CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 19 de novembro de 2020 ( 1 )

Processo C‑505/19

WS

contra

República Federal da Alemanha

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgericht Wiesbaden (Tribunal Administrativo de Wiesbaden, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Alerta vermelho da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) — Artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Princípio ne bis in idem — Artigo 21.o TFUE — Livre circulação de pessoas — Diretiva (UE) 2016/680 — Tratamento de dados pessoais»

I. Introdução

1.

O presente processo levanta duas questões inéditas relativas às consequências decorrentes da aplicação, no Espaço Schengen, do princípio ne bis in idem aos factos pelos quais a Organização Internacional de Polícia Criminal (a seguir «Interpol») publicou um alerta vermelho a pedido de um Estado terceiro. Os alertas vermelhos são emitidos contra pessoas procuradas, quer para efeitos da ação penal quer para execução de uma pena. Trata‑se, em substância, de pedidos dirigidos às autoridades judiciárias no mundo inteiro para localizarem e, se possível, restringirem provisoriamente os movimentos das pessoas procuradas, na pendência de um pedido de extradição.

2.

Em primeiro lugar, estarão os Estados‑Membros da União autorizados a executar o alerta vermelho e, assim, restringir os movimentos da pessoa procurada quando outro Estado‑Membro da União tenha comunicado à Interpol e, da mesma forma, a todos os outros membros da Interpol, que esse alerta diz respeito a fatos relativamente aos quais o princípio ne bis in idem pode ser aplicável? Em segundo lugar, estarão os Estados‑Membros da União autorizados, no caso de o princípio ne bis in idem ser aplicável, a prosseguir com o tratamento dos dados pessoais da pessoa procurada contidos no alerta vermelho?

II. Quadro jurídico

A. Direito internacional

3.

De acordo com o artigo 2.o, n.o 1, do Estatuto da Interpol, adotado em 1956 e alterado pela última vez em 2008, um dos objetivos da Interpol é:

«Assegurar e promover a assistência mútua ao nível mais amplo possível entre todas as autoridades de polícia criminal, dentro dos limites das leis existentes nos diferentes países e na aceção da “Declaração Universal dos Direitos do Homem”».

4.

O artigo 31.o do Estatuto da Interpol dispõe: «[p]ara prosseguir os seus objetivos, a [Interpol] necessita da cooperação permanente e ativa dos seus membros, que devem fazer, dentro das suas competências, tudo o que seja compatível com as legislações dos seus países para participarem com diligência nas suas atividades».

5.

Nos termos do artigo 73.o, n.o 1, das Regras da Interpol sobre o Tratamento de Dados (a seguir «RITD»), adotado em 2011, conforme alterado pela última vez em 2019, o sistema de alertas da Interpol é composto por um conjunto de alertas codificados por cores e publicados para fins específicos e alertas especiais. Os alertas vermelhos são normalmente publicados a pedido de um Gabinete Central Nacional (a seguir «GCN») «com vista a localizar uma pessoa procurada e à sua detenção, prisão ou restrição de circulação para efeitos de extradição, entrega ou ato lícito semelhante» (artigo 82.o das RITD). Por força do artigo 87.o das RITD, se uma pessoa objeto de um alerta vermelho for localizada num determinado país, este deve: «i) informar imediatamente o Gabinete Central Nacional requerente ou a entidade internacional e o Secretariado‑Geral de que a pessoa foi localizada e sujeita a restrições decorrentes do direito nacional e dos tratados internacionais aplicáveis»; e «ii) tomar todas as medidas permitidas ao abrigo do direito nacional e dos tratados internacionais aplicáveis, como a detenção temporária da pessoa procurada ou o controlo ou restrição da sua circulação».

B. Direito da União

6.

O artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (a seguir «CAAS») ( 2 ), incluído no seu capítulo 3 (intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem»), prevê:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida».

7.

O artigo 57.o, n.os 1 e 2, da CAAS, dispõe:

«1.   Sempre que uma pessoa seja acusada de uma infração por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão.

2.   As informações solicitadas serão fornecidas o mais rapidamente possível e serão tomadas em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso».

8.

Nos termos do considerando 25 da Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão‑Quadro 2008/977/JAI do Conselho ( 3 ), todos os Estados‑Membros fazem parte da Interpol, sendo, «[p]or conseguinte, […] conveniente reforçar a cooperação entre a União e a Interpol mediante a promoção de um eficaz intercâmbio de dados pessoais, assegurando ao mesmo tempo o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais no que se refere ao tratamento dos dados pessoais».

9.

Segundo a definição que figura no artigo 3.o da Diretiva 2016/680, entende‑se por «tratamento»«uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição».

10.

Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680, os dados pessoais devem, nomeadamente, ser objeto de um «tratamento lícito e leal», ser «recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, e não tratados de uma forma incompatível com essas finalidades», e «adequados, pertinentes e limitados ao mínimo necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados».

11.

Por força do artigo 8.o, n.o 1, da mesma diretiva, «[os] Estados‑Membros preveem que o tratamento só seja lícito se e na medida em que for necessário para o exercício de uma atribuição pela autoridade competente para os efeitos previstos no artigo 1.o, n.o 1, e tiver por base o direito da União ou de um Estado‑Membro».

12.

Em conformidade com o artigo 16.o da Diretiva 2016/680, os titulares dos dados devem beneficiar de um «direito de retificação ou apagamento dos dados pessoais e limitação do tratamento».

13.

O capítulo V da Diretiva 2016/680 (composto pelos artigos 35.o a 40.o) tem como título «Transferências de dados pessoais para países terceiros ou organizações internacionais» e regula, nomeadamente, as condições em que os dados pessoais podem ser transferidos para um país terceiro ou para uma organização internacional.

C. Direito nacional

14.

O § 153a, n.o 1, do Strafprozessordnung (Código de Processo Penal alemão; a seguir «StPO») prevê, em caso de infrações puníveis com multa ou pena de prisão mínima inferior a um ano, que o Staatsanwaltschaft (Ministério Público) possa, mediante acordo do órgão jurisdicional competente para a abertura do processo principal e da pessoa objeto de um processo penal, renunciar provisoriamente ao direito de intentar uma ação pública, impondo condições e injunções a essa pessoa, como o pagamento de um montante em dinheiro a uma instituição de caridade ou ao Tesouro Público, quando estas sejam aptas a retirar o interesse público na instauração de um processo e quando a gravidade da infração não o exclua. Se a pessoa objeto de um processo penal cumprir as condições e injunções, a conduta em causa pode deixar de ser considerada infração para efeitos da ação penal.

15.

Nos termos do § 3, n.o 1, da Gesetz über das Bundeskriminalamt und die Zusammenarbeit des Bundes und der Länder in kriminalpolizeilichen Angelegenheiten [Lei Relativa ao Serviço Federal de Polícia Judiciária (a seguir «BKA») e Cooperação entre o Estado Federal e os Länder em matéria de Polícia Judiciária], de 1 de junho de 2017 ( 4 ), o BKA é o serviço central nacional da República Federal da Alemanha de cooperação com a Interpol.

III. Matéria de facto, tramitação do processo nacional e questões prejudiciais

16.

Em 2012, a pedido das autoridades competentes dos Estados Unidos da América, a Interpol emitiu um alerta vermelho relativamente a um cidadão alemão residente neste país (a seguir «demandante»), dirigido a todos os serviços centrais nacionais, com vista à sua localização, detenção ou restrição da sua circulação para efeitos de extradição. O alerta vermelho baseava‑se num mandado de detenção emitido pelas autoridades norte‑americanas por, nomeadamente, acusações de corrupção, branqueamento de capitais e fraude.

17.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o Ministério Público de Munique (Alemanha) já tinha dado início a um inquérito contra o demandante pelos mesmos factos que os abrangidos pelo alerta vermelho. Esse processo foi extinto em 2009, na sequência do pagamento, pelo demandante, de um determinado montante em dinheiro, em conformidade com o § 153a, n.o 1, do StPO.

18.

Em 2013, na sequência de uma troca de correspondência com o demandante, o BKA requereu e obteve da Interpol a publicação de uma adenda ao alerta vermelho em questão, indicando que o BKA considerava que o princípio ne bis in idem era aplicável às acusações para as quais esse alerta tinha sido emitido. Além disso, as autoridades alemãs pediram às autoridades norte‑americanas, embora sem êxito, que eliminassem o alerta vermelho.

19.

Em 2017, o demandante intentou uma ação no Verwaltungsgericht Wiesbaden (Tribunal Administrativo de Wiesbaden, Alemanha) contra a República Federal da Alemanha, representada pelo BKA. Pediu que a demandada fosse condenada a tomar as medidas necessárias para eliminar o alerta vermelho. O demandante indicou que não se podia deslocar para nenhum Estado parte no Acordo de Schengen sem correr o risco de ser detido. Com efeito, devido ao alerta vermelho, esses Estados tinham‑no inscrito nas suas listas de pessoas procuradas. Segundo o demandante, essa situação violava o artigo 54.o da CAAS e o artigo 21.o TFUE. Além disso, o demandante sustentou que o tratamento posterior, pelas autoridades dos Estados‑Membros, dos seus dados pessoais contidos no alerta vermelho violava as disposições da Diretiva 2016/680.

20.

Nestas circunstâncias, tendo dúvidas quanto à interpretação a dar às disposições pertinentes do direito da União, o Verwaltungsgericht Wiesbaden (Tribunal Administrativo de Wiesbaden) decidiu, em 27 de junho de 2019, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 54.o da [CAAS], em conjugação com o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir “Carta”), ser interpretado no sentido de que é proibido iniciar um processo penal pelo mesmo facto em todos os Estados partes no [Acordo de Schengen], quando o Ministério Público alemão ordena o arquivamento do procedimento criminal pelo facto de o arguido ter cumprido certas obrigações e, em especial, ter pago um determinado montante fixado pelo referido Ministério Público?

2)

Resulta do artigo 21.o, n.o 1, [TFUE] uma proibição de os Estados‑Membros executarem pedidos de detenção emitidos por Estados terceiros no quadro de uma organização internacional como a [Interpol], quando a pessoa visada pelo pedido de detenção é um cidadão da União e o Estado‑Membro de que é nacional comunicou à organização internacional e, deste modo, também aos outros Estados‑Membros, as suas dúvidas quanto à compatibilidade do pedido de detenção com o princípio ne bis in idem?

3)

O artigo 21.o, n.o 1, TFUE impede a instauração de um procedimento criminal e a detenção temporária nos Estados‑Membros de que o interessado não é nacional, se tal for contrário ao princípio ne bis in idem?

4)

Devem os artigos 4.o, n.o 1, alínea a), e 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680, em conjugação com o artigo 54.o da CAAS e o artigo 50.o da Carta, ser interpretados no sentido de que exigem que os Estados‑Membros adotem disposições que garantam que, no caso de um processo de extinção da ação penal, seja proibido em todos os Estados Partes no [Acordo de Schengen] continuar a tratar red notices (alertas vermelhos) da [Interpol], que possam dar origem a um novo procedimento criminal?

5)

Uma organização internacional como a [Interpol] dispõe de um nível adequado de proteção de dados, quando se verifica que não existe uma decisão de adequação na aceção do artigo 36.o da Diretiva [2016/680] e/ou garantias adequadas nos termos do artigo 37.o da mesma diretiva?

6)

Os Estados‑Membros só podem continuar a tratar dados inscritos por Estados terceiros numa circular de localização e detenção provisória (“red notice”) junto da [Interpol], quando um Estado terceiro difundir, com o red notice, um pedido de detenção e extradição e tiver solicitado uma detenção que não seja contrária ao direito da União e, em particular, ao princípio ne bis in idem

21.

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente processo fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Por Despacho de 12 de julho de 2019, o Tribunal de Justiça decidiu que não era necessário deferir esse pedido.

22.

Em 5 de setembro de 2019, a pedido das autoridades norte‑americanas, a Interpol eliminou o alerta vermelho relativo ao demandante.

23.

Na sua resposta de 11 de novembro de 2019 a uma pergunta do Tribunal de Justiça relativa às consequências desse acontecimento para o presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio informou o Tribunal de Justiça da sua intenção de manter o pedido de decisão prejudicial. O órgão jurisdicional de reenvio explicou que o demandante pediu a alteração do objeto do litígio no processo principal. O demandante pede agora ao órgão jurisdicional de reenvio que ordene à República Federal da Alemanha que tome todas as medidas necessárias i) para impedir que um novo alerta vermelho relativo aos mesmos factos seja emitido pela Interpol e, sendo caso disso, ii) para eliminar o novo alerta vermelho. O órgão jurisdicional de reenvio explica que, segundo o direito nacional, é possível alterar o objeto da ação e considerar que se trata de uma ação declarativa que constitui o prolongamento de uma ação anterior («Fortsetzungsfeststellungsklage»). Desta forma, o órgão jurisdicional de reenvio considera que as questões submetidas continuam a ser pertinentes para a solução do litígio que lhe foi submetido.

24.

O demandante, o BKA, os Governos belga, checo, dinamarquês, alemão, grego, francês, croata, neerlandês, polaco, romeno e do Reino Unido, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas no presente processo. O demandante, o BKA, os Governos belga, checo, dinamarquês, alemão, espanhol, francês, neerlandês e finlandês, bem como a Comissão Europeia, foram igualmente ouvidos na audiência realizada em 14 de julho de 2020.

IV. Análise

25.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, em substância, se o direito da União se opõe a que os Estados‑Membros, quando seja emitido um alerta vermelho pela Interpol a pedido de um Estado terceiro e esse alerta tenha por objeto factos relativamente aos quais o princípio ne bis in idem pode ser aplicável, i) executem o referido alerta restringindo a liberdade de circulação da pessoa procurada e ii) procedam ao tratamento posterior dos seus dados pessoais contidos no alerta.

26.

Antes de mais, é útil explicar de forma sucinta o que é um alerta vermelho. Nos termos do artigo 82.o das RITD, os alertas vermelhos são publicados a pedido de autoridades nacionais ou internacionais com poderes de investigação e ação penal «com vista a localizar uma pessoa procurada e à sua detenção, prisão ou restrição de circulação para efeitos de extradição, entrega ou ato lícito semelhante». O artigo 87.o das RITD indica que se uma pessoa objeto de um alerta vermelho for localizada, as autoridades do país no qual essa pessoa se encontra informam imediatamente as autoridades requerentes e a Interpol do facto de que foi localizada, e «[tomam] todas as medidas permitidas ao abrigo do direito nacional e dos tratados internacionais aplicáveis, como a detenção temporária da pessoa procurada ou o controlo ou restrição da sua circulação».

27.

Por conseguinte, a emissão de um alerta vermelho pela Interpol é um simples pedido de assistência dirigido por um membro da Interpol aos outros membros, a fim de localizar e, se possível, restringir os movimentos da pessoa procurada. Um alerta vermelho não constitui nem desencadeia automaticamente um pedido de extradição, que deve, sendo caso disso, ser formulado separadamente. No entanto, é manifesto que um alerta vermelho é emitido com vista a proceder a uma extradição ou a um processo semelhante.

28.

Uma vez esclarecido este ponto, e antes de analisar as questões de mérito suscitadas no presente processo, devem ser abordadas várias questões processuais.

A. Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial e à persistência da necessidade de resposta

29.

Em primeiro lugar, o BKA e os Governos belga, checo, alemão, grego, neerlandês e do Reino Unido manifestaram dúvidas quanto à admissibilidade ab initio do reenvio prejudicial. Os argumentos adiantados a este respeito podem dividir‑se em quatro categorias, que sugerem, essencialmente, que: i) a decisão de reenvio não contém precisões suficientes quanto à situação de facto relevante; ii) a situação em causa no processo principal está limitada ao território alemão e não contém nenhum elemento transfronteiriço concreto; iii) a ação perante o órgão jurisdicional de reenvio é inadmissível e/ou, em todo o caso, improcedente; e iv) essa ação é abusiva, uma vez que visa contestar a competência dos Estados‑Membros diferentes da Alemanha para executar um alerta vermelho.

30.

Estas objeções não me convencem.

31.

Primeiro, é verdade que a decisão de reenvio é particularmente sucinta. No entanto, essa decisão, conforme completada pelas observações das partes, permite ao Tribunal de Justiça saber que questões são colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio e por que razão. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil.

32.

Segundo, a situação em causa no processo principal não é, de forma nenhuma, puramente interna à Alemanha. Por um lado, embora o litígio diga efetivamente respeito a um cidadão alemão que reside neste país, que contesta a conduta das autoridades alemãs, esta contestação é motivada pela alegada restrição à sua liberdade de circulação em toda a União, consagrada no artigo 21.o TFUE. O Tribunal de Justiça tem afirmado reiteradamente que as disposições que conferem direitos de livre circulação, incluindo o artigo 21.o TFUE, devem ser interpretadas em sentido amplo ( 5 ). O facto de um cidadão da União não ter (ainda) exercido os seus direitos não significa que esta situação seja puramente interna ( 6 ). A meu ver, o artigo 21.o TFUE pode ser invocado por um particular que pretenda efetiva e verdadeiramente exercer essa liberdade ( 7 ). É certamente este o caso do demandante: as suas atividades anteriormente e durante o processo principal, nomeadamente as suas trocas de correspondência com o BKA e as autoridades públicas de vários outros Estados‑Membros, demonstram claramente que a sua intenção de exercer essa liberdade não é puramente hipotética nem invocada de forma instrumental ( 8 ).

33.

Por outro lado, a aplicabilidade da Diretiva 2016/680 não está limitada às situações transfronteiriças. Na verdade, o mesmo vale tanto para o artigo 50.o da Carta como para o artigo 54.o da CAAS: estas duas disposições podem manifestamente aplicar‑se mesmo no caso de um nacional ser confrontado com as autoridades do seu próprio Estado‑Membro.

34.

Terceiro, não compete ao Tribunal de Justiça apreciar a admissibilidade da ação no processo principal e, ainda menos, a sua procedência. Segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo tribunal nacional no quadro regulamentar e factual por ele definido sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência ( 9 ). A referida presunção de pertinência não pode ser ilidida pelo simples facto de uma das partes no processo principal contestar determinados factos cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar e de que depende a definição do objeto do litígio ( 10 ). Da mesma forma, essa presunção não pode ser ilidida pela possibilidade de o demandante poder ser vencido no processo principal no tribunal nacional, especialmente se o Tribunal de Justiça adotar determinada interpretação do direito da União. Negar a admissibilidade devido a uma resposta eventualmente negativa sobre o mérito equivaleria a meter o carro à frente dos bois.

35.

Por último, observo que o litígio no processo principal é dirigido contra as autoridades alemãs — que são a parte demandada no órgão jurisdicional de reenvio — e que qualquer decisão desse tribunal neste processo só produzirá naturalmente efeitos jurídicos em relação a essas autoridades. A circunstância de, para ajudar o órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça também ter necessidade de esclarecer as obrigações decorrentes das disposições da União em causa para Estados‑Membros diferentes da Alemanha não pode pôr em causa a admissibilidade do reenvio prejudicial. É verdade que o Tribunal de Justiça se recusou pronunciar em processos simulados, instaurados apenas com a intenção de o Tribunal de Justiça decidir quanto a obrigações relacionadas com a União de Estados‑Membros diferentes do Estado do órgão jurisdicional de reenvio ( 11 ). No entanto, no presente processo, não há nenhuma informação que sugira que o litígio no órgão jurisdicional de reenvio foi artificialmente concebido a fim de induzir o Tribunal de Justiça a tomar uma posição sobre determinados problemas de interpretação que, na verdade, não servem nenhuma necessidade objetiva inerente à solução desse litígio. Além disso, o facto de uma resposta do Tribunal de Justiça sobre os direitos ou obrigações de um Estado‑Membro ter implicações (horizontais) para outros Estados‑Membros é simplesmente inerente às questões da livre circulação entre Estados‑Membros e aos respetivos elementos de reconhecimento mútuo entre estes.

36.

Em segundo lugar, o BKA e os Governos belga, checo, alemão, espanhol, finlandês e do Reino Unido alegam também que as questões prejudiciais se tornaram agora hipotéticas. Sustentam que, na medida em que o alerta vermelho em causa no processo principal foi eliminado pela Interpol em setembro de 2019, já não é necessária uma resposta às questões prejudiciais para o órgão jurisdicional de reenvio decidir o litígio que lhe foi submetido.

37.

Contudo, como foi referido no n.o 23, supra, questionado pelo Tribunal de Justiça sobre esta questão específica, o órgão jurisdicional de reenvio explicou que, ao abrigo do direito nacional, o demandante está autorizado a alterar o seu pedido e que exerceu efetivamente esse direito. Assim, a ação intentada no órgão jurisdicional de reenvio está, até à data (ainda) pendente e, no seu entender, a sua resolução depende (ainda) da interpretação das disposições da União que são objeto das questões prejudiciais.

38.

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio sugeriu, sem que essa sugestão fosse contestada pelo BKA ou por qualquer outra parte que tivesse apresentado observações, que o alerta vermelho em causa pudesse ser reintroduzido a qualquer momento no sistema da Interpol na sequência de outro pedido das autoridades competentes norte‑americanas.

39.

À luz das considerações precedentes, e tendo em conta a presunção de pertinência de que gozam os pedidos de decisão prejudicial, considero que o presente reenvio prejudicial não ficou desprovido de objeto, apesar da retirada do alerta vermelho.

B. Quanto ao mérito

40.

As presentes conclusões estão estruturadas da seguinte forma. Começarei pela primeira, segunda e terceira questões, todas relativas à aplicabilidade do princípio ne bis in idem no presente processo e, em caso afirmativo, às consequências para os outros Estados‑Membros quanto à possibilidade de executarem o alerta vermelho emitido pela Interpol (1). Em seguida, examinarei a quarta, quinta e sexta questões, que questionam sobre as consequências decorrentes da aplicabilidade do princípio ne bis in idem ao tratamento de dados pessoais da pessoa procurada contidos no alerta vermelho. No entanto, só abordarei as questões invocadas na quarta e sexta questões (2), na medida em que considero que a quinta questão é inadmissível (3).

1.   Quanto à primeira, segunda e terceira questões

41.

Com a primeira, segunda e terceira questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 54.o da CAAS, lido em conjugação com o artigo 50.o da Carta, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE se opõem a que os Estados‑Membros executem um alerta vermelho emitido pela Interpol a pedido de um Estado terceiro, restringindo assim a liberdade de circulação de um cidadão da União, quando outro Estado‑Membro tenha comunicado à Interpol (e, portanto, também aos outros membros desta) que esse alerta diz respeito a factos aos quais o princípio ne bis in idem pode ser aplicável.

42.

Para responder a esta questão, há que, em primeiro lugar, examinar se uma medida, como a adotada pelo Ministério Público de Munique com o acordo do tribunal competente relativamente ao demandante em 2009 pode, por si só, desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem (a). Em seguida, na medida em que o princípio ne bis in idem deva efetivamente ser validamente desencadeado, examinarei se este princípio pode constituir uma proibição à extradição para um Estado terceiro, impedindo assim a adoção de medidas restritivas necessárias para essa finalidade (b). Abordarei de seguida a própria situação do presente processo, em que se afigura que ainda não foi demonstrada a aplicação do princípio ne bis in idem a um caso concreto (c e d).

a)   Aplicabilidade do princípio ne bis in idem às formas de extinção do procedimento penal que não sejam decisões judiciais

43.

A título preliminar, há que determinar se uma medida como a adotada pelo Ministério Público em relação ao demandante em 2009 pode mesmo desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem. A aplicabilidade do artigo 54.o da CAAS está subordinada à condição de que o arguido «tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante», o que impede então a instauração posterior de um processo penal pelo mesmo facto nos outros Estados‑Membros.

44.

A meu ver, a decisão pela qual o Ministério Público renuncia definitivamente ao prosseguimento do processo penal com o acordo do tribunal competente, e que, após o arguido ter cumprido determinados requisitos, exclui qualquer ação penal posterior ao abrigo do direito nacional está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 54.o da CAAS. Com efeito, existe já jurisprudência constante nesta matéria.

45.

No Acórdão Gözütok e Brügge, o Tribunal de Justiça abordou a questão pela primeira vez e considerou que o princípio ne bis in idem, previsto no artigo 54.o da CAAS, «se aplica igualmente a procedimentos de extinção da ação pública, como os que estão em causa nos processos principais, pelos quais o Ministério Público de um Estado‑Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o [processo penal] instaurado nesse Estado, depois de o arguido ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago [determinado montante em dinheiro fixado] pelo Ministério Público» ( 12 ).

46.

Estas constatações foram confirmadas e esclarecidas por jurisprudência posterior relativa ao artigo 54.o da CAAS. No Acórdão M, o Tribunal de Justiça salientou que, para o princípio ne bis in idem ser aplicável, é necessário, em primeiro lugar, que a ação penal tenha sido definitivamente extinta ( 13 ). No Acórdão Spasic, o Tribunal de Justiça salientou a importância de a «condição de execução» — segundo a qual, caso seja aplicada uma sanção, esta «tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada» — ser cumprida por forma a evitar a impunidade de pessoas definitivamente condenadas num Estado‑Membro da União ( 14 ).

47.

Em contrapartida, no Acórdão Miraglia, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 54.o da CAAS não é aplicável a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado‑Membro que arquiva um processo, após o Ministério Público, sem qualquer apreciação de mérito, ter decidido não instaurar a ação penal com o único fundamento de já ter sido instaurada noutro Estado‑Membro uma ação penal contra o mesmo arguido pelos mesmos factos ( 15 ). Da mesma forma, no Acórdão Turanský, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 54.o da CAAS não é aplicável a uma decisão das autoridades policiais que, após terem examinado o mérito do processo, ordena, numa fase anterior à acusação de uma pessoa suspeita da prática de um crime, o arquivamento do processo penal, quando essa decisão de arquivamento, segundo o direito nacional, não extingue definitivamente a ação pública nem obsta, portanto, a uma nova ação penal, pelos mesmos factos, nesse mesmo Estado ( 16 ).

48.

No Acórdão Kossowski, o Tribunal de Justiça esclareceu que uma decisão do procurador que encerra o inquérito instaurado contra uma pessoa, com a possibilidade de reabertura ou de anulação desse inquérito e sem que tenha sido aplicada qualquer sanção, não pode ser qualificada de decisão definitiva quando resulta da fundamentação dessa decisão que o processo foi encerrado sem que tenha sido realizada uma instrução exaustiva ( 17 ).

49.

Em suma, existem, por um lado, decisões definitivas relativas a uma infração penal (existência ou inexistência dos seus elementos constitutivos ou outros tipos específicos de decisões que não contêm essa declaração, mas que implicam uma resolução efetiva do processo) que se opõem, nos termos do direito nacional, a qualquer ação penal pelo mesmo facto no mesmo Estado‑Membro e, por conseguinte, também noutros Estados‑Membros. Por outro lado, existem outras formas de extinção do processo penal ou de não abertura, normalmente praticadas pelas autoridades policiais a nível nacional, que não desencadeiam essas consequências. Essa linha divisória é antes intuitiva, mas dificilmente apreendida de forma exaustiva, tendo em conta as diferentes regras e procedimentos nos Estados‑Membros: para que o princípio ne bis in idem possa ser validamente desencadeado, é necessário que uma declaração final de um Estado‑Membro delimite, de forma vinculativa, o alcance do idem suscetível de excluir desde logo o bis. Se, falando metaforicamente, esse espaço for deixado livre, nada impede os outros Estados‑Membros de investigarem e promoverem eles próprios a ação penal.

50.

Desta forma, a resposta à primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio é, com efeito, afirmativa: apreciada em abstrato, a decisão do Ministério Público que apreciou o processo quanto ao seu mérito e que, com o acordo do tribunal competente, arquivou definitivamente o processo penal quando o arguido cumpriu determinados requisitos está abrangida pelo artigo 54.o da CAAS.

51.

No entanto, o facto de esse tipo de decisão nacional estar abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 54.o da CAAS, possivelmente equivalente a um julgamento definitivo por um tribunal de uma parte contratante, está bastante afastado das possíveis consequências sobre as quais o órgão jurisdicional de reenvio interroga na segunda e terceira questões prejudiciais. Particularmente, o que parece faltar é o próximo passo lógico necessário para quaisquer questões levantadas ao abrigo do artigo 21.o TFUE: uma decisão final e vinculativa de uma autoridade competente de um Estado‑Membro que confirma a identidade dos factos em questão (o idem), desencadeando assim o ne bis relativamente aos mesmos factos em toda a União, que pode eventualmente ter também efeitos sobre os pedidos de extradição provenientes de Estados terceiros.

52.

No entanto, tendo em conta as observações das partes e o debate que ocorreu na audiência com base nestas, vou, neste momento, concordar com os pressupostos factuais e jurídicos inerentes à segunda e terceira questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Especialmente, em resposta à terceira questão, o artigo 21.o, n.o 1, TFUE, além da proibição de qualquer ação penal posterior noutros Estados‑Membros, também se opõe à detenção temporária nos outros Estados‑Membros, tendo em vista uma possível extradição futura para um Estado terceiro, caso o artigo 54.o da CAAS seja aplicável ao caso em apreço?

53.

Creio que sim.

b)   Princípio ne bis in idem enquanto proibição da extradição (ou da detenção com vista à extradição)

54.

Existe uma relação evidente entre o princípio ne bis in idem e o direito à livre circulação de pessoas estabelecido no artigo 21.o TFUE. O Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que «o artigo 54.o da CAAS tem como objetivo evitar que uma pessoa, por exercer o seu direito de livre circulação, seja perseguida criminalmente pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes […]. Esta disposição assegura a paz cívica das pessoas que, depois de terem sido objeto de [ações penais], foram definitivamente julgadas. Essas pessoas devem poder circular livremente sem temerem vir a ser alvo de [novas ações penais] noutro Estado contratante» ( 18 ).

55.

A meu ver, a aplicação dessas declarações a eventuais pedidos de extradição provenientes de Estados terceiros é extremamente simples. A lógica deve ser a de agir como «um bloco». Com efeito, uma decisão que impede a instauração posterior de ações penais pelo mesmo facto num Estado‑Membro deve ter os mesmos efeitos em qualquer outro lugar do mesmo espaço de liberdade, segurança e justiça, da mesma forma que teria na mesma ordem jurídica interna.

56.

Além disso, se um desses espaços existir no plano interno, isso deve igualmente ter consequências a nível externo. Assim, um Estado‑Membro não pode proceder à detenção, à prisão temporária ou à adoção de qualquer outra medida restritiva da liberdade de circulação de uma pessoa visada num alerta vermelho emitido pela Interpol se tiver sido determinado de forma vinculativa que essa pessoa foi definitivamente julgada pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro. Tal medida seria contrária ao artigo 54.o da CAAS, restringindo consideravelmente o direito conferido pelo artigo 21.o TFUE. Um espaço jurídico único significa um espaço jurídico único, tanto no plano interno como externo.

57.

No entanto, alguns governos que apresentaram observações no presente processo discordam desta conclusão, invocando três objeções contra esta tese. Em primeiro lugar, consideram que essa conclusão se baseia numa leitura excessivamente ampla do artigo 54.o da CAAS. Na opinião desses governos, esta disposição tem um âmbito de aplicação mais restrito, abrangendo apenas as ações penais promovidas pelo próprio Estado‑Membro, mas não a detenção com vista à extradição que permite o exercício de ações penais posteriores num Estado terceiro (1). Em seguida, alegam que essa interpretação equivaleria a uma aplicação extraterritorial do Acordo de Schengen (2), criando assim tensões a nível das obrigações de direito internacional assumidas pelos Estados‑Membros e pela União ao abrigo dos acordos bilaterais de extradição, especialmente os celebrados com os Estados Unidos da América (3).

58.

Na secção seguinte abordarei sucessivamente estes argumentos.

1) Quanto ao conceito de «ação penal»

59.

Em primeiro lugar, alguns dos governos que apresentaram observações alegam que, embora o princípio ne bis in idem se oponha a que uma pessoa seja «submetida a uma ação penal», não se opõe a que uma pessoa seja sujeita a medidas como as identificadas na decisão de reenvio. No entender desses governos, essas medidas não devem ser consideradas «ações penais», mas «medidas cautelares», destinadas a auxiliar o outro Estado onde irá ocorrer a ação penal.

60.

Esta interpretação do artigo 54.o da CAAS parece um pouco formalista. Não vejo nenhum elemento literal, contextual ou teleológico que permita considerar que o conceito de «ação penal» abrange apenas os processos penais que decorram «do início ao fim» num único Estado, e que devam todos ser levados a cabo por este.

61.

A redação do artigo 54.o da CAAS não exige que a ação penal posterior, que é proibida, seja exercida por outra parte contratante. Impede que qualquer ação penal seja intentada noutra parte contratante, acolhendo assim literalmente a proibição de qualquer participação territorial em atos próprios da ação penal praticados nesse Estado‑Membro por conta de outros Estados.

62.

Em seguida, não há dúvida de que medidas como a detenção ou a prisão temporária — além de preencherem, à primeira vista, os ditos «critérios Engel» ( 19 ) para serem consideradas de «natureza penal» — permitem a instauração da ação penal contra a pessoa procurada num Estado terceiro. Por outras palavras, essas medidas inscrevem‑se na continuação dos atos, eventualmente adotados em diferentes Estados, através dos quais a pessoa procurada é submetida a um processo legal relativo a uma acusação em matéria penal.

63.

Um Estado‑Membro da União que executa o alerta vermelho atua como uma longa manus do Estado que exerce a ação penal. Esse Estado‑Membro atua efetivamente em nome e por conta da ação penal exercida por outro Estado, possibilitando eventualmente que a pessoa procurada fique sujeita ao poder (de acusação) de um país terceiro. Nestas circunstâncias, sugerir que esse ato não está abrangido pela ação penal (geralmente já em curso) desencadeada por um país terceiro equivaleria a sustentar — se me puderem perdoar o recurso a uma analogia de direito penal material sinistra, mas ainda pertinente — que amarrar uma pessoa e entregá‑la para que um terceiro a possa esfaquear não constitui homicídio (por cumplicidade ou coautoria), mas simplesmente uma «medida cautelar» destinada a ajudar a pessoa que empunha a faca.

64.

Quanto à finalidade, na medida em que o artigo 54.o da CAAS visa, nomeadamente, proteger a liberdade de circulação dos cidadãos da União ( 20 ), qualquer outra interpretação seria dificilmente compatível com este objetivo e com o contexto dos direitos fundamentais no qual essa disposição e o artigo 50.o da Carta se inscrevem. Uma pessoa que seja submetida a detenção ou a prisão temporária, com vista à sua extradição, quando tem o direito de beneficiar do princípio ne bis in idem, deixa de ter — utilizando a expressão do Tribunal de Justiça — «paz cívica» ou de «poder circular livremente» na União.

65.

Isto é igualmente corroborado pela interpretação que o Tribunal de Justiça fez do referido princípio, conforme consagrado no artigo 50.o da Carta. Relativamente a esta disposição, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que «o princípio ne bis in idem proíbe o cúmulo tanto de procedimentos como de sanções que tenham natureza penal na aceção deste artigo pelos mesmos factos e contra a mesma pessoa» ( 21 ). Por conseguinte, a mera prática de atos processuais relativos à ação penal exercida contra um indivíduo é igualmente proibida por força do artigo 54.o da CAAS.

2) Aplicação «extra‑Schengen»

66.

Em segundo lugar, alguns governos sugerem que o artigo 54.o da CAAS só se aplica no «interior do Espaço Schengen» e não regula as situações em que uma pessoa foi julgada ou pode ser julgada num Estado terceiro. Por outras palavras, o artigo 54.o da CAAS só vincula as partes contratantes nas suas relações mútuas, mas não nas suas relações com Estados terceiros (que são reguladas pelo direito nacional e pelo direito internacional). Esta interpretação seria ainda confirmada pelo facto de o acordo de extradição entre a União Europeia e os Estados Unidos ( 22 ) não prever nenhum fundamento absoluto de recusa para os casos em que o princípio ne bis in idem seja aplicável. Na falta de disposição expressa a este respeito, a matéria é da competência dos Estados‑Membros, que devem, por conseguinte, ser livres de a regulamentar como entenderem, nomeadamente através de acordos bilaterais.

67.

Sou obrigado a concordar com várias premissas individuais contidas nestes argumentos. No entanto, não partilho certamente da sua conjugação e da conclusão retirada com base nas mesmas.

68.

Antes de mais, é verdade que o Acordo de Schengen não se aplica a países terceiros. Mas aplica‑se certamente às ações empreendidas pelas suas partes contratantes, nos seus próprios territórios, por conta de Estados terceiros. Quanto ao restante, o argumento coincide em larga medida com o exposto na secção anterior: o facto de não ser julgado duas vezes noutro Estado‑Membro é mais amplo que o de não ser julgado nesse e por esse Estado‑Membro. Tal inclui, no plano literal, bem como no sistemático e no lógico, autorizar a prática de atos próprios da ação penal contra um terceiro no território de uma parte contratante.

69.

Esta conclusão é ainda confirmada por uma interpretação do artigo 54.o da CAAS à luz da Carta. O seu artigo 50.o eleva o princípio ne bis in idem à condição de direito fundamental, dispondo que «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei» ( 23 ). Provavelmente, «ninguém» deve significar «ninguém», sem quaisquer limitações territoriais e não «ninguém, exceto indivíduos submetidos a uma ação penal fora da União».

70.

Com efeito, seria uma leitura bastante estranha do artigo 50.o da Carta a de que a importância e o alcance desse direito fundamental terminam, para as autoridades dos Estados‑Membros, na fronteira externa da União. Esta abordagem não só seria perigosa para uma proteção efetiva dos direitos fundamentais, pois induz a que seja contornada, como também não faria muito sentido, tendo em conta a soberania dos Estados‑Membros e o seu ius puniendi: se o princípio ne bis in idem é suficiente para impedir um Estado‑Membro de exercer diretamente a sua competência penal (ou seja, instaurando eles próprios uma ação penal contra a pessoa), como não poderia ser suficiente para impedir o mesmo Estado‑Membro de atuar em nome da competência penal de um Estado terceiro? Por que razão o ius puniendi de Estados terceiros deve ser mais protegido do que o dos Estados‑Membros?

71.

A este respeito, há que recordar que, nos Acórdãos Petruhhin ( 24 ) e Pisciotti ( 25 ), o Tribunal de Justiça considerou que a situação de um cidadão da União que é objeto de pedidos de extradição provenientes de um Estado terceiro, e que fez uso do seu direito de livre circulação na União, está abrangida pelo artigo 21.o TFUE e, por conseguinte, pelo direito da União, para efeitos do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. A mesma lógica deve ser válida para um cidadão da União que pretenda efetiva e verdadeiramente fazer uso dessa liberdade ( 26 ). Por conseguinte, se o obstáculo à liberdade de circulação do demandante faz com que a sua situação esteja abrangida pelo âmbito de aplicação da Carta, o direito consagrado no seu artigo 50.o também deve ser aplicável a essa situação.

72.

Especialmente, a situação do demandante que não pode circular da Alemanha para outros Estados‑Membros da União devido ao risco de detenção e, possivelmente, posterior extradição para um Estado terceiro, é semelhante à situação já analisada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Schottöfer ( 27 ). Nesse processo, a extradição para um Estado terceiro (os Emirados Árabes Unidos) foi impedida, uma vez que a pessoa em questão estava sob risco de pena de morte. No presente processo, uma detenção ou uma medida semelhante, com vista a uma extradição posterior para um Estado terceiro (os Estados Unidos), deve ser excluída em razão do princípio ne bis in idem.

73.

Por último, limito‑me a acrescentar que o artigo 50.o não é a única disposição pertinente da Carta numa situação como a que está aqui em causa. Particularmente, uma interpretação restritiva do artigo 54.o da CAAS poderia também criar problemas, nomeadamente, ao abrigo do artigo 6.o (liberdade e segurança) e do artigo 45.o (liberdade de circulação) da Carta. Embora estas disposições não tenham sido referidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, parecem ser igualmente pertinentes no caso em apreço. Na minha opinião, não é evidente que se possa considerar que a ingerência nos direitos consagrados por estas disposições, provocada por medidas restritivas adotadas para executar um alerta vermelho, cumpre os requisitos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, quando, por exemplo, a pessoa em questão já foi absolvida de determinadas acusações em matéria penal ou cumpriu plenamente a pena que lhe foi aplicada.

3) Obrigações bilaterais de direito internacional da União e dos Estados‑Membros

74.

Em terceiro lugar, admito que o argumento de alguns intervenientes de que o princípio ne bis in idem não constitui um fundamento absoluto de recusa ao abrigo do Acordo UE‑EUA reveste, pelo menos à primeira vista, uma certa solidez. Não é irrazoável sustentar que, se o legislador da União tivesse pretendido conferir ao princípio ne bis in idem um alcance «extra‑Schengen», ter‑se‑ia incluído, eventualmente, um fundamento de recusa ad hoc no acordo.

75.

Contudo, após uma análise mais aprofundada, este argumento não é de forma nenhuma determinante. Desde logo, é desnecessário indicar que pode haver várias razões para a inexistência de uma disposição específica nesta matéria, incluindo a relutância das autoridades norte‑americanas em aceitá‑la ( 28 ). Importa sobretudo chamar a atenção para o artigo 17.o, n.o 2, do Acordo UE‑EUA, nos termos do qual, «quando os princípios constitucionais ou as decisões judiciais transitadas em julgado do Estado requerido possam obstar ao cumprimento da sua obrigação de extradição e a resolução dessa questão não esteja prevista no presente acordo nem no tratado bilateral aplicável, se realizam consultas entre o Estado requerido e o Estado requerente».

76.

Esta disposição significa que as partes contratantes reconhecem a possibilidade de, no âmbito das respetivas ordens jurídicas, alguns princípios constitucionais ou decisões judiciais transitadas em julgado poderem «obstar ao cumprimento [da] obrigação de extradição», apesar de as partes não terem concordado quanto ao facto de dar origem a um fundamento absoluto de recusa ( 29 ). O simples facto de esse princípio ou decisão não proibir automaticamente a extradição, mas exigir que as autoridades desencadeiem o procedimento de consulta estabelecido no acordo, não põe em causa a existência (e natureza vinculativa) do impedimento jurídico.

77.

Também não é pertinente, neste contexto, e tal como invocado por vários governos, que, uma vez que o Acordo UE‑EUA não regula a extradição nas situações em que o princípio ne bis in idem é aplicável, esta questão é, no estado atual do direito, regulada apenas pelo direito nacional. Neste contexto, o Governo alemão sustentou ainda que uma interpretação ampla do artigo 54.o da CAAS teria consequências negativas nas relações entre os Estados‑Membros da União e os Estados terceiros, pois pode tornar mais difícil, ou mesmo impossível, o cumprimento dos acordos internacionais em que são parte (e, por conseguinte, o princípio pacta sunt servanda).

78.

Perante a falta de regulamentação da União na matéria, é certo que as normas sobre extradição são da competência dos Estados‑Membros ( 30 ). No entanto, nas situações abrangidas pelo direito da União, as normas nacionais em causa devem ser aplicadas em conformidade com este, e especialmente com as liberdades garantidas pelo artigo 21.o TFUE ( 31 ).

79.

Já em 1981, o Tribunal de Justiça declarou que «a legislação penal e as regras de processo penal são da competência dos Estados‑Membros. Contudo, […] o direito comunitário também fixa determinados limites nesse domínio no que diz respeito às medidas de controlo que o mesmo permite aos Estados‑Membros manter no âmbito da livre circulação de pessoas e de mercadorias» ( 32 ). Isso deve ser válido a fortiori cerca de 40 anos mais tarde, quando os Estados‑Membros se comprometeram a proporcionar aos seus cidadãos «um espaço de liberdade, segurança e justiça [(“ELSJ”)] sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre de circulação de pessoas» ( 33 ).

80.

Por conseguinte, os Estados‑Membros da União continuam efetivamente a poder regular a matéria e, neste contexto, celebrar acordos bilaterais (ou multilaterais) com Estados terceiros. No entanto, tal só é legítimo na medida em que não aceitem nenhum compromisso incompatível com as obrigações decorrentes do direito da União. Em princípio, mesmo nos domínios sujeitos à competência nacional e fora do contexto específico do artigo 351.o TFUE, os Estados‑Membros não podem contornar ou derrogar as suas obrigações de direito da União através de acordos celebrados com países terceiros. Isso iria, por princípio, pôr em causa o princípio do primado do direito da União ( 34 ).

81.

Estas considerações revestem especial importância no presente processo, que tem por objeto um direito consagrado na Carta. O Tribunal de Justiça afirmou reiteradamente que as competências da União Europeia devem ser exercidas com observância do direito internacional e que as medidas adotadas ao abrigo dessas competências devem ser interpretadas, e — sendo caso disso — o respetivo âmbito de aplicação circunscrito, à luz das regras pertinentes do direito internacional ( 35 ). Contudo, o Tribunal de Justiça também esclareceu que o primado do direito internacional sobre disposições do direito da União não se estende ao direito primário da União e, especialmente, aos princípios gerais do direito da União dos quais os direitos fundamentais fazem parte ( 36 ). Por conseguinte, nem a União nem os Estados‑Membros (na medida em que atuem dentro do âmbito de aplicação dos Tratados da União) podem justificar uma possível violação de direitos fundamentais com o seu dever de cumprir um ou mais tratados ou instrumentos internacionais.

82.

Em todo o caso, o argumento de que a interpretação do artigo 54.o da CAAS aqui proposta tornaria difícil, ou mesmo impossível, os Estados‑Membros respeitarem o princípio pacta sunt servanda não se afigura correto, pelo menos no que se refere ao Estatuto da Interpol. Um alerta vermelho emitido pela Interpol não obriga os seus membros a proceder, em todas as circunstâncias, à detenção ou à adoção de medidas restritivas da circulação da pessoa procurada. São obrigados a informar a Interpol e o Estado requerente de que a pessoa procurada foi localizada no seu território, mas quaisquer outras medidas, incluindo de restrição da livre circulação dessa pessoa, só podem ser adotadas, nos termos do artigo 87.o das RITD, na medida em que sejam «permitidas ao abrigo do direito nacional e dos tratados internacionais aplicáveis» ( 37 ). Na realidade, esta disposição também se refere ao «controlo» da pessoa procurada como uma alternativa possível às medidas restritivas da sua circulação. Além disso, como referido no n.o 27, supra, um alerta vermelho não impõe de forma nenhuma a um Estado a extradição da pessoa objeto desse alerta. Para esse efeito, é necessário um pedido específico, não regulado pelas regras da Interpol.

83.

Por conseguinte, entendo que o artigo 54.o da CAAS pode ser aplicável às situações em que uma pessoa tenha sido julgada ou possa sê‑lo num Estado terceiro. Uma vez que a aplicabilidade do princípio ne bis in idem foi determinada de forma vinculativa a nível horizontal por um Estado‑Membro, este princípio evitará que essa pessoa seja extraditada pelo mesmo facto para qualquer outro Estado‑Membro. É nesta dimensão que o princípio ne bis in idem e o reconhecimento mútuo operam: um segundo (ou terceiro ou mesmo quarto) Estado‑Membro será obrigado a reconhecer e a aceitar o facto de o primeiro Estado‑Membro ter analisado o pedido de extradição, se ter certificado de que existia efetivamente uma identidade entre uma condenação anterior na União e o(s) facto(s) pelos quais a extradição era pedida e ter chegado à conclusão de que, relativamente a esses factos, o princípio ne bis in idem foi desencadeado e ter indeferido, a esse título, o pedido de extradição ( 38 ).

84.

Nesta perspetiva, a apreciação já feita sobre a existência do obstáculo do princípio ne bis in idem à extradição pelo primeiro Estado‑Membro ao qual foi apresentado o pedido pode possivelmente ser vinculativa para todos os outros Estados‑Membros aos quais seja apresentado um pedido de extradição subsequente relativamente à mesma pessoa. Mas nesta dimensão, e contrariamente a vários argumentos de direito e política internacionais adiantados na presente secção por vários intervenientes, não há uma restrição (certamente nenhuma direta) aos acordos bilaterais ou às obrigações de direito internacional dos Estados‑Membros. Estes podem certamente ser aplicados se o Estado‑Membro for de facto o primeiro Estado a tratar a questão. É apenas necessário que seja aceite uma decisão sobre a mesma matéria já tomada por outro Estado‑Membro na União. Uma vez tomada esta decisão, e em caso de indeferimento de um pedido de extradição, um cidadão da União beneficiará de um certo «escudo de proteção» na União, estando autorizado a circular livremente na União, sem receio de ser julgado pelo(s) mesmo(s) facto(s).

c)   Quando a aplicação efetiva do princípio ne bis in idem não é demonstrada num caso concreto

85.

O Tribunal de Justiça afirmou reiteradamente que o artigo 54.o da CAAS implica a existência de uma confiança mútua dos Estados contratantes nos respetivos sistemas de justiça penal e que cada um dos referidos Estados aceite a aplicação do direito penal em vigor nos outros Estados contratantes, ainda que a aplicação do seu próprio direito nacional conduzisse a uma solução diferente. Esta confiança mútua implica que as autoridades competentes em causa do segundo Estado contratante aceitem uma decisão definitiva que foi proferida no território do primeiro Estado contratante nos termos em que foi comunicada a essas autoridades ( 39 ).

86.

No entanto, o Tribunal de Justiça esclareceu que a referida confiança mútua apenas pode prosperar se o segundo Estado contratante estiver em condições de assegurar, com base nos documentos comunicados pelo primeiro Estado contratante, que a decisão tomada pelas autoridades competentes desse primeiro Estado constitui efetivamente uma decisão definitiva que contém uma apreciação sobre o mérito do processo ( 40 ).

87.

Estes princípios revestem especial importância no presente processo. Com efeito, resulta dos autos, tal como completado pelos esclarecimentos úteis do BKA e do Governo alemão, que, até hoje, não houve nenhuma decisão final, muito menos judicial, sobre a questão de saber se as acusações para as quais a Interpol emitiu o alerta vermelho contra o demandante têm por objeto os mesmos factos pelos quais o seu processo em Munique foi definitivamente julgado. Assim, não há nenhuma decisão vinculativa de que o princípio ne bis in idem seja, na verdade, aplicável à situação do demandante no processo principal.

88.

Conforme o BKA explicou nas suas observações, essa decisão não era necessária no caso em apreço. Tendo em conta a nacionalidade do demandante, o BKA nunca tomou medidas para executar o alerta vermelho no território da República Federal da Alemanha. Entendo que, à luz da proibição de extradição dos cidadãos alemães consagrada no artigo 16.o, n.o 2, da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, de 23 de maio de 1949 (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha), conforme alterada, se trata da abordagem do BKA em todas as situações em que um alerta vermelho diga respeito a um cidadão alemão que, em qualquer caso, não pode ser extraditado para um Estado no exterior da União, independentemente da possível aplicabilidade do princípio ne bis in idem.

89.

Isto explica porque, na sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a questão de saber se os Estados‑Membros podem executar um alerta vermelho quando outro Estado‑Membro tenha comunicado à Interpol e, portanto, também aos outros membros da Interpol, as suas «dúvidas» («Bedenken», no pedido de decisão prejudicial original) a respeito da aplicabilidade do princípio ne bis in idem. O texto da adenda ao alerta vermelho publicado pela Interpol em 2013 reflete esta posição. Tem a seguinte redação: «[O Gabinete Central Nacional de] Wiesbaden considera que há que aplicar a proibição da dupla punição, uma vez que as acusações, nas quais se baseia o alerta vermelho (sic), são idênticas a uma infração pela qual o Ministério Público de Munique instaurou uma ação penal, que foi encerrada» ( 41 ).

90.

O facto de, além de uma «e‑sticker» («e‑etiqueta») inserida na base de dados da Interpol por um agente da polícia nacional, nunca ter havido uma decisão vinculativa final quanto à identidade dos factos ou à aplicação do princípio ne bis in idem a esses factos decorre igualmente da cronologia dos acontecimentos: a decisão do Ministério Público em causa data de 2009; o alerta vermelho foi publicado pela Interpol em 2012; e o demandante intentou uma ação no órgão jurisdicional de reenvio em 2017. Não há nenhuma indicação nos autos de qualquer processo, na Alemanha ou noutro Estado‑Membro da União ( 42 ), em que a questão da possível aplicabilidade do princípio ne bis in idem tenha sido colocada e decidida.

91.

Desta forma, embora — conforme explicado acima — o artigo 54.o da CAAS se afigure, de forma abstrata, aplicável a uma situação como a que está em causa no processo principal, a questão de saber se os dois processos em causa dizem respeito ao mesmo facto aparentemente não foi (ainda) objeto de uma decisão, muito menos final, das autoridades competentes da Alemanha ou de qualquer outro Estado‑Membro da União. Por conseguinte, pelo menos até ao momento, não existe nenhuma decisão que outros Estados‑Membros, à luz do princípio da confiança mútua, possam e devam reconhecer e aceitar como equivalente às suas próprias decisões.

92.

Nestas condições, parece‑me que nada impede os Estados‑Membros diferentes da Alemanha de executarem um alerta vermelho emitido pela Interpol contra o demandante. As meras dúvidas expressas pelas autoridades policiais de um Estado‑Membro sobre a aplicabilidade do princípio ne bis in idem não podem, para os efeitos do artigo 54.o da CAAS, ser equiparadas à decisão definitiva que declare esse princípio efetivamente aplicável.

93.

Reconheço certamente a situação difícil do demandante. Todavia, as consequências jurídicas indicadas na secção anterior e visadas pelo demandante só podem ser atribuídas a uma decisão adequada proferida nesse sentido. Deve existir um equilíbrio entre a proteção e a impunidade. O Tribunal de Justiça já afirmou que o artigo 54.o da CAAS «não tem por objetivo proteger um suspeito contra a eventualidade de vir a ser objeto de investigações sucessivas, pelos mesmos factos, em vários Estados contratantes» ( 43 ). Com efeito, a interpretação desta disposição deve ser feita «não apenas à luz da necessidade de garantir a livre circulação de pessoas mas também de promover a prevenção da criminalidade e de lutar contra esse fenómeno no [ELSJ]» ( 44 ). Nos Acórdãos Petrohhuin e Pisciotti, o Tribunal de Justiça salientou que as medidas da União adotadas no ELSJ devem conciliar os imperativos da livre circulação de pessoas com a necessidade de adotar as medidas adequadas para prevenir e combater a criminalidade. Especialmente, as medidas da União devem igualmente visar evitar o risco de impunidade das pessoas que cometeram uma infração ( 45 ).

94.

O processo reflete estas considerações. Há uma disposição específica da CAAS que prevê a situação em que existem dúvidas quanto à possibilidade de a pessoa objeto de uma ação penal num Estado contratante beneficiar efetivamente do princípio ne bis in idem a este respeito. O artigo 57.o da CAAS dispõe que «sempre que uma pessoa seja acusada de uma infração por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão. As informações solicitadas serão fornecidas o mais rapidamente possível e serão tomadas em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso». Neste contexto, esta disposição é uma manifestação do princípio da cooperação leal consagrado no artigo 4.o, n.o 3, TUE.

95.

Por conseguinte, caso existam indícios de que o princípio ne bis in idem pode ser aplicável às acusações para as quais a Interpol emitiu um alerta vermelho contra um cidadão da União, é de esperar que as autoridades de outros Estados‑Membros — em caso de localização da pessoa no seu território —, à luz do artigo 57.o da CAAS, i) atuem rapidamente para esclarecer a situação e ii) tenham devidamente em conta as informações fornecidas pelo outro Estado‑Membro. Como foi referido no n.o 85, supra, o Tribunal de Justiça já deixou claro que os Estados‑Membros devem ter a possibilidade de se certificar, com base nos documentos fornecidos pelo Estado‑Membro onde a pessoa foi julgada, de que os requisitos de aplicação do princípio ne bis in idem estão preenchidos.

96.

Enquanto as autoridades competentes do Estado‑Membro não puderem verificar se o princípio ne bis in idem é aplicável, devem evidentemente estar autorizadas a executar o alerta vermelho e, caso considerem adequado e necessário, restringir a liberdade de circulação da pessoa procurada. Com efeito, não existe nenhum fundamento no direito da União que as impeça de cumprir as suas normas nacionais nesta matéria nem, sendo caso disso, os tratados internacionais eventualmente aplicáveis. No entanto, uma vez tomada essa decisão pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro, confirmando eventualmente que o princípio ne bis in idem foi validamente desencadeado relativamente a um dado alerta vermelho, todos os outros Estados‑Membros ficam vinculados a essa decisão final específica.

d)   Conclusão intermédia (e uma analogia interna)

97.

À luz das considerações precedentes, entendo que o artigo 54.o da CAAS, lido em conjugação com o artigo 50.o da Carta, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE se opõem a que os Estados‑Membros executem um alerta vermelho emitido pela Interpol a pedido de um Estado terceiro, restringindo, assim, a liberdade de circulação de uma pessoa, desde que tenha havido uma decisão definitiva da autoridade competente de um Estado‑Membro quanto à aplicação efetiva do princípio ne bis in idem no que se refere às acusações específicas para as quais esse alerta foi emitido.

98.

Como nota de rodapé final relativamente a esta proposta de resposta, observo que esta solução seria também sistematicamente coerente com os instrumentos internos da União que regulam questões semelhantes, como a Diretiva 2014/41/UE, relativa à decisão europeia de investigação (a seguir «DEI») em matéria penal ( 46 ), ou a Decisão‑Quadro 2002/584/JAI, relativa ao mandado de detenção europeu (a seguir «MDE») ( 47 ).

99.

De acordo com o artigo 11.o, n.o 1, alínea d), da Diretiva 2014/41, o princípio ne bis in idem constitui um dos motivos de não reconhecimento ou de não execução de uma DEI. Neste contexto, não se pode ignorar que as DEI possam também ser adotadas antes da instauração efetiva do processo penal ( 48 ) e igualmente em processos que não são formalmente qualificados de «penais» nos termos do direito nacional ( 49 ). Outro instrumento que inclui disposições semelhantes às incluídas na Diretiva 2014/41 é a Decisão‑Quadro 2002/584. Essas disposições mostram que o artigo 54.o da CAAS não pode ser interpretado de forma restritiva: o princípio ne bis in idem não é concebido pelo legislador da União como uma mera proibição de um cidadão estar perante um tribunal mais do que uma vez. Vai obviamente além disso. Este princípio deve, pelo menos, proibir medidas que, seja qual for a sua qualificação nos termos do direito nacional, restrinjam gravemente as liberdades de uma pessoa (como a detenção ou a prisão temporária) e cuja adoção apresente um nexo lógico, funcional e cronológico com o processo penal, mesmo que seja num Estado terceiro ( 50 ).

100.

Em segundo lugar, estes dois instrumentos confirmam igualmente que, para que o efeito de proibição do princípio ne bis in idem se possa materializar, é necessário que exista uma decisão final quanto à aplicação efetiva deste princípio ao caso concreto. Com efeito, o legislador da União seguiu uma abordagem semelhante no que se refere à execução de uma DEI. Segundo o considerando 17 da Diretiva 2014/41, as autoridades dos Estados‑Membros podem recusar executar uma DEI quando for contrária ao princípio ne bis in idem. No entanto, «[d]ada a natureza preliminar do processo subjacente à DEI, a sua execução não deverá ser recusada quando visar determinar um eventual conflito com o princípio de ne bis in idem» ( 51 ). Evidentemente, uma DEI é menos restritiva do que uma medida restritiva da liberdade de circulação de um cidadão, mas, provavelmente, o princípio subjacente parece transponível para as situações reguladas pelos artigos 54.o e 57.o da CAAS. Da mesma forma, segundo o artigo 3.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584, a aplicação do princípio ne bis in idem constitui um dos motivos de não execução obrigatória do MDE. Contudo, enquanto a autoridade judicial de execução não tomar uma decisão sobre a execução do MDE, incluindo sobre a eventual aplicação do artigo 3.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, a pessoa em causa pode, nos termos dos artigos 11.o e 12.o da mesma, ser detida e mantida em detenção ( 52 ).

2.   Quanto à quarta e sexta questões prejudiciais

101.

Com a quarta e sexta questões, que podem ser examinadas em conjunto, o tribunal nacional pretende saber, em substância, se as disposições da Diretiva 2016/680, lidas em conjugação com o artigo 54.o da CAAS e o artigo 50.o da Carta, se opõem ao tratamento posterior de dados pessoais contidos num alerta vermelho emitido pela Interpol quando o princípio ne bis in idem se aplica às acusações para as quais esse alerta foi emitido.

102.

Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, em circunstâncias como as do caso em apreço, uma vez estabelecida a aplicação do princípio ne bis in idem, os Estados‑Membros devem ser obrigados a apagar os dados pessoais da pessoa procurada contidos no alerta vermelho e a abster‑se de qualquer tratamento posterior desses dados. A este respeito, refere‑se ao artigo 4.o, n.o 1, ao artigo 7.o, n.o 3, ao artigo 8.o, n.o 1, e ao artigo 16.o da Diretiva 2016/680.

103.

Desde logo, em primeiro lugar gostaria de salientar que, pelas razões expostas nos n.os 85 a 92, supra, não é claro se o princípio ne bis in idem é efetivamente aplicável ao presente processo. Nenhuma decisão vinculativa parece ter sido adotada no caso em apreço. Nesta perspetiva, é certo que se pode arguir que a questão posterior, partindo do pressuposto de que o princípio ne bis in idem é efetivamente aplicável e o que iria significar para o tratamento de dados, é, nesta fase, hipotética. No entanto, se esse princípio for aplicável, proponho a resposta seguinte ao órgão jurisdicional de reenvio.

104.

Antes de mais, uma situação como a que está em causa no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2016/680, conforme estabelecido no seu artigo 1.o, n.o 1. O tratamento, pelas autoridades dos Estados‑Membros, dos dados pessoais contidos em alertas vermelhos emitidos pela Interpol incide sobre uma pessoa singular identificável (a pessoa procurada) e visa o julgamento dessa pessoa por infrações penais ou a execução de sanções penais (tendo em conta a finalidade dos alertas vermelhos nos termos do artigo 82.o das RITD).

105.

Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680, os Estados‑Membros devem, nomeadamente, assegurar que os dados pessoais sejam «objeto de um tratamento lícito e leal» (alínea a), «recolhidos para finalidades […] legítimas, e não tratados de uma forma incompatível com essas finalidades» (alínea b), e «exatos e atualizados sempre que necessário». Por sua vez, o artigo 8.o, n.o 1, da diretiva indica que os «Estados‑Membros preveem que o tratamento só seja lícito se e na medida em que for necessário para o exercício de uma atribuição pela autoridade competente para os efeitos previstos no artigo 1.o, n.o 1, e tiver por base o direito da União ou de um Estado‑Membro».

106.

É pacífico que os requisitos estabelecidos no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680 estão, em princípio, preenchidos quando as autoridades dos Estados‑Membros procedem ao tratamento dos dados pessoais contidos num alerta vermelho com vista à sua execução. É igualmente pacífico que, ao fazê‑lo, as autoridades dos Estados‑Membros atuam tanto com base no direito da União como no direito nacional. Como esclarece o considerando 25 da Diretiva 2016/680, «todos os Estados‑Membros fazem parte da [Interpol]. No exercício das suas atribuições, a Interpol recebe, conserva e divulga dados pessoais a fim de auxiliar as autoridades competentes na prevenção e no combate à criminalidade internacional. Por conseguinte, é conveniente reforçar a cooperação entre a União e a Interpol mediante a promoção de um eficaz intercâmbio de dados pessoais, assegurando ao mesmo tempo o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais no que se refere ao tratamento dos dados pessoais. Caso sejam transferidos dados pessoais da União para a Interpol e para países que destacaram membros para a Interpol, a presente diretiva deverá aplicar‑se, em particular, no que diz respeito às disposições sobre transferências internacionais» ( 53 ).

107.

Além disso, também é claro que o tratamento de dados contidos num alerta vermelho é necessário para a execução de uma missão por uma autoridade competente para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou de execução de sanções penais. Os acordos relativos aos alertas codificados por cores, instituídos pela Interpol, constituem um dos pilares do sistema de assistência mútua entre forças de polícia judiciária para o qual a Interpol foi criada. Na medida em que permitem uma localização mais rápida e eficaz e, eventualmente, intentar uma ação penal contra fugitivos, os alertas vermelhos contribuem significativamente para o objetivo da União que consiste em proporcionar aos seus cidadãos um ELSJ no qual são adotadas medidas adequadas no âmbito da prevenção e da luta contra a criminalidade.

108.

Por conseguinte, não há dúvidas de que o tratamento, pelas autoridades dos Estados‑Membros (ou, a este título, da União), dos dados pessoais contidos num alerta vermelho emitido pela Interpol é, em princípio, lícito.

109.

Assim sendo, a questão essencial invocada pelo órgão jurisdicional de reenvio é a de saber se é esse o caso mesmo que se demonstre que um alerta vermelho emitido contra um particular diz respeito a factos relativamente aos quais, no interior da União, beneficia do princípio ne bis in idem. Mais especificamente, nesse caso, se a Diretiva 2016/680 i) obriga as autoridades dos Estados‑Membros a apagar os dados pessoais do particular e ii) se opõe a qualquer tratamento posterior de dados pessoais pelas autoridades desses Estados‑Membros?

110.

A meu ver, a reposta a ambas as questões deve ser negativa.

111.

Em primeiro lugar, é certo que o artigo 7.o, n.o 3, da Diretiva 2016/680 dispõe que, se se verificar que foram transmitidos dados pessoais inexatos ou que foram transmitidos dados pessoais de forma ilícita, o destinatário deve ser informado sem demora. Neste caso, em conformidade com o artigo 16.o desta diretiva, os dados pessoais devem ser retificados ou apagados ou o seu tratamento limitado.

112.

Contudo, contrariamente ao que dá a entender o órgão jurisdicional de reenvio, o facto de um particular poder beneficiar do princípio ne bis in idem relativamente às acusações para as quais um alerta vermelho foi emitido não significa que os dados contidos nesse alerta tenham sido transmitidos de forma ilícita. O princípio ne bis in idem não pode pôr em causa a veracidade e a exatidão de dados como, por exemplo, as informações pessoais, o facto de essa pessoa ser procurada num Estado terceiro por ter sido acusada ou declarada culpada de certos crimes e o facto de ter sido emitido um mandado de detenção contra ela nesse Estado. A transmissão inicial destes dados também não é ilícita, pelas razões acima expostas.

113.

Por conseguinte, a aplicação do princípio ne bis in idem não implica, para a pessoa em causa, o direito, nos termos do artigo 16.o da Diretiva 2016/680, de pedir o apagamento dos seus dados pessoais.

114.

Em segundo lugar, não se pode alegar validamente que, se o princípio ne bis in idem for aplicável, deve ser excluído qualquer tratamento posterior dos dados pessoais.

115.

O artigo 3.o, n.o 2, da diretiva define «tratamento» como «uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição». Os argumentos apresentados pelo demandante — e com os quais o órgão jurisdicional de reenvio parece concordar — implicam que, a partir do momento em que seja demonstrada a aplicabilidade do princípio ne bis in idem, nenhuma dessas operações (com exceção do apagamento) é possível.

116.

No entanto, não encontro nenhum fundamento para tal conclusão na Diretiva 2016/680. Não se pode simplesmente equiparar possíveis «ações penais ilícitas» a um «tratamento de dados ilícito» na aceção da Diretiva 2016/680. Nada no texto desta diretiva, nem certamente na sua sistemática ou finalidade, permite que a lógica subjacente ao artigo 54.o da CAAS seja transposta para o sistema de proteção de dados instituído pela Diretiva 2016/680 e ao órgão jurisdicional de reenvio pronunciar‑se, a este título, sobre a licitude do seu tratamento. Estes instrumentos têm uma razão de ser diferente e prosseguem um objetivo diferente, criando assim outro tipo de quadro jurídico.

117.

Na verdade, parece suceder o contrário do que sugere o órgão jurisdicional de reenvio a este respeito: decorre das disposições desta diretiva que o tratamento posterior dos dados pessoais não só é lícito como, à luz da finalidade do tratamento, até mesmo necessário.

118.

É certo que certas operações de tratamento podem ser necessárias — e assim autorizadas ao abrigo do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680 — para assegurar que a função para a qual os dados foram recolhidos (executar o alerta vermelho) seja efetuada, nomeadamente, de forma «lícita e leal».

119.

Como sublinham a Comissão e vários governos, pode ser necessário algum tratamento posterior dos dados (como a consulta, a adaptação, a divulgação e a difusão) para evitar que a pessoa contra a qual foi emitido o alerta vermelho seja indevidamente objeto de medidas penais nos Estados‑Membros ou, em caso de adoção dessas medidas, para assegurar um rápido levantamento das mesmas.

120.

Do mesmo modo, pode ser necessária alguma adaptação e conservação dos dados para evitar que uma pessoa esteja, no futuro, sujeita (novamente) a medidas possivelmente ilícitas por factos abrangidos pelo princípio ne bis in idem. Por exemplo, como foi referido no n.o 38, supra, no caso em apreço, não se pode excluir que os Estados Unidos possam, no futuro, pedir à Interpol que emita de novo um alerta vermelho pelos mesmos factos. Acrescento que, para determinados crimes, também não é impensável que possa ser emitido um alerta vermelho pelos mesmos factos a pedido de vários Estados.

121.

Por conseguinte, é a própria aplicação do princípio ne bis in idem num caso concreto que pode tornar necessário um tratamento posterior dos dados pessoais contidos no alerta vermelho. Há que sublinhar que esse tratamento posterior é efetuado não apenas no interesse das autoridades dos Estados‑Membros, mas também, ou até mesmo especialmente, no interesse da pessoa que é objeto do alerta vermelho. Se assim não fosse e se todos os dados devessem ser imediatamente apagados uma vez desencadeado o princípio ne bis in idem, as consequências poderiam ser bastante estranhas: o alcance da memória legalmente imposta às autoridades policiais nacionais seria equivalente ao do peixe Dory (ainda À Procura de Nemo ( 54 )), de forma que a pessoa procurada, numa repetição bastante infeliz do Groundhog Day de Bill Murray ( 55 ), acabaria por ser forçada a invocar e a demonstrar repetidamente a proteção do princípio ne bis in idem relativamente às acusações em questão.

122.

Além disso, certos tratamentos de dados posteriores podem igualmente ser autorizados ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2016/680, disposição que não é referida na decisão de reenvio. Esta disposição permite, em determinadas circunstâncias, o tratamento de dados pessoais «para as finalidades previstas no artigo 1.o, n.o 1, diferentes da finalidade para a qual os dados pessoais foram recolhidos» ( 56 ). Isto significa que os dados recolhidos para executar o alerta vermelho também podem ser tratados (por exemplo, organizados, armazenados e arquivados) e sujeitos ao preenchimento de certos requisitos quando seja necessário prosseguir outras finalidades permitidas ao abrigo da diretiva ( 57 ).

123.

Por conseguinte, nem a letra nem a lógica da Diretiva 2016/680 militam a favor de uma interpretação segundo a qual qualquer tratamento posterior é, por si só, proibido. No entanto, é evidente que tal tratamento posterior dos dados pessoais deve ser sempre efetuado em conformidade com os requisitos da Diretiva 2016/680, que continua a ser plenamente aplicável à situação em causa.

124.

Especialmente, partilho da opinião dos Governos alemão e do Reino Unido de que é crucial determinar se o tratamento posterior pode, tendo em conta as circunstâncias específicas, ser considerado «necessário» para os efeitos dos artigos 4.o e 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680. Simplificando, coloca-se a questão de saber se uma determinada operação de tratamento é necessária tendo em conta o facto de a pessoa beneficiar do princípio ne bis in idem.

125.

Por exemplo, o armazenamento contínuo dos dados com a indicação de que a pessoa não pode ser objeto de uma ação penal por esses factos devido ao princípio ne bis in idem pode provavelmente ser considerado «necessário», enquanto uma difusão posterior da informação às forças policiais de que essa pessoa é procurada com base num alerta vermelho pode não o ser. É evidente que essa apreciação só pode ser efetuada casuisticamente, à luz de todas as circunstâncias pertinentes.

126.

Nesse contexto, pode sublinhar‑se que, por força do artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2016/680, o responsável pelo tratamento deve comprovar o cumprimento do critério da necessidade. Além disso, importa recordar que o titular dos dados tem certos direitos que lhe são conferidos pelos artigos 12.o a 18.o da mesma.

127.

Por exemplo, posso imaginar que possa ser reconhecido à pessoa contra a qual foi emitido um alerta vermelho o direito de pedir às autoridades dos Estados‑Membros que completem ou atualizem, nas suas bases de dados, os dados contidos num alerta vermelho, indicando, se necessário, que, dentro da União, já foi julgada e absolvida ou condenada por esses factos. Com efeito, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, alínea d), da Diretiva 2016/680, os Estados‑Membros devem prever que os dados pessoais sejam, nomeadamente, «exatos e atualizados sempre que necessário». Para este efeito, o artigo 16.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680 reconhece aos titulares de dados, nomeadamente, o «direito a que os seus dados pessoais incompletos sejam completados». Contudo, cabe notar que, no âmbito do presente processo, tal cenário apresenta um caráter ainda algo hipotético, tendo em conta que a aplicabilidade do princípio ne bis in idem à situação do demandante não parece ter sido confirmada por nenhuma autoridade competente de um Estado‑Membro.

128.

À luz das considerações precedentes, considero que as disposições da Diretiva 2016/680, lidas em conjugação com o artigo 54.o da CAAS e o artigo 50.o da Carta, não se opõem ao tratamento posterior de dados pessoais contidos num alerta vermelho emitido pela Interpol, mesmo que o princípio ne bis in idem seja aplicável às acusações para as quais o alerta foi emitido, desde que o tratamento seja efetuado em conformidade com as regras estabelecidas nesta diretiva.

3.   Quanto à quinta questão

129.

Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma organização internacional como a Interpol dispõe de um nível de proteção de dados adequado para efeitos da Diretiva 2016/680 quando não exista uma decisão de adequação nos termos do artigo 36.o desta diretiva e/ou na falta de garantias adequadas nos termos do artigo 37.o da mesma.

130.

A resposta a esta questão, tendo em conta a sua formulação, é bastante simples. As disposições da Diretiva 2016/680 são claras quanto a esse aspeto: uma organização internacional não dispõe de um nível de proteção de dados adequado para efeitos da Diretiva 2016/680 se não existir uma decisão de adequação nos termos do seu artigo 36.o nem as garantias adequadas na aceção do seu artigo 37.o, a menos que seja aplicável uma das exceções indicadas no seu artigo 38.o

131.

No entanto, suspeito de que o órgão jurisdicional de reenvio não pretende uma resposta tão abstrata e genérica, que se limita a reencaminhá‑lo para a relação entre as diferentes disposições do capítulo V da Diretiva 2016/680.

132.

Esta impressão é confirmada pela decisão de reenvio. O órgão jurisdicional de reenvio afirma que, se a Interpol, numa situação como a que está em causa no processo principal, não garante que os dados pessoais contidos num alerta vermelho sejam, em razão da aplicabilidade do princípio ne bis in idem, devidamente apagados ou corrigidos, podem surgir dúvidas quanto à adequação das regras da Interpol em matéria de proteção de dados à luz da Diretiva 2016/680. Em última análise, isso levaria à questão — segundo o órgão jurisdicional de reenvio — de saber se os Estados‑Membros se devem abster de cooperar com a Interpol.

133.

O órgão jurisdicional de reenvio remete, a este respeito, para o considerando 64 da Diretiva 2016/680, segundo o qual «[c]aso os dados pessoais sejam transferidos da União para responsáveis pelo tratamento de dados, para subcontratantes ou para outros destinatários em países terceiros ou organizações internacionais, o nível de proteção das pessoas singulares assegurado na União […] deverá continuar a ser garantido». A Diretiva 2016/680 não regula expressamente a situação inversa da transferência de dados a partir de um país terceiro ou de uma organização internacional para os Estados‑Membros da União. No entanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, devem ser aplicados os mesmos princípios.

134.

Estas afirmações deixam‑me algo perplexo. Afigura‑se que, com a quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede, na realidade, ao Tribunal de Justiça que confirme a sua tese de que a Interpol não dispõe de um nível de proteção de dados adequado à luz da Diretiva 2016/680, pelo facto de não existir uma decisão de adequação nem garantias adequadas.

135.

Contudo, não só não estou convencido da premissa em que se baseia esta questão, como, mais importante que isso, não vejo por que razão esta questão é suscitada no âmbito do presente processo.

136.

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a Diretiva 2016/680 contém uma lacuna, na medida em que não regula a transferência (entrada) de dados pessoais a partir de organizações internacionais para a União e para os Estados‑Membros. Ainda assim, a existência dessa lacuna não é, na minha opinião, de modo nenhum evidente. O legislador da União regulou a transferência de dados pessoais a partir da União para terceiros (quer se trate de uma organização internacional ou de um Estado terceiro) a fim de garantir que esses dados, uma vez saídos do «espaço virtual» da União, continuem a ser tratados segundo normas equivalentes. No entanto, a situação da transferência de dados pessoais de um terceiro para a União é naturalmente diferente. Quando estes dados tenham entrado no «espaço virtual» da União, qualquer tratamento deve cumprir o conjunto das regras pertinentes da União. Nestas situações, pode não haver necessidade, por conseguinte, de regras como as estabelecidas nos artigos 36.o a 38.o da Diretiva 2016/680. A União também não tem interesse (e muito menos o poder) em exigir de terceiros que procedam ao tratamento de dados pessoais que não provenham da União segundo regras equivalentes às suas.

137.

Em segundo lugar, e ainda mais importante, também não consigo entender como é que é necessária uma resposta do Tribunal de Justiça a essa questão para que o órgão jurisdicional de reenvio possa proferir uma decisão quanto ao processo que lhe foi submetido. O presente processo não tem por objeto a transferência de dados de Estados‑Membros da União para a Interpol, mas a situação inversa. A questão suscitada no presente processo é, em substância, a de saber o que os Estados‑Membros da União podem e não podem fazer, ao abrigo da Diretiva 2016/680, quando recebem dados da Interpol relativamente a uma pessoa à qual o princípio ne bis in idem pode ser aplicável.

138.

Por conseguinte, as consequências que decorram de uma conclusão (hipotética) do Tribunal de Justiça relativamente à inadequação das regras da Interpol em matéria de proteção de dados não têm nenhuma incidência no caso concreto do demandante. Isto leva‑me a considerar, tal como vários intervenientes que apresentaram observações no presente processo, que a quinta questão é manifestamente inadmissível.

V. Conclusão

139.

Proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Verwaltungsgericht Wiesbaden (Tribunal Administrativo de Wiesbaden, Alemanha) nos seguintes termos:

O artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, lido em conjugação com o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e o artigo 21.o, n.o 1, TFUE opõem-se a que os Estados‑Membros executem um alerta vermelho emitido pela Interpol a pedido de um Estado terceiro, restringindo assim a liberdade de circulação de uma pessoa, desde que tenha havido uma decisão definitiva da autoridade competente de um Estado‑Membro quanto à aplicação efetiva do princípio ne bis in idem no que se refere às acusações específicas para as quais esse alerta foi emitido.

As disposições da Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, lidas em conjugação com o artigo 54.o da CAAS e o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais, não se opõem ao tratamento posterior de dados pessoais contidos num alerta vermelho emitido pela Interpol, mesmo que o princípio ne bis in idem seja aplicável às acusações para as quais o alerta foi emitido, desde que o tratamento seja efetuado em conformidade com as regras estabelecidas nesta diretiva.

A quinta questão é inadmissível.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) JO 2000, L 239, p. 19.

( 3 ) JO 2016, L 119, p. 89. Foram omitidas as notas de rodapé nas disposições da diretiva.

( 4 ) BGBl. I, p. 1354.

( 5 ) V., nesse sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2004, Zhu e Chen (C‑200/02, EU:C:2004:639, n.o 31).

( 6 ) Recentemente, com referências adicionais, v. Conclusões do advogado‑geral G. Hogan no processo Generalstaatsanwaltschaft Berlin e o. (C‑398/19, EU:C:2020:748, n.os 73 a 76).

( 7 ) V., nesse sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 1991, Antonissen (C‑292/89, EU:C:1991:80, n.os 8 a 14), e Despacho de 6 de setembro de 2017, Peter Schotthöfer & Florian Steiner (C‑473/15, EU:C:2017:633, n.os 19 a 21).

( 8 ) Em contrapartida, por exemplo, Acórdão de 29 de maio de 1997, Kremzow (C‑299/95, EU:C:1997:254, n.o 16 e jurisprudência referida).

( 9 ) V., nesse sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny zastępowany przez Prokuraturę Krajową (regime disciplinar dos juízes) (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 43 e jurisprudência referida).

( 10 ) V., nomeadamente, Acórdão de 24 de outubro de 2019, État belge (C‑35/19, EU:C:2019:894, n.o 29 e jurisprudência referida).

( 11 ) V. Acórdãos de 11 de março de 1980, Foglia (104/79, EU:C:1980:73), e de 16 de dezembro de 1981, Foglia (244/80, EU:C:1981:302).

( 12 ) Acórdão de 11 de fevereiro de 2003 (C‑187/01 e C‑385/01, EU:C:2003:87, n.o 48).

( 13 ) Acórdão de 5 de junho de 2014 (C‑398/12, EU:C:2014:1057, n.o 31).

( 14 ) Acórdão de 27 de maio de 2014 (C‑129/14 PPU, EU:C:2014:586, n.os 63 e 64).

( 15 ) Acórdão de 10 de março de 2005 (C‑469/03, EU:C:2005:156, n.os 34 e 35).

( 16 ) Acórdão de 22 de dezembro de 2008 (C‑491/07, EU:C:2008:768, n.os 40 e 45).

( 17 ) Acórdão de 29 de junho de 2016 (C‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 54).

( 18 ) V. Acórdão de 28 de setembro de 2006, Gasparini e o. (C‑467/04, EU:C:2006:610, n.o 27 e jurisprudência referida). O sublinhado é nosso.

( 19 ) Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») de 8 de junho de 1976, Engel e o./Países Baixos (CE:ECHR:1976:0608JUD000510071, §§ 80 a 82). Segundo jurisprudência constante do TEDH, os «critérios Engel» devem ser utilizados para determinar se houve uma «acusação em matéria penal» na aceção do artigo 4.o («Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez») do Protocolo Adicional n.o 7 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. V., nomeadamente, Acórdãos de 10 de fevereiro de 2009, Sergey Zolotukhin/Rússia (CE:ECHR:2009:0210JUD001493903, § 53), e de 15 de novembro de 2016, A e B/Noruega (CE:ECHR:2016:1115JUD002413011, §§ 105 a 107).

( 20 ) V., supra, n.o 54 das presentes conclusões.

( 21 ) V., por exemplo, Acórdão de 20 de março de 2018, Menci (C‑524/15, EU:C:2018:197, n.o 25 e jurisprudência referida). O sublinhado é meu.

( 22 ) Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre extradição, de 25 de junho de 2003 (JO 2003, L 181, p. 27) (a seguir «Acordo UE‑EUA»). Esta convenção não é aplicável ao caso em apreço.

( 23 ) O sublinhado é meu.

( 24 ) Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630).

( 25 ) Acórdão de 10 de abril de 2018, Pisciotti (C‑191/16, EU:C:2018:222).

( 26 ) V., supra, n.o 32 das presentes conclusões.

( 27 ) V. Despacho de 6 de setembro de 2017, Peter Schotthöfer & Florian Steiner (C‑473/15, EU:C:2017:633).

( 28 ) Neste contexto, observo que uma abordagem mais restritiva do princípio ne bis in idem parece decorrer de um dos acordos anexos à ratificação dos Estados Unidos do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos em 1992: «Os Estados Unidos entendem que a proibição de dupla punição no n.o 7 [do artigo 14.o] deve ser apenas aplicável quando tenha sido proferida sentença absolutória por um tribunal do mesmo serviço governamental, quer seja o Governo Federal ou uma unidade constituinte, na medida em que pretende instaurar um novo processo pelos mesmos factos».

( 29 ) V., relativamente a esta disposição, Acórdão de 10 de abril de 2018, Pisciotti (C‑191/16, EU:C:2018:222, n.os 39 a 41).

( 30 ) V., nesse sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 26).

( 31 ) V., nesse sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Raugevicius (C‑247/17, EU:C:2018:898, n.o 45), e de 2 de abril de 2020, I.N. (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 48).

( 32 ) Acórdão de 11 de novembro de 1981, Casati (203/80, EU:C:1981:261, n.o 27).

( 33 ) Artigo 3.o, n.o 2, TUE.

( 34 ) V., nomeadamente, nesse sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2010, Comissão/Alemanha (C‑546/07, EU:C:2010:25, n.o 42).

( 35 ) V., nesse sentido, Acórdão de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.o 291 e jurisprudência referida).

( 36 ) Ibidem, n.os 307 e 308.

( 37 ) Esta disposição reflete o artigo 31.o do Estatuto da Interpol, segundo o qual os membros da Interpol «devem fazer, dentro das suas competências, tudo o que seja compatível com as legislações dos seus países para participarem com diligência nas suas atividades».

( 38 ) V. também, nesse sentido, o recente Despacho do Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Frankfurt am Main, Alemanha), de 19 de maio de 2020, 2 AuslA 3/20, ECLI:DE:OLGHE:2020:0519.2AUSLA3.20.00 (também em NStZ‑RR 2020, 288), no qual o tribunal levantou o mandado de detenção nacional para efeitos de extradição (e recusou a extradição para os EUA ao abrigo do acordo bilateral Alemanha — EUA) pelo facto de a pessoa procurada, um cidadão italiano, já ter sido objeto de uma ação penal pelos mesmos factos que os que figuravam no pedido de extradição dos EUA em Itália, o que, segundo o OLG Frankfurt, desencadeava igualmente uma proibição de extradição ne bis in idem noutros Estados‑Membros, incluindo na Alemanha, impedindo a extradição por este último Estado‑Membro ao abrigo do acordo bilateral.

( 39 ) V. Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski (C‑486/14, EU:C:2016:483, n.os 50 e 51 e jurisprudência referida).

( 40 ) Ibidem, n.o 52.

( 41 ) O sublinhado é meu.

( 42 ) Essa decisão poderia ter sido adotada, por exemplo, pelas autoridades judiciais do Estado‑Membro (diferente do seu Estado de residência) no qual o demandante tivesse sido localizado. Consoante as circunstâncias, essas autoridades podiam ter sido chamadas a emitir, confirmar, alterar ou levantar as medidas restritivas pedidas ou impostas pelas autoridades policiais ou pelo Ministério Público, como foi, por exemplo, o caso no contexto factual descrito acima na nota de rodapé n.o 38.

( 43 ) V. Acórdão de 29 de junho de 2016, Kossowski (C‑486/14, EU:C:2016:483, n.o 45 e jurisprudência referida). O sublinhado é meu.

( 44 ) Ibidem, n.o 47.

( 45 ) Respetivamente, Acórdãos de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.os 36 e 37), e de 10 de abril de 2018, Pisciotti (C‑191/16, EU:C:2018:222, n.o 47). O sublinhado é meu.

( 46 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de abril de 2014 (JO 2014, L 130, p. 1).

( 47 ) Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada.

( 48 ) V. artigo 4.o, alínea a), da Diretiva 2014/41.

( 49 ) V. artigo 4.o, alíneas b) a d), da Diretiva 2014/41.

( 50 ) Nesta dimensão, voltando a evidenciar o argumento sistemático essencialmente a fortiori já exposto no n.o 70 das presentes conclusões: seria efetivamente algo surpreendente chegar à solução prática de que, no ELSJ — no âmbito do qual a cooperação penal deve ser facilitada, simplificada e contínua —, se aplicam na verdade regras muito mais estritas e restritivas, ao passo que tudo seria possível quando um Estado terceiro estivesse envolvido.

( 51 ) O sublinhado é meu.

( 52 ) É interessante verificar que, no seu Acórdão de 16 de novembro de 2010, Mantello (C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 40), o Tribunal de Justiça afirmou que, tendo em conta o seu objetivo comum que consiste em evitar que uma pessoa seja de novo objeto de uma ação penal ou julgada pelos mesmos factos, o artigo 54.o da CAAS e o artigo 3.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584 devem ser objeto de uma interpretação uniforme.

( 53 ) O sublinhado é meu. Compreendo que, na Alemanha, a execução de um alerta vermelho tem o seu fundamento, designadamente, nas disposições da Bundeskriminalamtgesetz (Lei do Serviço Federal da Polícia Judiciária).

( 54 ) Finding Nemo (À Procura de Nemo) (2003), realizado por Andrew Stanton e Lee Unkrich (Pixar e Walt Disney).

( 55 ) Groundhog Day (O Feitiço do Tempo) (1993), realizado por Harold Ramis (Columbia Pictures).

( 56 ) O sublinhado é meu.

( 57 ) Além disso, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2016/680, o tratamento também pode incluir «o arquivo de interesse público e a utilização científica, estatística ou histórica dos dados para as finalidades previstas no artigo 1.o, n.o 1, sob reserva de garantias adequadas dos direitos e liberdades do titular dos dados».