiro ou apátrida que não possa ser considerado refugiado, mas em relação ao qual se verificou existirem motivos significativos para acreditar que, caso volte para o seu país de origem ou, no caso de um apátrida, para o país em que tinha a sua residência habitual, correria um risco real de sofrer ofensa grave na aceção do artigo 15.o, e ao qual não se apliquem os n.os 1 e 2 do artigo 17.o, e que não possa ou, em virtude dos referidos riscos, não queira pedir a proteção desse país».

9

O artigo 7.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Agentes da proteção», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   A proteção pode ser proporcionada:

a)

Pelo Estado; ou

b)

Por partidos ou organizações, incluindo organizações internacionais, que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território.

2.   É proporcionada uma proteção geral quando os agentes mencionados no n.o 1 tomam medidas razoáveis para impedir a prática de atos de perseguição ou de ofensa grave, por via, nomeadamente, de um sistema jurídico eficaz para detetar, acionar judicialmente e punir os atos que constituam perseguição ou ofensa grave, e o requerente tenha acesso a tal proteção.»

10

Nos termos do artigo 9.o da Diretiva 2004/83, sob a epígrafe «Atos de perseguição»:

«1.   Os atos de perseguição, na aceção do artigo 1.o[, secção A,] da Convenção de Genebra, devem:

a)

Ser suficientemente graves, devido à sua natureza ou persistência, para constituírem grave violação dos direitos humanos fundamentais, em especial os direitos que não podem ser derrogados, nos termos do n.o 2 do artigo 15.o da Convenção Europeia de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, a seguir “CEDH”]; ou

b)

Constituir um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos, suficientemente graves para afetar o indivíduo de forma semelhante à referida na alínea a).

2.   Os atos de perseguição, qualificados no n.o 1, podem designadamente assumir as seguintes formas:

a)

Atos de violência física ou mental, incluindo atos de violência sexual;

[…]

3.   Nos termos da alínea c) do artigo 2.o, tem de haver um nexo entre os motivos a que se refere o artigo 10.o e os atos de perseguição qualificados no n.o 1.»

11

O artigo 11.o desta diretiva, sob a epígrafe «Cessação», dispõe, no seu n.o 1, alínea e), e no seu n.o 2:

«1.   O nacional de um país terceiro ou o apátrida deixa de ser refugiado se:

[…]

e)

Não puder continuar a recusar valer‑se da proteção do país de que tem a nacionalidade, por terem deixado de existir as circunstâncias segundo as quais foi reconhecido como refugiado;

[…]

2.   Para efeitos das alíneas e) e f) do n.o 1, os Estados‑Membros devem examinar se a alteração das circunstâncias é suficientemente profunda e duradoura para deixar de ser fundado o receio do refugiado de ser perseguido.»

12

O artigo 15.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Ofensas graves», enuncia:

«São ofensas graves:

a)

A pena de morte ou a execução; ou

b)

A tortura ou a pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu país de origem; ou

c)

A ameaça grave e individual contra a vida ou a integridade física de um civil, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno.»

13

A Diretiva 2004/83 foi revogada, com efeitos a partir de 21 de dezembro de 2013, pela Diretiva 2011/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária[,] e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9). Em conformidade com o considerando 50 desta última diretiva, o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte não participou na adoção da referida diretiva e não está vinculado por esta nem sujeito à sua aplicação.

Direito do Reino Unido

14

O artigo 4.o, n.os 1 e 2, das Refugee or Person In Need of International Protection Regulations 2006 (Regulamento de 2006, relativo aos refugiados e às pessoas que necessitam de proteção internacional) dispõe:

«1.   Ao considerar‑se que uma pessoa é um refugiado ou uma pessoa elegível para proteção humanitária, a proteção contra atos de perseguição ou ofensa grave pode ser proporcionada:

a)

Pelo Estado; ou

b)

Por qualquer partido ou organização, incluindo qualquer organização internacional, que controle o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território.

2.   Considera‑se que é proporcionada uma proteção geral quando os agentes mencionados nas alíneas a) e b) do n.o 1 tomam medidas razoáveis para impedir a prática de atos de perseguição ou de ofensa grave, por via de um sistema jurídico eficaz para detetar, acionar judicialmente e punir os atos que constituam perseguição ou ofensa grave, e a pessoa mencionada no n.o 1 tenha acesso a tal proteção.»

15

O paragraph 338A das Immigration Rules (Regras em Matéria de Imigração) enuncia:

«Sendo aplicável algum dos paragraphs 339A a 339AB, a concessão do estatuto de refugiado nos termos do paragraph 334 será revogada ou não será renovada. […]»

16

Nos termos do paragraph 339A destas regras:

«A presente disposição aplica‑se caso o Ministro do Interior verifique pelo menos uma das seguintes situações:

[…]

v)

Não puderem continuar a recusar valer‑se da proteção do país de que têm a nacionalidade, por terem deixado de existir as circunstâncias segundo as quais foram reconhecidos como refugiados;

vi)

Tratando‑se de uma pessoa que não tenha nacionalidade, tendo cessado as circunstâncias em consequência das quais foi reconhecida como refugiada, esteja em condições de regressar ao país no qual tinha a residência habitual;

Para efeitos das alíneas v) e vi), o Ministro do Interior deve examinar se a alteração das circunstâncias é suficientemente profunda e duradoura para deixar de ser fundado o receio do refugiado de ser perseguido.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17

OA é um nacional somali, originário de Mogadixo (Somália). É membro do clã minoritário dos Reer Hamar.

18

Durante os anos de 1990, OA e a sua esposa de então foram vítimas de várias ofensas graves e agressões violentas perpetradas pela milícia Hawiye em Mogadixo.

19

Em 2001, fugiram da Somália e foram para o Quénia. No mesmo ano, a então esposa de OA entrou no Reino Unido e obteve o estatuto de refugiada em razão das perseguições mencionadas no número anterior.

20

OA deslocou‑se para o Reino Unido durante o ano de 2003 e aí obteve o estatuto de refugiado enquanto pessoa a cargo da sua esposa de então.

21

Em 8 de julho de 2014, o Ministro do Interior informou OA de que tencionava revogar o seu estatuto de refugiado.

22

Por decisão de 27 de setembro de 2016, o Ministro do Interior revogou o estatuto de refugiado de OA em razão de uma alteração de circunstâncias no seu país de origem e excluiu este da proteção humanitária ao abrigo da legislação nacional em matéria de imigração, considerando ao mesmo tempo que um regresso de OA ao seu país de origem não violava as obrigações do Reino Unido ao abrigo do artigo 3.o da CEDH.

23

OA interpôs recurso desta decisão no First‑tier Tribunal (Immigration and Asylum Chambre) [Tribunal de Primeira Instância (Secção da Imigração e do Asilo), Reino Unido]. Este órgão jurisdicional proferiu um primeiro acórdão que negou integralmente provimento ao recurso de OA e, depois, após a anulação desse acórdão pelo Upper Tribunal (Immigration and Asylum Chamber) [Tribunal Superior (Secção da Imigração e do Asilo), Reino Unido], proferiu um segundo acórdão que negou parcialmente provimento ao referido recurso.

24

Após ter anulado esse segundo acórdão, o Upper Tribunal (Immigration and Asylum Chamber) [Tribunal Superior (Secção da Imigração e do Asilo)] deve agora proceder a uma nova apreciação do recurso de OA.

25

Perante o órgão jurisdicional de reenvio, o Ministro do Interior alega que tinha o direito de revogar o estatuto de refugiado de OA devido a uma alteração duradoura de circunstâncias no seu país de origem, por força do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, uma vez que, em seu entender, os clãs minoritários já não são alvo de perseguições por parte do clã maioritário na região de Mogadixo e que o Estado aí garante uma proteção efetiva. A este respeito, baseia‑se nas constatações que figuram no acórdão de orientação deste mesmo órgão jurisdicional de 3 de outubro de 2014, MOJ e o. (regresso a Mogadixo):

«ii)

Geralmente, um “civil” (isto é, uma pessoa que não está ligada às forças de segurança, a qualquer órgão do Governo ou Administração oficial ou a qualquer ONG ou organização internacional) ao regressar a Mogadixo, após um período de ausência, não enfrentará nenhum risco real de perseguição ou risco de ofensas que exija proteção em aplicação do artigo 3.o da CEDH ou do artigo 15.o, alínea c), da Diretiva [2004/83]. […]

[…]

vii)

Uma pessoa que regressa a Mogadixo, após um período de ausência, irá procurar a sua família nuclear, se esta existir, a fim de obter ajuda para se restabelecer e arranjar um meio de subsistência. Embora um repatriado também possa procurar ajuda junto de membros do seu clã que não são seus parentes próximos, é provável que tal ajuda só seja concedida aos membros do clã maioritário, uma vez que os clãs minoritários podem ter pouco para oferecer.

viii)

A importância de pertencer a um clã em Mogadixo mudou. Atualmente, os clãs fornecem, potencialmente, mecanismos de apoio social e ajudam no acesso a meios de subsistência, exercendo menos funções de proteção do que anteriormente. Não existem milícias de clãs em Mogadixo, nem violência de clãs, nem tratamento discriminatório com base em clãs, mesmo para membros de clãs minoritários.

[…]

xi)

Portanto, apenas quem não tiver apoio de clãs ou da família, não vier a receber remessas do exterior e não tiver uma perspetiva real de garantir o acesso a um meio de subsistência no seu regresso pode deparar‑se com a perspetiva de viver em circunstâncias abaixo do aceitável em termos de proteção humanitária.

xii)

As provas revelam claramente que não são apenas os oriundos de Mogadixo que podem agora, em geral, voltar a viver na cidade sem estarem sujeitos a um risco referido no artigo 15.o, alínea c), da Diretiva [2004/83] ou correrem um risco real de ficar desprovidos de quaisquer meios de subsistência. Por outro lado, afigura‑se pouco provável o realojamento em Mogadixo de um membro de um clã minoritário sem vínculos anteriores à cidade, sem acesso a fundos ou a qualquer outra forma de apoio por parte de clãs ou da família ou de apoio social, dado que, na falta de meios de obtenção de uma habitação e de algum tipo de apoio financeiro de forma continuada, haverá um risco real de não ter outra alternativa senão viver de forma precária em alojamentos improvisados em campos de deslocados internos, existindo uma forte possibilidade de ter de viver em condições abaixo do aceitável à luz das normas humanitárias.»

26

OA contesta estas constatações e alega que continua a recear com razão ser perseguido em Mogadixo e que as autoridades estatais somalis não estão em condições de o proteger contra essas ofensas graves. A este respeito, invoca a avaliação fornecida pelo United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR) [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)], em junho de 2014, segundo a qual a situação de segurança em Mogadixo suscita ainda graves preocupações no que diz respeito à questão da disponibilidade da proteção estatal, continuando, além disso, os clãs minoritários particularmente desfavorecidos, designadamente, nesta cidade. Por outro lado, sustenta que o acórdão de orientação, referido no número anterior, assenta numa interpretação errada da proteção estatal, uma vez que se baseia parcialmente na existência de uma proteção por parte da família ou de outros membros do clã, que não constituem agentes estatais, mas privados.

27

Segundo as indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial, alguns órgãos jurisdicionais do Reino Unido consideram que a disponibilidade de uma proteção suficiente deve ser tida em conta tanto na fase da apreciação do elemento relativo ao «receio fundado de ser perseguido» como na fase da apreciação do elemento relativo à «proteção» que o requerente não pode ou não pretende invocar, sem, todavia, ter sempre de satisfazer as mesmas exigências nessas duas fases. Esses órgãos jurisdicionais consideram que, embora este segundo elemento deva ser apreciado atendendo às exigências decorrentes do artigo 7.o da Diretiva 2004/83, essas exigências não se aplicam, contudo, no exame relativo ao primeiro elemento, que pode, por conseguinte, tomar em consideração qualquer forma de proteção e, em especial, o apoio prestado, nomeadamente, pela família ou pelo clã da pessoa em causa.

28

No que se refere à situação de OA após um eventual regresso a Mogadixo, o órgão jurisdicional de reenvio considera que este tem possibilidades, certamente limitadas devido à sua mobilidade reduzida, de encontrar um trabalho nessa cidade. Além disso, OA poderia procurar apoio financeiro junto da sua família próxima residente na referida cidade, junto da sua irmã que residiu em último lugar no Dubai (Emirados Árabes Unidos) e junto de membros do clã Reer Hamar que residem no Reino Unido, pelo menos até que ele próprio possa prover às suas necessidades em Mogadixo.

29

Nestas circunstâncias, o Upper Tribunal (Immigration and Asylum Chamber) [Tribunal Superior (Secção da Imigração e do Asilo)] decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve a “proteção do país de que [o cidadão] tem a nacionalidade” na aceção do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), e do artigo 2.o, alínea e), da [Diretiva 2004/83] ser considerada proteção estatal?

2)

Ao decidir a questão de saber se existe um receio fundado de ser perseguido na aceção do artigo 2.o, alínea e), da Diretiva 2004/83 e a questão de saber se existe proteção disponível contra tal perseguição, nos termos do artigo 7.o [desta diretiva], deve o “teste da proteção” ou o “inquérito da proteção” ser aplicado a ambas as questões e, em caso afirmativo, deve ser regulado pelos mesmos critérios em cada caso concreto?

3)

Pondo de lado a aplicabilidade de proteção por agentes não estatais nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea b), [da Diretiva 2004/83] e assumindo que a resposta à primeira questão é afirmativa, deve a efetividade ou a disponibilidade da proteção ser apreciada apenas com base nas atuações/funções protetoras de agentes estatais ou é possível considerar as atuações/funções protetoras levadas a cabo por agentes privados (sociedade civil), tais como famílias e/ou clãs?

4)

Os critérios que regulam o “inquérito da proteção” que tem de ser realizado quando está em causa a cessação no âmbito do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), [da Diretiva 2004/83] são (como pressupõem a segunda e a terceira questões), os mesmos que os aplicados no âmbito do artigo 7.o [desta diretiva]?»

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

30

A título preliminar, importa salientar que, embora, segundo as indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial, tenha sido reconhecido a OA o estatuto de refugiado em razão dos atos de perseguição violenta de que foi vítima durante os anos 1990, enquanto membro de um clã minoritário em Mogadixo, pela milícia do clã maioritário nesta cidade, resulta dessas mesmas indicações que, na sequência de alterações que se verificaram entretanto, «não existem milícias de clãs em Mogadixo, nem violência de clãs, nem tratamento discriminatório com base em clãs, nem mesmo para membros de clãs minoritários». A este respeito, o referido pedido parece basear‑se na consideração de que a República Federal da Somália concede atualmente, em princípio, uma proteção suficiente contra atos de perseguição, podendo, não obstante, esta proteção ser completada pela proteção garantida por agentes privados, como a família e o clã. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, na falta de apoio financeiro ou outro prestado pela sua família ou pelo seu clã, os nacionais somalis que regressam a Mogadixo «não têm nenhuma possibilidade real de obter o acesso a um meio de subsistência no seu regresso [e] terão de enfrentar a perspetiva de viver em condições inferiores ao que é aceitável em termos de proteção humanitária».

31

Feita esta precisão, resulta dessas mesmas indicações que OA contesta as constatações do órgão jurisdicional de reenvio conforme resumidas no número anterior, ao sustentar que continua a recear ser perseguido em Mogadixo e que as autoridades estatais somalis não estão em condições de o proteger contra esses atos de perseguição. Por outro lado, o Governo francês sustentou, na audiência, que as constatações desse órgão jurisdicional relativas à proteção concedida por essas autoridades e à inexistência de um risco de perseguições já não correspondem à situação atual na Somália.

32

Nestas circunstâncias, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, na sequência de um regresso a Mogadixo, OA pode correr o risco de ser vítima de atos de perseguição.

Quanto à quarta questão

33

Com a sua quarta questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83 deve ser interpretado no sentido de que a «proteção» visada por esta disposição quanto à cessação do estatuto de refugiado deve satisfazer as mesmas exigências que as que resultam, no que se refere à concessão desse estatuto, do artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, lido em conjugação com o artigo 7.o, n.os 1 e 2, da mesma.

34

A este respeito, resulta dos termos do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da referida diretiva que um nacional de um país terceiro deixa de ser refugiado se já não puder continuar a recusar invocar a proteção do país de que tem a nacionalidade, uma vez que as circunstâncias na sequência das quais foi reconhecido como refugiado deixaram de existir.

35

Esta disposição, do mesmo modo que o artigo 1.o, secção C, n.o 5, da Convenção de Genebra, prevê a perda da qualidade de refugiado quando as circunstâncias segundo as quais essa qualidade tinha sido reconhecida tiverem deixado de existir, ou seja, por outras palavras, quando já não estejam preenchidos os requisitos de concessão do estatuto de refugiado. Uma vez que o artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83 dispõe que o nacional «não [pode] continuar a recusar» valer‑se da proteção do seu país de origem, implica que a «proteção» em causa é a mesma que a que até então estava em falta, ou seja, a proteção contra os atos de perseguição por pelo menos um dos cinco motivos indicados no artigo 2.o, alínea c), desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.os 65 e 67).

36

Assim, as circunstâncias que demonstram a incapacidade ou, ao invés, a capacidade de o país de origem assegurar uma proteção contra os atos de perseguição constituem um elemento decisivo da apreciação que conduz à concessão ou, se for caso disso, de modo simétrico, à cessação do estatuto de refugiado. Assim, essa cessação implica que a alteração de circunstâncias tenha sanado as causas que conduziram ao reconhecimento do estatuto de refugiado (Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.os 68 e 69).

37

Tendo em conta a simetria que a Diretiva 2004/83 estabelece entre a concessão e a cessação do estatuto de refugiado, a proteção que possa excluir esse estatuto, no âmbito do artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, ou fazê‑lo cessar, por força do seu artigo 11.o, n.o 1, alínea e), deve satisfazer as mesmas exigências que decorrem, designadamente, do artigo 7.o, n.os 1 e 2, da referida diretiva.

38

Para chegar à conclusão de que o receio do refugiado de ser perseguido deixou de ser fundado, as autoridades competentes devem verificar, à luz do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2004/83, tendo em conta a situação individual do refugiado, se o agente ou os agentes em causa que concedem a proteção, na aceção deste artigo 7.o, n.o 1, tomaram medidas razoáveis para impedir a perseguição e que, consequentemente, dispõem, nomeadamente, de um sistema jurídico eficaz para detetar, perseguir e punir os atos que constituam uma perseguição e que o nacional interessado, em caso de cessação do seu estatuto de refugiado, terá acesso a essa proteção (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.os 70 e 74).

39

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83 deve ser interpretado no sentido de que a «proteção» visada por esta disposição quanto à cessação do estatuto de refugiado deve satisfazer as mesmas exigências que as que resultam, no que se refere à concessão desse estatuto, do artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, lido em conjugação com o artigo 7.o, n.os 1 e 2, da mesma.

Quanto à primeira a terceira questões

40

Com a sua primeira a terceira questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o seu artigo 7.o, n.o 2, deve ser interpretado no sentido de que qualquer apoio social e financeiro garantido por agentes privados, como a família ou o clã do nacional do país terceiro em causa, satisfaz as exigências de proteção resultantes dessas disposições e se esse apoio é pertinente para efeitos da apreciação da efetividade ou da disponibilidade da proteção garantida pelo Estado na aceção do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, ou para efeitos de determinação, ao abrigo do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da referida diretiva, lido em conjugação com o seu artigo 2.o, alínea c), da persistência de um receio fundado de ser perseguido.

41

A este respeito, importa analisar, em primeiro lugar, se se pode considerar que um apoio social e financeiro garantido por agentes privados, como a família ou o clã do nacional do país terceiro em causa, satisfaz as exigências de proteção resultantes do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o seu artigo 7.o, n.o 2.

42

Em conformidade com o artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, o nacional de um país terceiro deve, em razão de circunstâncias existentes no seu país de origem, ser confrontado com o receio fundado de uma perseguição exercida sobre a sua pessoa devido a, pelo menos, um dos cinco motivos indicados nesta disposição. Estas circunstâncias demonstram que este país terceiro não protege o seu nacional contra atos de perseguição (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.os 56 e 57).

43

Como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 58 das suas conclusões, e foi igualmente referido no n.o 38 do presente acórdão, a proteção exigida pelo artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da referida diretiva é indicada de modo preciso no seu artigo 7.o, n.o 2, segundo o qual «é proporcionada uma proteção geral quando os agentes mencionados no n.o 1 [do referido artigo] tomam medidas razoáveis para impedir a prática de atos de perseguição ou de ofensa grave, por via, nomeadamente, de um sistema jurídico eficaz para detetar, acionar judicialmente e punir os atos que constituam perseguição ou ofensa grave, e o requerente tenha acesso a tal proteção».

44

Tendo em conta estes termos, a proteção exigida pelo artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva, remete para a capacidade do país terceiro de que a pessoa em causa tem a nacionalidade de prevenir ou punir os atos de perseguição na aceção da referida diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.os 59, 67 e 68). Além disso, o referido artigo 7.o, n.o 2, visa medidas adotadas para impedir atos de perseguição, bem como a existência de um sistema judicial efetivo que permita detetar, perseguir e punir tais atos.

45

O artigo 9.o da Diretiva 2004/83, que define os elementos que permitem qualificar atos como perseguição, precisa, no seu n.o 1, que os factos pertinentes devem ser «suficientemente graves» em razão da sua natureza ou da sua persistência para constituírem uma «grave violação dos direitos humanos fundamentais», ou constituir uma acumulação de diversas medidas «suficientemente graves» para afetar um indivíduo de forma comparável a uma «grave violação dos direitos humanos fundamentais». O artigo 9.o, n.o 3, desta diretiva acrescenta que deve existir um nexo entre os motivos de perseguição referidos no seu artigo 10.o e os atos de perseguição.

46

Ora, um simples apoio social e financeiro, como o visado pelo pedido de decisão prejudicial, que é prestado ao nacional de um país terceiro em causa, não é, enquanto tal, suscetível de impedir atos de perseguição nem de detetar, perseguir e punir tais atos e, por conseguinte, não se pode considerar que garanta a proteção exigida pelo artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva. É o que se verifica em especial, no caso em apreço, uma vez que o referido apoio social e financeiro parece não ter por objetivo garantir a proteção de OA contra tais atos, mas sim a sua reinstalação em Mogadixo.

47

Nestas circunstâncias, não se pode considerar que um apoio social e financeiro, como o visado pelo pedido de decisão prejudicial, garantido pela família ou pelo clã do nacional do país terceiro em causa, garanta uma proteção contra atos de perseguição na aceção dessas disposições.

48

Daqui resulta, em segundo lugar, que esse apoio social e financeiro não é pertinente para apreciar a efetividade ou a disponibilidade da proteção garantida pelo Estado na aceção do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83.

49

Tanto mais que simples dificuldades económicas não são abrangidas, em princípio, pelo conceito de «perseguição», na aceção do artigo 9.o da Diretiva 2004/83, pelo que esse apoio social e financeiro destinado a remediar essas dificuldades não deveria, em princípio, ter incidência na apreciação da suficiência da proteção estatal contra atos de perseguição.

50

No caso em apreço, uma vez que os autos de que dispõe o Tribunal de Justiça não contêm informações que permitam considerar que as dificuldades económicas que OA poderá enfrentar no seu regresso a Mogadixo constituiriam uma manifestação de atos de perseguição na aceção do artigo 9.o da referida diretiva, essas dificuldades não são abrangidas pelo conceito de «perseguição» na aceção deste artigo que justifique a concessão e a manutenção do estatuto de refugiado.

51

Por outro lado, embora o Governo francês tenha salientado, na audiência, que uma privação material extrema poderia ser pertinente para efeitos da concessão da proteção subsidiária, resulta, no entanto, das indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial que o litígio no processo principal e as questões submetidas ao Tribunal de Justiça não dizem respeito à questão de saber se OA pode obter a concessão do estatuto conferido pela proteção subsidiária, mas à cessação do seu estatuto de refugiado. Com efeito, importa precisar, a este respeito, que a referência feita nas questões prejudiciais ao artigo 2.o, alínea e), da Diretiva 2004/83, que contém a definição de «pessoa elegível para proteção subsidiária», deve ser entendida, atentas as explicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio e tendo em conta todos os elementos dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, no sentido de que se refere ao artigo 2.o, alínea c), dessa diretiva e, assim, exclusivamente à cessação do estatuto de refugiado do recorrente no processo principal.

52

Além disso, uma vez que as questões do órgão jurisdicional de reenvio deviam ser entendidas no sentido de que este procura estabelecer se, desde que os clãs de Mogadixo forneçam eventualmente, além do seu apoio social e financeiro, igualmente uma proteção com natureza de segurança, essa proteção pode ser tida em conta a fim de verificar se a proteção garantida pelo Estado satisfaz as exigências resultantes, designadamente, do artigo 7.o, n.o 2, da Diretiva 2004/83, há que recordar que, para determinar se o receio do refugiado de ser perseguido já deixou de ser fundado, o agente ou agentes de proteção a respeito dos quais é apreciada a realidade da alteração de circunstâncias no país de origem são, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, alíneas a) e b), dessa diretiva, quer o próprio Estado quer partidos ou organizações, incluindo organizações internacionais, que controlam o Estado ou uma parte significativa do território deste (Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.o 74).

53

Ora, em conformidade com as exigências recordadas nos n.os 38 e 43 a 46 do presente acórdão, essa proteção com natureza de segurança não pode, em todo o caso, ser tomada em consideração para verificar se a proteção do Estado satisfaz as exigências resultantes, designadamente, do artigo 7.o, n.o 2, da referida diretiva.

54

Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se a existência de um apoio social e financeiro garantido pela família ou pelo clã do nacional de um país terceiro em causa pode, porém, ser tida em conta para determinar, ao abrigo do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o seu artigo 2.o, alínea c), a persistência de um receio fundado de ser perseguido. Segundo esta interpretação, acolhida por certos órgãos jurisdicionais do Reino Unido, um apoio social e financeiro, garantido pela família ou pelo clã do nacional de um país terceiro em causa, é suscetível, independentemente das exigências de proteção resultantes da primeira destas disposições, em conjugação com o artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva, de excluir esse receio.

55

Nos termos do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2004/83, o refugiado é, designadamente, o nacional de um país terceiro que está fora do país da sua nacionalidade «receando com razão ser perseguido» em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, e que não pode ou, «em virtude daquele receio», não quer pedir a «proteção» desse país. Quando as circunstâncias que justificam esse receio deixem de existir, o estatuto de refugiado pode cessar, por força do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), desta diretiva.

56

A este respeito, importa salientar que os requisitos referidos no artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2004/83, relativos ao receio de ser perseguido e à proteção, estão intrinsecamente ligados. Com efeito, a proteção a que se refere esta disposição é, como resulta do n.o 47 do presente acórdão, uma proteção contra atos de perseguição.

57

Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que, embora o nacional em causa é, em razão de circunstâncias existentes no seu país de origem, confrontado com o receio fundado de perseguição exercida sobre a sua pessoa devido a, pelo menos, um dos cinco motivos indicados no artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2004/83, essas circunstâncias demonstram que o país terceiro em causa não protege o seu nacional contra atos de perseguição (v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.os 57 e 58). Com efeito, não se pode considerar que um nacional de um país terceiro efetivamente protegido contra atos de perseguição na aceção desta disposição tenha um receio fundado de ser perseguido.

58

Além disso, essas mesmas circunstâncias que demonstram que o país terceiro em causa não protege o seu nacional contra atos de perseguição são a causa da impossibilidade de esse nacional invocar, ou da sua recusa justificada em o fazer, a proteção do seu país de origem na aceção da referida disposição, ou seja, no sentido da capacidade deste país para prevenir ou punir atos de perseguição (Acórdão de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08, EU:C:2010:105, n.o 59).

59

Por conseguinte, para determinar se o nacional de um país terceiro em causa receia com razão ser perseguido no seu país de origem, na aceção do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2004/83, há que ter em conta a existência ou a inexistência de proteção contra atos de perseguição nesse país terceiro.

60

Contudo, a proteção contra atos de perseguição existentes num país terceiro só permite concluir pela inexistência de um receio fundado de ser perseguido na aceção desta disposição se satisfizer as exigências resultantes, designadamente, do artigo 7.o, n.o 2, desta diretiva.

61

Com efeito, uma vez que os requisitos previstos no artigo 2.o, alínea c), da referida diretiva dizem respeito ao receio de ser perseguido e à proteção contra atos de perseguição, estando intrinsecamente ligados, como resulta do n.o 56 do presente acórdão, não podem ser analisados em função de um critério de proteção distinto, mas devem ser apreciados atendendo às exigências previstas, designadamente, no artigo 7.o, n.o 2, da mesma diretiva.

62

Além disso, decorre, mais especificamente, do artigo 1.o da Diretiva 2004/83 que este artigo 7.o, n.o 2, estabelece as exigências mínimas quanto à proteção contra atos de perseguição existentes no país terceiro de origem do interessado que é suscetível de obstar, se for caso disso, à concessão a este do estatuto de refugiado. Ora, uma interpretação segundo a qual a proteção existente nesse país terceiro pode excluir um receio fundado de ser perseguido, ainda que não satisfaça essas exigências, é suscetível de pôr em causa as exigências mínimas impostas por esta última disposição.

63

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira a terceira questões que o artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o seu artigo 7.o, n.o 2, deve ser interpretado no sentido de que qualquer apoio social e financeiro garantido por agentes privados, como a família ou o clã do nacional do país terceiro em causa, não satisfaz as exigências de proteção resultantes destas disposições e não é, por conseguinte, pertinente para efeitos de apreciar a efetividade ou a disponibilidade da proteção garantida pelo Estado, na aceção do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, nem para efeitos de determinar, ao abrigo do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da referida diretiva, lido em conjugação com o seu artigo 2.o, alínea c), a persistência de um receio fundado de ser perseguido.

Quanto às despesas

64

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

O artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida, deve ser interpretado no sentido de que a «proteção» visada por esta disposição quanto à cessação do estatuto de refugiado deve satisfazer as mesmas exigências que as que resultam, no que se refere à concessão desse estatuto, do artigo 2.o, alínea c), desta diretiva, lido em conjugação com o artigo 7.o, n.os 1 e 2, da mesma.

 

2)

O artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da Diretiva 2004/83, lido em conjugação com o seu artigo 7.o, n.o 2, deve ser interpretado no sentido de que qualquer apoio social e financeiro garantido por agentes privados, como a família ou o clã do nacional do país terceiro em causa, não satisfaz as exigências de proteção resultantes destas disposições e não é, por conseguinte, pertinente para efeitos de apreciar a efetividade ou a disponibilidade da proteção garantida pelo Estado, na aceção do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva, nem para efeitos de determinar, ao abrigo do artigo 11.o, n.o 1, alínea e), da referida diretiva, lido em conjugação com o seu artigo 2.o, alínea c), a persistência de um receio fundado de ser perseguido.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.